Este documento analisa o discurso do "Guia Prático do Cuidador" para entender quais práticas são evidenciadas e como o cuidador é apresentado. Ele resume que o Guia se propõe a orientar, mas não formar cuidadores, e apresenta três discursos sobre o papel do cuidador: anjo caridoso, profissional de saúde e profissional doméstico, mantendo indefinição sobre seu papel.
1. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
328
Práticas
cotidianas
dos
cuidadores
de
idosos
baseada
no
Guia
Prático
do
Cuidador
Meiriele
Tavares
Araujo1,
Isabela
Silva
Câncio
Velloso
2
,
1
Departamento
de
Enfermagem
Aplicada
da
Escola
de
Enfermagem
da
Universidade
Federal
de
Minas
Gerais,
Brazil.
enfaraujo@ufmg.br
2
Departamento
de
Enfermagem
Aplicada
da
Escola
de
Enfermagem
da
Universidade
Federal
de
Minas
Gerais,
Brazil.
isacancio@gmail.com
Resumo.
Objetivo:
Analisar
o
discurso
do
Guia
Prático
do
Cuidador,
para
compreender
que
práticas
são
evidenciadas
e
como
o
cuidador
é
discursivamente
apresentado.
Metodologia:
Análise
de
Discurso
no
formato
delineado
por
Foucault.
Principais
achados:
O
Guia
se
propõe
a
orientar,
mas
não
a
formar
o
cuidador.
Parte
dele
está
escrito
na
primeira
pessoa
do
plural,
mostrando
aproximação
do
autor
com
o
leitor.
Apresenta
demandas
para
a
família,
a
sociedade
e
o
poder
público,
que
são
a
tríade
de
apoio
para
a
melhoria
da
“qualidade
de
vida
do
idoso”.
Entretanto,
o
documento
centra
a
responsabilidade
do
cuidado
no
cuidador.
Foram
identificados
três
discursos
sobre
o
que
se
espera
da
prática
do
cuidador
de
idosos:
quase
anjo
caridoso,
quase
profissional
de
saúde
e
quase
profissional
doméstico.
O
Guia
mantém
a
indefinição
da
posição
desse
sujeito
no
trabalho
do
Care,
reafirmando
as
incertezas
quanto
ao
limite
do
seu
cuidado
no
discurso
apresentado.
Palavras-‐chave:
Cuidadores;
Assistência
Domiciliar;
Auxiliares
de
Cuidado
Domiciliar;
Envelhecimento.
The
everyday
practices
of
elderly
caregivers
based
on
Practical
Guide
of
the
caregiver
Abstract.
Aim:
To
analyze
the
discourse
Caregiver
Practical
Guide
in
order
to
understand
what
practices
is
evidenced
and
how
the
caregiver
is
discursively
presented.
Methods:
The
Discourse
Analysis
was
made
in
format
delineated
by
Foucault.
Main
Results:
The
Guide
aims
to
guide,
but
not
to
train
the
caregiver.
Some
of
it
is
written
in
the
first
person
plural,
showing
approximation
of
the
author
with
the
reader.
Displays
demands
to
the
family,
society
and
the
government
that
are
the
triad
of
support
for
improvement
of
"the
elderly
quality
of
life."
However,
the
document
focuses
on
the
responsibility
of
care
caregiver.
They
identified
three
discourses
about
what
is
expected
of
elderly
caregiver
practice:
almost
charitable
angel,
almost
professional
health
and
almost
domestic
professional.
The
guide
keeps
the
vagueness
of
the
position
of
this
subject
in
the
work
of
Care,
reaffirming
the
uncertainties
about
the
extent
of
its
care
in
speech
presented.
Keywords:
Caregivers;
Home
Nursing;
Home
Health
Aides;
Aging.
1
Introdução
A
realidade
mundial
de
envelhecimento
populacional
desperta
inquietações
sobre
como
tem
se
dado
e
se
organizado
esse
processo
na
sociedade
em
vários
campos
do
conhecimento.
O
envelhecimento
pode
ser
compreendido
como
um
processo
que
abrange
aspectos
psicofisiológicos,
socioeconômicos,
históricos
e
culturais
e
traz
modificações
na
relação
do
sujeito
com
o
tempo,
o
espaço,
o
mundo
ao
seu
redor,
bem
como
com
os
novos
atores
que
passam
a
interferir
em
seu
cotidiano
(Brasil,
2006).
Com
o
envelhecimento,
na
maioria
das
vezes,
o
sujeito
passa
a
ter
uma
relação
diferenciada
com
o
seu
cotidiano,
devido
às
situações
de
dependência
decorrentes
dos
processos
de
adoecimento,
comprometendo
sua
qualidade
de
vida
e
diminuindo
suas
possibilidades
de
autocuidado.
Nesse
sentido,
a
necessidade
de
auxílio
de
outrem
para
as
atividades
diárias
traz
para
o
cotidiano
do
idoso
um
ator
denominado
cuidador.
Esse
cuidador
de
idosos
pode
ser
leigo
ou
profissional,
de
vínculo
2. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
329
formal
ou
informal.
Em
alguns
casos
esse
cuidado,
ou
Care,
poderá
ser
exercido
por
vizinhos,
comadres/compadres,
colegas
de
trabalho,
voluntários
ou,
ainda,
outros
contratados,
auxiliares/técnicos
de
enfermagem,
enfermeiros
e
empregadas
domésticas
(Oliveira,
Ferreira,
Fonseca,
&
Paes,
2016).
Guimarães,
Hirata
&
Sugita
(2011)
destacam
que,
ao
longo
da
história
e
com
a
evolução
das
sociedades,
o
care,
antes
realizado
por
membros
da
família,
mais
especificamente
pelas
mulheres,
passou
por
modificações
devido
às
novas
tendências
sociodemográficas,
às
novas
exigências
de
mercado
e
às
novas
configurações
familiares.
Essas
modificações
têm
promovido
uma
estruturação
e
ampliação
de
oportunidades
profissionais
no
care,
com
repercussões
em
carreiras,
em
regulamentações
profissionais
e
nas
condições
e
relações
de
trabalho
na
sociedade
hodierna.
Mais
do
que
apenas
uma
constatação,
tal
realidade
implica
na
reflexão
das
consequências
desse
cenário
para
muito
além
de
questões
biológicas
e
relacionadas
à
finitude
da
vida,
mas
em
questões
voltadas
ao
regime
neoliberal
e
às
relações
de
trabalho.
O
envelhecimento
passou
do
status
de
uma
questão
restrita
ao
núcleo
familiar
para
o
domínio
público,
integrando-‐se
ao
conjunto
de
elementos
passíveis
de
gestão
do
Estado
(Debert
&
Oliveira,
2015)
e
influenciador
do
mercado
de
produtos
e
serviços.
No
sentido
de
regular
e
prover
suporte
ao
idoso,
o
Estado
tem
buscado
regulamentar
a
profissão
de
cuidador,
não
somente
no
que
se
refere
ao
estabelecimento
de
direitos
trabalhistas,
mas
também
na
formação
mínima
necessária
para
o
exercício
da
função.
Entretanto,
essas
iniciativas
causam
desconfortos,
especialmente
entre
os
empregadores,
em
função
do
alto
custo
dessa
mão
de
obra
e
da
quase
absoluta
falta
de
alternativas
de
apoio
e
suporte
ao
envelhecimento
no
Brasil,
como
instituições
de
longa
permanência
ou
instituições
de
apoio
a
família(Martins
&
de
Mello,
2013).
Esse
artigo
foi
elaborado
quando
nós,
autores
e
pesquisadores
envolvidos
no
projeto
“Recursos
disponíveis
e
arranjos
necessários
para
o
cuidado
domiciliar
da
pessoa
idosa
frágil
com
Demência”,
buscamos
compreender
se
o
envelhecimento
populacional
estaria
também
levando
ao
desenvolvimento
de
novos
arranjos
nas
relações
de
trabalho.
Nesse
sentido,
passamos
a
observar
uma
intensificação
da
profissionalização
do
trabalho
do
care
de
idosos
na
sociedade
brasileira
nos
últimos
anos.
Nesse
contexto
das
práticas
de
cuidado
brasileiras,
essa
situação
tem
levado
à
reflexão
sobre
o
trabalho
do
cuidado
com
base
em
dois
discursos:
um
que
retrata
o
aumento
da
população
de
idosos
e,
consequentemente,
sua
dependência,
e
o
outro
que
fala
sobre
o
declínio
da
estrutura
tradicional
da
família.
Ambos
confluem
para
o
dilema
da
diminuição
da
oferta
de
cuidados
para
o
idoso
e
ao
de
a
quem
caberia
a
responsabilidade
para
com
esse
cuidado
(Debert,
2016).
Diante
disso,
este
artigo
teve
como
objetivo
analisar
o
discurso
presente
no
Guia
prático
do
Cuidador,
a
fim
de
se
compreender
que
práticas
esse
guia
evidencia
e
como
esse
profissional
é
discursivamente
apresentado
pelo
governo
brasileiro.
Nesse
sentido,
foi
realizada
uma
Análise
de
Discurso,
no
formato
delineado
por
Foucault,
para
buscar
uma
compreensão
do
discurso
presente
no
“Guia
Prático
do
Cuidador”.
2
Contextualizando
o
envelhecimento,
o
care
e
o
cuidador
de
idoso
no
Brasil
2.1.
O
Care
O
termo
Care,
em
português,
significa
cuidado,
preocupação
com
o
outro,
desvelo,
diligência,
atenção.
Apesar
de
ter
permanecido
por
muito
tempo
escondido
nas
relações
privadas
e
um
atributo
das
mulheres,
nos
últimos
anos,
o
care
tem
feito
parte
da
agenda
política
e
também
dos
debates
acadêmicos(Guimarães,
et
al,
2011;
Passos
&
de
Azevedo,
2015).
3. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
330
O
care,
enquanto
cuidado
com
o
outro,
não
é
algo
novo
e
relaciona-‐se
à
atividade
que
pertence
à
vida
cotidiana,
mas
que
ao
longo
do
tempo
tem
sido
profissionalizada.
No
entanto,
a
novidade
do
care
é
a
inserção
de
mais
uma
ocupação
no
rol
dos
cuidados
–
o
cuidador
de
idoso.
Nesse
sentido,
a
profissionalização
e
expansão
do
care
tem
se
dado
por
múltiplas
demandas
como
as
reconfigurações
das
famílias,
a
saída
das
mulheres
para
o
mercado
de
trabalho
e
as
demandas
das
políticas
públicas
(Guimarães
et
al.,
2011)
Hirata
(2010,
p.
48)
aponta
que
uma
definição
mais
rigorosa
do
care
seria
o
“[...]
tipo
de
relação
social
que
se
dá
tendo
como
objeto
outra
pessoa”.
O
conceito
de
care
compartilha
com
outros
conceitos,
como
“trabalho”
e
“gênero”,
a
natureza
ao
mesmo
tempo
multidimensional
e
transversal
(Hirata,
2010).
Por
sua
natureza
multidimensional,
o
care
não
se
restringe
ao
campo
do
trabalho
profissional
(care
work),
mas
se
remete,
também,
à
esfera
do
privado,
do
doméstico,
do
familiar.
Remete
também
à
questão
de
gênero,
por
se
tratar
de
uma
atividade
profundamente
naturalizada,
como
se
fosse
inerente
à
posição
e
à
disposição
femininas.
Mas,
na
medida
em
que
o
care
se
manifesta
como
ocupação
ou
profissão
exercida
em
troca
de
remuneração,
o
peso
e
a
eficiência
crescentes
das
políticas
públicas
questiona
a
gratuidade
do
trabalho
doméstico
e
sua
circunscrição
ao
grupo
social
feminino
e
desafiam
a
idéia
de
“servidão
voluntária”
inerente
a
esse
serviço
quando
realizado
no
espaço
privado
(Guimarães
et
al.,
2011).
O
care,
como
profissão,
implica
no
devido
reconhecimento
e
valorização
do
trabalho
doméstico
e
familiar.
Se
ao
longo
da
história
e
conforme
as
sociedades,
a
assistência
dada
aos
membros
da
família
era
tarefa
incumbida
apenas
às
mulheres,
os
cuidados
aos
idosos,
de
longa
duração,
decorrentes
das
novas
tendências
demográficas,
se
colocam,
agora,
como
uma
situação
nova
a
ser
enfrentada
para
que
se
defina
a
quem
cabe
cuidar
desse
idoso.
A
partir
do
ponto
de
vista
dos
atores
envolvidos
na
relação
idoso-‐cuidador,
as
relações
afetivas
e
não
apenas
as
econômicas
devem
ser
consideradas
partes
constituintes
do
trabalho
do
care,
bem
como
devem
influenciar
esse
mercado.
2.2.
O
Cuidador
no
Brasil
O
“Cuidador
de
idosos”
é
uma
categoria
de
trabalho
nova
no
Brasil.
Os
“acompanhantes”
eram
as
pessoas
que
recebiam
alguma
quantia
em
dinheiro,
em
troca
de
auxiliarem
o
idoso
em
suas
atividades.
Essa
ideia
de
acompanhante
ainda
existe,
marcando
o
caráter
de
informalidade
do
Care,
o
que
a
profissão
de
cuidador
de
idosos
tem
tentado
desvencilhar.
A
imagem
do
“cuidador”
como
um
novo
ator
político
tornou-‐se
representativa
em
decorrência
de
propostas
de
ações
e
intervenções
governamentais
e
legislativas
para
sua
atuação,
bem
como
devido
aos
conflitos
em
torno
dos
limites
da
atividade
de
cuidar
em
cada
campo
profissional,
no
Brasil
(Debert
&
Oliveira,
2015).
Em
1999,
com
a
Política
Nacional
de
Saúde
do
Idoso,
estabeleceu-‐se
a
definição
do
cuidador
como
uma
pessoa
que,
com
ou
sem
remuneração,
realiza
o
cuidado
do
idoso
dependente
ou
doente
na
realização
de
suas
atividades
diárias,
excluindo-‐se
os
procedimentos
ou
técnicas
legalmente
regulamentados
por
outras
profissões
(Brasil,
1999).
Nesse
mesmo
ano,
a
profissão
de
cuidador
de
idoso
começou
a
ser
regulamentada,
com
a
instituição
do
primeiro
Programa
Nacional
de
Cuidadores
de
Idoso.
Em
2008,
foi
realizado
o
segundo
Programa
Nacional
de
Cuidadores
de
Idoso,
pelo
Ministério
da
Saúde
(Debert
&
Oliveira,
2015).
Esses
programas
não
foram
eficientes,
pois
não
conseguiram
atingir
um
número
suficiente
de
multiplicadores
capacitados
em
todo
o
país.
Além
disso,
com
o
crescimento
de
diferentes
programas
de
orientação
de
cuidadores
em
âmbito
nacional,
foram
levantadas
questões
sobre
quais
seriam
as
atividades
delegáveis
aos
cuidadores
e
como
e
quem
os
orientaria
para
sua
execução.
Isso
ocorreu
porque
a
abordagem
de
algumas
capacitações
levantavam
questionamentos
sobre
limites
profissionais,
principalmente
da
enfermagem
e
assistência
social
(Debert
&
Oliveira,
2015).
4. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
331
Os
cuidadores
de
idosos
são
classificados,
pela
política
Nacional
do
Idoso,
como
cuidadores
formais
ou
informais.
Os
cuidadores
formais
são
profissionais
que
prestam
serviços
sob
remuneração,
podendo
ter
formação
específica
ou
não.
Os
informais
são
familiares
ou
agregados,
sem
formação
específica,
que
atuam
de
forma
voluntária,
sem
remuneração
(Brasil,
1999).
A
escolha
pelo
cuidador
informal
relaciona-‐se
a
vários
fatores,
como
grau
de
parentesco
(maioria
cônjuges),
gênero
(geralmente
a
mulher),
proximidade
física
(quem
mais
convive
com
o
idoso),
proximidade
afetiva
(cônjuge,
pais
e
filhos),
além
daqueles
relacionados
ao
suporte
econômico
dessas
famílias
(Oliveira
et
al.,
2016;
Peres,
2004)
Diante
da
falta
de
uma
formação
específica
para
o
cuidado
dos
idosos,
muitas
vezes,
o
mesmo
é
realizado
a
partir
de
um
conjunto
de
opiniões
do
senso
comum,
impostos
por
tradições
familiares
e
geralmente
aceitas
de
modo
acrítico.
Todavia,
essa
falta
de
preparo
para
o
cuidado
pode
gerar
impactos
negativos
na
qualidade
de
vida
do
cuidador
(Oliveira
et
al.,
2016).
O
Guia
Prático
do
Cuidador,
criado
pelo
Ministério
da
Saúde
para
ser
usado
como
instrumento
de
orientação,
destaca
o
papel
do
cuidador
como
algo
que
ultrapassa
o
simples
acompanhamento
das
atividades
diárias
dos
indivíduos
(Brasil,
2009).
Esse
guia
legitima
que
o
cuidador
pode
não
possuir
preparo
adequado
ou
suporte
para
lidar
com
o
cuidado.
Rotineiramente,
a
figura
do
cuidador
é
confundida
com
a
do
trabalhador
doméstico,
principalmente
no
Brasil,
que
possui
um
expressivo
número
de
empregados
domésticos.
A
presença
desse
profissional
no
domicílio
minimiza
os
encargos
envolvidos
no
cuidado
do
idoso,
seja
para
a
família
cuidadora
ou
para
o
cuidador
contratado,
uma
vez
que
serviços
como
limpeza
da
casa,
preparação
de
alimentos
entre
outras
do
cotidiano
doméstico,
são
realizadas
por
eles
(Debert,
2016).
O
profissional
cuidador
de
idosos
foi
reconhecido
em
2002
pela
Classificação
Brasileira
de
Ocupações
(CBO)
pelo
código
5162-‐19,
que
o
define
como
o
profissional
que
“cuida
a
partir
dos
objetivos
estabelecidos
por
instituições
especializadas
ou
responsáveis
diretos,
zelando
pelo
bem-‐estar,
saúde,
alimentação,
higiene
pessoal,
educação,
cultura,
recreação
e
lazer
para
a
pessoa
cuidada”.
Entretanto,
para
o
Ministério
do
Trabalho,
o
cuidador
de
idoso,
que
tem
como
empregador
uma
pessoa
física,
é
classificado
como
empregado
doméstico.
Embora
ele
seja
proibido
de
realizar
serviços
domésticos
de
natureza
geral,
de
acordo
com
a
PEC
66/2012
(Lemos
Carvalho,
2013;
Martins
&
de
Mello,
2013a;
OIT,
2010;
Trabalho,
2010).
Ainda
de
acordo
com
as
instruções
da
CBO,
a
formação
necessária
para
os
cuidadores
de
crianças,
jovens,
adultos
e
idosos
implica
em
realização
de
cursos
que
têm
carga
horária
que
varia
de
80
a
160
horas,
para
pessoas
com
idade
mínima
de
18
anos
e
que
tenha
ensino
fundamental
(OIT,
2010).
Considerando
que
a
educação
escolar
é
a
base
tanto
de
socialização
quanto
de
hierarquização
social,
e
que
os
certificados
acadêmicos
são
um
instrumento
importante
de
distinção
dos
grupos
profissionais,
alvitra-‐se
que
frente
a
essa
pouca
exigência
de
formação
para
o
trabalho
do
care
promova-‐se
a
manutenção
da
invisibilidade
social
e
falta
de
reconhecimento
do
cuidador,
visto
apenas
como
uma
ocupação
e
não
uma
profissão
(Teixeira,
Saraiva,
&
de
Pádua
Carrieri,
2015).
Para
Debert
&
Oliveira
(2015),
a
regulamentação
da
profissão
de
cuidador
enfrenta
duplo
desafio:
desenhar
um
limite
profissional
que
balize,
com
clareza,
as
fronteiras
dessa
atividade,
de
modo
a
não
confundi-‐la
com
as
atividades
de
outros
profissionais
que
operam
em
áreas
paralelas;
e
dar
identidade
a
esse
trabalhador,
evitando
que
suas
funções
se
confundam
com
a
de
empregado
doméstico.
Entretanto,
o
projeto
de
Lei
nº4.702
de
2012,
que
trata
sobre
a
regulamentação
da
profissão
do
cuidador
de
idosos
continua
aguardando
aprovação,
seguindo
ainda
por
vários
embates
e
emendas
(Debert
&
Oliveira,
2015).
5. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
332
3.
A
Análise
do
Discurso
do
Guia
Prático
do
Cuidador:
metodologia
A
abordagem
dessa
pesquisa
foi
qualitativa
com
aporte
teórico
pós-‐estruturalista.
O
uso
do
referencial
pós-‐estruturalista
envolve
questionamentos
sobre
o
que
é
a
realidade,
quem
são
os
indivíduos
nela
inseridos
e
que
discursos
são
estabelecidos
em
suas
práticas
cotidianas,
bem
como
são
produzidos
os
discursos
dominantes
e
emergentes
na
tentativa
de
manter
ou
modificar
determinadas
práticas
estabelecidas
(Veloso,
Araujo,
&
Alves,
2012).
Os
dados
analisados
foram
os
discursos
presentes
no
Guia
Prático
do
Cuidador
que
dizem
respeito
às
diretrizes
gerais
para
a
atuação
do
cuidador
de
idoso.
Esse
guia
foi
publicado
em
2008
e
reeditado
em
2009,
pelas
Secretarias
de
Atenção
à
Saúde
e
de
Gestão
do
Trabalho
e
da
Educação
na
Saúde,
inserindo-‐se
no
rol
das
Normas
e
Manuais
técnicos
(Brasil,
2009).
A
escolha
por
esse
material
deveu-‐se
ao
fato
desse
estar
norteando
a
prática
dos
profissionais
de
saúde
na
atenção
básica,
de
cuidadores
não
profissionais,
e
foi
a
partir
dele
que
Estados,
municípios
e
muitos
serviços
de
atenção
aos
idosos,
incluindo
as
instituições
de
longa
permanência,
criaram
seus
protocolos
para
atuação
do
cuidador
formal.
Além
do
mais,
esse
é
o
único
material
“formativo”
produzido
pelo
Estado,
para
os
cuidadores
de
idosos.
A
abordagem
teórico-‐metodológica
utilizada
para
a
análise
do
Guia
foi
à
análise
do
discurso,
mais
especificamente
da
vertente
foucaultiana.
Para
tal,
foram
analisados
os
discursos
escritos
e
imagéticos
presentes
no
mesmo,
bem
como
suas
estratégias
enunciativas,
por
meio
da
compreensão
dos
discursos
em
seu
caráter
constitutivo
da
realidade
social,
contribuindo
para
a
produção,
reprodução
e
transformação
de
objetos
e
de
sujeitos
(Foucault,
2004,
2010).
Nessa
linha,
Foucault
(2004)
defende
que
os
sujeitos,
ao
produzirem
discursos
sobre
objetos,
podem
tomar
posições
e
influenciar
na
concepção
de
determinada
realidade.
Assim,
a
compreensão
do
discurso
presente
no
Guia
pode
contribuir
para
a
compreensão
da
formação
representação
do
Cuidador
como
sujeito
que
se
constitui
na
dimensão
do
discurso
escrito
no
Guia
e
validado
por
profissionais
de
saúde.
Para
Foucault
(2010)
essa
análise
põe
em
prática
o
princípio
da
inversão:
procurar
cercar
as
formas
de
exclusão,
de
limitação,
de
apropriação;
e
mostrar
como
os
discursos
se
formaram
para
responder
a
que
necessidades;
como
se
modificaram
e
se
deslocaram.
Partindo
do
pressuposto
de
que
quem
fala,
fala
de
algo
e
de
algum
lugar,
as
narrativas
podem
ser
compreendidas
de
diferentes
formas
dependendo
de
seu
contexto
de
construção
e
de
divulgação
(Foucault,
2010).
“O
discurso
não
é
simplesmente
aquilo
que
traduz
as
lutas
ou
os
sistemas
de
dominação,
mas
aquilo
por
que
e
pelo
que
se
luta”
(Foucault,
2004,
p.10).
Nesse
sentido,
o
discurso
possui
uma
relação
ativa
com
a
realidade,
significando-‐a,
na
medida
em
que
constrói
sentidos
para
ela,
ao
invés
de,
simples
e
passivamente,
referir-‐se
aos
objetos
tidos
como
dados.
Assim,
o
Guia
por
si
só
não
possui
efeito,
mas
sim
a
sua
produção,
reprodução,
interpretação
e
uso.
Cumpre
ressaltar
que
não
foi
nosso
objetivo
nos
opormos
às
diretrizes
propostas
pelo
Ministério
da
Saúde.
Pelo
contrário,
o
que
se
propõe
é
estranhar,
desnaturalizar
e
problematizar
o
prescrito
com
a
realidade
discutida
na
sociedade
contemporânea
sobre
o
trabalho
do
cuidador.
4
Quais
devem
ser
as
práticas
do
cuidador
de
idosos?
E
quem
é
ele
de
acordo
com
o
Guia?
Inicialmente,
infere-‐se
que
a
escolha
do
termo
“guia”,
como
nome
do
material,
advêm
de
um
dos
seus
vários
significados
de
dicionário,
e
se
retornarmos
o
termo
para
seu
uso
de
senso
comum
é
compreendido
como
“aquilo
que
mostra
a
direção/caminho
para
quem
está
perdido
ou
cego”.
Nesse
sentido,
entende-‐se,
que
o
material
se
propõe
a
guiar,
traçar
um
roteiro/caminho
de
tarefas
para
esse
“novo”
ator
em
um
“novo”
cenário
do
cuidado.
Entretanto,
guiar
não
é
o
mesmo
que
capacitar.
É
apenas
mostrar
como
se
deve
fazer
ou
qual
caminho
seguir
para
fazê-‐lo.
6. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
333
À
análise
do
texto
e
do
tipo
de
linguagem,
percebe-‐se
que
esse
encontra-‐se
escrito,
em
parte,
na
primeira
pessoa
do
plural
(nós)
numa
tentativa
de
aproximação
entre
o
autor
e
o
leitor.
Entretanto,
nas
orientações,
os
verbos
encontram-‐se,
em
sua
maioria,
no
infinitivo
como
se
fossem
sugestões
e
advertências.
De
forma
geral,
o
vocabulário
é
composto
por
palavras
de
uso
comum
e
expressões
coloquiais,
de
fácil
compreensão.
Como
pode
ser
analisado
na
seguinte
parte:
“é
fundamental
termos
a
compreensão
de
se
tratar
de
tarefa
nobre,
porém
complexa,
permeada
por
sentimentos
diversos
e
contraditórios.
A
seguir,
algumas
tarefas
que
fazem
parte
da
rotina
do
cuidador:
Atuar
como
elo
entre
a
pessoa
cuidada,
a
família
e
a
equipe
de
saúde;
Escutar,
estar
atento
e
ser
solidário
com
a
pessoa
cuidada
(...)
(Brasil,2009,
p.8)
Na
apresentação
do
Guia
afirma-‐se
que
o
envelhecimento
coloca
demandas
para
a
família,
a
sociedade
e
o
poder
público,
que
são
a
tríade
de
apoio
para
a
melhoria
da
“qualidade
de
vida
do
idoso”.
Entretanto,
ao
longo
do
documento,
toda
a
responsabilidade
do
cuidado
é
trazida
para
ombros
do
cuidador.
Essa
individualização
da
responsabilidade
é
uma
técnica
de
governo
invisível,
mas
que
possui
outros
aspectos
visíveis,
como
quando
os
sujeitos,
de
forma
individual,
são
apontados
por
terem
contribuído,
de
forma
específica
e
importante,
para
a
construção
do
"problema"(Lemos
Carvalho,
2013;
Martins
&
de
Mello,
2013a;
Purkis,
1999)
como
pode
ser
visto
na
forma
como
foi
descrita
a
definição
do
sujeito
cuidador
–
“Cuidador
é
um
ser
humano
de
qualidades
especiais,
expressas
pelo
forte
traço
de
amor
à
humanidade,
de
solidariedade
e
de
doação”(Brasil,
2009,
p.8).
Dessa
forma,
um
determinado
problema,
que
seria
da
coletividade,
da
macropolítica,
é
colocado
sobre
a
responsabilidade
de
um
indivíduo,
reduzindo
algo
do
espaço
do
sistema
para
um
espaço
local
e
individual,
ou
seja,
da
micropolítica
(Purkis,
1999).
Há,
ainda,
na
apresentação
a
menção
a
que
“a
presença
do
cuidador
nos
lares
tem
sido
mais
freqüente,
havendo
a
necessidade
de
orientá-‐los
para
o
cuidado”
(...)
e
o
“Guia
Prático
se
destina
a
orientar
cuidadores
na
atenção
à
saúde
das
pessoas”
(Brasil,2009,
p.5).
O
uso
do
termo
orientar,
ao
mesmo
tempo
em
que
reafirma
a
passagem
de
informação
como
objetivo
do
material,
também
busca
eximir
o
poder
público
de
ser
culpabilizado
da
completa
desinformação
e
falta
de
suporte
a
esse
ator
do
cuidado,
já
que
a
capacitação
não
é
o
objetivo
desse
material,
embora
seja
usado
com
tal
finalidade.
O
processo
de
privatização
ou
mercantilização
das
políticas
sociais
e
o
de
privatização
da
saúde
no
Brasil,
a
promoção
e
a
prevenção
da
saúde,
o
incentivo
ao
autocuidado
e
o
suporte
social
à
população
idosa
e
ao
cuidador
são
iniciativas
esperadas
do
Estado.
No
entanto,
o
Estado
tem
criado
políticas
voltadas
para
a
redução
de
gastos
no
setor
de
benefícios
sociais
públicos,
transferindo,
cada
vez
mais
para
as
famílias,
a
responsabilidade
sobre
o
suporte
para
a
pessoa
idosa(Duarte,
Melo,
&
Azevedo,
2008;
Lima-‐Costa
&
Camarano,
2008).
Foi
possível
reconhecer,
no
Guia,
três
discursos
acerca
do
que
é
esperado
da
prática
do
cuidador
de
idosos:
“quase
anjo
caridoso”,
“quase
profissional
de
saúde”
e
“quase
profissional
doméstico”.
4.1
A
prática
do
quase
anjo
caridoso
O
discurso
do
cuidador
como
aquele
que
presta
um
trabalho
caritativo
encontra-‐se
ao
longo
de
todo
o
Guia,
de
forma
mais
repetida
na
apresentação
e
na
definição
do
que
é
ser
um
cuidador,
como
pode
ser
visto
em:
“Cuidador
é
um
ser
humano
de
qualidades
especiais,
expressas
pelo
forte
traço
de
amor
à
humanidade,
de
solidariedade
e
de
doação
(Brasil,
2009,
p.8).
Esse
discurso
virtuoso
apresenta-‐se
como
um
consolo
ao
profissional
frente
à
sua
precária
condição
de
trabalho
e
às
indefinições
de
seu
papel
na
sociedade
economicamente
ativa.
O
guia
ainda
destaca
que
“É
importante
que
o
cuidador
reconheça
as
dificuldades
em
prestar
o
cuidado
quando
a
pessoa
cuidada
7. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
334
não
se
disponibiliza
para
o
cuidado
e
trabalhe
seus
sentimentos
de
frustação
sem
culpar-‐se
(Brasil,2009,
p.9).
Os
conceitos
do
termo
“Cuidado”
e
do
verbo
“Cuidar”
têm
seus
significados
evocados
por
palavras
como
“atenção,
precaução,
cautela,
dedicação,
carinho,
encargo,
responsabilidade
(...)
servir;
oferecer
ao
outro,
em
forma
de
serviço,
o
resultado
de
seus
talentos
(BRASIL,
2009,
p.7).
Tais
termos
e
assertivas
vêm
carregados
de
palavras
altruístas
e,
ao
mesmo
tempo,
de
apelo
à
caridade.
Mas
os
autores
que
estudam
o
trabalho
do
Care
destacam
a
necessidade
de
se
pensar
essa
atividade
para
além
dos
atributos
emocionais
para
garantir
sua
profissionalização.
Infere-‐se
que
há
uma
cobrança
do
sujeito,
enquanto
um
ser
social,
que
“recebeu
o
dom
divino
de
cuidar,
e
que
deve
retribuí-‐lo
cuidando
de
alguém”,
uma
vez
que
foi
escolhido
como
um
ser
colocado
como
“quase
um
anjo”
na
vida
de
quem
precisa
de
seu
cuidado.
O
cuidador
classificado
como
angelical
tem
seu
aspecto
humano
trazido
à
tona
na
publicação
no
momento
de
sua
definição,
que
reafirma
ser
esse
“um
ser
humano”,
embora
tenha
“qualidade
especiais,
expressas
pelo
forte
traço
de
amor
á
humanidade,
de
solidariedade
e
de
doação”
(BRASIL,
2009,
p.8).
4.2
A
Prática
do
quase
profissional
de
saúde
Ao
longo
do
Guia,
existe
uma
freqüente
valorização
do
cuidado
como
uma
ação
abnegada
e
altruísta,
relacionado
ainda
à
construção
da
figura
do
“bom
cuidador”,
cuidador
modelo.
“O
bom
cuidador
é
aquele
que
observa
e
identifica
o
que
a
pessoa
pode
fazer
por
si,
avalia
as
condições
e
ajuda
a
pessoa
a
fazer
as
atividades”
(Brasil,2009,
p.7).
Entretanto,
o
cuidador
modelo
é
avaliado
com
base
no
sentimento
dispensado
para
o
trabalho
do
cuidado
em
detrimento
ao
aspecto
teórico-‐prático
que
se
deve
ter
para
realizar
essa
atividade.
“Cuidar
é
também
perceber
a
outra
pessoa
como
ela
é,
e
como
se
mostra,
seus
gestos
e
falas,
sua
dor
e
limitação.
Percebendo
isso,
o
cuidador
tem
condições
de
prestar
o
cuidado
de
forma
individualizada,
a
partir
de
suas
idéias,
conhecimentos
e
criatividade”
(Brasil,2009,
p.7).
Existe
um
silenciamento
sobre
cuidado
a
ser
prestado
por
um
profissional
formalmente
capacitado,
uma
vez
que
não
há
clareza
sobre
a
que
área
vinculá-‐lo:
da
saúde,
da
assistência
social
ou
doméstica?
No
Brasil,
não
há
formação
oficial
para
cuidadores,
sendo
recente
o
crescimento
de
cursos
privados
de
curta
duração,
que
se
intitulam
como
cursos
técnicos
para
cuidadores
de
idosos
(Debert
&
Oliveira,
2015).
Entretanto,
não
há
ainda
um
consenso
sobre
a
escolaridade
mínima
e
a
formação
a
serem
exigidas
daqueles
que
queiram
ser
cuidadores.
Debert
&
Oliveira
(2015)
destacam
que
a
exigência
do
ensino
fundamental
é
alvo
de
críticas
e
parcimônia
por
parte
dos
militantes
pela
regulamentação
do
cuidador,
por
se
tratar
de
uma
atividade
já
exercida
por
pessoas
com
pouca
ou
nenhuma
escolaridade,
bem
como
pela
necessidade
de
experiência
prática
defendida
por
esses.
Ademais,
militantes
da
regulamentação
concordam
com
a
necessidade
de
se
realizar
um
curso
de
formação
de
cuidadores
antes
de
se
atuar
na
área,
independente
de
sua
escolaridade
ou
experiência,
sendo
o
curso
considerado
um
elemento
simbólico
–
um
diploma
–
que
será
capaz
de
diferenciar
o
cuidador
de
outros
trabalhadores,
lhes
conferindo
legitimidade
e
identidade
no
mercado
de
trabalho
(Debert
&
Oliveira,
2015).
É
conferida
a
esse
sujeito
leigo,
da
família
ou
não,
a
responsabilidade
do
cuidado,
mas
não
a
autoridade
para
decidir
sobre
o
cuidar.
O
guia
apresenta
uma
lista
de
ações
de
“cuidados”
que
perfazem
o
conhecimento
das
mais
diversas
áreas
da
saúde
como
médica,
enfermagem,
fonoaudiologia,
nutrição
dentre
outras,
mas
adverte
“O
ato
de
cuidar
não
caracteriza
o
cuidador
como
um
profissional
de
saúde,
portanto
o
cuidador
não
deve
executar
procedimentos
técnicos
que
sejam
de
competência
dos
profissionais
de
saúde,
tais
como:
aplicações
de
injeção
no
músculo
ou
na
veia,
curativos
complexos,
instalação
de
soro
e
colocação
de
sondas,
etc”
(Brasil,2009,
p.10).
8. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
335
Entretanto,
apresenta-‐se
de
forma
simplificada
no
Guia,
num
caráter
informativo
e
não
formativo.
A
profundidade
e
complexidade
dos
itens
apresentados
no
Guia,
considerando
o
perfil
do
cuidadores
de
idosos
delineado
por
pesquisadores
brasileiros,
que
é
na
maioria,
donas
de
casa,
com
baixa
escolaridade
e
que
prestam
o
cuidado
sem
qualquer
vínculo
empregatício,
torna
difícil
vislumbrar
esse
material
como
efetivo
para
a
melhoria
da
qualidade
do
cuidado
prestado
(Santos
&
Pavarini,
2010).
Nesse
momento,
se
estabelece
a
figura
do
“quase
profissional
de
saúde”
que
recebe
ao
longo
do
Guia,
várias
orientações
relacionadas
aos
aspectos
biopsicológicos
de
como
lidar
com
os
idosos,
responsabilizando-‐o
pelo
cuidado
de
outrem.
Nesse
sentido,
o
discurso
do
Guia
possibilita
uma
sujeição
invisível
mediante
a
valorização
de
outras
dimensões
do
trabalho
do
cuidador,
não
apenas
a
profissional,
mas
a
virtuosa.
O
discurso
também
possui
um
papel
na
(re)produção
da
dominação,
por
meio
da
circulação
de
textos
ideologicamente
constituídos
que,
ao
serem
incorporados
pelos
consumidores
desses
textos,
naturalizam
posições
tomando
os
processos
sociais
de
sujeição
invisíveis
(Van
Dijk,
1993).
4.3
A
Prática
do
quase
profissional
doméstico
O
cuidador,
enquanto
ocupação,
ainda
pode
ser
representado
pelo
local
onde
presta
o
seu
cuidado,
podendo
ser
compreendido
também
como
“quase
profissional
doméstico”.
Embora
esse
profissional
possa
desempenhar
seu
trabalho
em
outros
locais,
possui
certa
predominância
nos
domicílios
(OIT,
2010).
Todavia,
a
definição
sobre
as
atividades
do
cuidador
ainda
encontra-‐se
numa
área
de
conflito.
O
cuidador
de
idosos
tem
um
trabalho
dito
domiciliar,
o
que
não
significa
que
seja
um
empregado
doméstico.
Debert
&
Oliveira
(2016)
consideram
importante
fazer
a
distinção
entre
o
trabalhador
doméstico
–
profissionais
que
trabalham
em
domicílio
–
e
o
empregado
doméstico
–
aquele
responsável
pela
limpeza,
organização
e
cuidados
com
o
ambiente
físico
do
domicílio.
Uma
vez
que
o
cuidador
de
idosos
se
enquadra
no
grupo
dos
trabalhadores
domésticos,
há
que
se
destacar
que
em
estudo
recente
que
analisava
o
modo
como
esses
cuidadores
representam
o
que
fazem,
os
mesmos
se
descreviam
seu
trabalho
como
sendo
de
um
“empregado
doméstico.
Tal
representação
pode
tornar
tênue
a
separação
das
atividades
do
cuidador
com
os
demais
profissionais
que
se
encontram
nesse
lócus.
O
domicílio
se
torna
uma
unidade
produtora
de
serviço
de
cuidado,
que
sai
do
conceito
assentado
no
trabalho
gratuito
e
compulsório
das
donas
de
casa
da
família,
para
um
serviço
para
o
qual
confluem
diversos
atores,
sendo
as
principais
os
“domésticos”
e
os
“cuidadores”.
As
diferenças
de
estatuto
e
de
reconhecimento
entre
esses
atores
são:
os
“domésticos”
tiveram
regulamentado
seu
trabalho
e
ampliados
seus
direitos,
enquanto
que
os
“cuidadores”
seguem
formalmente
vulneráveis,
disputando,
com
as
profissões
de
nível
superior
do
cuidado,
um
lugar
ao
sol
no
mundo
da
formalização
dos
direitos
(Guimarães,
2016).
Resta
ao
cuidador
assumir
um
cuidado
para
o
qual
não
foi
realmente
capacitado,
sendo
cerceado
em
suas
atividades
indefinidas
pelos
limites
de
sua
atuação
profissional
e
sem
um
suporte
adequado
para
o
cuidado
de
si.
Embora
no
guia
exista
um
item
destinado
a
orientar
sobre
os
principais
“Serviços
disponíveis
e
direitos
do
cuidador
e
da
pessoa
cuidada”.
5
A
guisa
de
considerações
finais
O
trabalho
é
um
dos
dispositivos
de
poder
que
organizam
a
vida,
individual
e
social,
configurando-‐se
como
categoria
central
para
o
homem
realizar-‐se
e
construir-‐se
socialmente,
enquanto
indivíduo.
9. >>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
336
Nessa
concepção,
o
trabalho
do
cuidador
de
idosos
significa
mais
do
que
um
ato
de
servir;
oportunizando
o
desenvolvimento
e
o
preenchimento
da
vida
desse
enquanto
um
trabalhador.
É
possível
reconhecer
que,
no
Guia
do
Cuidador
há
a
manutenção
da
indefinição
da
posição
desse
sujeito
no
trabalho
do
Care.
Há
reafirmação
de
incertezas
sobre
qual
é
o
seu
limite
de
atuação,
entretanto
há
imposição
de
normas
sobre
essa,
por
meio
de
listas
de
tarefas
a
serem
realizadas,
de
modo
a
adestrar
seu
trabalho
nos
melindres
de
um
papel
profissional
ainda
indefinido.
Ele
é
incentivado
a
manter-‐se
trabalhando,
mesmo
nessas
condições,
uma
vez
que
se
apresenta
como
a
solução
mais
imediata
responder
a
necessidade
do
cuidado
de
idosos
dependentes
frente
à
insuficiência
de
recursos
para
fazê-‐lo.
O
trabalho
do
cuidador
se
coloca
para
a
sociedade
brasileira
como
uma
ocupação
que
diminui
a
responsabilidade
direta
do
Estado
com
o
cuidado
ao
idoso
e
ao
mesmo
tempo
serve
como
um
mecanismo
de
enfrentamento
de
uma
realidade
que
se
descortina
–
o
aumento
expressivo
de
idosos
dependentes
–
idosos
esses
que
sempre
foram
representados
na
sociedade
como
de
responsabilidade
do
cuidado
direto
apenas
das
famílias,
principalmente
das
mulheres.
Compreender
esses
dilemas
implica
em
assumir
essa
heterogeneidade
social
temida
por
muitos
em
função
da
complexidade
das
novas
relações
socioeconômicas
que
se
estabelecem
e
lhes
são
inerentes.
No
entanto,
tal
perspectiva
é
fundamental
para
o
entendimento
de
como
a
sociedade
se
configura
atualmente
e
quais
são
as
ações,
tanto
individuais
quanto
do
poder
público,
que
podem
contribuir
para
o
alcance
da
melhoria
da
qualidade
de
vida
da
população
idosa.
A
população
idosa
de
baixa
renda,
que
faz
maior
uso
dos
aparatos
assistenciais
da
saúde
pública
–
justamente
a
parcela
com
menor
acesso
ao
sistema
de
saúde
privado
–
pela
sua
dependência
econômica
dificilmente
buscará
o
cuidador
formal,
uma
vez
que
ele
deve
receber
um
salário
regulamentado,
lançando
mão
assim
do
cuidado
realizado
pelo
cuidador
informal.
Nesse
sentido,
a
figura
do
cuidador
informal
representa
também
a
diferença
de
classes
sociais
e
poder
aquisitivo
relacionada
tanto
aos
aspectos
sócio-‐educacionais
(os
idosos
ricos
terão
cuidadores
melhor
capacitados),
quanto
aos
aspectos
econômicos
(esses
cuidadores
serão
bem
remunerados).
Assim,
a
preocupação
relacionada
ao
guia
se
deve
ao
fato
desse
instrumento
estar
voltado
para
a
orientação
desse
cuidador
informal,
desfavorecido
de
suportes
e
pressionado
pela
necessidade
de
prestar
cuidado
a
outrem.
Considera-‐se
necessária
uma
reformulação
do
guia
de
acordo
com
o
perfil
do
cuidador
brasileiro,
bem
como
com
a
definição
do
seu
real
papel
no
care,
respeitando
os
limites
de
outros
profissionais
do
care.
As
limitações
desse
estudo
se
concentraram
na
disponibilidade
de
apenas
um
material
instrucional
a
nível
governamental
que
se
destina
tanto
ao
cuidador
de
idosos
profissional
quanto
ao
leigo,
bem
como
ausência
de
dados
atuais
sobre
o
perfil
desse
profissional
no
Brasil.
Espera-‐se
uma
maior
discussão
e
produção
para
o
reconhecimento
para
o
cuidador
pelo
papel
que
realiza,
mas
para
qual
não
foi
preparado.
Acredita-‐se
que
essa
discussão
promova
melhorias
assistenciais
impactando
positivamente
na
qualidade
de
vida
dos
idosos,
familiares
e
cuidadores.
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