1. 125
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, nº 38, p. 125-138. 1999
A guerra das narrativas:
debates e ilusões em torno
do ensino de História*
ChristianLaville
UniversidadeLaval,Quebec
RESUMO
Emquasetodasaspartesdomun-
do,osprogramasescolaresexigem
queoensinodahistóriadesenvol-
vanosalunosaautonomiaintelec-
tual e o pensamento crítico. Há
muitotemponãosevêmaisamis-
são de incutir nas consciências
umanarrativaúnicaglorificandoa
naçãoouacomunidade.Noentan-
to, quando o ensino da história é
questionadonosdebatespúblicos,
é sempre com referência a esse
tipodenarrativa:emboranãofa-
zendomaispartedosprogramas,
essecontinuasendooúnicoobje-
todosdebates.Esteartigodáinú-
merosexemplosatuaisdetaisde-
bates, antes de concluir que são
provavelmente vãos e que as pes-
soas se iludem sobre os efeitos
reaisdahistóriaensinada.Alguns
exemplostambémsãodadosaes-
se respeito.
Palavras-chave:EnsinodeHistória;
Política;Narrativa.
ABSTRACT
Almost everywhere in the world,
official school curricula require
that the teaching of history de-
velopstudents’capacityforintel-
lectualautonomyandcriticalthin-
king.Theydon’tbearanymorethe
missiontoinstilinstudents’cons-
ciousnessasinglenarrativeglori-
fyingthenationorthecommunity.
Still,whenevertheteachingofhis-
toryiscalledintoquestioninpublic
debates,itisalwaysinreferenceto
thissortofnarrative:schoolcurricula
do not include it, yet it is the sole
pointofthesedebates.The article
givesseveralexamplesofsuchde-
bates throughout the world. It
then concludes that these are
most probably pointless debates
as it seems we overestimate the
actualeffectsofhistoryeducation.
Examplesofthisarealsogiven.
Keywords: History Education;
Politics;Narrative.
2. 126
Paraliquidarospovos,começa-sepor
lhestiraramemória.Destroem-seseus
livros,suacultura,suahistória.Euma
outrapessoalhesescreveoutroslivros,
lhesdáoutraculturaelhesinventauma
outraHistória.
MilanKundera. OLivrodoRisoedo
Esquecimento, 1978.
Houve um tempo em que o ensino da história nas escolas
nãoeramaisdoqueumaformadeeducaçãocívica.Seuprincipal
objetivoeraconfirmaranaçãonoestadoemqueseencontrava
nomomento,legitimarsuaordemsocialepolítica–eaomesmo
tempo seus dirigentes – e inculcar nos membros da nação – vis-
tos,então,maiscomosúditosdoquecomocidadãosparticipan-
tes – o orgulho de a ela pertencerem, respeito por ela e dedica-
çãoparaservi-la.Oaparelhodidáticodesseensinoerasimples:
uma narração de fatos seletos, momentos fortes, etapas decisi-
vas, grandes personagens, acontecimentos simbólicos e, de vez
emquando,algunsmitosgratificantes.Cadapeçadessanarrativa
tinhasuaimportânciaeeracuidadosamenteselecionada.
Essa maneira de ensinar a história foi se tornando menos
necessáriaàmedidaqueasnaçõesforampercebendoqueesta-
vambemassentadasecessaramdetemerporsuaprópriaexistên-
cia.Nospaísesocidentais,ofimdaSegundaGuerraMundialfoio
marcodeumaetapaimportante.Oresultadodaguerrafoipercebi-
docomoavitóriadademocracia,umademocraciacujoprincípio
nãosediscutiamaisapartirdeentão,masqueprecisavaagora
funcionarbem,ouseja,comaparticipaçãodoscidadãos,como
mandaoprincípiodemocrático.Aidéiade“cidadãoparticipan-
te”começouasubstituirade“cidadão-súdito”.Oensinodahistó-
rianãodeixoudeganharcomisso.Aocontrário,viuafunçãode
educaçãoparaacidadaniademocráticasubstituirsuafunçãoante-
riordeinstruçãonacional.
Grosso modo, dali em diante era preciso tornar os jovens
capazesdeparticipardemocraticamentedasociedadeedesen-
volvernelesascapacidadesintelectuaiseafetivasnecessáriaspara
tal.Osconteúdosfatuaispassavamasermenosdeterminadosde
3. 127
antemão,menosexclusivos,abrindo-seàvariedadeeaorelativo.
Contudo,omaisimportanteéque,comoodesenvolvimentodas
capacidadessedácomaprática,apedagogiadahistóriapassava
de uma pedagogia centrada no ensino para uma pedagogia
centradanasaprendizagensdosalunos.
Todos os países ocidentais parecem ter percorrido esse ca-
minho, e também é o que ocorre com muitos outros países espa-
lhadospeloscincocontinentes.Paraconstatar,bastaexaminaros
programas ‘propostos’ e o discurso com o qual é apresentado
atualmente o ensino da história. No entanto, em muitos desses
países,quandooensinodahistóriaécriticadoouacusado,quan-
do provoca debates, como muitas vezes acontece, não é porque
aspessoasseinquietamcomoalcancedosobjetivosdeformação
quelhesãooficialmenteatribuídos,mas‘emrazão’dosconteú-
dosfatuais,porsejulgarquecertoselementosestariamausentes
e que outros estariam sendo ensinados em lugar de coisa me-
lhor, como se o ensino da história continuasse sendo o veículo
deumanarraçãoexclusivaqueprecisaserassimiladacusteoque
custar. Vê-se aí o estranho paradoxo de um ensino destinado a
umadeterminadafunção,masacusadodenãocumpriroutraque
nãolheémaisatribuída.Hánumerososcasosassimnestefimde
século e alguns deles serão evocados aqui. Em seguida, e para
concluir,consideraremosumoutroparadoxodecorrentedopri-
meiro:odeseacreditarquepelamanipulaçãodosconteúdosé
possíveldirigirasconsciênciasouasmemórias,quandoaexperi-
ência do presente século mostra que está longe de ser tão certo
assimquantotantosparecemacreditar,oqueprovavelmentenão
passadeumagrandeilusão.
EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (1): PARA MANTER A ORDEM ESTABELECIDA
Amaioriadasvezes,oqueestáemjogonosdebatesarespei-
todosconteúdosdoensinodahistóriaéamanutençãode uma
determinadatradição.OcasodosNationalStandardsforHistory
nos Estados Unidos é um bom exemplo disso.
NosEstadosUnidos,comosesabe,aeducaçãoédarespon-
sabilidadedosEstadosenãodaadministraçãofederal.Háalgum
tempo, no entanto, o governo federal americano vinha se mos-
4. 128
trandoinquietocomrelaçãoaoensinodahistória,porduasra-
zões,entreoutras.Primeiro,porquesejulgavaqueoshomensde
negóciosamericanosperdiammuitoporconhecereminsuficiente-
menteasculturasestrangeiras;emseguida,porqueseacreditava
queahistóriafacilitariaaintegraçãodasminoriasculturais.Jána
administraçãodopresidenteReagan,umrelatóriosobreaeduca-
çãointituladoANationatRiskfizerareferênciaàeducaçãohistóri-
ca; na de Bill Clinton, os governadores dos Estados aprovaram
um projeto de reforma da educação, o projeto America 20001
,
queinsistiaparaqueahistóriasetornassematériabásicapara
todos. No mesmo momento, outros se preocupavam com a ero-
sãodosconhecimentosculturaisdosjovensamericanos,oucom
oespaçocrescenteocupadopeloensinodesocialstudiesaolado
dasdisciplinastradicionaisdehistóriaegeografia2
.
Foinessecontextoqueumgrupodehistoriadoresedepeda-
gogos, juntamente com várias centenas de consultores e de es-
pecialistasdetodasaspartes,elaborouumprojetodenormasna-
cionaisparaoensinodahistória,osnationalstandardsparaoensi-
nodehistóriadosEstadosUnidosedehistóriageral3
.Emtaiscir-
cunstâncias,oquedeviaserapenasumconjuntodesugestõesapre-
sentadasaosEstadoslogosetransformounumaquerelanacional.A
direitaseenfureceu.Emborasugerindocertosconteúdos,poisnão
sepodeensinarhistóriasemconteúdos,oqueosstandardspropu-
nham,essencialmente,eramobjetivosdeformação,massomente
osconteúdossãoatacados.Oquesedizéque,comessaaberturaà
históriamundial,astaisnormasestariaminsuflandoumrelativismo
culturalecolocandoemperigoacivilizaçãoocidentalbrancaecris-
tãe,conseqüentemente,acivilizaçãoamericana;aoseabriràhistó-
riasocial,aosimigrantes,àsmulheres,aosnegros,aotratardoKlu
KluxKlanedoMcCartysmo,asnormasestariamquerendoobscure-
cerheróiscomoWashington,ThomasEdisonouPaulRevereedeixan-
doapenasumpequenoespaçoparaaConstituição4
.Mesmoqueo
governofederalnãotenhanadaavercomaeducação,NewtGingrich,
líderrepublicanonaCâmara,conseguiulevaraquestãoaoSenadoe
fezcomqueossenadoressepronunciassemsobreosstandards:99
delesvotaramcontra,umseabsteve(porquenãoachavaacondena-
çãobastanteconsistente).
5. 129
Poucotempoantes,umdebatesemelhanteocorreranaIngla-
terraarespeitodoensinodahistória.NaInglaterra,nãohavia
umprogramanacionalparaessadisciplina.Asescolaseosprofes-
soresgozavamdeumagrandeliberdadenadefiniçãoenaprática
do ensino. Eles haviam, contudo, elaborado um programa, o
Schools Council History Project, que terminara sendo adotado
por aproximadamente um terço dos professores e exercia uma
grande influência sobre o ensino de história em geral. Era um
programamoderno,queseguiaatendênciadosprogramasatu-
aisdescritosnaintrodução,masensinadocomessagrandeliber-
dade desfrutada pelos professores britânicos e, portanto, com
muitavariedadenosconteúdos.Ogovernoconservadordaépo-
ca,eaprópriaMargaretThatcher,preocuparam-secomisso.Po-
diaacontecer,eefetivamenteacontecia,queseensinassepouco
arespeitodaInglaterraedeseupassadoglorioso,porexemplo,
nosenclavesdecomunidadesculturaisondeseprocuravatornar
a história facilmente acessível aos alunos, com assuntos próxi-
mosdarealidadedeles,emdetrimento,segundoosconservado-
res,daaquisiçãodeumamemóriacomumbembritânica.
Foiiniciada,então,apreparaçãodeexamesnacionais,segui-
dadeumprogramanacionaldehistória,oNationalCurriculum
forHistory5
,comosconteúdosdesejadospelosconservadores,é
claro. Aqui, mais uma vez, o debate em torno dos conteúdos,
tanto na mídia quanto na opinião pública, foi intenso e durou
váriosanos6
.Masodebatetambémfoiintensoentreosprofesso-
res,muitosdosquaisresistirameacabaramconseguindoumacor-
do que passou a vigorar desde o início do ano letivo de 1995,
acordoessequepreservaemparteosobjetivosdeformaçãoque
elesqueriamconservar,emboracomabundantesconteúdospré-
determinados.
Muitos outros exemplos ilustrativos poderiam ser citados.
Lembremo-nosdeumoutrodebatevigorosoqueagitouaFrança
na década de 1970 e no início da década de 1980, quando da
implantaçãodeumareformadosprogramasdehistória,aqual,
pelaprimeiravez,rompiacomatradiçãodosprogramasiniciada
na Terceira República. Centrados no aluno, orientados para o
desenvolvimentodascapacidadeseprivilegiandoumapedago-
6. 130
giadeaprendizagempeladescoberta,enãoumapedagogiada
recepção,osnovosprogramaspareciamnegligenciaralgunsperso-
nagensnacionaisdacronologiatradicional.Houveindignaçãoem
todas as famílias políticas, ao ponto de se ver surgir aquela es-
tranhacoligaçãoformadapelogaullistaMichelDebré,pelosocia-
lista Jean-Pierre Chevenement e pelo historiador popular Alain
Decaux,coligaçãoessaquefoibatizadapelosjornalistasde“Santa
AliançadaHistóriaNacional”.Doispresidentes,sucessivamente,
vieramjuntar-seaocortejodeindignados:ValéryGiscard-d’Estaing
e,depois,FrançoisMitterrand,quedeclarouestar“escandalizado
eangustiadocomascarênciasdoensinodahistória”7
. A reforma
nãoresistiudurantemuitotempoe,apartirdemeadosdadécada
de1980,voltava-seaoquehaviademaisconvencional.
É interessante notar quanto interesse, quanta vigilância e
quantasintervençõesoensinodehistóriasuscitanosmaisaltos
níveis.Ahistóriaécertamenteaúnicadisciplinaescolarquerece-
beintervençõesdiretasdosaltosdirigenteseaconsideraçãoativa
dosparlamentos.Issomostraquãoimportanteéelaparaopoder.
EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (2): QUANDO OS ESTADOS SE RECONSTITUEM
EntreasdecisõestomadaspelosvencedoresaofimdaSegun-
daGuerraMundial,houveadeproibiroensinodahistóriaminis-
trado nos países vencidos, a fim de neutralizar seus conteúdos
fatuais antes de substitui-los por outros. Foi uma das primeiras
decisões,senãoaprimeira,doAltoComandoaliadoemBerlim;a
mesmacoisasedeunaItáliaenoJapão.
Cinqüentaanosmaistarde,apesardoavançoefetuadopelo
ensinodehistória,aindaéassimqueotratamquandosepassa
de um regime a outro. Os ex-países do leste europeu oferecem
inúmeros exemplos disso.
Namaioriadeles,malatransiçãocomeçou,oensinodehistó-
riajáerasubmetidoàrevisão:revisãodosprogramasedosma-
nuais,esobretudodosmanuais,maisdoquedapedagogia,pois
tudo isso é principalmente uma questão de narrativa. Grosso
modo,essarevisãoconsisteemreescrever,apagandoaquiloque
sequeresquecerdoantigoregimeeintroduzindooureintrodu-
zindo–asfamosas“páginasbrancas”–oqueparecenecessário
8. 132
te rapidez, usam-se velhos livros, totalmente ultrapassados do
pontodevistahistoriográfico.Assim,paraosquatromilhõesde
lituanos,foinovamentepublicada,comumatiragemde155.000
exemplares,umahistóriadaLituâniaquedatadadécadade193010
.
Aconteceu a mesma coisa na República Tcheca, onde, após os
acontecimentosde1989,oseditorescolocaramdenovonomer-
cado os manuais de história do Estado tcheco e tchecoslovaco
publicados entre 1918 e 1938 ou entre 1945 e 194811
. Em outros
lugares,acontecedesimplesmentetraduziremosmanuaisdehis-
tóriaestrangeiros,comonaRússia,ondeexisteatualmenteoproje-
todetraduçãodeummanualamericanodehistóriageralque,a
meuver,osjovensrussosvãoacharbemestranho!
Cadacomunidadequerverasuaprópriahistóriacontada.Na
Rússia,maisumavez,umcolegamedisseestarligadoaoprojeto
deelaboraçãodomanualdeumapequenacomunidadedoNorte,
compostade50.000habitantes,aproximadamente,quepatrocina,
comaajudadeumimpostoespecial,aredaçãode suahistória
singular.NaBósnia,cadacomunidadetambémdesejatantotero
seupróprioensinodehistóriaquesãoredigidosmanuaisdiferen-
tes,comnarrativaseheróisdiferentes–àsvezesadversários–para
osjovenssérvios,croatasoumuçulmanos.Atépensaramemado-
tarprogramasdehistóriadiferentesnumamesmaescola.
Nessas histórias, encontram-se freqüentemente os antigos
defeitosdashistoriografiasnacionalistasescolaresquepensáva-
mosjáteremdesaparecido:legitimação,justificação,glorificação,
mitificação,mobilizaçãodasconsciências,àsvezescomainteira
submissãodoensinodahistóriaàcausadeumnacionalismoexal-
tado.Assim,naEstônia,osprópriosautoresdareformadoensi-
no de história explicam: “Toda a reforma do ensino da história
deviaser,antesdetudo,umalutapararesgatarereforçaraidenti-
dadenacional.Todaahistóriaestonianafoireorganizada,nonovo
programareformulado,seguindoumalinhanacionalista.Atra-
ma histórica foi sobreposta ao projeto nacional”12
. Também foi
assimnaEslovênia,ondeVesnaGidivaeValentinaHlebecconsta-
tamque:“Émaisdoqueevidentequeensinarhistóriaéantesde
tudo um trabalho ideológico e político e não uma questão de
normasprofissionais”13
.
9. 133
Se os ex-países do leste europeu oferecem bons exemplos
da maneira como a história é tratada quando um Estado é re-
constituído,nãoésónessespaíses,evidentemente,queocorrem
taissituações.PensemosnaÁfricadoSul,porexemplo,ondefoi
só após um debate muito longo e árduo – a narrativa de uma
histórianegra?branca?comquedensidaderelativadebrancoe
de negro? – que o Ministério da Educação acabou elaborando
seuprojetoparaaredaçãodenovosmanuaiseconseguiufazer
com que o Parlamento o aprovasse (mas o debate corre o risco
decontinuar,poisosnovosmanuaissósãoesperadosparaoano
2000).PensemosigualmentenaChina,onde,trêsmesesantesda
reanexaçãodeHongKong,oministrodosAssuntosExterioresjá
estavaanunciando,diantedaAssembléiaNacionalPopular,que
os manuais seriam revistos, pois, explicava ele, “o conteúdo de
certoslivrosescolaresatualmenteusadosemHongKongnãoestá
conformeàHistóriaeàrealidade.Elesnãosãocompatíveiscom
asmudançasquevãoocorrerem1997esãocontráriosaoespíri-
to do princípio ‘um país, dois sistemas’, bem como à Constitui-
ção”14
. Como se dizia em Moscou, o passado é imprevisível! É
verdadequeaChinaaindanãotemaobrigaçãodeimplantarum
ensinodahistóriaqueprepareparaaparticipaçãodemocrática.
EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (3): PARA LUTAR CONTRA O ESTADO
Àsvezes,sãogruposdissidentesqueatacamasnarrativashis-
tóricas impostas ao ensino pelo Estado. No Japão, por exemplo,
háváriasdécadashistoriadoreseprofessores,apoiadospordiver-
sosgrupos,entreosquaisumaassociaçãoparaaverdadenahistó-
riacompostademilharesdemembros,combatemacensuraque
oMinistériodaEducaçãoexercesobreoconteúdodosmanuais.
Éumacensuramuitorigorosa.Tudooque,aosolhosdoministé-
rio,poderiadiminuiraimagempositivadoJapãonahistóriaé
proibido.Paracontarosfatos,éprecisoutilizarumvocabulário
padronizado.Assim,parafalardainvasãodaChinapeloJapãona
décadade1930,deve-sefalarde“progressãomilitar”;parafalar
da pilhagem de Nankin em 1937, quando 150.000 civis foram
massacrados,conta-seque“oexércitojaponêsocupouacidade
numambientedeagitaçãoexcessivaedecólera”;éprecisoescre-
10. 134
ver “incidente” ao invés de “revolta”, “suicídio coletivo de civis”
aoinvésde“massacre”,“mulheresdeconforto”aoinvésde“prosti-
tutas”Demanifestaçãoemmanifestação,deprocessoemprocesso
–algunsdosquaischegaramatéàcortesuprema–,bemcomosob
aspressõesestrangeiras,asituaçãopareceestarseamenizando
umpouco.Defato,nãoémaisnecessáriofalardaanexaçãoda
Coréia em 1910 como sendo uma “fusão pacífica”, e o Primeiro
Ministroaceitoureconhecer,háalgumtempo,aquestãodas“es-
posasdeconsolação”15
.Nesseensinodahistória,porém,sãosem-
preeunicamenteostermosdanarrativaqueestãoemcausa.
NoMéxico,em1992,éumacoalizãodeliberaisedeprogres-
sistasqueatacaosmanuaisdehistóriaparaoprimárioqueogo-
vernodeCarlosSalinasqueriaimpor.Nocontextodasnegocia-
çõesdomercadocomumnorte-americano,osnovosmanuaiselo-
giavamaspolíticaseconômicaspresentesepassadasdoMéxicoe
suaaberturaaocapitalismointernacional,aomesmotempoque
minimizavamosepisódioscontestatóriosourevolucionáriosde
suahistória.Odebatefoienérgicoeosmanuaisforamrevistos16
.
Anarrativahistóricapodetambémservistacomoumatoma-
da de poder por grupos sem poder. Vejamos um exemplo disso
no Brasil, onde, em vários Estados, principalmente em Minas
GeraiseSãoPaulo,osprofessoresdehistóriahaviamlutado,du-
ranteaditadura,paraconseguirumprogramacujoconteúdofosse
definidodeacordocomseupontodevistademilitantes.Nocaso
de Minas Gerais, eles queriam opor aos programas oficiais, de
cunhonacionalistaepositivista,umconteúdodehistóriamarxis-
taclássicoqueapresentasseasetapassucessivasdeformaçãoeco-
nômicaeintegrasseonacionalaouniversal.Tratava-se,sobretu-
do,detrocarumanarrativaporoutranarrativa.Esseprograma
foiconseguidocomaredemocratização,mas,agora,comoocom-
bate,emgrandeparte,esgotou-se,parecequeosprofessoresfa-
zemmenosquestãodeafirmaremseupoder17
.
EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (4): DEFINIR UMA IDENTIDADE SUPRANACIONAL
Todososexemplosanterioresdefixaçãoemrelaçãoànarrativa
históricaeàsuamanipulaçãoocorriamnoâmbitodanação.Maspode
ocorrerquesequeiraoferecerumanarrativasituadaalémdessecon-
12. 136
Essaobservaçãonoslevaaconstatarumsegundoparadoxo:
odeacreditaremsemelhanteensinodahistória,quandomuitos
fatosparecemmostrarquepensarqueaindaépossívelregularas
consciências e os comportamentos por meio do ensino da histó-
rianãopassariadeumavãilusão.Aexperiência,defato,mostra
outracoisa.Aquivãoalgunsexemplosdisso.
Paracomeçar,vejamosoqueocorreemQuebec.Durantemais
de meio século, os únicos objetivos do ensino da história eram
ensinaraoscanadensesdelínguafrancesaanecessidadedeso-
breviverenquantopovoedeprotegeralínguaeafé,alémdaade-
sãoaograndetodocanadense,queeraagarantiaparatalsobre-
vivência.Assim,lia-seentreosobjetivosprincipaisdosprogramas:
“Oestudodahistóriadenossopaíscontribuiráparaformarme-
lhorobomcidadãodoCanadádeamanhã”20
;“fazerdesseensino
umaverdadeiraliçãodeeducaçãonacionalquedesenvolvaem
todososnossosalunosoorgulholegítimodedizerquesãocida-
dãosdoCanadáeaambiçãodesetornarumperfeitocidadãoede
contribuirparaoprogressoeparaagrandezadopovocanaden-
se”21
.Muitaspessoasdaminhageraçãopoderiamdartestemunho
dequeosprogramaseramseguidosàrisca.Noentanto,naprimei-
raoportunidade,naviradadosanos1950,osquebequensesfize-
ram, em alguns meses, exatamente o oposto do que lhes vinha
sendo ensinado, dia após dia, há mais de meio século. E logo a
metadedelescomeçouadizerquequeriaseseparardaqueleCa-
nadáquehaviamqueridoobrigá-losaamar.
Outroexemplonaex-UniãoSoviética.Duranteváriasdéca-
das,haviamensinadoali,pormeiodahistória,queocapitalismo
eraoinfernoequeosocialismoabririaasportasdoparaíso.O
quefizeramosmembrosdasdiversasrepúblicasassimquetive-
ramaoportunidade?Escolheramoinferno!
Outroexemplo,destafeitanaAlemanha.Umapesquisarecen-
te mostra que os jovens da Alemanha Ocidental e da Alemanha
Oriental,oriundosdesociedadesqueconheceramensinosdehis-
tóriabemdiferentes,nãoapresentam,noentanto,diferençassigni-
ficativasemsuasrepresentações,conceitoseatitudes22
.
Outroexemplo,tiradotambémdapesquisaqueacabadeser
mencionada:naCisjordâniaenabandadeGaza,ondeoexército
13. 137
israelitacontrolaoensinodahistóriaecensuraosmanuais,os
jovenspalestinosdesenvolveramumaconsciênciahistóricasem
relaçãocomosconteúdosdoensinodahistória23
.
Tudo isso para dizer que é possível que todos esses esforços
paracontrolarosconteúdosdoensinodahistória,bemcomoos
debatesqueissoprovoca,estejamalicerçadosnumailusão.Nes-
te fim de século, é possível que a narrativa histórica não tenha
maistantopoder,queafamília,omeioaoqualsepertence,cir-
cunstânciasmarcantesnoambienteemquesevive,massobretu-
do os meios de comunicação, tenham muito mais influência. O
quedeverianoslevaranãoperderdevistaafunçãosocialgeral-
mente declarada hoje a respeito do ensino da história: formar
indivíduosautônomosecríticoselevá-losadesenvolverascapaci-
dadesintelectuaiseafetivasadequadas,fazendocomquetraba-
lhem com conteúdos históricos abertos e variados, e não com
conteúdosfechadosedeterminadoscomoaindasãocomfreqüên-
ciaasnarrativasqueprovocamdisputas.Senão,essasguerrasde
narrativasdesencadeadasemtodoomundovãoacabargerando
somenteperdedores,tantonoquedizrespeitoàidentidadena-
cionalquantoemrelaçãoàvidademocrática.
NOTAS
*Traduçãodotexto:FranciscoPereiradeLima.
1
USDE, America 2000: An Education Strategy. Washington, GPO, 1991 (que se
tornou lei em 1994 com o título de Goals Educate America Act).
2
Ver por exemplo: HIRSCH, E. D. Cultural Literacy. What every American needs
to know. Nova Iorque, Vintage, 1988; RAVITCH, Diane et FINN, C. E. Whatdo
our 17-year-olds know? New York, Harper and Row, 1987; CHENEY, Lynn.
AmericanMemory:aReportontheHumanitiesintheNation’sPublicSchools.
Washington, NEH, 1987.
3
National Standards for History for Grade K-4. Expanding Children’s World in
TimeandSpace;NationalStandardsforUnitedStatesHistory.Exploringthe
American Experience. Grade 5-12 et National Standards for World History.
ExploringPathstothePresent.Grades5-12.LosAngeles,NationalCenterfor
History in the Schools, 1994.
4
Para obter mais detalhes sobre essa polêmica, ver NASH, Gary B., CRABTREE,
Charlotte e DUNN, Ross E. History on Trial: Culture Wars and the Teaching
ofthePast.NewYork,AlfredA.Knopf,1997.Umresumodessesacontecimen-
tospodeserencontradoemWINKLER,Allan.“Whochoppeddownthecherry
tree?”.Times Higher Education Supplement, 10 de março de 1995, p.19.
5
DepartmentofEducation. HistoryintheNationalCurriculum,Londres,HMSO.
14. 138
6
Em“Labatailledesprogrammes.Ledébatsurl’enseignementdel’histoireetla
recherche en Allemagne de l’Ouest, en Grande-Bretagne et en Suède”. In
Revue d’Allemagne,vol.25,n°02,1993,pp.203-211, Carl-AxelGemzellcom-
paraessedebatecomoutrossemelhantesocorridosnaAlemanhaenaSuíça,
osquaisnãoserãoabordadosaqui.
7
Entreoutrasobrassobreapolêmica,leia-seDesenfantssanshistoire.Enquête
deJean-FrançoisFayard.Paris,Perrin,1984.
8
Arespeitodoensinodehistóriaduranteatransiçãonaex-AlemanhaOriental,
ver AHONEN, Sirkka. Clio sans Uniform. A Study of the Post-Marxist
TransformationoftheHistoryCurriculainEastGermanyandEstonia,1986-
1991.Helsinque,SuomalainenTiedeakatemia,1992.
9
InANGVIK,MagneeBORRIES,Bodovon(eds). YouthandHistory.AComparative
EuropeanSurveyonHistoricalConsciousnessandPoliticalAttitudesamong
Adolescents.Hamburgo,EditionKörber-Stiftung,1997,vol.A:Description,p.
A275(atraduçãoénossa).
10
Trata-sedolivro LietuvosistorijadeA.Sapoka,1ªed. 1936. VerIdem,p.A265.
11
Segundo CORNEJ, Petr. “Politique, histoire et histoire scolaire”. InRevueinter-
nationale d’éducation. nº 13, março de 1997, p. 90.
12
ÖISPUU,Silvia.NewTendenciesinHistoryEducationinEstoniawithRetrospect
into the Past. Göteborg, Göteborgs Universitet, 1993, p. 10 (a tradução é
nossa). Ver também AHONEN, op. cit.
13
ANGVIK, Dans et BORRIES, von. op. cit., p. A 288 (a tradução é nossa).
14
“Hong-Kong: ‘un pays, deux systèmes’, quelle histoire?”. In Le Devoir. 11 de
marçode1997.
15
Ver HORIO, Teruhisa. “Éducation et conscience politique”. In Revue
internationale d’éducation, op. cit., p.107; ver também CONAN, Éric. “Le
Japon ne veut pas d’histoire”. In L’Express. 27 de julho de 1995, pp. 53-56.
16
A esse respeito, ver NASH, CRABTREE e DUN. op. cit., p. 133.
17
Ver,aesserespeito,SIMAN,LanaMaradeCastro.Changementparadigmatique
etenjeuxsociopolitiquesenenseignementdel’histoire:lecasduprogramme
d’histoire du Minas Gerais (Brésil) et les réactions paradoxales des enseig-
nants.TesedeDoutorado,UniversitéLaval,1997.
18
ISESCO. Projet de programme d’enseignement de l’histoire islamique et de la
géographie. s. l., 1998, p.14, 29.
19
Commissionscolairecrie.HistoireduQuébecetduCanada.Programmeadapté,
junho de 1994.
20
Programmed’études des écoles secondaires,1961. Quebec,p.200.
21
Programmed’études des écoles élémentaires,1959. Quebec,p.482.
22
Ver ANGVIK e BORRIES, von. op. cit., p. A 218. Ver também KLOSE, Dagmar.
“Bouleversement de la conscience de l’histoire”. In Revue internationale
d’éducation. op. cit., p. 72.
23
Idem, p. A 322.
Artigorecebidoemabr./99,aprovadoemago./99