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Conta-me histórias.
Era uma vez um Ministério da Cultura, há coisa de vinte anos, a altura em que se começou
a perceber que as tecnologias digitais, os computadores, podiam ser não apenas
ferramentas administrativas mas também meios de divulgação da cultura e do património.
A Internet comercial era uma recém-nascida em Portugal, saída da lama primordial
universitária. Era realmente inovador pensar em sites de museus e monumentos. A maior
parte de quem a estas coisas se dedicava ainda pensava em CD-ROM e CD-I. Havia
disquetes. Coisas que a história se encarregou de devorar.
Hoje, é verdade, muitas coisas mudaram, o milénio entre elas. Mudou certamente o lugar
do digital nas nossas vidas, omnipresente, dos bolsos às secretárias à sala de estar, todos os
ecrãs, seja qual for o seu tamanho. Vivemos numa paisagem mediática dominada pela
Internet, essa Biblioteca de Babel que gera e devora mundos. E a própria Internet é cada
vez mais invisível enquanto meio, ligando tudo e todos, uma espécie de ar que se respira.
Interessam sempre os princípios, a maneira como as coisas começam, por isso vale a pena
recuar vinte anos. É no final do século passado que encontro pistas para as reflexões que o
presente nos desperta sobre o lugar do património neste mundo inteiramente mobilizado
pelo digital.
Em 1994, Laurie Anderson, artista, música e performer perguntava numa canção sua
(‘Same Time Tomorrow’) do álbum ‘Bright Red’ se o tempo era comprido ou era largo –
Is time long or is it wide? Num domínio marcado pela história, tão enigmática pergunta
sobre a natureza do tempo é relevante.
Esquecendo por momentos Einstein e a relatividade, físicas mais complexas,
tradicionalmente pensamos no tempo como uma continuidade, uma sucessão, uma linha
que nos conduz desde o passado, nos intercepta no presente e desaparece difusa no futuro.
O tempo é um vetor, uma seta, na perceção comum que temos dele, quer olhemos o futuro
ou o passado. A mesma Laurie Anderson cita aliás Walter Benjamin noutro disco, outra
canção, e diz-nos que a História é um anjo voando de costas para o futuro, olhando para os
destroços do passado. Contudo, o que a artista nos propõe na sua pergunta visionária de
1994 é uma visão em que, na sobredosagem mediática que nos envolve no dia-a-dia, cada
instante da nossa história é cada vez menos um momento numa cronologia para ser uma
simultaneidade imensa de momentos possíveis e acessíveis instantaneamente.
Não que a história não tenha sido sempre feita de simultaneidades. A produção humana
sobre ela e a visão que conseguíamos ter sobre essa produção é que eram provavelmente
mais estreitas, mais lentas. Hoje, o nosso olhar sobre momentos simultâneos no mesmo
espaço de um globo terrestre único está cada vez mais rápido, e aproxima-se do
instantâneo. E esta visão múltipla sobre o momento cresce exponencialmente, dando-nos a
2
tal sensação do tempo largo de que fala Laurie Anderson, um presente cheio até ao limite
da nossa perceção.
O que define esta produção de um presente largo, esta visão ‘panóptica’ sobre o território
do humano, é estar longe de ser do domínio do especialista. Só a democratização do digital
permite que ela exista. Está nas mãos, nos bolsos, nos olhos de todos os que conseguem
aceder aos dispositivos que a produzem.
Em 1930, eram tiradas mil milhões de fotografias por ano. A um primeiro olhar, parece um
número imenso mas em 2011 foram tiradas mais de 380 mil milhões de fotografias (Figura
1). Mais de mil milhões por dia. E estamos só a falar de fotografia. Em cada minuto que
passa há cem horas novas de vídeo no YouTube. Em cada dia no Facebook, há 55 milhões
atualizações de estado. No Twitter são mais de 500 milhões de mensagens de 140
caracteres por dia.
Em 2011, um supercomputador da Universidade de Cornell nos Estados Unidos analisou
mais de 35 milhões fotografias do Flickr feitas por mais de 300.000 pessoas, e ordenou as
cidades mais fotografadas da seguinte forma: em primeiro lugar Nova Iorque, em segundo
Londres, depois São Francisco, Paris, Los Angeles, Chicago, Washington, Seattle e Roma.
Nota-se bem que é um serviço americano.
Eric Fischer analisou também milhões de fotografias georreferenciadas e chegou uma outra
conclusão que nos pode parecer óbvia de que os autóctones seguem percursos e fotografam
coisas diferentes dos turistas, criam mapas de imagens e vídeos distintos, conforme
queiram recordar os lugares com a aura de uma visita rara ou a cumplicidade da rotina
diária (Figura 2).
Isto talvez ajude a explicar que no Instagram, os dois sítios mais fotografados em 2012
tenham sido um aeroporto e um centro comercial na Tailândia. Em terceiro, a Disneyland
na Califórnia. Serão estes talvez os monumentos, o património que uma arqueologia futura
desenterrará.
Tudo isto para afirmar que a nossa capacidade para produzir aquilo a que chamamos
conteúdo há muito superou uma percentagem mínima que fosse da nossa capacidade para o
selecionar e consumir. E isto torna-se confuso não só no eixo da simultaneidade mas na
duração mais clássica do que é o tempo.
Só um exemplo: em 5 de Maio de 2012 apareceram no Facebook lamentos numerosos pela
morte de Vasco Granja, acontecida no dia 5 de Maio, sim, mas três anos antes, em 2009.
Além de prova de curta memória, demonstrava também o frenesim dos dedos na partilha,
que clicam antes de ler, a data que seja. A notícia partilhada tinha dia, mês e ano no
cabeçalho. Mas o que é que interessa a memória?
Teremos talvez perdido a noção do tempo e do espaço, da causa e da consequência, da
realidade e da ficção, do acontecimento e do seu contexto, da árvore e da floresta.
3
Don De Lillo, no seu romance de 1985, “Ruído Branco”, leva as suas personagens a visitar
um lugar turístico que tem como nome “o celeiro mais fotografado da América” (Figura 3).
Algumas frases podem contribuir para iluminar o tema da obsessão representacional da
contemporaneidade. Diz uma personagem:
Não estamos aqui para captar uma imagem, estamos aqui para a manter. Cada fotografia
reforça a aura. Consegues senti-la, Jack? Uma acumulação de energias sem nome.
E mais à frente:
Estar aqui é uma espécie de rendição espiritual. Vemos apenas o que outros veem. Os
milhares que aqui estiveram no passado, aqueles que virão no futuro. Concordámos em
fazer parte de uma perceção coletiva. Literalmente, tinge a nossa visão. De certa forma
uma experiência religiosa, como todo o turismo.
E por fim:
Estão a tirar fotografias de tirar fotografias.
Escrito ainda nos anos 80. Só havia Internet nas universidades e algumas instituições
militares. Hoje, em todos os lugares, todos os turistas tiram fotografias (em particular de
monumentos e museus). E este património de biliões de imagens é público. Todos o podem
ver. Todos podem contribuir.
Corinne Vionnet cria as suas imagens a partir da sobreposição de centenas de fotografias
de monumentos feitas por turistas. Resulta uma espécie de estranho fantasma, a perfeita
imagem do tal tempo largo de que falava Laurie Anderson em que num mesmo instante
conseguimos ver a simultaneidade sobreposta (Figuras 4 e 5).
Dúvidas houvesse, todas estas pistas nos demonstram à exaustão que vivemos um
momento de sobredosagem mediática, nascida e permanentemente potenciada pelo
ecossistema digital em que nos movemos. Resta tentar descobrir estratégias para encontrar
sentido neste universo, percursos no caos.
Para além do romance, do conto, do teatro, do cinema, da ópera, é na televisão que, nos
últimos anos, a maneira de contar histórias mais tem evoluído.
Kevin Spacey (Figura 6) é entre muitas outras coisas, ator principal de uma série
americana de sucesso de nome House of Cards que é, de alguma forma, uma revolução na
maneira de distribuir e ver televisão: todos os episódios de cada temporada da série são
lançados ao mesmo tempo e não em semanas sucessivas, como era tradicional. E isto não
acontece num canal de televisão mas num serviço de vídeo-on-demand americano, o
Netflix.
4
Simultaneidade mais uma vez. E milhões de americanos (e depois todos os outros)
consumiram os episódios vorazmente, vários, por vezes todos de seguida. Sem espera.
Horas nisto.
Para Spacey, contudo, o verdadeiro motivo do sucesso da série não é a inovação ao nível
do formato de distribuição. Diz ele:
O público falou: querem histórias. Morrem por histórias. Estão a torcer para que lhes
demos a coisa certa. E vão falar sobre o que lhes dermos, vão devorá-lo, levá-lo no
autocarro e para o cabeleireiro, chatear os amigos até verem também, tweetar, blogar,
partilhar no facebook, fazer páginas de fãs, GIFs parvos e sabe Deus que mais. Vão
envolver-se com uma paixão e uma intimidade com que um ‘blockbuster’ de cinema só
pode sonhar. Só temos de lhes dar o que eles querem. O prémio está aí mesmo. Mais
brilhante e sumarento do que alguma vez antes.
Vale a pena temperar este entusiasmo com as declarações de Jonathan Friedland, do
Netflix, que explica como a série foi para a frente. Não houve episódio piloto, o conceito
não foi testado previamente. “Porque temos uma relação direta com os consumidores,
sabemos o que as pessoas gostam de ver e isso permite-nos prever o interesse por uma
determinada série.”
O Netflix recolhe informação detalhada sobre a maneira como os seus milhões de
utilizadores veem, pausam, rebobinam, classificam e comentam cada filme, cada série.
Estatisticamente, sabem ao pormenor de que gostam os seus clientes.
Pergunta a jornalista Jessica Leber: “Serão algum dia os argumentos escritos para
responder aos caprichos estatísticos das empresas mediáticas? Será um algoritmo a
produzir conteúdo para agradar aos nichos de audiência do Netflix?” Estou certo de que a
indústria de conteúdos adoraria se tudo fosse feito por máquinas, sem as imprevisibilidades
humanas do talento. Uma espécie de Ministério da Verdade Orwelliano a partir de uma
estratégia de ‘vigilância’ permanente do espetador.
Tomemos, contudo, como sincera a paixão do senhor Spacey pelas histórias. Parecemos
estar de facto a atravessar uma Idade de Ouro em televisão e, sobretudo, na forma de
contar histórias em televisão. Note-se o sucesso de séries como Os Sopranos ou Mad Men,
The Wire ou Breaking Bad, só para citar alguns exemplos, que se dão ao trabalho de
demorar dezenas de horas a contar a sua história, a situar e a dar densidade aos seus
personagens, a construir complexidades e tramas que criem sentido e envolvam os
espetadores. A nossa atenção audiovisual pode durar horas seguidas e não apenas a meia
hora a que nos tinham habituado.
Em tudo o oposto ao dilúvio de instantâneos que nos dá a Internet.
Mesmo no cinema, a aparente praga de sequelas e ‘prequelas’, filmes desdobrados em mais
filmes, universos ficcionais que atravessam filmes, jogos e séries de televisão parecem ser
uma resposta à nossa necessidade de narrativas longas, mais abrangentes, mais complexas.
Além de uma boa maneira de os estúdios fazerem dinheiro, claro.
5
Temos portanto, de um lado, milhares de milhões de pequenos elementos de conteúdo,
atomizados, dispersos, cada um chamando pela nossa atenção, propagando-se na rede
como parasitas do nosso interesse, da nossa capacidade de lhes dedicar uns segundos que
sejam. Aquilo a que o pessoal do marketing chama a nossa share of eyeballs, o tempo que
perdemos a olhar para essas coisas. E naturalmente também a share of wallet, o dinheiro
que gastamos com elas.
Do outro lado e em competição por um tempo mais demorado, temos séries, filmes e
livros, universos ficcionais cada vez mais complexos, sagas de milhares de páginas, de
dezenas de episódios que nos propõem que entreguemos dezenas, centenas de horas da
nossa vida a apaixonarmo-nos por pessoas que não existem a viver histórias que não
existem em lugares que talvez existam.
Serão irreconciliáveis? Encontraremos sentido em algum dos lados? Quem nos ajuda a
construir o sentido?
Ser autor era, em tempos, uma coisa única: alguém romanticamente pintado com o dom da
inspiração e a suficiente disciplina de trabalho e que, por mérito artístico ou comercial,
acedia aos complexos processos da edição, da produção e da distribuição e via a sua obra
nos escaparates, nas salas, nos ecrãs. Em casos famosos, o reconhecimento vinha depois da
morte, na maior parte, esperava-os o anonimato. Os outros, os que viam a luz da ribalta,
tornavam-se os heróis da nossa cultura.
Ser autor parece hoje mais fácil que nunca: basta aparentemente ter um telemóvel, uma
ideia e uma ou duas ferramentas gratuitas de software. Mais, mesmo ser curador, no
mundo digital, mais não é do que revelar, distribuir, partilhar os conteúdos certos, mesmo
quando a sua autoria é incerta. Uma espécie de democracia sem critério, um afã de ver e
ser visto onde todos podemos partir do zero, um panoptycon onde todos somos vistos,
vemos, vigiamos e punimos ou recompensamos.
E cada um destes autores encontra o seu público, seja este meia dúzia, milhares, ou
milhões. Na Net, a família que nos recompensava pelo nosso desenho infantil, pela nossa
redação da escola, pelo nosso teatrinho, pode estar a milhares de quilómetros de distância.
Algumas das maiores estrelas da música pop atual, começaram por partilhar os seus vídeos
no YouTube. E esses exemplos alimentam o sonho de milhões, mais do que nunca.
Evitemos o caminho eventualmente perigoso da questão da autoria e da arte, do que
significa nestes tempos aceder a qualquer um destes universos. Mantenhamo-nos no
magma digital. Em tempos acreditei que a democratização do acesso à tecnologia era por si
geradora de uma explosão de criatividade que, por via de outra democratização, a do
consumo dos media, naturalmente iria fazer deste um mundo melhor, mais informado e
mais culto.
Hoje não acredito que as percentagens se tenham alterado.
6
As massas continuam as massas, os turistas culturais crescem a um ritmo razoável, também
por efeito do transporte low cost, as elites consumidoras de cultura continuam uma
minoria, mais nuns países do que noutros, fruto dos mesmos fatores económicos e
educativos de sempre. Alguns criadores novos conseguiram contornar os processos de
seleção que o século XX tinha estabelecido – a galeria Saatchi em Londres, por exemplo,
faz bom uso do online, nesse aspeto (Figura 7); a edição literária está a braços com esse
fenómeno – mas o mundo move-se razoavelmente como sempre se moveu.
Diria, neste contexto, que a diferença não está na qualidade da produção. O bom, o mau, o
mediano continuam a conviver como sempre aconteceu, os dilemas da modernidade e da
pós-modernidade permanecem. Mudou a quantidade, mudou a forma como os tradicionais
representantes e difusores da arte, da cultura, do património, os gatekeepers, os
especialistas, aqueles que fizeram disso uma carreira e, por extensão, as instituições que
representam, se veem cercados por todos os lados de candidatos ao mesmo papel, leigos
armados de tecnologia e da capacidade para verem e serem vistos, lutando pela sua
relevância no excesso.
Já dizia McLuhan, In the electric age, we wear all mankind as our skin, uma espécie de
perturbante promiscuidade eletrónica.
Museus e monumentos, como os biliões de imagens, partilhas e comentários, histórias,
livros, filmes e vídeos de todas as durações, neste imenso universo virtual, estão na mesma
luta, uma luta pela relevância e atenção de quem consome a infinita paisagem mediática.
Arrume-se desde já o óbvio: museus e monumentos devem ter sites bonitos, funcionais e
úteis, devem ter presença nas redes sociais, podem até ter já o seu próprio canal de
televisão. Mas para além do óbvio, é da área da cultura mesmo que chegam algumas
reflexões interessantes que podem ajudar a desenhar o caminho a caminhar.
Museus e monumentos, em relação à maior parte dos seus concorrentes, têm à partida uma
extraordinária vantagem. Trazem consigo histórias, as tais histórias pelo que o público
anseia. São histórias. Não precisam de as inventar. Fazem parte da História. Do passado,
do presente e, esperemos, do futuro do que somos.
Descontemos desta conversa a questão da presença, da aura de estar no lugar. Isso é,
concordo, ainda difícil de reproduzir. Percebamos sim como esta presença no espaço
mediado em rede pode contribuir para potenciar esse encanto mas não só do lado de uma
empatia irracional. Também de um lado informado, de uma experiência enriquecida.
Acredito que isso é o que as histórias nos podem dar.
Em primeiro lugar falamos obviamente da História com agá grande, aquela que pode ser
revelada, interpretada e contada por especialistas, que pode enriquecer de contexto, de
tempo, de antes e depois, de personagens reais, cada objeto, cada lugar. Este é o trabalho
dos arqueólogos, dos historiadores, dos historiadores de arte, dos curadores.
7
Podemos, contudo, para além da História, no domínio da história, desenhar dois caminhos
interessantes, um primeiro mais tradicional, um segundo mais inovador.
Como primeiro caminho, proponho que os especialistas aprendam a contar histórias – os
que ainda não o souberem fazer, claro. E isso quer dizer o quê? Contar histórias é uma
mistura de desenrolar os ritmos certos do tempo e do espaço, de alimentar a emoção, de
estimular a imaginação. E aposto – uma aposta fácil – que todos os que me leem neste
momento já sentiram isto num museu, num monumento.
Nem sempre, contudo, o especialista é o melhor contador de histórias e há que forjar
alianças com os que contam histórias em cinema, em televisão, em livro, em multimédia
se, para além do espaço do museu e do monumento, quisermos conquistar os olhos
daqueles que se movem na paisagem mediática onde a concorrência é feroz, quer de quem
produz, quer de quem consome.
O verdadeiro contador de histórias, com agá pequeno, é aquele que não está
necessariamente preso à realidade, ao facto, à verdade. Infelizmente não só aquele que
assume a sua imaginação, a sua liberdade criativa, mas também aquele que, sob o manto
aparente da investigação, da inspiração na realidade – expressão sempre perigosa –, nos
vende a mentira da ficção com selo de garantia de verdade.
Esta distinção é relevante. Note-se bem: não proponho a ninguém que se transforme
museus e monumentos em fantasias delirantes de Dan Browns, Rodrigues dos Santos, um
sem número de autores e editores que vão povoando o universo da chamada ficção
histórica – por muito que esses autores possam contribuir para encher os cofres das
bilheteiras de museus e monumentos.
Num mundo saturado de apelos mediáticos, cabe a todos os que trabalham nesta área não
só saber senti-lo mas, muito mais importante, saber transmiti-lo. E se não souberem,
trabalharem com quem saiba. Porque creiam, se não o fizeram, o senhor Dan Brown fá-lo-
á com grande mestria, lucro e qualidade final duvidosa.
Além de especialistas, sejamos também então contadores de histórias.
Como segundo caminho, para quem se sentir com energia para tal, para quem tiver
tecnologia ou orçamento para tal (que o dinheiro é também uma tecnologia), proponho
ainda a coragem de se abalançar a uma tarefa adicional. Trabalhem com os vossos
visitantes, espectadores, turistas, curiosos.
Entre todas as fotografias, todos os vídeos, todos os posts sobre monumentos, museus e as
obras que albergam, entre todos estes conteúdos produzidos pelo público, alguns são
sinceramente bons, alguns ajudarão a contar as histórias que queremos contar e no
processo ajudar-nos-ão a criar empatia com os nossos visitantes, os nossos espectadores, e
aí então, os nossos participantes.
Projetos como o InStory da Quinta da Regaleira (Figura 8), por exemplo, tentam
precisamente isso, fazer dos visitantes aliados, que contribuem para construir o mosaico
8
multimédia que se pode sobrepor ao lugar. E eu diria que para além de criar ferramentas
específicas, é essencial saber usar aquelas onde todos estão: Facebook, Instagram, Google,
YouTube. E estar atento, sempre atento.
O que se pede pode parecer bizarro mas o resultado, gratificante: além de ser curador de
coleções, conservador das obras de arte, gestor, guia, divulgador do património, pede-se
que desempenhem exatamente as mesmas funções neste meta-universo constituído por
aquilo que todos, nós incluídos, produzimos como conteúdos sobre esses lugares e objetos.
E aí, nesse mundo, mais uma vez, entre os percursos individuais dos visitantes, entre a
visão que temos sobre a História (de novo com agá grande) e entre o que são os objetivos
da política património, pode emergir o tal sentido que procuramos no excesso digital.
Tenho mais dúvidas do que certezas, o que deixo não são mais do que pistas. Mais do que
tudo, parece-me que é essencial que todos os que se interessam, pensem a sério sobre o
assunto, não encolham os ombros em relação aos media digitais onde vos parece que estão
apenas os vídeos de gatinhos a tocar piano.
Nesses lugares, nessas espécies de alucinações coletivas, está também o futuro da nossa
cultura.
Lista de Figuras
Figura 1 – Número de fotografias tiradas anualmente – Fontes: Kodak, PMIA, Flickr,
Facebook, Instagram.
9
Figura 2 – Eric Fischer – Nova Iorque – A azul as fotos feitas por locais, a vermelho as dos
turistas. A amarelo as não identificadas.
Figura 3 – O celeiro mais fotografado da América? (Moulton Barn).
10
Figuras 4 e 5 – Corinne Vionnet – Londres e o Museu do Louvre.
11
Figura 6 – Kevin Spacey e Robin Wright em “House of Cards”.
Figura 7 – Homepage do site Saatchi Art.
12
Figura 8 – Aplicação InStory – Quinta da Regaleira.

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Conta me histórias

  • 1. 1 Conta-me histórias. Era uma vez um Ministério da Cultura, há coisa de vinte anos, a altura em que se começou a perceber que as tecnologias digitais, os computadores, podiam ser não apenas ferramentas administrativas mas também meios de divulgação da cultura e do património. A Internet comercial era uma recém-nascida em Portugal, saída da lama primordial universitária. Era realmente inovador pensar em sites de museus e monumentos. A maior parte de quem a estas coisas se dedicava ainda pensava em CD-ROM e CD-I. Havia disquetes. Coisas que a história se encarregou de devorar. Hoje, é verdade, muitas coisas mudaram, o milénio entre elas. Mudou certamente o lugar do digital nas nossas vidas, omnipresente, dos bolsos às secretárias à sala de estar, todos os ecrãs, seja qual for o seu tamanho. Vivemos numa paisagem mediática dominada pela Internet, essa Biblioteca de Babel que gera e devora mundos. E a própria Internet é cada vez mais invisível enquanto meio, ligando tudo e todos, uma espécie de ar que se respira. Interessam sempre os princípios, a maneira como as coisas começam, por isso vale a pena recuar vinte anos. É no final do século passado que encontro pistas para as reflexões que o presente nos desperta sobre o lugar do património neste mundo inteiramente mobilizado pelo digital. Em 1994, Laurie Anderson, artista, música e performer perguntava numa canção sua (‘Same Time Tomorrow’) do álbum ‘Bright Red’ se o tempo era comprido ou era largo – Is time long or is it wide? Num domínio marcado pela história, tão enigmática pergunta sobre a natureza do tempo é relevante. Esquecendo por momentos Einstein e a relatividade, físicas mais complexas, tradicionalmente pensamos no tempo como uma continuidade, uma sucessão, uma linha que nos conduz desde o passado, nos intercepta no presente e desaparece difusa no futuro. O tempo é um vetor, uma seta, na perceção comum que temos dele, quer olhemos o futuro ou o passado. A mesma Laurie Anderson cita aliás Walter Benjamin noutro disco, outra canção, e diz-nos que a História é um anjo voando de costas para o futuro, olhando para os destroços do passado. Contudo, o que a artista nos propõe na sua pergunta visionária de 1994 é uma visão em que, na sobredosagem mediática que nos envolve no dia-a-dia, cada instante da nossa história é cada vez menos um momento numa cronologia para ser uma simultaneidade imensa de momentos possíveis e acessíveis instantaneamente. Não que a história não tenha sido sempre feita de simultaneidades. A produção humana sobre ela e a visão que conseguíamos ter sobre essa produção é que eram provavelmente mais estreitas, mais lentas. Hoje, o nosso olhar sobre momentos simultâneos no mesmo espaço de um globo terrestre único está cada vez mais rápido, e aproxima-se do instantâneo. E esta visão múltipla sobre o momento cresce exponencialmente, dando-nos a
  • 2. 2 tal sensação do tempo largo de que fala Laurie Anderson, um presente cheio até ao limite da nossa perceção. O que define esta produção de um presente largo, esta visão ‘panóptica’ sobre o território do humano, é estar longe de ser do domínio do especialista. Só a democratização do digital permite que ela exista. Está nas mãos, nos bolsos, nos olhos de todos os que conseguem aceder aos dispositivos que a produzem. Em 1930, eram tiradas mil milhões de fotografias por ano. A um primeiro olhar, parece um número imenso mas em 2011 foram tiradas mais de 380 mil milhões de fotografias (Figura 1). Mais de mil milhões por dia. E estamos só a falar de fotografia. Em cada minuto que passa há cem horas novas de vídeo no YouTube. Em cada dia no Facebook, há 55 milhões atualizações de estado. No Twitter são mais de 500 milhões de mensagens de 140 caracteres por dia. Em 2011, um supercomputador da Universidade de Cornell nos Estados Unidos analisou mais de 35 milhões fotografias do Flickr feitas por mais de 300.000 pessoas, e ordenou as cidades mais fotografadas da seguinte forma: em primeiro lugar Nova Iorque, em segundo Londres, depois São Francisco, Paris, Los Angeles, Chicago, Washington, Seattle e Roma. Nota-se bem que é um serviço americano. Eric Fischer analisou também milhões de fotografias georreferenciadas e chegou uma outra conclusão que nos pode parecer óbvia de que os autóctones seguem percursos e fotografam coisas diferentes dos turistas, criam mapas de imagens e vídeos distintos, conforme queiram recordar os lugares com a aura de uma visita rara ou a cumplicidade da rotina diária (Figura 2). Isto talvez ajude a explicar que no Instagram, os dois sítios mais fotografados em 2012 tenham sido um aeroporto e um centro comercial na Tailândia. Em terceiro, a Disneyland na Califórnia. Serão estes talvez os monumentos, o património que uma arqueologia futura desenterrará. Tudo isto para afirmar que a nossa capacidade para produzir aquilo a que chamamos conteúdo há muito superou uma percentagem mínima que fosse da nossa capacidade para o selecionar e consumir. E isto torna-se confuso não só no eixo da simultaneidade mas na duração mais clássica do que é o tempo. Só um exemplo: em 5 de Maio de 2012 apareceram no Facebook lamentos numerosos pela morte de Vasco Granja, acontecida no dia 5 de Maio, sim, mas três anos antes, em 2009. Além de prova de curta memória, demonstrava também o frenesim dos dedos na partilha, que clicam antes de ler, a data que seja. A notícia partilhada tinha dia, mês e ano no cabeçalho. Mas o que é que interessa a memória? Teremos talvez perdido a noção do tempo e do espaço, da causa e da consequência, da realidade e da ficção, do acontecimento e do seu contexto, da árvore e da floresta.
  • 3. 3 Don De Lillo, no seu romance de 1985, “Ruído Branco”, leva as suas personagens a visitar um lugar turístico que tem como nome “o celeiro mais fotografado da América” (Figura 3). Algumas frases podem contribuir para iluminar o tema da obsessão representacional da contemporaneidade. Diz uma personagem: Não estamos aqui para captar uma imagem, estamos aqui para a manter. Cada fotografia reforça a aura. Consegues senti-la, Jack? Uma acumulação de energias sem nome. E mais à frente: Estar aqui é uma espécie de rendição espiritual. Vemos apenas o que outros veem. Os milhares que aqui estiveram no passado, aqueles que virão no futuro. Concordámos em fazer parte de uma perceção coletiva. Literalmente, tinge a nossa visão. De certa forma uma experiência religiosa, como todo o turismo. E por fim: Estão a tirar fotografias de tirar fotografias. Escrito ainda nos anos 80. Só havia Internet nas universidades e algumas instituições militares. Hoje, em todos os lugares, todos os turistas tiram fotografias (em particular de monumentos e museus). E este património de biliões de imagens é público. Todos o podem ver. Todos podem contribuir. Corinne Vionnet cria as suas imagens a partir da sobreposição de centenas de fotografias de monumentos feitas por turistas. Resulta uma espécie de estranho fantasma, a perfeita imagem do tal tempo largo de que falava Laurie Anderson em que num mesmo instante conseguimos ver a simultaneidade sobreposta (Figuras 4 e 5). Dúvidas houvesse, todas estas pistas nos demonstram à exaustão que vivemos um momento de sobredosagem mediática, nascida e permanentemente potenciada pelo ecossistema digital em que nos movemos. Resta tentar descobrir estratégias para encontrar sentido neste universo, percursos no caos. Para além do romance, do conto, do teatro, do cinema, da ópera, é na televisão que, nos últimos anos, a maneira de contar histórias mais tem evoluído. Kevin Spacey (Figura 6) é entre muitas outras coisas, ator principal de uma série americana de sucesso de nome House of Cards que é, de alguma forma, uma revolução na maneira de distribuir e ver televisão: todos os episódios de cada temporada da série são lançados ao mesmo tempo e não em semanas sucessivas, como era tradicional. E isto não acontece num canal de televisão mas num serviço de vídeo-on-demand americano, o Netflix.
  • 4. 4 Simultaneidade mais uma vez. E milhões de americanos (e depois todos os outros) consumiram os episódios vorazmente, vários, por vezes todos de seguida. Sem espera. Horas nisto. Para Spacey, contudo, o verdadeiro motivo do sucesso da série não é a inovação ao nível do formato de distribuição. Diz ele: O público falou: querem histórias. Morrem por histórias. Estão a torcer para que lhes demos a coisa certa. E vão falar sobre o que lhes dermos, vão devorá-lo, levá-lo no autocarro e para o cabeleireiro, chatear os amigos até verem também, tweetar, blogar, partilhar no facebook, fazer páginas de fãs, GIFs parvos e sabe Deus que mais. Vão envolver-se com uma paixão e uma intimidade com que um ‘blockbuster’ de cinema só pode sonhar. Só temos de lhes dar o que eles querem. O prémio está aí mesmo. Mais brilhante e sumarento do que alguma vez antes. Vale a pena temperar este entusiasmo com as declarações de Jonathan Friedland, do Netflix, que explica como a série foi para a frente. Não houve episódio piloto, o conceito não foi testado previamente. “Porque temos uma relação direta com os consumidores, sabemos o que as pessoas gostam de ver e isso permite-nos prever o interesse por uma determinada série.” O Netflix recolhe informação detalhada sobre a maneira como os seus milhões de utilizadores veem, pausam, rebobinam, classificam e comentam cada filme, cada série. Estatisticamente, sabem ao pormenor de que gostam os seus clientes. Pergunta a jornalista Jessica Leber: “Serão algum dia os argumentos escritos para responder aos caprichos estatísticos das empresas mediáticas? Será um algoritmo a produzir conteúdo para agradar aos nichos de audiência do Netflix?” Estou certo de que a indústria de conteúdos adoraria se tudo fosse feito por máquinas, sem as imprevisibilidades humanas do talento. Uma espécie de Ministério da Verdade Orwelliano a partir de uma estratégia de ‘vigilância’ permanente do espetador. Tomemos, contudo, como sincera a paixão do senhor Spacey pelas histórias. Parecemos estar de facto a atravessar uma Idade de Ouro em televisão e, sobretudo, na forma de contar histórias em televisão. Note-se o sucesso de séries como Os Sopranos ou Mad Men, The Wire ou Breaking Bad, só para citar alguns exemplos, que se dão ao trabalho de demorar dezenas de horas a contar a sua história, a situar e a dar densidade aos seus personagens, a construir complexidades e tramas que criem sentido e envolvam os espetadores. A nossa atenção audiovisual pode durar horas seguidas e não apenas a meia hora a que nos tinham habituado. Em tudo o oposto ao dilúvio de instantâneos que nos dá a Internet. Mesmo no cinema, a aparente praga de sequelas e ‘prequelas’, filmes desdobrados em mais filmes, universos ficcionais que atravessam filmes, jogos e séries de televisão parecem ser uma resposta à nossa necessidade de narrativas longas, mais abrangentes, mais complexas. Além de uma boa maneira de os estúdios fazerem dinheiro, claro.
  • 5. 5 Temos portanto, de um lado, milhares de milhões de pequenos elementos de conteúdo, atomizados, dispersos, cada um chamando pela nossa atenção, propagando-se na rede como parasitas do nosso interesse, da nossa capacidade de lhes dedicar uns segundos que sejam. Aquilo a que o pessoal do marketing chama a nossa share of eyeballs, o tempo que perdemos a olhar para essas coisas. E naturalmente também a share of wallet, o dinheiro que gastamos com elas. Do outro lado e em competição por um tempo mais demorado, temos séries, filmes e livros, universos ficcionais cada vez mais complexos, sagas de milhares de páginas, de dezenas de episódios que nos propõem que entreguemos dezenas, centenas de horas da nossa vida a apaixonarmo-nos por pessoas que não existem a viver histórias que não existem em lugares que talvez existam. Serão irreconciliáveis? Encontraremos sentido em algum dos lados? Quem nos ajuda a construir o sentido? Ser autor era, em tempos, uma coisa única: alguém romanticamente pintado com o dom da inspiração e a suficiente disciplina de trabalho e que, por mérito artístico ou comercial, acedia aos complexos processos da edição, da produção e da distribuição e via a sua obra nos escaparates, nas salas, nos ecrãs. Em casos famosos, o reconhecimento vinha depois da morte, na maior parte, esperava-os o anonimato. Os outros, os que viam a luz da ribalta, tornavam-se os heróis da nossa cultura. Ser autor parece hoje mais fácil que nunca: basta aparentemente ter um telemóvel, uma ideia e uma ou duas ferramentas gratuitas de software. Mais, mesmo ser curador, no mundo digital, mais não é do que revelar, distribuir, partilhar os conteúdos certos, mesmo quando a sua autoria é incerta. Uma espécie de democracia sem critério, um afã de ver e ser visto onde todos podemos partir do zero, um panoptycon onde todos somos vistos, vemos, vigiamos e punimos ou recompensamos. E cada um destes autores encontra o seu público, seja este meia dúzia, milhares, ou milhões. Na Net, a família que nos recompensava pelo nosso desenho infantil, pela nossa redação da escola, pelo nosso teatrinho, pode estar a milhares de quilómetros de distância. Algumas das maiores estrelas da música pop atual, começaram por partilhar os seus vídeos no YouTube. E esses exemplos alimentam o sonho de milhões, mais do que nunca. Evitemos o caminho eventualmente perigoso da questão da autoria e da arte, do que significa nestes tempos aceder a qualquer um destes universos. Mantenhamo-nos no magma digital. Em tempos acreditei que a democratização do acesso à tecnologia era por si geradora de uma explosão de criatividade que, por via de outra democratização, a do consumo dos media, naturalmente iria fazer deste um mundo melhor, mais informado e mais culto. Hoje não acredito que as percentagens se tenham alterado.
  • 6. 6 As massas continuam as massas, os turistas culturais crescem a um ritmo razoável, também por efeito do transporte low cost, as elites consumidoras de cultura continuam uma minoria, mais nuns países do que noutros, fruto dos mesmos fatores económicos e educativos de sempre. Alguns criadores novos conseguiram contornar os processos de seleção que o século XX tinha estabelecido – a galeria Saatchi em Londres, por exemplo, faz bom uso do online, nesse aspeto (Figura 7); a edição literária está a braços com esse fenómeno – mas o mundo move-se razoavelmente como sempre se moveu. Diria, neste contexto, que a diferença não está na qualidade da produção. O bom, o mau, o mediano continuam a conviver como sempre aconteceu, os dilemas da modernidade e da pós-modernidade permanecem. Mudou a quantidade, mudou a forma como os tradicionais representantes e difusores da arte, da cultura, do património, os gatekeepers, os especialistas, aqueles que fizeram disso uma carreira e, por extensão, as instituições que representam, se veem cercados por todos os lados de candidatos ao mesmo papel, leigos armados de tecnologia e da capacidade para verem e serem vistos, lutando pela sua relevância no excesso. Já dizia McLuhan, In the electric age, we wear all mankind as our skin, uma espécie de perturbante promiscuidade eletrónica. Museus e monumentos, como os biliões de imagens, partilhas e comentários, histórias, livros, filmes e vídeos de todas as durações, neste imenso universo virtual, estão na mesma luta, uma luta pela relevância e atenção de quem consome a infinita paisagem mediática. Arrume-se desde já o óbvio: museus e monumentos devem ter sites bonitos, funcionais e úteis, devem ter presença nas redes sociais, podem até ter já o seu próprio canal de televisão. Mas para além do óbvio, é da área da cultura mesmo que chegam algumas reflexões interessantes que podem ajudar a desenhar o caminho a caminhar. Museus e monumentos, em relação à maior parte dos seus concorrentes, têm à partida uma extraordinária vantagem. Trazem consigo histórias, as tais histórias pelo que o público anseia. São histórias. Não precisam de as inventar. Fazem parte da História. Do passado, do presente e, esperemos, do futuro do que somos. Descontemos desta conversa a questão da presença, da aura de estar no lugar. Isso é, concordo, ainda difícil de reproduzir. Percebamos sim como esta presença no espaço mediado em rede pode contribuir para potenciar esse encanto mas não só do lado de uma empatia irracional. Também de um lado informado, de uma experiência enriquecida. Acredito que isso é o que as histórias nos podem dar. Em primeiro lugar falamos obviamente da História com agá grande, aquela que pode ser revelada, interpretada e contada por especialistas, que pode enriquecer de contexto, de tempo, de antes e depois, de personagens reais, cada objeto, cada lugar. Este é o trabalho dos arqueólogos, dos historiadores, dos historiadores de arte, dos curadores.
  • 7. 7 Podemos, contudo, para além da História, no domínio da história, desenhar dois caminhos interessantes, um primeiro mais tradicional, um segundo mais inovador. Como primeiro caminho, proponho que os especialistas aprendam a contar histórias – os que ainda não o souberem fazer, claro. E isso quer dizer o quê? Contar histórias é uma mistura de desenrolar os ritmos certos do tempo e do espaço, de alimentar a emoção, de estimular a imaginação. E aposto – uma aposta fácil – que todos os que me leem neste momento já sentiram isto num museu, num monumento. Nem sempre, contudo, o especialista é o melhor contador de histórias e há que forjar alianças com os que contam histórias em cinema, em televisão, em livro, em multimédia se, para além do espaço do museu e do monumento, quisermos conquistar os olhos daqueles que se movem na paisagem mediática onde a concorrência é feroz, quer de quem produz, quer de quem consome. O verdadeiro contador de histórias, com agá pequeno, é aquele que não está necessariamente preso à realidade, ao facto, à verdade. Infelizmente não só aquele que assume a sua imaginação, a sua liberdade criativa, mas também aquele que, sob o manto aparente da investigação, da inspiração na realidade – expressão sempre perigosa –, nos vende a mentira da ficção com selo de garantia de verdade. Esta distinção é relevante. Note-se bem: não proponho a ninguém que se transforme museus e monumentos em fantasias delirantes de Dan Browns, Rodrigues dos Santos, um sem número de autores e editores que vão povoando o universo da chamada ficção histórica – por muito que esses autores possam contribuir para encher os cofres das bilheteiras de museus e monumentos. Num mundo saturado de apelos mediáticos, cabe a todos os que trabalham nesta área não só saber senti-lo mas, muito mais importante, saber transmiti-lo. E se não souberem, trabalharem com quem saiba. Porque creiam, se não o fizeram, o senhor Dan Brown fá-lo- á com grande mestria, lucro e qualidade final duvidosa. Além de especialistas, sejamos também então contadores de histórias. Como segundo caminho, para quem se sentir com energia para tal, para quem tiver tecnologia ou orçamento para tal (que o dinheiro é também uma tecnologia), proponho ainda a coragem de se abalançar a uma tarefa adicional. Trabalhem com os vossos visitantes, espectadores, turistas, curiosos. Entre todas as fotografias, todos os vídeos, todos os posts sobre monumentos, museus e as obras que albergam, entre todos estes conteúdos produzidos pelo público, alguns são sinceramente bons, alguns ajudarão a contar as histórias que queremos contar e no processo ajudar-nos-ão a criar empatia com os nossos visitantes, os nossos espectadores, e aí então, os nossos participantes. Projetos como o InStory da Quinta da Regaleira (Figura 8), por exemplo, tentam precisamente isso, fazer dos visitantes aliados, que contribuem para construir o mosaico
  • 8. 8 multimédia que se pode sobrepor ao lugar. E eu diria que para além de criar ferramentas específicas, é essencial saber usar aquelas onde todos estão: Facebook, Instagram, Google, YouTube. E estar atento, sempre atento. O que se pede pode parecer bizarro mas o resultado, gratificante: além de ser curador de coleções, conservador das obras de arte, gestor, guia, divulgador do património, pede-se que desempenhem exatamente as mesmas funções neste meta-universo constituído por aquilo que todos, nós incluídos, produzimos como conteúdos sobre esses lugares e objetos. E aí, nesse mundo, mais uma vez, entre os percursos individuais dos visitantes, entre a visão que temos sobre a História (de novo com agá grande) e entre o que são os objetivos da política património, pode emergir o tal sentido que procuramos no excesso digital. Tenho mais dúvidas do que certezas, o que deixo não são mais do que pistas. Mais do que tudo, parece-me que é essencial que todos os que se interessam, pensem a sério sobre o assunto, não encolham os ombros em relação aos media digitais onde vos parece que estão apenas os vídeos de gatinhos a tocar piano. Nesses lugares, nessas espécies de alucinações coletivas, está também o futuro da nossa cultura. Lista de Figuras Figura 1 – Número de fotografias tiradas anualmente – Fontes: Kodak, PMIA, Flickr, Facebook, Instagram.
  • 9. 9 Figura 2 – Eric Fischer – Nova Iorque – A azul as fotos feitas por locais, a vermelho as dos turistas. A amarelo as não identificadas. Figura 3 – O celeiro mais fotografado da América? (Moulton Barn).
  • 10. 10 Figuras 4 e 5 – Corinne Vionnet – Londres e o Museu do Louvre.
  • 11. 11 Figura 6 – Kevin Spacey e Robin Wright em “House of Cards”. Figura 7 – Homepage do site Saatchi Art.
  • 12. 12 Figura 8 – Aplicação InStory – Quinta da Regaleira.