4. usina elevatória de traição, contos
esta obra pode ser reproduzida parcial ou integralmente,
desde que seja dado o devido créditos aos autores.
ROCHA, Jorge. Usina Elevatória de Traição.
Belo Horizonte: 2010, (40)
Projeto gráfico e diagramação:
Ana Cristina Ribeiro
Capa:
Fred Lima
Foto da capa:
Carlos Careqa fotografado por Flávio Serpa
ISBN XXXX
5. Toda honra e toda glória
Flávio Serpa, Leandro Gabriel (Trecker),
Carlos Careqa, Tiago Casagrande,
Cláudio Júlio Tognolli e Fred Lima.
6. — We’ve got a full tank of gas, half a pack of
cigarettes, it’s dark, and we’re wearing sun-
glasses.
— Hit it.
Elwood and Jake Blues.
The Blues Brothers.
7. SUMÁRIO
A QUATRO MÃOS (PREFÁCIO).............................................. 8
DOWN LIKE A CLOWN.......................................................... 10
0:15 NO RELÓGIO DO CROONER DISSIDENTE........... 12
RELINCHE .................................................................................. 16
ZOMBA DE MIM ....................................................................... 19
DENTRO DA SUA CABEÇA HÁ UM DISCO...................... 21
ATIRE PELAS COSTAS AGORA ........................................... 23
RAILWAY .................................................................................... 26
L´ÉGOISME ................................................................................ 32
8. A quatro mãos
Por Cláudio Júlio Tognolli
Jorge Rocha tem sido guindado às páginas da mídia sob
o epíteto de ExuCaveiraCover. Surfando o caos e calçando um
batibute, distribui críticas ácidas, como quem dá bom dia. E não
se compraz com a ideia de conversão apenas a essa afinidade
eletiva. Surge agora com o seu Usina Elevatória de Traição em
que, sem trair a modéstia, envereda por um outro Jorge Rocha:
da mesma forma que aquele primeiro Jorge Rocha, nosso
conhecido, nos trazia um outro, justamente o ExuCaveiraCover.
Esse jogo de espelhos remete à figura do duplo, cantado a torto
e a direito em loas válidas, de outros tempos (talvez melhores
tempos). Em seu Comédia de Erros, Shakespeare duplicava o
número de gêmeos. Muito antes, no Mahabharata, livro sagrado
da Índia, no livro 4 encontramos quatro deuses, duplicados,
que tomam outra aparência. E essa duplicação assumiu outras
formas no rio do tempo: “Eu é um outro”, escreveu Rimbaud
em seu “Carta a Demeny (1871). Em seu El Hacedor, de 1960,
Borges elevou o duplo ao infinito. O duplo foi lançado em 1796
8
9. porJean-PaulRichter,sobadesignaçãoalemãde“doppelganger”,
quepodesertraduzidocomo“aquelequetenhodelado”ouainda
“companheiro de estrada”. Virou moda, em literatura: mas já
estava no Plauto de Os menecmas (206 A.C.), e veio até mesmo
para o Retrato de Dorian Gray, de Wilde. (1891).
Os trechos de Usina Elevatória de Traição são curtos, ou
parecemtersidomaiores–devidamenteretalhadospelapeixeira
do Exu. Cheios de aliterações e sinestesias, parecem expressar
um outro Jorge Rocha – o que luta com um duplo que, fugindo
da patuscada geral que é a vida, compraz-se com os fabulosos
méritos das sensações. A pergunta inextricável é simples: qual
das quatro mãos terá terçado com o papel e a telinha?
9
10. 10
DOWN LIKE A CLOWN
Cadarços desamarrados. Sempre tive problemas
com isso. Vem de longe. De um picadeiro emulando jardim de
infância. Como tutor, um palhaço com linha tracejada na testa, ao
redordacabeça.Daslistasincompletasqueriaserodeverdecasa
não cumprido. Uma tuba cuspiu espinhas de peixe, arranhões de
gatosebolasdelinhasfelpudas.Eutinhaalergia.Umaespinhade
peixe caiu bem no colo de uma das crianças do picadeiro-jardim
de infância. Mas ela não se importou e continuou misturando
catotas às massinhas de modelar. A isso ainda chamariam, dia
desses, de terapia orgânica. Talvez fosse essa uma tentativa de
expurgo de esquizofrenias futuras.
Eu buscava, sem saber ainda, atonalidade. Comprei um
fuzil de um cara chamado Quirino. Notei que ele também usava
cadarços desamarrados. Mudança de comportamento se mede
pela aceitação e/ou maestria com que se conduz a existência dos
cadarços desamarrados.
11. 11
Assimquesoouoreeeeespeitávelpúúúblicodaquelanoite,
o primeiro tiro pegou bem na barriga, sem nenhum motivo
aparente, catando o palhaço de boca aberta. O segundo e o
terceiro encheram a boca de chumbo. O quarto tiro eu não vi pra
onde foi, porque meus óculos embaçaram nessa hora. Em algum
lugarentreminhasorelhas,tedigoquequasepudeouviraturma
do picadeiro gritando curra, curra, curra! Ah, um convite para a
lobotomia, aparelhos de eletro-choque e remédios tarja preta.
Administrados à força, sem o menor sinal de consentimento. Se
esta fosse uma canção psychobilly, provavelmente teríamos evil
clown, evil clown como parte do refrão.
as crianças deram as mãos e começaram a brincar de roda,
enquanto a tuba esperneava cortes felinos. uma delas
acabou engolindo massa de modelar. jurei que um dia
veria todas essas crianças do picadeiro fake enforcadas.
penduradas em cadarços. utilidade para ambos.
Quando bateu o quinto tiro, tive um troço desses aí que
os malditos publicitários chamam de insight: Quirino era rima
para girino. E eu desde sempre odiei poesia. Da mesma forma
como acabei sendo, também desde sempre, um filho da puta
meticuloso. Tomei o cuidado de não acertar um mísero tiro no
12. 12
alto da cabeça do palhaço; errei todas as linhas tracejadas. Mal
sabia que ainda iria me tornar um especialista em anti-alvos. O
palhaçofoicomidopelosvermes,quecagarameandaramparaas
linhastracejadas.Foinessediaquetiveumadasmaiorescertezas
da minha vida: palhaços não têm fator de cura.
13. 13
0:15 NO RELÓGIO DO CROONER DISSIDENTE
Bem entre as pernas da tequileira. Minha cabeça.
Chacoalhando gargarejo — esquerda, direita, pára, sorriso;
esquerda, direita, pára, esgar; esquerda, direita, pára, boca
torta. Demoro uns vinte segundos para perceber que deste
ângulo de visão é uma tarefa solo para desorientados tentar
focar meus olhos nos dela. Verde. Amarelo. Vermelho. Amarelo.
Verde. Vermelho. Tóim! Ela me encara e diz Tom? Eu falo para
que espere. Percebo que estou prestes a estrebuchar como
um carrossel, quando me dou conta de que não sei onde foi
parar meu chapéu marrom. Minha cabeça insiste em não sair
das pernas da tequileira. Dentes brancos e cheiro de gasolina.
Hábito. Mais uma rodada. Por conta da casa.
Liquidificador. Centrifugação. Gravidade Zero. Eminência
da tangente. É disso que os sonhos são feitos. Em um generoso
pardecoxasquesaltamparaoutrobalcão,masqueagoraestarão
apenas a um assobio de distância. Estou justamente pensando
14. 14
nisso quando encaro um casal hare krishna que chega perto de
mim. Seu chapéu. Ainda tenho o hálito da tequileira nas minhas
narinas, mas o indisfarçável odor do casal parece querer
uma disputa, tentando ganhar espaço, remetendo à mantras
e combinações de varetas de bambu e pó de sândalo branco.
Me oferecem uma delas, uma dessas varetinhas. Incensos me
irritam como unhas afiadas raspando quadro negro. Coloco
meu chapéu marrom no devido lugar e sistema sensorial faz
loop. Ebulição.
hare hare krishna krishna porrada bem no olho almíscar
pow afrodisíaco pow bom humor pow auto-controle pow
sangue escorrendo do globo ocular cortado hare fel rama
esponja de aço hare mertiolate rama detergente manuais
de guerrilha urbana sua orelha no meu prato piercings
para palitar dentes krishna krishna pow pow
Sufoco. Procuro pela tequileira e só consigo enxergar o
casal hare krishna dançando na minha frente — precisos cinco
passos de distância. Ele, mãos na cabeça, tentando dar saltinhos
ridículos.Ela,napontadospés,comabocaemseuolhoesquerdo.
Sugando. Não entendo medicina alternativa, tampouco métodos
orientaispararemediaroucurar—masseipalitarosdentescom
15. 15
umpiercingearmarbonscontatos,quasequeemimproviso.Faço
uns sinais para a tequileira, certo de que encontrei uma cúmplice
—nadamalparaquemestácomosbolsosvazios.Quando a hare
krishnazinha cruza os olhos com os meus, disfarçando de seu
amante-candidato-a-monge a procura, há uma luz sobre ambos
e uma providencial pausa naquela chupação sacrossanta. Bolsa
de gelo no olho ferido, um spot voltado para sua personalidade
e uma platéia adestrada para dar atenção a quem está com
brilho, o hare krishna não se faz de rogado. Desata a falar sobre
carma, glória, purificação, braços para todos os lados e agora
tem seu entretenimento garantido. Alguém coloca uma base
sonora. Nada de mantras.
Regeneração através da destruição. É nisso que eu
acredito.
Conduzo a hare krishnazinha pela mão até um jardim
decorado com flamingos anões e miniaturas de roda-gigante.
Decoração de gosto duvidoso, eu sei, mas este sempre foi um
espaço de revelações. E ela tem cílios gigantes. Do tipo que
poderiam me abanar nos dias quentes de dezembro, sem
grande esforço. E aqueles cílios parecem crescer e me ventilar
para fora dali. Ela pisca e eu posso jurar que ouvi um toque
16. 16
de oboé. Mas, assim que ela abre a boca — e logo movimenta
aqueles cílios para mim —, um coro gospel se sobrepõe,
tornando tudo o mais estática.
hallelujah i feel good glory glory so good oh yeah
hallelujah so good i’m digging my potatoes so good voz
solo de uma negra pesada que é a cara da bonnie lee
replicando que o senhor é um cão pastor e que nada me
arrastará in the name o’lord i feel good hallelujah oh yeah
Fogaréu. Saindo da grama rala. Milagres atribuídos a
Santo Antão. É sobre isso que estou me acostumando a ouvir
nos últimos dias. Dois flamingos anões estão sem cabeça e tudo
o que resta da hare krishnazinha são seus cílios. Intactos no
meio de um círculo de grama esturricada. Bem à minha frente.
Coloco-os no bolso da calça, enquanto checo se o hare krishna
continua seu discurso emotivo. Agora, há mais dois spots a
iluminá-lo. Ninguém nota quando, antes de usar a saída de
emergência, ligo os irrigadores.
É da natureza dos peixes de briga bater a cabeça no vidro
do aquário. Comportamento semelhante pode ser observado
com loucos babões, meliantes despudorados, consumidores de
psicotrópicos em trânsito e com os tarados em potencial. Voz de
17. 17
preto velho reverbera pelos auto-falantes da rodoviária velha,
resmungando que é balela toda essa história de que há famílias
felizesescondidasatrásdemurosaltos.Assobio,comumpiercing
entre os dentes, enquanto procuro pelos cílios no meu bolso. O
próximo ônibus é o meu.
18. 18
RELINCHE
A canhotinha mexendo pra lá e pra cá. O primeiro
momento que enquadro, assim que entro na sex shop, é a
funcionária atrás do balcão escrevendo com a mão esquerda.
Nãoconsigoevitar.Enquantoestendoamãoparacumprimentar
a ... como se chama alguém que trabalha numa sex shop? No
meio da minha ignorância — como não saber disso depois
de todos esses anos? — noto, balançando entre os seios, um
crachá de foto sorridente e cabelo solto que a identifica como
atendente. Rebobine. Enquanto estendo a mão — esquerda,
é bom deixar claro — para cumprimentar a atendente e a
ouço perguntando de que maneira pode me ajudar, penso em
handjob e munhequeiras de tenistas. É inevitável, eu já disse.
Será que o movimento pendular do crachá e o campo de visão
circunscrito a esse objeto pertencem à alguma modalidade
sexual ainda não catalogada? Torneira aberta de tesão em
represanapalmadamão?Naestratégiadosímpiosdecoração,
19. 19
revido com outra pergunta, balançando a mão da atendente
no compasso do crachá.
O responsável pela loja está?
Pela loja? — oh, Deus. Que parte do manual eu não li?
Já me denunciei: quando criança, conjugava punhetas e aulas
de catecismos — ou o contrário, vá lá. Daí o formalismo mal-
calculado, que deságua em situações como essa. Chuá. Ela, a
atendente, responde que vai chamar a gerente da sex shop e se
vira em direção à uma escada, trotando aquele rabo de cavalo.
Pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Cogito relinches e sacos de alfafa
devidamente municiados. Pocotó.
Ah, se você estivesse aqui. Por certo olharia com desdém
paraamoçaelogotratariadeimplicar,chamandominhaatenção
paraafaltadematerial—eia,eia—pararebolar.Cudegrilo,diria
você. E eu, até então, não me sabia chegado a antropomorfismos.
Como será que classificam esse requinte sexual? Ah, eu preciso
me atualizar. Alguém já pensou em editar e vender enciclopédias
do gênero? Eu posso estar deixando um filão passar. Poderia
deixar essa vida de meia-foda e ser sustentado por putarias. Ser
sustentadoesustentarputarias,parasermaispreciso.Engraçado
como certos detalhes ocupam espaço na cabeça da gente em
20. 20
lugares assim. Isso se você tiver predisposição para engendrar
a devida mistura de sacanagenzinhas e confessionários,
inventariando perdas e danos, enquanto espera a atendente —
isso, menina, upa, upa — voltar do segundo andar com a gerente.
Bloquinho de anotações em cima do balcão, letra redondinha. Da
minha parte, confesso: nunca tive uma guria que me ostentasse
com a mão esquerda.
Pocotó.Aatendenteretorna,nomesmotrotedeponeizinha,
trazendo a gerente. Cavalona. Me imagino como um cocheiro,
preparando selas e arreios para elas. Vamos dar o merecido
crédito: eu assisti muito Mundo Animal quando era pequeno. Ah,
a vida nas savanas... Por mim, eu ficaria pelado o dia inteiro. Pra
lá e pra cá, pra lá e pra cá. Entre meritórias quatro paredes, é
bom que se frise, sendo senhor de meu território lascivamente
marcado. Oa, oa, oa. A cavalona — será que ela também usa a
canhota? — suspeita de minhas intenções. Com a categoria
de quem transita entre os arquétipos de madre superiora e
mistress — o que me faz lembrar das historinhas de terror
de Jekkyl e Hyde —, ela tenciona medições ao querer saber
o que eu, logo eu, faço aqui, nessa sex shop. E o que eu faço
aqui, nesse momento, cogitando aditivar pacotes de aveia e
21. 21
fazê-las resfolegar? Vim para candidatar-me a um dos cargos
de fornecedores de material — ah, o formalismo ... — para glory
holes e bukakke, conforme vi neste anúncio aqui, ó. Nenhuma
culpa cristã incutida aí. Relinche e goze.
22. 22
ZOMBA DE MIM
À uma da manhã, relógio do computador engripou.
Tomou para si mesmo minha cara sisuda e estancou nessa
hora. Coagulou. Os cachorros vadios, vagabundos e velhacos
da região fizeram coro. Todos. Como se soubessem. Como se
tivessem conhecimento. E eu? E eu. Numas de grand guignol.
Tirei meus olhos de vidro. Opacos. Nessa hora, à essa altura,
de acordo com a conjuntura, não me servem. A não ser para
embaço névoa cicatriz na córnea. E o que mais? Meus sentidos.
Os outros. Outros mais.
Tambémouviuascornetas,asladainhaseasmanifestações
deiê-iê-iê?Esquecer.Tentar.Mesmodelonge,eupudesentirteus
poros. Queimando. Febre? Sinais de fumaça, além dos aviões. Por
via aérea, a distância exala fumaça de feltro. Basta interpretar. O
quefaço.Eu.Eovelhosentadonaesquina.Àumadamanhã.Antes
e depois de ouvir meu nome sendo silabado. À uma da manhã.
Acordado. Somente eu. Os outros dormem. Não os sentidos.
23. 23
A toalha que não foi jogada. Antes disso. Também ouviu?
Você? É comigo?
Pensei que não confiava em histórias que começam com
hora. E eu te falo. Que você zomba de mim. Com esse costume
hábito vício tic-tic nervoso. De se manter em pé enquanto os
outros. Dormem. Que implica porque resolvo comer carne
temperada. Depois das cinzas. Que descamba a remoer mágoas.
Bis de bílis. Ácido cítrico, pestilência das tripas, química das
entrañas. O caralho a quatro. Não agora. Porque agora. Há o
silêncio. À uma da manhã.
Festejo o Dia dos Mortos. Aguardente envelhecida. Tonéis
de carvalho. Fungo. Mofo. Vezes fel. Que é para dar sabor. Sou
um homem com uma espada sobre a cabeça. E um raro talento
para drama. Se não fosse. Sisudez. Fosse outro dia. Outra noite,
que valha. Não interrompa. À uma da manhã. Fosse outra noite,
estaria em encruzilhadas. Metrônomo pendulando ponta afiada
corte seco. Se eu for dormir, algo vai mudar?
À uma da manhã, sou um sujeito sem órgãos vitais. Um
pote com gelo. Onde tentei boiar.
24. 24
DENTRO DA SUA CABEÇA HÁ UM DISCO
Preso em um maldito zoológico: assim é que me
percebo. Simba Safari urbanóide. Sem saída, esperei o dia inteiro
a chuva cair. À noite, olhei para o céu, da mesma forma que fazem
os gatos, fingindo que não estão farejando o ar. Onde estou agora,
é sempre tudo muito escuro. Minha jaula particular ao ar livre.
Maldição e benção.
Ontem, depois de espanar o pó dos móveis da casa, sonhei
que havia morrido. Morto estava e nada mais precisava saber.
Andava devagar por uma ponte, com as mãos nos bolsos, e um
velho me seguiu, até conseguir caminhar ao meu lado. O velho
caminhou em silêncio, até que resolveu prestar maior atenção
em mim. O que você quer realmente da vida, meu rapaz?
Anestesia.
E que haja boa música.
Acordei em silêncio, com um ventilador rodando perto de
mim. Tudo turvo. Não conseguia me lembrar se havia cruzado
25. 25
a ponte inteira. Mas sei que estes têm sido dias feitos de espera
da chuva — embora eu me sinta completamente encharcado.
Andoarrebentandomeuspunhoscontraaparede,quando
não me resta muito mais para fazer. Deve ser culpa dos pregos
nasmãosinchadas,quemefazemcrerqueestouvivo.Aimagem
que tenho de mim. Farejei o ar novamente e descobri que não
havia cruzado a ponte inteira. No meio da cama desarrumada
pelas minhas mãos, estou começando a acreditar que solidão
pode doer mais aos sábados. Talvez diclofenaco dietilamônio
emaerosolpossaaliviarumpouco.Euacreditonaexistênciadas
paredes. E em cafés de máquina em lanchonetes, em qualquer
horário. Também acredito na solidão das rodoviárias, onde
todos têm a mesma cara de desolação. Às vezes, parece que não
há mais nada a fazer.
Há um disco quebrado na minha cabeça que toca sempre a
mesma canção. Um nada no lugar onde deveria estar o coração.
Umnadasemelhanteaoquesevêestampadonacaradaspessoas
que vão à missa em plena manhã de sábado. O mesmo nada
que encontrei em rostos que encarei em uma escadaria de uma
igreja, às 7 horas da manhã de um sábado de fevereiro, enquanto
esperava uma carona salvadora. A mesma nulidade que me disse
26. 26
que não era permitida a permanência de pedintes na escadaria
da igreja. Tive vontade de lhe dar uns socos, mas como surrar o
nada? E desde então tenho estas mãos inchadas.
27. 27
ATIRE PELAS COSTAS AGORA
Para Jorge Cardoso e João Filho
Umdiacomsolapino?Sim,comsolapino,rachando
a moleira, deturpando os sentidos. Foi quando eu tive a visão
de tudo se esfarelando, tudo se misturando à neve preta das
queimas. Isso numa só piscada que eu dei, porque bola-raio-
flash-de-fogo-fátuo cruzou na minha retina por cerca de dois
segundos e meio, porque eu sou bom em cronometrar. Uma boa
vizinhança com o tempo? Nunca parei para pensar nisso, ainda
mais quando tinha sol a pino catracando o cocoruto. Um sol
que me tornou quase cego, quase num sentido bíblico. E foram
abertasascaixasdosofertórios?De dentro, saíram mais do que
promessas baixas, mais do que sinais de que tudo era verdade,
girando, girando, girando. Girando? É, girando numa, que
diabo! me deixa falar, cabrunco!, girando numa espiral estava
uma verdade, uma verdade que não é a minha, que não é a sua.
E o sol tava batendo a pino. Chapado nos relevos interiores dos
quadros de um pintor que salvou minha vida. Depois de morto
28. 28
e enterrado? Assim como a verdade, em todos os séculos e
séculos, desde que compreendi que meu nome é Chancela.
Das estéticas, há relação? Mas nem, porque das injúrias eu
aprendi como descartar trato com a palavra. Porque tentaram
apagar, apagar da minha testa o sinal sonoro, o sinal sonoro.
Tentativasemresultados?Sempretem,sempretem.Dissorestou
um conselho: é preciso respeitar a grafia riscada nas omoplatas,
chacra cabalístico de carne e vicissitudes. Porque raspar, tá me
entendendo?, nome no alto da testa não funciona, porque é uma
verdade que não é minha, que não é sua. Carne viva? Se não for
lenda,temquesertratadacomoconsistência.Comoconsistência?
Como consistência de couro enraizado, de cravo na ferradura,
de munição para pistola semi-automática. As três pontas de
um tridente. Essa é uma marca, assim como a identificação de
Insistência que carrego como batismo.
E firmam-se acordos? Mas é disso que trata a visão!
Eu vi um tipo nada nórdico empunhando a marreta de Thor.
Eu vi um caboclo rachando a terra à risca de facão. Eu vi um
lagarto fechando um olho, emulando Virgulino, pra enxergar
melhor. Impunha-se cerco e este cerco era só pestilência e o
vento espalhava sonhos médios pelos quatro cantos da terra.
29. 29
O silêncio do bairro? Assim que mudei ângulo da minha cabeça,
alisandoonomegrafadonoaltodaminhatesta,pudedivisarolocal
onde estavam três fiandeiras, aguardando convite para dançar. À
elasforamdadososnomesdeKlotho,LákhesiseÁtrophos.Gritei
paraelasumcotidianocheio,cheiodepossibilidades.Dequixotes
& quimeras? É com eles que rezo todos os dias. Girando, girando,
girando. Seguindo o compasso, a arritmia, a atonalidade. E, tão
logo acenaram pra mim, fui reconhecido como Plural.
Era tudo ditado por três? Vou responder que sim, se
estivermos, se estivermos falando de compassos. É o compasso
rítmico do crooner que canta a canção tema da narrativa,
enquanto um sujeito num filme dos 70 saca-arma-atira-pelas-
costas. O clímax a se repetir, a se repetir por força de varredura.
Dotodo,oabsoluto,segundoensinaafilosofia,éaquiloqueocupa
espaço no cérebro. Manja, no alto da cabeça. Da natureza da
subversão falamos? Assim como o clique-claque-clique-claque-
clique-claque das armas que engatilhamos. Sob uma faixa onde
estáescrito“ofcourse,i’llrideapalehorse”? Em letras garrafais,
talvez, talvez patrocínio. Girando, girando, girando. A verdade
que não é minha, que não é sua, esculpida no alto da testa. Fora
dealcance.Nenhumolhodevidromaisestáembaçado.Marreta,
30. 30
facão e escama agora são partes de um novo testamento.
Munidos de instrumentos bélicos que exaltam a expiação, ao
final do sexto dia e enquanto o mundo explode, anunciamos
como completa a nossa obra.
31. 31
RAILWAY
Do entroncamento da minha vida, que descambou
pro silêncio Daquele. É disso que estou falando. Dá época em
que carregar dormentes e assentar trilhos era uma das minhas
principais ocupações. Ligava distâncias e tinha orgulho dos
meus braços inchados. Pelo porte, chamei atenção de quem
organizavaasrinhas,diversãoeapostadetrabalhadorentediado
da ferrovia. Das antigas. E era num entroncamento que a rinha
se desdobrava. Nunca parei pra contar quantos eu fiz beijar o
chão de poeira batida. Mãos de agarrar e levantar dormentes
golpeavam cara, baço, intestino, estômago até nocaute. Valia
chave-de-braço, rasteira, golpe baixo. Única regra era até cair.
Eu me divertia. Treinava socando paredes enquanto as noites
decisivas não chegavam. Criei calos em cima de calos em cima de
calos. Minhas chagas. Carregava dormentes não como fardo, mas
como substituição de uma superioridade que eu não tinha. Mas
tamanha tolice só fui me dar conta bem depois.
32. 32
Bem depois.
O primeiro indício eu trago estampado até hoje, apesar de
estar desbotado. Vivemos em um hipergueto. Foi o que me disse
Surdo, num esquema-de-sabido-de-malandro, enquanto tatuava
o novo mandamento encarnado no meu braço. A corrosão já
estava por ali. Mas ninguém tinha tempo ou disposição para
saber disso. Nas rodas de conversa, principalmente quando o
falatóriorumavaprasbaixadas,osmaisvelhosmefaziamlembrar
do entroncamento, mesmo sem saber. Contavam histórias de
pactoseperdas.Quenãoaconteciammuitolongedali.Quemuito
vivente cristão ou sem crédito já havia se danado por conta de
atiçar o tinhoso, em mostra de uma tal de auto-confiança. Que
issochamavaaatençãododanado-danação.Queerapiorquando
acontecia em encruza, trevo ou bifurcação. Me pelava pensando
napossibilidade,masnãopassavarecibo.Tinhaduasmãosfortes,
que poderiam socar quem quer que fosse. Até o infinito.
E o entroncamento trazia toda sorte de tipos para a rinha.
Do outro lado da cidade, numa noite sem lua, chegou o sujeito de
cabelosvermelhoseolhardefaíscas.Diziamquevivianumvagão
abandonado, comendo ratos, preás e gambás que caçava à unha.
Que trabalhava no mesmo esquema de conduta da linha férrea.
33. 33
Que era talhado a ferro, fogo e cachaça. Que entortou um sem-
número, na base da porrada. Que era ruim de cair. Ficou duas
noites vendo a rinha. Na segunda, fiz questão de mandar dois
pro chão. Cuspi sangue no dia seguinte, mas de bolso cheio Na
terceira noite, ele anunciou que era a vez. As apostas foram altas,
mesmonãotendolua.Parounaminhafrenteemecumprimentou,
dando a mão. Havia uma agitação, o fogaréu se balançando nos
galões, iluminando o entroncamento, o dinheiro solto. O fogo da
cor daquele cabelo. Os olhos chispando, crivados em mim. Nós
dois com os pés no entroncamento. Vi que era aleijado, que não
tinha um dos dedos.
Se eu ganhar, tu sai daqui com o rabo entre as pernas. Se
você ganhar, eu deixo de existir.
Topei. Apertando a mão-menos-um.
Bateram o sinal. Na dissimulação de quem se achava
pugilista, ensaiei que abria a guarda, só para testar a força do
ruivo de mão aleijada. O primeiro soco pegou bem na cara,
mas nem piei, acostumado que estava. Mas não esperava um
segundo soco com tamanha velocidade. E nem um terceiro ou
um quarto. Quando o primeiro da leva de surpresa me acertou,
entre o maxilar e o ouvido, escutei apito de trem e estalo de
34. 34
bigorna. Tentei reagir, mas só via faíscas na minha frente. Tomei
um coice na barriga e o restante bateu oco na cara. Meus braços
varavam o ar sem brilho. Caí de fuça, estalando a língua mole
dentro da boca. Ainda espanou poeira na minha cara com a
botina. Levantei cuspindo marrom, como se houvesse mascado
fumo sem qualidade. Fiquei sem ouvir o que se passava ao
redor. O silêncio Daquele. Acordei somente no dia seguinte, mal
conseguindo enxergar. Bolsos vazios.
Cumpri o que havia traçado. Pedi demissão e me joguei na
vida.Oquerestounãofoisomenteaderrota.Umvazio.Estamos
todos atolados. Sem mais sentido. Até onde me lembrava.
Quando não sei mais quanto tempo se passou. Um meio homem
foi o que eu passei a ser. Até meu rosto ficar enrugado e meus
braços murcharem.
Atéhoje.Quandonãomaisagüenteiconvivercomosilêncio
amargando pelo poros todo dia.
Vaguei como um condenado fujão até voltar ao mesmo
lugar. Mordendo o próprio rabo. Catei uma lanterna e fui parar
de novo no entroncamento. Para reaver o que eu nunca deveria
terdeixadoquemetomasse.Encontrei-odomesmomodo.Como
se nunca houvesse saído dali, desde aquela noite. Como agora
35. 35
também era. Sentado no último degrau da escada, parecia ter
envelhecido pouco. Bem diferente de mim, que mantive apenas a
tatuagem como mandamento, quando tudo o mais foi sumindo.
Porculpadadesgraçaemquecaínaquelanoite,pactoqueaceitei
cumprir como pagamento da derrota que ele me impingiu.
Passeividaaengolirorgulhoeissomeressecoupordentro.Pode
apostar. Os cabelos daquela cor que contamina continuavam a
pegar fogo. Fiz o sinal da cruz, em pensamento, que era pra não
demonstrar medo. Tinha certeza de que o ruivo da mão aleijada
sabia o que eu queria. Escarrei pelo canto da boca, mas ele nem
desgrudou os olhos de um ponto qualquer da paisagem.
Mal seu é esse. Sempre foi. Olha bem e vê o que eu tirei
de você.
Obedeci sem pestanejar, mais por tique do que por
convencimento. Respirei fundo e as escamas caíram dos meus
olhos.O chão, mistura de verde e marrom, sumiu debaixo dos
meus pés. Os trilhos desapareciam em camadas de poeira,
amargura, lama, desesperança, ferrugem, frustração. O mato
me encarava de cima e ameaçava me navalhar. Os dormentes
se juntavam aos meus braços, ao meu tronco, ao meu rosto.
A paisagem bateu eco no meu peito. Como se fosse golpe
36. 36
daqueles tempos. Esquecimento. Vazio. Desolação. Todos os
socos que andei levando desde aquela noite. Voltaram como
cobrança. Nada daquela paisagem, exceto a escadinha de
onde ele não desgrudava a bunda, lembrava a vitalidade dos
descaminhosque eu havia conhecido.Não conseguiidentificar
nenhum barulho ou cheiro ou imagem. Todos aqueles com
quem eu havia trabalhado. Todas as mulheres que eu tive.
Todos os inimigos que meti pra baixo das botas. Tudo morto.
Pior, pior. Tudo esquecido. Mariposas à caça da luz da minha
lanterna tentavam cobrir minha cara.
O silêncio Daquele não é bem contigo.
Olhei para o ruivo. Terminou de beber aquele líquido-
ferrugem, bochechou e engoliu, fazendo uma careta. Que deixava
ver todos aqueles dentes ainda firmes na boca. Da garrafa
vazia, passou aquelas faíscas que mantinha cravadas naquelas
olheiras para mim. Olhou bem no fundo dos meus olhos, como
se ainda existisse o sujeito que ele havia socado para dentro de
mim mesmo, ainda com os dentes à mostra. Um disparo bateu
nos meus ouvidos. Aquela boca que mal se mexia. Um sopro
embaçou a garrafa. Vi uma névoa circular ali dentro, no espaço
de tempo que levei para piscar os olhos. Desde o momento em
37. 37
que havia entrado naquela rinha, não tinha conseguido encarar
de frente aquelas faíscas. As mesmas de agora. Com o polegar,
atarracou uma rolha na garrafa e a passou pra mim. Eu me
perguntei quem realmente havia perdido, enquanto encarava,
pela primeira vez, os olhos daquele que já havia voado alto.
Até que se apagaram.
38. 38
L´ÉGOISME
I - SUTILEZAS DESLEIXADAS
“como ascendera às alturas noctígenas,
cortando o próprio pulso;
e, desafiando do Céu dos Santos,
vencera as lutas todas,
adoraria reeditar suas memórias”
O último desígnio — Vzyadoq Moe
Um pedaço de carne.
Falta este item na lista. É assim, justamente assim, que
começam a sair à minha procura. Farejam que minha carne
ainda não está podre, conforme ecoa a mensagem à medida
que minhas passadas me distanciam. Procuram em tudo
quanto é lugar. Nos becos, nas esquinas, na lama e no pó.
Até que conseguem me encontrar e trazer de volta à planície.
Acusam-me de difundir o Legoísmo, esses bloquinhos de armar
39. 39
para melhor montar seu próprio ego. Apontam-me como uma
espécie de garoto-propaganda do Silêncio Introspectivo e dos
RuídosdeComunicação.Umaafronta:trabalharparadoispatrões.
Dizem eles, os Homens de Jaleco Branco. E eu nem sabia que
estavaempregado.Encontram-meassim,destituídodomomento
presente,debarbaporfazer,tapandoosouvidos,tentandoevitar
ou minimizar as reverberações. Prendem meus braços para trás
e empurram-me com força para frente, não poupando-me nem
mesmo quando caio, desalinhado com as correntes nos meus
pés. E nem assim sinto dor. Não consigo sentir.
O Legoísmo, segundo aprendi enquanto atropelava
e fugia até me brecarem, é um movimento que ganhou
as ruas no final do século. Assustando as criancinhas,
descabelando as jovens e ruborizando as velhinhas. Após
anos e anos e anos de reclusão calculada, dizem que o
Legoísmo fortaleceu seus princípios de funcionamento e
ganhou, na surdina, adesões. Até se tornar incontável. Reza
a lenda que há até quem não saiba que está envolvido com
este projeto de dominação mundial pelo Conhecimento, tão
sutis são consideradas suas ações. Uma ameaça ao status
quo que só recentemente ganhou atenção espetacular da
40. 40
outra parte envolvida. E nessa caça às bruxas, fui avisado, bem
entre os ouvidos, que meu nome estava na lista principal. Acabei
saindo de casa somente com a roupa do corpo, em peregrinação.
Perdi as contas de quantos sapatos troquei, até chegar a estes
marrons, que não se gastam facilmente.
Enquantocolocamdedosemristeàminhafrente,perfilam
documentos, provas e fatos que consideram irrefutáveis para
manchar minha existência, e berram na minha cara que a
expiação é uma prerrogativa deles, somente deles, e que devo
reconhecer a culpa, a minha culpa, a minha máxima culpa.
Colocam-meviradodooutroladodoespelho,apontamcanudos
trouxas de enganar doutor e perfilam mundos à minha frente,
demodoqueapenaseupossavê-los.Inútil.Jáfaçoissoporconta
própria. É essa a culpa que querem que eu assuma? Cuspo fel
por antecipação, marasmo e prenúncio de hálito necrosado. A
soma daqueles que foram banidos.
Quandoaprimeiranotíciaconfirmadaporfontesdogoverno
sobreousodostaisbloquinhosdearmarparamelhormontarseu
próprioegoseespalhou,osmaisalinhadosapressaram-seabanir
da existência e da memória estes pequenos objetos subversivos.
Tentaram jogar pela mesma cloaca histórica por onde enfiaram
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os antigos nativos desta planície. Fizeram um bom trabalho;
muitos escoaram, como se fossem menos que merda no vórtex
da descarga. A sucessão de Atos a justificar as perseguições
forjou mártires. Alguns conseguiam viver se mantendo
mortos. Abafando os egos, mas sem deixar de exercitá-los, foi
o que ouvi, enquanto tentava dormir em uma rede, depois de
três dias de pique-esconde, atividade vital para quem tem a
cabeça a prêmio. Meu último pensamento consciente nessa
noite, antes de apagar por completo, foi de que talvez haja
quem realmente imagine que procuro por perfeição nesta
fuga. Que sou um pretenso mártir, deixando tudo (tudo?) para
trás, à menor acusação de ser um legoísta; o que, por si só, já
é considerado como um atestado de culpa. Talvez, no meio da
multidão que se acotovela na praça principal desta planície,
haja alguém que me considere um exemplo a ser retalhado e
servido às feras, pelo simples fato de que esteja me afastando
das muletas emocionais do mundo dos negócios. A saber:
tônicosenergizantes,karaokês,cigarros,ternoseindústriasde
seguros. Mas não se trata de beatitude. É apenas consequência
de uma não-adequação. O que não deixa de ser uma fuga, um
preço a pagar, no fim das contas.
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Nós somos os devedores. Tudo o que respondo à cada
inquisição. Todos ficam corados. Absolutamente todos, até
mesmo as fotos nos porta-retratos na sala vizinha. Todos têm
culpa no cartório, embora sejamos ensinados que a culpa
acaba por ser uma tolice de iniciantes. Por isso se entreolham,
cúmplices. Ninguém, a não ser eu mesmo, se surpreende quando
uma chibatada estala em minhas costas. E mais uma. Mais uma.
Mais uma. Mais uma. Chibatadas sem assinatura, sem autoria.
Que maldade vil é esta? Alguém assobia. A via crucis tem que
continuar. Sangue e lágrimas. Vôo e queda.
AoHomemfoidadaacapacidadedereinarsobreospeixes
da água, os pássaros do céu e os répteis que rastejam. Ouvi esta
pregação ressoar na minha caixa craniana uma noite depois
de escutar uma acalorada discussão sobre rumores acerca do
Legoísmo. Que a arquitetura da montagem dos bloquinhos
era um exercício de Conhecimento e, portanto, taxado como
pecaminoso, vexatório e corruptor pelos Legisladores, uma
das castas que exacerba a promiscuidade entre os poderes
constituídos. Eu viria a saber, em outra ocasião, solitário com
meus pensamentos, que o Legoísmo revela, a bem dizer, mais
sobre quem observa o objeto do que sobre quem o edificou.
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Mas, naquele momento, me vi pensando se esta capacidade dada
ao homem não teria sido a primeira maldição impingida ao ser
humano, que passou a se afogar, a se estabacar e a se arrastar,
sempreemnomedaEvoluçãodaEspécie.Santidadeehipocrisia:
nenhuma diferença, teria me ensinado meu velho pai, se tivesse
alguma chance. Ainda consigo ouvir sua voz estalando na minha
cabeça. Fiapos do que tiraram de mim.
Ao menos, deixam-me usar meus sapatos marrons. Tapam
aentradacomumarocha,ondegarranchosecoamqueosmansos
de coração herdarão o Fim do Mundo. Há um corte no meu
nariz, bem entre meus olhos, que teima em não cicatrizar. Penso,
novamente, em necrose e dessa vez, cuspo pequenas bolotas de
feltro e alcatrão. Ouvi dizer que estão prestes a jogar uma pá de
cal em mim. Então eu caio — em tentação? Meu sono da razão
produzpontoscardeais.Oque,abemsaber,meproporcionauma
lerdeza mickeymouseana. Mas, em compensação, me arremesso
em ambientes diferenciados da arquitetura da minha memória.
Comdesenvolturaanfíbia.Acadavezquesurgemnovasacusações
e provas que dizem ser irrefutáveis, me concentro na estática e
enfio mais a fundo o dedo no umbigo.
O que reforça a idéia de que não estou somente aqui.
44. 44
II - COMO ME TORNEI UM ANFÍBIO
“who are the ones that we kept in charge?
killers, thieves and lawyers”
God’s away on business — Tom Waits
Um palhaço triste, de boca aberta, usando cabelo black
power.
Esta é a imagem mais nítida que consigo evocar do meu
passado. Havia este pôster, plantado num poste, bem em
frente à uma igreja. Descobri a imagem em uma das minhas
andanças, na começo da minha adolescência, quando saía às
ruasdemadrugadaparapicharmuros;umpaliativoparaminhas
frustrações e necessidades de comunicação. Estampava pela
cidade a frase nós queremos as ondas que estão no ar. Nesse dia,
encarando aquela boca de dentes perfeitos, comecei a existir em
mais de um ambiente, sem saber que era a falibilidade zen já se
manifestando. Justamente o que iria acabar me condenando.
Também foi neste dia que ouvi falar, pela primeira vez, sobre
45. 45
as Antenas-Crucifixo, aparatos espalhados por vários cantos do
mundo,pertencentesàemissoraderádioquetemcomosloganas
microondasmaispotentesdoplaneta.Asondasdoar.Arevolução
nãoserátelevisionada.Seucérebropodefritar.Quemalpossoter
cometido, pelo simples fato de conseguir respirar aqui e acolá?
Uma das minhas primeiras condenações foi justamente me
submeter a um tratamento psiquiátrico. Os choques nem são tão
ruins assim, depois que você aprende a usar força suficiente para
fazer os dentes não tremerem e a língua não enrolar. Adaptação;
porissofuginoterceirodia,apósmefingirdemorto.Desdeentão,
tenho exercitado bem este truque. Acreditava, até este momento,
que havia alcançado a perfeição. Que estava em estado de graça.
O corte no alto do meu nariz coça e quase me faz sentir
cócegas. Minha pele tem borrões de tinta das telas de Van
Gogh. Conservo jejum enquanto aguardo meu julgamento. Os
preparativos, segundo tento entender daqui, seguem de vento
em popa. Consigo ouvir os rumores das barracas; o circo sendo
armado. Compre aqui seu souvenir, senhor. Você pode se
tornar um cordeiro amável, uma criança afável, um assistente
de palco. Encosto minha cabeça na pedra que quase veda a
entrada, tentando escutar algum ruído familiar. Masosalaridos
46. 46
que consigo escutar estão todos lá fora. Nenhuma amplitude. Até
umtantoantesdetiraremapedradaentradaecaçoaremdemim.
Pintam a minha cara. Colocam um espelho. À minha frente, um
palhaço triste baixa os olhos. Indo para o cadafalso.
A quantidade de holofotes ao redor me faz lembrar que
um dia pensei que o futuro poderia ser brilhante. Durante
meu julgamento, argumentam que a melhor medida punitiva
a adotar consiste em fatiar-me como um porco. Há grupos que
defendem que um certo sentido de união poderá ficar no ar com
esta opção. Uma das alegações mais comuns é que a tradição
de árabes e judeus acaba sendo incorporada à experiência,
porque só é possível retalhar e desossar a carcaça após a perda
total de sangue. Também é cogitada a aplicação de um a vinte
e três golpes de marreta. Bem no alto da minha cabeça. Essa é
uma das reivindicações dos Misericordiosos. Minha condenação
mostra contornos de que terá outra natureza. A decisão de me
usarem como medida disciplinar não tarda a ser proclamada.
Um resmungo, um coaxar estúpido, a habitual fala de batráquio
que acabei nutrindo: percebem a pequenez de nossas mentes?
Nãohouveresposta.Amultidãoestáberrandomeunome.
Jogam um Cubo Mágico bem na minha cabeça. Mira perfeita:
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acertam meu nariz, que volta a sangrar. Arranco um dos meus
sapatos marrons e arremesso pros lados de onde veio o cubo.
Acerto também o nariz de um deles e então uma chuva de
sapatos de várias cores e tipos e tamanhos cai em cima de mim.
Meias também voam em minha direção. Cato os sapatos que
posso e os jogo de volta, mirando bocas, orelhas, narizes, testas.
Acerto vários deles, anônimos marcados na multidão, e sou
alvejado várias vezes. É a troca que tanto querem. O momento
emquesomostodosiguais.Perante.Chegoaorequintedemirar
em marcas de nascença, quando me empurram para longe dali.
Acerto um último sapato em uma orelha esquerda, que parece
grasnar. Com um pé descalço e aos solavancos, acabo no chão.
Elana aparece em meu socorro, em cima de mim, afagando
minhas costeletas. Enxuga meu suor com um trapo fedido. Todo
o líquido que vai ter de mim, quando eu tenho tanto mais para
lhe oferecer. Ela diz que criou uma oração para mim. Que será
entoada sempre após o silêncio que se forma quando os sapos
páramdecoaxar.Elanaétiradadecimademim—comofoiavida
inteira — e devolvida para a multidão, apertando bem entre as
mãos o trapo fedido com meu suor. Minha herança. Bambuzais
e plantações de cana-de-açúcar completam a paisagem.
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Nunca antes deste momento Elana havia se prontificado a
cuidar de minhas feridas.
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III - O SEXO, A MORTE, OS IMPOSTOS
“aqui do alto do cruzeiro
onde o vento faz a curva pra voltar com mais coragem
vejo o sol tocando a ponta do pára-rio da cruz”
O espetáculo — Cordel do Fogo Encantado
Hoje eu fui crucificado.
Nocentrodouniverso,ondetudoserevela.Dascartasdotarô,
escolhi(escolhi?)seroEnforcado.Torno-meassimumpedaçode
carne mole para a posteridade. Toda minha raiva esvaziada pela
inaptidão cultivada, cujo ponto mais representativo bem pode
ser identificado por este momento. Tatuagens, cicatrizes, aros e
pinos de metal. Mãos calejadas, olhos cansados, anos de carteira
assinada. Ninguém nunca soube explicar qual é a diferença entre
estar com fome, sem dinheiro e ter vontade de reclamar. Não me
apego. Não peço arrego. Mas sei que sempre houve o desejo, e
só, de lançar granadas. Nunca cheguei a arremessar uma sequer,
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de modo que acabavam explodindo em mim mesmo. Talvez a
busca da redenção; auto-flagelo psíquico, curtindo o aumento
de voltagem que fazia com que eu conversasse cada vez mais
comigomesmo.Pordentro.Domeusangue:gangrenaealcatrão,
ambos dissimulados. O que me reduz a isso. Um pedaço de
carne mole se deixando levar para um túmulo vazio. Que assim
permanecerá.
A carne.
Precisamente ao meio dia: braços esticados até dar
câimbra, palmas e pés atravessados por metal pesado. Pude
sentir o sol batendo bem no alto da minha cabeça e olhei para
todososlados,mesmoestandocomolhossemicerrados.Campo
aberto, sol a pino. Não poderiam ter escolhido local melhor. As
ondas do ar vinham de todos os lados. Recepção sem filtros.
No ponto mais alto desta planície, mal sabem aqueles que me
assistem, que estou em sintonia com o centro do universo. As
ondas. Primeiro, se insinuam, mordendo de vez em quando,
neurônios se estranhando, soltando nacos. Me deram uma
punição maior do que jamais poderiam elaborar. Depois,
enguias elétricas ziguezagueam na massa cinzenta, soltando
faíscas. O corte acima do meu nariz coça e coça e coça, fazendo
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com que as batidas do meu coração soem como tambores high-
tech a retumbar mantras reverb. Mas estes são apenas sinais de
sintonia. No centro do universo. Com um grito começa. Ondas
me invadem e meu nariz arde, até que eu grite de dor, porque
não posso alcançá-lo. Sangra. Em ondas que convulsionam.
Simplesmenteporquefincou-senacarneumdessesemaranhados
radiofônicos, que ligam-se e desligam-se de crânios sem pedir
licença, podendo significar mais do que sintonia fina ou surtos
alucinatórios.
Esteéumalertahomicida.Commicroondas,estãofritando
seu cérebro.
Tem sido assim o começo das transmissões nos últimos
anos. Soube disso quase na mesma época em que comecei a
pesquisaroqueantespareciaapenasboato.Naépocaemqueme
fingi de morto, para escapar do eletro-choque. Nas cruzes estava
a danação. E a benção. E mais uma vez: danação. Na forma das
ondas do ar. Começava assim a cantilena de quem rezava pela
cartilha dos legoístas; um, digamos assim, contexto histórico. Na
tentativadederrubarasemissõesdasAntenas-Crucifixo,estações
medianas foram construídas através dos tempos, enviando
pontos e linhas hertzianas, código Morse de entranhas assadas
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por ondas, calcinadas em uma contenda midiática. Be cool. Or
theykillyou.Conhecimento:otabu,aproibição,osufoco.Fincava
raízes de árvore que já fora. No ar. Co-enunciados, conforme
aprendiam os legoístas, analisando discursos e destrinchando
processos cognitivos. E ai de quem se aventurasse no meio das
disputas. Eram pegos pra Cristo. Mas a função não derrubava.
Emaranhava. Esta era a estratégia. O latifúndio das ondas do
ar saturava Conhecimento. O que aqueles que condenam não
podem compactuar ou reconhecer a existência.E suportar é uma
tarefa nada vinculada à glória.
Eu não quero respirar o mesmo ar que os vermes.
Daqui de cima, nesse estado, isso me parece bastante
evidente. Traduzindo e recombinando ruídos enquanto a
vontade de coçar o nariz aumenta e eu ainda grito para a
multidão acotovelada, consigo ouvir Elana disparando por entre
plantaçõesdecana-de-açúcar,nua,tendoapenasumtrapofedido
exalando meu suor a cobrir-lhe o rosto. A partir de hoje, ela não
poderá ser tocada por ninguém durante esta profissão de fé.
Enquanto entoa a oração que fez para mim — por amor ou por
besteira? — após o silêncio dos sapos. Um silêncio que agora eu
não disponho, tamanha é a profusão de vozes na minha cabeça.
53. 53
Dentro.Umsussurrorodopiafamintonosmeusouvidos.Deonde
não posso escapar.
Mas não pretendo ouvi-lo por muito tempo.
Recordo-me dos momentos em que busquei outras
afinações. De mim farão pinturas sacras. Discutirão se eu usava
ou não barba. Não teria sido melhor se nada disso já tivesse
realmente acontecido antes? Em meio à estática que vai se
confundindo com os gritos da multidão, enxergo uma figura
conhecida. Um palhaço triste, de braços abertos e usando cabelo
black power, rodopia na multidão. Um filete grosso e vermelho
que parte do alto do nariz divide seu rosto em dois e pinga no
chão. Com uma insistência de atabaques. O palhaço triste ginga.
Pequenosfocosdefogovãoestalandonospontosondeeledança.
Fogueiras e fagulhas. Fuligem volta a cair na planície, período de
moagem — de homens e cana-de-açúcar. A dança vai evoluindo
ritmicamente, até que ele encarna um b-boy e começa a rodopiar
no chão, de cabeça pra baixo. Em seus pés, labaredas-cadarços
desamarrados.Línguas.Mesmogirando,aindaépossíveldelinear
seu cabelo black power, à medida em que vai se aproximando de
mim. Uma série de mudanças bruscas no dial me fazem piscar e
quandovoltoàmim(àmim?),estousoltandoperdigotosdefreon
54. 54
líquido na ventania de fogo que rodopia ao meu redor, riscando o
campo de visão. Congelei: cristal, carvão, pó.
Um silêncio na cabeça. Um silêncio maior do que o dos
sapos.
Nesse único momento de lucidez, quando estou ficando
cada vez mais cara a cara com a morte, quando o fim vai se
tornandocadavezmaispalpável,fugindodeumameraabstração
de medos, traumas e paranóias enfiadas traquéia abaixo, me
vejo a fraquejar. O Legoísmo é só um braço, concluo por mim
mesmo. Neste único instante, quando as transmissões cessam,
em reverência, dentro da minha cabeça e há uma explosão de
cores diante de meus olhos, chego a pensar que talvez seja um
milagre. O ato de viver. Penso nisso na medida em que o sol vai
saindodopontomaisaltodaminhacabeçaeseguecontaminando
meus olhos com tons de vermelho, laranja, azul, amarelo e lilás.
Penso nas possibilidades de um milagre sufocado estourando
com fúria — silenciosa para os demais —, enquanto me preparo
para receber cores escuras em minhas retinas. A velocidade
vertiginosa da queda. Terra. Lama. Pó. E é assim que, de braços
abertos,partículadecarnedesprendidanovácuo,rejeitoamorte.
Como alguém que descansa na casa materna.
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A compreensão de mim mesmo. O Conhecimento.
A lucidez, penso eu — respirando como um asmático —,
talvez possa ser congelada neste mero instante; ápice de prêmio
e castigo, de maldição e benção. Mas sem a menor sombra
de qualquer redenção. As interferências sonoras voltam, à
medida que o sol vai deixando de se importar comigo. Primeiro
timidamente, como roedores que são mandados para investigar
as linhas inimigas para ver se está tudo certo para uma possível
ocupação. Mas, atando-me como posso a um fiapo de lucidez,
entendoquetalvezpossaforçarumcaminhocontrárioàrecepção
das ondas do ar na minha cabeça. O mundo aos meus pés torna-
se uma paisagem com azul. E então suspiro.
Jamais me revelarei.
There’s a hole on the pockets of memory/It makes
me an iron fist man, full of rage/Table for two on
this world of shame/While echoes escape from my
throat
Veja, veja. Estão tocando nossa música no rádio
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O autor
Jorge Rocha nasceu em Campos (RJ) e mora em Belo Horizonte
(MG)desde2004.Éjornalistaeprofessoruniversitário.Publicou
em 2008, pela Mojo Books, o livro Murder Ballads, recontando
o CD homônimo de Nick Cave and the Bad Seeds.
Contato:
jorgerochaneto@gmail.com
www.twitter.com/exucaveiracover
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Esta obra foi composta nas fontes
Cambria e Calibri pela MOJO Books
Editora em outubro de 2010.
58. “A usina que Jorge construiu tem uma estru-
tura loquaz com reflexos oníricos quando bate
o sol. Elementos diversos, virgens e insalubres,
cooperam na tarefa de girar suas pás e reverter
o curso da prosa para ambientes habitados pelos
instintos mais primitivos do homem. Uma obra
para se ler, se nunca antes, nos últimos dias antes
do fim do mundo.”
— Ricardo Giassetti