Plínio Pacheco teve uma infância pobre em Santa Maria, após a morte precoce de seu pai. Ele trabalhou na construção da Base Aérea de Santa Maria e depois se juntou à Força Aérea Brasileira, possivelmente adulterando seus documentos de nascimento. Plínio recebeu uma sólida educação no Colégio Marista de Santa Maria, onde desenvolveu suas habilidades de liderança.
3. 17
O nascimento de um líder
O produtor teatral Plínio Pacheco começou a carregar pedras
muito cedo. Aos 16 anos. O primeiro emprego, na área de construção
civil, foi obtido como ajudante nas obras do Aeródromo de Santa Ma-
ria, no Rio Grande do Sul, no início da década de 40. O aeródromo foi o
primórdio do que mais tarde seria a Base Aérea de Santa Maria (BASM),
inaugurada oficialmente em 15 de outubro de 1971, no Governo Médi-
ci.
O trabalho foi conquistado graças ao grande esforço de guerra
que o Brasil vivia nessa época. No dia 7 de setembro de 1941, em um
lance inesperado, os japoneses atacaram a base americana de Pearl
Harbor, levando os Estados Unidos da América a entrar na 2ª Guerra
Mundial contra os países do Eixo (formado pela Alemanha de Hitler,
além da Itália de Mussolini e do Japão, governado pelo imperador
Hiroíto mas dominado, na prática, por militares ultranacionalistas). O
governo Getúlio Vargas, apesar de inicialmente demonstrar simpatia
pelo bloco do Eixo e tentar manter-se à margem do conflito, foi obri-
gado a entrar na guerra em 1942, quando vários navios mercantes
brasileiros começaram a ser torpedeados pelos submarinos alemães.
A Força Aérea Americana, apesar de bastante considerável já naquela
época, precisava do suporte da Força Aérea Brasileira (FAB), criada em
1941, com as bases e o apoio em território nacional.
Esses pontos de apoio logístico – como os criados em Santa Ma-
ria, Belém, Natal e Recife – começaram a ser preparados nos anos de
1942 e 1943. A exemplo das bases no Nordeste, a de Santa Maria tinha
uma importância continental por delimitar a fronteira Sul do Brasil. O
local foi escolhido porque ficava em uma região central do Estado do
Rio Grande do Sul – a 300 quilômetros de Porto Alegre – e ampliaria
o poder aeroespacial da FAB no Sul do Brasil. Não por acaso, o desta-
4. 18
camento era conhecido pelo pomposo nome de “Sentinela Alada do
Pampa”. Com uma população que contava, em 2002, com aproximada-
mente 300 mil habitantes, até hoje Santa Maria é um importante centro
militar e possui uma das três maiores guarnições militares do Brasil.
No acordo de guerra, o Brasil cedia as terras e os Estados Unidos
financiavam a construção das bases, a cargo do corpo de engenheiros
do Exército Americano.
No acampamento das obras em Santa Maria, Plínio recebeu as
primeiras lições de liderança, justamente de um engenheiro inglês que
era responsável pelo apontamento dos peões. No frio de rachar dos
pampas, Plínio vivia intrigado com o gringo, sempre esperto, dando or-
dens aos peões com um megafone nas mãos, invariavelmente montado
a cavalo. Um dia o engenheiro ensinou-lhe o segredo para manter-se
alerta a noite toda, no frio, mesmo quando soprava o cortante vento
minuano. “O gringo abriu o sobretudo e mostrou-me os bolsos cheios
de garrafas de gim”, costumava relembrar Plínio, entre risos.
Já homem feito, com toda sua liderança empiricamente desen-
volvida, a lembrança daquele velho senhor inspirou Plínio a comandar
os trabalhos de construção das muralhas de Nova Jerusalém e também
coordenar os espetáculos sempre montado a cavalo, com seu insepa-
rável megafone da marca Siemens Whistle nas mãos. No que toca a
bebida, Plínio sempre gostou de exercitar-se nessa área tão especial,
particularmente a alguns homens. Mas nunca deixou que isso atrapa-
lhasse a sua vida. O encanto fácil do álcool não permitiria ser bom pai,
bom produtor e bom bebedor. Alguma coisa tinha que cair fora. Com
o serviço militar, Plínio aprendeu cedo o valor da disciplina para atingir
seus objetivos.
O desejo inicial de Plínio era servir ao Exército, mas ele não tinha
idade para alistar-se, com menos de 18 anos. Um dos irmãos de Plínio,
Walter, também acabou trilhando a carreira militar. Desde 1921, havia
sido criado na cidade um campo de aviação, que sediou as primeiras
guarnições de bombardeiros e caças. Em 1937, o Governo Vargas já
havia criado um destacamento de aviação em Santa Maria.
A proximidade com a fronteira gaúcha, sempre envolvida em
muitas guerras, deve ter exercido enorme influência nessas escolhas,
além do fato de que a carreira militar era um caminho promissor na-
quela época que o país vivia. Aos 14 anos Plínio comunicou a um primo
que era tenente do Exército sua intenção de seguir carreira.
Desde o fim da 1ª Guerra Mundial, as escolas de aviação existen-
tes no Brasil continuaram a formar pessoal, mas em pequeno número,
devido às dificuldades operacionais encontradas. Como ainda não ha-
via instrumentos de vôo modernos, os municípios do interior costuma-
vam escrever o nome das cidades no telhado das estações ferroviárias,
5. 19
Garoto teve
infância pobre
em Santa Maria,
ao lado do
irmão Walter
para auxiliar os pilotos. O clima criado com a 2ª Guerra Mundial deu
impulso à incipiente Força Aérea Brasileira, exigindo urgentemente a
arregimentação de quadros.
Com as amizades que fez na Base Aérea de Santa Maria e, levado
sempre pela afoiteza da mocidade, Plínio conseguiu posteriormente
ser indicado para fazer o curso de especialização em Aeronáutica, em
São Paulo, capital.
O ingresso na Aeronáutica, mais tarde, possivelmente se deu a
partir de uma adulteração em seus documentos. O próprio Plínio re-
velou mais tarde esse detalhe pitoresco. “Eu não sei se nasci em 1926
ou 1927, porque tenho duas certidões de nascimento. Uma tirada
por meu pai, com uma data, e outra tirada por minha mãe, com outra
data. Até ia dando um rolo da gota. Uma vez, na FAB de Natal, eles me
pediram, não sei para quê, uma certidão. Eu levei. Quando chequei lá,
era diferente o ano de uns papéis que tinham a meu respeito. Eles des-
cobriram que eu tinha duas certidões”, revela, em carta a um amigo,
6. 20
Fioraavante morreu em 33 e deixou 3 filhos Dona Hilda teve que assumir a prole
escrita em 1966, já em Nova Jerusalém. “Em uma eu era Barbosa Pache-
co e na outra, só Pacheco. Disse-lhes que não sabia de nada daquilo.
Nunca havia notado. Se era crime ou dava cadeia, eles que resolvessem
lá com meu pai, com minha mãe e os caras dos cartórios. O que eu sei é
que nasci em um desses anos”.
Órfão aos seis anos
Plínio teve que se virar por conta própria e cedo porque seu pai,
Fioravante Pacheco, morreu quando ele tinha apenas seis anos, em
1933. Naquela época, a população brasileira era de aproximadamente
37 milhões de pessoas. Setenta por cento viviam na área rural, como a
família de Plínio.
Com a morte do pai, a mãe de Plínio, Hilda Barbosa Pacheco,
havia se mudado do pequeno município de Soledade (também no Rio
Grande do Sul, a 220 quilômetros a noroeste de Porto Alegre) para uma
cidade maior, Santa Maria, a 300 quilômetros a oeste da capital, levan-
do os três filhos, Plínio, Walter, de 4 anos, e Wilson, de 3. Hilda conse-
guiria colocar os filhos para estudar no Colégio Marista de Santa Maria,
7. 21
onde ela trabalhava como cozinheira. Plínio entrou nesse colégio
interno aos seis anos de idade e saiu de lá quando completou 16 anos,
em 1942, para se empregar na construtora do aeródromo.
Mesmo sem a presença do pai, Plínio teve direito a uma educa-
ção exemplar. Vivia-se a contingência de uma época em que o respeito
aos idosos e à família eram um verdadeiro mandamento religioso.
O ingresso no seminário poderia favorecer a mobilidade social, pelo
acesso aos estudos. Naquele tempo, o ensino religioso era a porta de
entrada para muitos jovens pobres, pois lhes abria as cortinas do mun-
do. Nos seminários, além de o ensino ser da melhor qualidade, havia a
vantagem da gratuidade.
Ter um padre na família era uma honraria, mas a vida em um in-
ternato exigia grande sacrifício pessoal. Apesar da esperada vocação
sacerdotal de Plínio ter-se esgotado no ofício de coroinha, esse perí-
odo de sua vida deixou marcas indeléveis em sua formação humanís-
tica. Como diziam os antigos, com a tenra idade, quando se é como a
argila dócil, o bom modelador pode imprimir as formas mais delicadas.
Dona Hilda certamente tinha isso em mente quando colocou os garo-
tos no internato. Para Plínio, abraçar os estudos era uma boa opção, já
que fisicamente ele era mirrado. Assim, era mais vantajoso trabalhar o
intelecto para vencer na vida.
No Colégio Marista de Santa Maria, os padres classificavam to-
dos os estudantes antes de serem admitidos no primeiro ano ginasial.
Quem não passava na classificação era obrigado a fazer dois anos de
preparatório.
O português e o latim eram as principais matérias ensinadas.
A partir da terceira série já eram ministradas aulas de grego, francês,
alemão e as mais diversas matérias que formavam a grade das escolas
públicas, que não tinham tanto português e tanto latim – por sinal,
nessas aulas Plínio deve ter aprendido que seu nome, na língua dos
antigos romanos, significa “completo, cheio, pleno”. Também era bas-
tante puxado o ensino de geografia, história, matemática e álgebra,
temas gerais que eram conhecidos então como humanidades.
Naquela época, não havia professores particulares nos colégios
da região. As aulas eram ministradas por padres, em sua maioria ale-
mães, com dedicação integral. Os estudos eram realizados sempre em
uma grande sala, sob a vigilância de um padre ou um substituto deste.
Cada aluno tinha a sua carteira individual e seus apetrechos escolares.
Todos eram examinados pelos resultados que apresentavam no dia
seguinte. As matérias não podiam ser apresentadas em conjunto. Com
a proibição, buscava-se evitar cópias. Os trabalhos também deveriam
ser feitos de próprio punho, ajudando ainda na melhoria da caligrafia.
Cada classe tinha o chamado sênior, em geral o aluno mais anti-
8. 22
go, encarregado de vigiar os demais. Com uma carga de responsabili-
dade maior do que a dos colegas, os seniores costumavam ser aqueles
alunos que tiravam as melhores notas no semestre. Essa estrutura
acabava por estimular a delação. Era comum um aluno denunciar ou-
tro, por causa de uma brincadeira qualquer ou de uma transgressão de
pequenas regras, como conversar nas pausas de uma aula para outra. A
prática era estimulada para que os padres mantivessem o controle rígi-
do e total, com um mínimo esforço.
As famílias não costumavam reclamar de nada, sendo ao con-
trário até muito gratas, pois essa disciplina quase militar era garantia
líquida e certa de uma formação de caráter invejável, de responsabi-
lidade com o trabalho cotidiano, com o estudo e a atividade social do
universo onde vivia. Exemplo disso é que Plínio, na idade adulta, por
onde passou teve a preocupação de fundar escolas, com quadro de giz
ou não.
Em termos de leitura, os mestres daquela época eram muito exi-
gentes. Até o tempo das férias deveria ser reservado para a leitura, so-
bre literatura universal ou a evolução do Brasil, por exemplo. Crianças e
jovens eram estimulados a escrever com lições de técnicas de redação,
poesia e estilo. Isso ajuda a explicar porque Plínio redigia com um estilo
envolvente e de forma caudalosa. Leitor contumaz, lia com fluência o
francês, língua que aprendeu na escola.
Com tanto rigor, os jovens menos abastados iniciavam-se no con-
vívio com a fina flor da intelectualidade clerical. Os que não optassem
por assumir os votos do sacerdócio estavam prontos para brilhar nas
profissões liberais em geral, seguindo carreira no próprio magistério,
no mundo jurídico ou mesmo no jornalismo.
Foi justamente nesse período que Plínio conheceu um garoto
chamado Robinson Flores, seu amigo de infância e que mais tarde se
tornaria diretor do Jornal de Santa Maria. Foi na casa dele que Plínio
passou o Natal de 1957, quando fugiu de Fazenda Nova levando sua
mulher, Diva Pacheco, cujos pais eram contrários à união. Quando nas-
ceu seu primeiro filho homem, Plínio batizou-o com o nome do amigo
de colégio, que chegou a convidá-lo para ser secretário de redação da
publicação gaúcha, caso decidisse não voltar para Pernambuco. “Meu
pai tinha mania de homenagear as pessoas de que ele gostava ou,
neste caso, também que admirava”, conta o filho Robinson Kennedy
Pacheco, que ganhou o nome do meio por ter nascido, já com a família
morando no Recife, um dia antes do assassinato do presidente dos Es-
tados Unidos, em 21 de novembro de 1963.
O ano de 1957 em Santa Maria, aliás, não foi especial apenas para
Plínio e Diva, que começavam sua vida em comum. Por coincidência,
comemorava-se o centenário de fundação da cidade. Além das festas,
9. 23
havia reclamações contra o Governo Federal. O tenente e farmacêu-
tico Luiz Prates Carrion assinou naquele ano um artigo na imprensa
local defendendo a criação de um colégio militar na cidade, conhecida
como “Coração do Rio Grande”. A concretização desse sonho só ocor-
reu graças ao esforço de um jovem nascido em São Bento do Una, o
ex-ministro do Exército Zenildo Zoroastro de Lucena. Por uma dessas
ironias do destino, Zenildo é primo de Diva.
O Colégio Militar de Santa Maria (CMSM), prometido pelo então
ministro Zenildo Lucena em 1994, foi inaugurado oficialmente, pelo
próprio ministro, em 1998, 41 anos depois do centenário da cidade.
Em 1941, na mesma época em que Plínio completava seus estu-
dos e buscava entrar na Aeronáutica, no Recife o jovem Zenildo Luce-
na, vindo do interior, morava na Pensão Brasil, pertencente ao pai de
Diva, Epaminondas Mendonça, enquanto completava seus estudos.
Ensino religioso
Nos colégios internos de Santa Maria, como era de se esperar,
o ensino religioso era uma obrigação. Uma das maneiras mais usuais
de difundi-lo (embora não a única) era com apresentações de peças
teatrais com temas bíblicos. Naquela época, a Igreja e suas escolas
carregavam uma forte herança da catequese da ameaça dos séculos
passados. Os internatos, muito mais do que hoje, reproduziam de for-
ma consciente ou não a memória traumática de obscurantismos. Os
evangélicos pentecostais de hoje, com suas célebres sessões de des-
carregamento espiritual, entre outras práticas mágicas que recuam
aos primórdios do próprio cristianismo, certamente ficariam corados
com a prática religiosa de então.
O ensino religioso incluía aulas de escatologia, o estudo dos
assuntos ligados ao fim do mundo e ao destino dos homens após a
morte. O tema era usado para a propagação do pânico, um terreno
estratégico para a pastoral da ameaça que orientava a Igreja Católica
naqueles tempos. Os internos eram obrigados a ler textos catequéti-
cos de 1724, de Caspar Erhard, com páginas e páginas com descrições
horripilantes de almas castigadas eternamente no inferno. “O Deus
que se apresentava nesses internatos era um doente mental, um sá-
dico, um monstro, não um Deus que se possa amar”, contextualiza
o teólogo Renold Black, autor de um livro onde apresenta uma pes-
quisa sobre o alto nível de incidência de uma variante religiosa do
fenômeno psicossomático conhecido por Síndrome de Estocolmo, a
10. 24
identificação da vítima com seu torturador. No caso, dos fiéis com seu
carrasco divino.
Esse conservadorismo da Igreja Católica só viria a ser quebrado
três décadas depois. Somente a partir do Concílio Vaticano II (1962 e
1965) é que a igreja autorizou a celebração de missas em outros idio-
mas além do latim, permitindo também que os padres olhassem para
os fiéis durante os cultos e liberassem os cânticos. No Brasil da década
de 30, até o bispo vermelho, como o papa Paulo VI viria se referir a
dom Hélder Câmara, um dos responsáveis pela mudança de trajetória
da igreja após o concílio, ainda estava embriagado pelo fascismo ita-
liano, com sua breve experiência, de cinco anos, até 1936, como mem-
bro da Ação Integralista.
A obrigatoriedade do ensino religioso, se por um lado poderia
despertar vocações, por outro fazia nascer uma má vontade eterna
com o tema para muitos outros. Plínio desenvolveu aí uma profunda
ojeriza aos padres em geral. “Ele não levava muito a sérios os padres
mesmo” , confirma o amigo Victor Moreira, que por coincidência tam-
bém estudou em colégio Marista, no caso, o do Recife.
Outra explicação possível para a raiva dos padres pode ter um
fundo emocional. O psicanalista João Batista Ferreira, um ex-padre
radicado no Rio de Janeiro, diz que a psicanálise e a religião têm o
mesmo alvo: a evolução do homem. Mas enquanto esta última apre-
senta a palavra pronta, trata o indivíduo como objeto e o padre dá o
perdão, a psicanálise, por outro lado, não tem a palavra escrita como
uma lei, lida com o homem como sujeito e nunca o julga. Homem de
muitas leituras, Plínio entendia essa diferença. Sentia-se, com relação
à religião, como o personagem principal de O Processo, de Franz Ka-
fka, lido na juventude. Na obra, Joseph K., um burocrata de um banco,
descobre ao acordar no seu 30º aniversário que está sendo acusado
de algum crime. Instaura-se um processo de que não se conhecem os
detalhes nem a acusação que o originou. Uma alegoria ao pecado ori-
ginal, do homem que não sabe do que é acusado, mas mesmo assim é
condenado. Joseph K. é executado de forma sórdida, apunhalado por
seus carrascos.
Muito antes dos questionamentos teológicos, o que mais mar-
cou a sua infância no internato foi uma obrigação mais prosaica e ter-
rena, embora especialmente grave para um garoto então com 10 anos.
O contato com gente de fora ficava restrito aos dias de festas. No
caso de Plínio, além dessas limitações, havia outro sério agravante. Os
mestres eram extremamente rigorosos com os horários. As aulas no
período da manhã começavam às 7h30 e terminavam às 12h. O perí-
odo de estudo propriamente dito se iniciava normalmente às 14h e ia
até às 18h30, com alguma pausa para o recreio.
11. 25
“Os padres o obrigavam a descascar batatas, trabalhando no re-
feitório, ajudando à mãe na cozinha, enquanto os outros brincavam”,
conta o filho Robinson Pacheco. Acertada com a mãe, a colaboração
era uma maneira de ajudar a custear os estudos no internato. O ir-
mãos, por serem mais novos, eram poupados.
A batata era muito usada, naqueles tempos, em quartéis e asi-
los, principalmente por ser um tubérculo de fácil cultivo e ter capaci-
dade de permanecer muito tempo armazenado, sem perder o sabor.
Por isso, ficou conhecida como comida de pobre durante muitos sé-
culos.
Usado nos jardins da Inglaterra até mesmo como planta orna-
mental (antes de ganhar o nome de batata inglesa), até o Século 18
o tubérculo era apreciado principalmente por camponeses e utiliza-
do como alimento de animais, na Espanha e no resto do continente
europeu, por conta da crença de que transmitia lepra aos humanos,
contaminado por águas impuras carregadas dessa peste e despejadas
nas terras em que o brotava. Apenas com a Revolução Francesa a ba-
tata ganhou algum privilégio, chegando a ser conhecida como maçã
da terra, graças a um farmacêutico que converteu sua divulgação em
verdadeiro apostolado. O farmacêutico e militar francês Antoine Au-
gustin Parmentier, depois de fazer um regime à base de batatas, na
prisão de Westfalia, ficou fascinado pelo tubérculo e deu início à sua
difusão, não sem enfrentar percalços. Em 1769, o militar foi demitido
do posto de farmacêutico-chefe no L’Hôpital des Invalides (o antigo
hospital para militares feridos em guerra), por ter servido batatas aos
militares ali internados – os veteranos do exército não podiam ser ali-
mentados com a comida que se dava aos porcos.
O trabalho de descascar batatas não era dos mais nobres e gra-
tificantes, mas, com uma grande sede de conhecimento e cultura, Plí-
nio superou tudo. Aos 40 anos, ele conhecia a história das civilizações
e dava-se ao luxo de fazer citações sobre a batalha do imperador inca
Atahualpa e as aventuras do conquistador espanhol Pizarro, respon-
sável pelo fim do império Inca, em 1532. Deve ter dado boas risadas
ao descobrir que as batatas eram cultivadas originalmente por aquele
povo andino e pelos astecas (que habitavam o México). Essas civiliza-
ções também cultivavam milho, feijão, abóbora, tomate, pimentão,
cacau e algodão. A papa, como era chamada pelos incas, foi levada
por Pizarro para a Espanha, junto com pedras e metais preciosos, de-
pois de encerrada a devastadora conquista do império Inca. Era uma
garantia contra invernos rigorosos e longas viagens marítimas. Depois
da Espanha, a batata foi levada para a Inglaterra, virou inglesa e ga-
nhou o mundo.
No tempo certo, quando a biruta indicava bons ventos naquele
12. 26
Brasil do início dos anos 40, Plínio, apoiado nas asas brasileiras, deco-
lou para os seus primeiros vôos, em São Paulo. O menino que come-
13. 27
Capítulo II
40 dias no deserto
A vida dura em São Paulo
A PAIXÃO DE PLÍNIO
15. 29
A vida dura em São Paulo
O jovem Plínio Pacheco odiou cada minuto dos três anos que
viveu em São Paulo. A terra das oportunidades não encantou o gaúcho
de 20 anos que viajou à capital paulista para estudar e ingressar na
Aeronáutica. “Conheço essa vida aí. Quase fui esmagado por ela. Feliz-
mente, despertei a tempo”, confidenciaria a um amigo, 20 anos mais
tarde, em 1966.
A selva de cimento, como Plínio tratava a metrópole, realmente
avassalava tudo já naqueles idos de 1950. Uma breve contextualização
da vida econômica do país e da própria cidade naquela época ajuda a
entender a ojeriza de Plínio.
Desde o início dos anos 40, o mundo e o Brasil viviam o início da
2ª Guerra Mundial. O Brasil sofria a escassez dos produtos importados,
impedidos de chegar ao país com o afundamento de navios brasileiros
na costa do Nordeste e ao redor do mundo pela Alemanha nazista. Era
necessário aumentar a produção para atender ao mercado interno. A
indústria nacional viu-se diante de um desafio, foi convocada para o es-
forço de guerra e respondia afirmativamente. Faltava até mão-de-obra
para as empresas e, em 1942, criou-se o Serviço Nacional de Aprendi-
zagem Industrial (Senai), que funciona até hoje. O Estado de São Paulo,
nesse contexto, protagonizou uma das maiores revoluções que o país
já viveu, com a transição da economia rural para a economia industriali-
zada, de modo que fosse possível produzir, no país, bens e serviços até
então importados.
“São Paulo me obrigava cada dia a produzir mais para poder
consumir cada vez mais. Senti, então, que é humanamente impossível
você viver na cidade, permanentemente acossado pela publicidade e
pela visão dos produtos, em geral supérfluos. Acabei envolvido naquela
merda, e em vez de um emprego de seis horas, já estava em dois de 14
16. 30
horas por dia. Ninguém tem ou arranja forças suficientes ficando lá, para
fugir ao envolvimento. A única solução é sair e sair não pode ser consi-
derado fuga, uma vez que ficar seria ser conivente com a própria des-
truição, seria ajudar no processo de auto-destruição”, descreveu. “É tudo
criminosamente absurdo, quando se sabe que milhões de pessoas mor-
reram de inanição ou no cacete no período inicial da industrialização
porque usaram a greve como arma para poder reduzir a tarefa diária de
14 horas para 12 horas, para dez horas diárias e até conseguir uma lei de
oito horas de trabalho por dia, tantas horas por semana. Em São Paulo,
fica todo mundo trabalhando 12, 14, 16 horas diárias e até sem fim de
semana, sem férias, para produzir mais, ganhar mais e assim consumir
toda essa troçada multicolorida que os veículos coloridos enfiam na sua
cabeça 24 horas por dia”, reclamava.
Naquela época, os grandes fazendeiros de café que haviam se ins-
talado em São Paulo e mandavam na economia nacional até os anos 30
já não eram os principais atores do processo de transformação da socie-
dade. Começam a ganhar força as primeiras indústrias, que se instala-
ram no início do século. A indústria Matarazzo, fundada em 1904 e que
desde 1911 já produzia artigos finos na área de fiação e tecelagem, con-
solidou-se nos anos 40, tornando-se símbolo da cidade até hoje. Com o
surgimento dos primeiros bancos para financiar a atividade econômica
e o desenvolvimento do sistema ferroviário, para escoar a produção, a
locomotiva paulista estava posta em marcha, atropelando todos que lhe
tentassem fazer oposição.
“A imensa e maluca engrenagem que é São Paulo transforma você
em um parafuso (ou uma porca), pois São Paulo é São Paulo e não pode
parar”, ironizava o jovem Plínio, imerso naquele mundo de profundas
mudanças e sentindo-se totalmente deslocado. “O paulistano não pode
parar, quem mora em São Paulo não pode parar. Então corre de casa para
o transporte, corre no transporte para pegar o horário do trabalho, corre
no horário do trabalho para aumentar a produção, aumenta a produção
para vender mais, vende mais para dar mais lucro, que vai para o dono da
indústria, que divide com o governo, governo que precisa desse dinheiro
para aumentar o número de seus funcionários, de polícia, de justiça, de
fisco, para manter o povo dentro da ordem, cada vez trabalhando mais,
rendendo mais, para que as indústrias e os governos (principalmente este)
possam ter mais força e mais poder”.
Curiosamente, embora criticasse a sociedade de consumo que se
formava no País, Plínio não atribuía esses males ao capitalismo, como deixa
bem claro nos trechos de suas cartas que se referem àquele período. “A
busca de mais força e mais poder não tem qualquer ligação com regime.
Tanto faz no comunismo, tanto faz no capitalismo. Isso tudo traduz-se por
um homem escravo do homem. A ordem é sempre a mesma. Aperta o pa-
17. 31
O jovem Plínio Pacheco não queria ser transformado em parafuso em São Paulo
18. 32
rafuso, bota a macacada para produzir”, dizia.
A situação política do país, por sinal, não era menos turbulenta do
que a vida econômica. O Estado Novo, regime autoritário imposto por
Getúlio Vargas em 1937, ainda dava as cartas, antes de ser derrubado pelo
processo de redemocratização de 1945, com a eleição de Eurico Gaspar
Dutra, do PSD. Em Pernambuco, a situação não era diferente, pois de 1937
a 1945 o Estado foi governado pelo interventor Agamenon Magalhães,
indicado por Getúlio Vargas. Antes de tornar-se governador em eleições
livres, em 1950, Agamenon Magalhães ficou conhecido por ter instaurado
uma regra não escrita, a Lei do Mandacaru, aquela que não dava sobra
nem encosto, especialmente aos adversários políticos.
No plano nacional, os jornais eram alvo de intensa censura do De-
partamento de Imprensa e Propaganda (DIP), de Getúlio Vargas. Houve até
caso de jornal que teve o suprimento de papel cortado, sendo forçado a
sair de circulação, depois de publicar uma entrevista em que o ex-ministro
do Trabalho de Getúlio, Lindolfo Collor, disse esperar que a ditadura tivesse
fim após a queda do nazismo, na Europa. “O período da 2ª Guerra Mundial
foi, antes de tudo, uma fase de exaltação nacional. O nosso patriotismo
ditava as reflexões. Havia pessimismo diante dos avanços do Eixo, que se
alastrava pelo mundo, num ímpeto satânico de dominação”, rememora o
jornalista Nilo Pereira, redator-chefe da Folha da Manhã na época.
No Recife, as noites eram longas e tenebrosas. A cidade acompanha-
va os discursos do führer com a ajuda do alemão naturalizado brasileiro
Alexandre Kruse, que ouvia o líder nazista pelo rádio e reproduzia quase
na íntegra as traduções no Jornal do Commercio, para desespero do jorna-
lista Anibal Fernandes, que dirigia o concorrente Diário de Pernambuco
naquela época. “Após o afundamento de vários navios brasileiros pe-
los submarinos nazistas, o Brasil declarou guerra ao Eixo formado pela
Alemanha, Itália e Japão. O Recife vivia às escuras, diante da ameaça
de bombardeios e o espectro de morte sobre a cidade”, relembra Nilo
Pereira, em artigo assinado no Jornal do Commercio, em 1986. Nos anos
40, a população brasileira ficou dividida com relação à entrada na guer-
ra, porque havia um forte componente sócio-econômico com relação
aos países que compunham o Eixo. Era grande o número de alemães,
italianos e japoneses no Brasil naquele tempo, inclusive em Pernambu-
co. Para dar curso à industrialização do país, o governo brasileiro facili-
tou a entrada de imigrantes daqueles países, que estabeleceram colô-
nias espalhadas em vários pontos do país, principalmente no Rio Grande
do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Após o rompimento do Brasil com o Eixo, a situação complicou-
-se ainda mais. No Recife, o calor do momento fez a população voltar-se
contra os estrangeiros. Várias famílias de imigrantes passaram a sofrer
discriminação e foram condenadas ao ostracismo pela sociedade local.
19. 33
Em 1942, após o afundamento dos navios brasileiros Baependi, Taubaté
e Bahia, na costa nordestina, entre Sergipe e a Bahia, a população pro-
moveu até um quebra-quebra contra casas comerciais de imigrantes
japoneses e alemães, tamanho era o clima de animosidade.
Alheio às questões políticas nacionais e internacionais da época,
até pela pouca idade, Plínio rebelava-se contra o avanço do processo
de industrialização. Numa carta a um amigo, escrita em 1979, Plínio
lembrava daqueles dias com amargor. Ele atacava de forma virulenta o
que se chamava à época de admirável mundo novo, com suas máqui-
nas, ciência, progresso e sociedade de consumo. “Tente analisar o que
está por todo o canto e você concluirá que o homem é cada vez menos
homem e cada vez mais escorpião. Isto tudo aí está decompondo o
homem, transformando a humanidade em um gigante escorpião. Ficar
(em São Paulo) é ser devorado, esmagado e consumido. Sair disso não é
fuga, é a única maneira de sobreviver, continuar (ou tentar) ser homem.
Não sei se é alienar-se, mas sei que é vital sair deste labirinto de Dédalo.
Quanto mais você consome, mais é consumido. Quanto mais você usa,
mais você é usado. Sei que não dá mais para tornar ao negativismo ab-
soluto, não consumir nada, não usar nada. Mas ainda é possível tentar
consumir o mínimo e usar o mínimo. O mínimo para saber viver dentro
de uma fórmula que seja possível manter a dignidade humana. Con-
sumir o mínimo de tal maneira que essa sociedade de consumo, se for
depender do seu consumo para manter-se, ela se arrebenta e desmoro-
na em meia dúzia de anos. Sei que não vai acontecer isso, porque não
é a minha posição que vai abalar o menor tentáculo desse poderoso
polvo. A gente vai virar pó e o polvo será ainda mais gigante e podero-
so. Apenas sei de seu poder e gigantismo. Por mais que se multiplique,
será com o mínimo do seu consumo e do seu uso. Minha posição não
vai resolver nada, mas eu estarei em paz comigo mesmo e com a minha
consciência”.
As lembranças negativas dessa fase de sua vida eram tão fortes
e marcantes que acompanharam Plínio pelo resto da vida. O tempo
passou, mas o trauma que viveu na capital paulista nunca foi apagado.
Em um conto escrito algumas décadas depois, o produtor cultural dei-
xa transparecer seu horror quando diz que a visão de uma prostituta
o faz lembrar da cidade. No texto, a prostituta, batizada por Plínio de
Dulcinéia, numa referência à amada de Dom Quixote, reclama da vida
dura no Nordeste e ele sugere que a solução seria ir para São Paulo. Na
época, era comum o grande fluxo migratório para o Sul. Era o que todo
mundo fazia ou dizia que ia fazer quando ficava cheio da vida que leva-
va, no Nordeste ou em qualquer outro lugar do país.
“Acho que falei de São Paulo por correlação com o mundo sujo
em que Dulcinéia vivia. Um mundo sem cor, manchado, de duvidosos
20. 34
odores, sórdido, mundo furtivo à luminosidade do sol, para esconder
sua sordidez, mundo disfarçado no colorido de lâmpada e luz artificial,
povoado de pessoas artificiais, vivendo artificialmente”, descreve Plínio.
“Agora, vendo o vale lá embaixo, em pleno verão de novembro, verifico
que foi isso mesmo. Simples analogia, afinal. Tanto faz o mundo de Dul-
cinéia como São Paulo, a mesma coisa, a mesma vida, apenas em outro
lugar. Um mundo em decomposição, decadente, sem objetivo de vida,
com seus corpos alugados, para o trabalho ou para a cama, tanto faz,
tudo alugado. Tanto faz, aqui e lá, tudo alugado tanto faz, em pé ou dei-
tado, tudo alugado, tanto faz, dia ou noite, tudo alugado”.
Em São Paulo, Plínio já vivia em outro plano, agravado por uma
busca de si mesmo angustiada e cheia de dilemas. O torvelinho psíquico
no qual Plínio estava mergulhado nada mais era do que o resultado de
aspirações e ilusões que atormentam uma alma visionária e apaixonada.
É nesse contexto que o jovem Plínio desce do céu de admiração para
um inferno de questionamentos.
Boa parte dessa inquietação pode ser atribuída às leituras que
ajudaram a formar sua filosofia de vida. Um dos autores preferidos
de Plínio era Henry David Thoreau (1817-1862). O escritor americano
tornou-se conhecido por criticar seriamente o homem em sociedade, já
naqueles tempos cercado de compromissos e bugigangas e passando
a vida sem ter tempo para viver. Thoreau era um radical na defesa de
suas idéias e conseguiu viver seus ideais não apenas teoricamente, mas
também na prática. Sobre sua vida, ficou famoso o episódio em que,
morando em um quarto alugado, achou que estava colaborando com a
lei do inquilinato e com o governo que não dava casa para o povo mo-
rar. Simplesmente juntou os teréns e foi morar numa choupana. Depois,
arrendou um pedaço de terra onde plantava verduras e frutas, obtendo
assim tempo suficiente para viver a natureza e escrever. Com o trabalho
de duas horas por dia na terra, o escritor conseguia se manter e trocava
o excedente pelas poucas outras coisas de que necessitava e que não
produzia. O exemplo do filosofo americano certamente influenciou as
opiniões sobre consumo mínimo de Plínio naquela altura de sua vida.
Com a leitura dos clássicos de Thoreau, além de uma filosofia,
Plínio adquiriu amor ao estilo, que seria especialmente útil mais tarde,
quando abraçaria o batente do jornalismo diário. Discípulo do filósofo
transcendentalista Ralph Waldo Emerson, Thoreau é um dos escritores
mais notáveis da língua inglesa. Nos livros sobre lireratura, o autor sem-
pre é destacado por ser fecundo em imagens imprevistas, em descrições
coloridas e pitorescas, amigo do paradoxo mais audacioso, cheio de
humor violento, capaz de confundir ódio com amor. A sua prosa tem um
caráter particular de áspero misticismo e desabrida sátira.
O anseio por uma vida espartana também pode ter sido vislum-
22. 36
brado a partir da obra de Aldous Huxley. Plínio costumava citar com fre-
qüência Mr. Propter, personagem principal de Também o Cisne Morre.
O livro relata justamente uma experiência de afastamento da sociedade
de consumo, pregando que se consuma dela apenas o essencial em
equipamentos, para com eles fabricar coisas que permitam o máximo
de independência dessa sociedade. Na obra, um professor universitário,
depois de aposentar-se, vai morar num pedaço de terra herdado do
pai. Propter constrói uma casa para morar e várias casinhas para alojar
famílias que subiam à Califórnia no período da colheita da laranja. Em
geral, essas pessoas eram ex-agricultores que tinham perdido suas ter-
ras, exaustas pelo uso impróprio, passando à condição de trabalhadores
alugados.
Além de Thoreau e Huxley, Plínio adorava a obra de George
Orwell, conhecido pelo clássico 1984, uma sátira à opressão dos regi-
mes comunistas. No entanto, o livro que ele mais citava era Mantenha o
Sistema, uma crítica filosófica à sociedade de consumo. “Quando você
lê Mantenha o Sistema, ele entra em sua vida e fica por muito tempo”,
dizia, recomendando que o livro fosse devorado.
Em outra citação, ele elogia Mellors (personagem criado pelo
escritor inglês D. H. Lawrence em O amante de Lady Chatterley), um
guarda-caça que é severo crítico do materialismo, do mecanicismo e da
corrida pelo dinheiro.
“É necessário afundar, afundar e afundar, para assim não ter meios
de consumir”, comentou Plínio. O papel de Mellors resumia-se a criar fai-
sões. Conseguira ficar só, longe da vida e de tudo, como desejava. Desse
modo, poderia continuar a viver sem ligação com ninguém, sem nada
esperar. A preocupação com o dinheiro, como um vasto cancro, devora
todos os indivíduos ou todas as classes. Mellors professava que era pos-
sível sobreviver consumindo o mínimo, sem deixar-se afundar. “Que fazer
então? Que oferece a vida além da preocupação com o dinheiro? Nada.
Mellors tinha se encontrado, era um homem livre e perdeu-se ao encontrar
Constance (a Lady Chatterley de quem se torna amante)”, escreveu Plínio,
oferecendo uma pista importante para os destinos de sua vida naquela
época. “Mellors poderia viver só, com a vaga satisfação de ser só, de criar
faisões para regalo da mesa dos ricos. Era a futilidade, e a máxima ironia.
Preocupar-se com o que, entretanto? Por que aborrecer-se? Foi sem preo-
cupações que Mellors viveu até a entrada daquela mulher, Constance, em
sua vida. Ele tinha dez anos a mais do que ela e mil anos de experiência a
mais, mas o laço ia se apertando e ele viu chegar o momento em que, não
podendo desatá-lo, teriam ambos de refazer suas vidas, porque os laços do
amor são difíceis de desatar”.
Em suas cartas, Plínio chega a traçar um paralelo entre Gordon (per-
23. 37
sonagem criado por George Orwell em Mantenha o Sistema) e Mellors.
“Um é o outro e o outro é o mesmo. Gordon também era um homem livre,
até que se envolveu – por que quis ou por que se deixou – com uma moça
de que não lembro o nome. E, como Mellors, perdeu-se. Entraram, retorna-
ram ao lixo do sistema. Forçados por quê? Amor. Não é um absurdo? Sen-
do assim, a gente é obrigado a usar a lógica. Só é possível ser livre quando
se conseguir libertar-se, inclusive do amor”, observou.
Assim, o estopim para abandonar São Paulo e ir servir à Força Aérea
Brasileira no Nordeste, mais tarde, deu-se justamente por causa de uma
grande desilusão amorosa. A saída de Plínio da capital paulista não teve
somente a ver com o dia-a-dia, a loucura do transporte das pessoas na
cidade grande, o mesmo trabalho sempre, a mesma sala de trabalho ou os
mesmos fins de semana, nos quais domingo é sempre domingo e segun-
da-feira é sempre segunda-feira. Plínio apaixonou-se perdidamente por
uma turca e queria casar-se com ela. Ele chegou a trabalhar em três expe-
dientes para poder bancar os luxos de uma moça abastada, que gostava
de sair para jantar fora e freqüentar teatros. O problema é que ela contava
27 anos de idade na época e ele tinha apenas 20 anos. A moça tinha receio
de que, com o passar do tempo, os anos de diferença entre ambos fizes-
sem o jovem perder o interesse por ela. A jovem acabou o relacionamento
e jogou Plínio em um poço de amargura.
A receita de liberdade que Plínio oferecia aos amigos, lida com a
ajuda da literatura que consumia compulsivamente à época, permite vis-
lumbrar o tamanho do conflito pessoal que ele viveu em São Paulo: “Estes
livros todos, um após o outro, se completam e resultam na orientação de
um dos poucos caminhos de como chegar lá, como se diz. Ou seja, libertar-
-se, isso se se quiser. Libertar-se é não ser o homem ou a mulher de Mante-
nha o Sistema ou o homem e a mulher de 1984. O único problema é que o
preço é alto. O preço da liberdade é acabar as lembranças, apagar os ros-
tos, o rosto não mais desmentir o coração. Não haver mais esperas. Mortas
as ambições, não questionar-se. Não mais perguntas, sem as angústias de
mais respostas. Mortas as necessidades do conhecimento e do saber, fazer
o tempo parar, parar dentro do tempo, parar no tempo. Não usar as forças
para nada a não ser a negação, com todas as forças, de aceitar o mundo, o
que morreu, esse que está morrendo ou qualquer outro que o substitua.
Nada nem ninguém, apenas o viver por viver, livre dos outros, mais livre
de si, isto é igual à única liberdade. Ou se aceita isto e parte para isto ou é
continuar até o fim nessa merda de sonhos, pesadelos, dubiedades, incoe-
rências, medos, temores, amedrontamentos e vazios”.
Sem se referir a esse desencontro amoroso, o primeiro de tantos ou-
tros, Plínio relatou de forma seca como se libertou de São Paulo: “Consegui
coragem e caí fora. Numa mala botei minha roupa e, em dois caixotes, os
livros. E subi para o Nordeste. Não era uma fuga, era deserção”, classificou,
24. 38
mais tarde. Sua Constance agora faria parte do passado.
25. 39
Capítulo III
O soldado romano
A importância da Aeronáutica em sua vida
A PAIXÃO DE PLÍNIO
27. 41
A importância da Aeronáutica em sua vida
A Força Aérea Brasileira (FAB) teve um papel importante na vida do
jovem Plínio. Depois de concluir o curso de especialista em comunicação,
em São Paulo, em 1945, e ingressar oficialmente na vida militar, ele serviu
inicialmente por um breve período na Base Aérea de Natal, na do Recife
e depois em Fernando de Noronha, no controle de tráfego aéreo. A vida
militar ensinou-lhe a importância da disciplina para a realização de seus
sonhos e as amizades que granjeou na caserna seriam de grande valia para
seus objetivos no futuro, embora seja difícil acreditar que Plínio, com vinte
e poucos anos, tivesse plena consciência disso àquela altura da vida.
As declarações públicas de agradecimento à Força Aérea Brasileira
(FAB) nos discursos que faria mais tarde, a cada nova vitória em Nova Je-
rusalém, eram sinal inequívoco dessa gratidão. “Não posso esquecer os
distantes e nobres gestos de Eduardo Gomes e Manoel Vinhais, generais
dos ares, sensíveis ao sonho do humilde escudeiro. Eles representam o al-
truísmo da minha Força Aérea Brasileira”, registra Plínio, na apresentação do
primeiro espetáculo de Nova Jerusalém, em 1968.
Noutro discurso público, quando recebeu o título de cidadão de
Pernambuco, em 1971, Plínio chegou a lembrar que foi a Aeronáutica que
sustentou sua família enquanto o sonho de construir uma réplica de Jeru-
salém não lhe rendia qualquer fruto. “A decisão de optar por este trabalho
foi uma decisão particular minha. Para este trabalho, impus a mim mesmo
que ele não seria remunerado. As minhas necessidades e as de minha fa-
mília seriam atendidas pelo meu ordenado na Aeronáutica, que de 1965 a
1970, como militar da ativa, manteve-me à disposição de Nova Jerusalém”,
agradeceu, antes de ser transferido para a reserva remunerada, já no final
da década de 80. “Além da FAB, conto com a ajuda do resultado do trabalho
de minha mulher, que se estende de 12 a 14 horas por dia”.
Quando Plínio ingressou oficialmente na vida militar, a fase áurea dos
28. 42
anos 40 já havia praticamente acabado, com o fim da 2ª Guerra Mundial,
mas, como diz o ditado difundido pelo brigadeiro Eduardo Gomes na cam-
panha presidencial de 1950 e depois tornado lema das Forças Armadas, “o
preço da liberdade é a eterna vigilância” (a frase, na verdade, é do político
conservador inglês Edmund Burke, que viveu no século XVIII). A máxima
aplicava-se bem à base aérea de Fernando de Noronha, o ponto oriental
mais extremo do Brasil.
A história do Brasil na Guerra começa em 29 de setembro de 1939,
quando o presidente Getúlio Vargas anunciou a neutralidade no conflito
que então se iniciara na Europa, subestimando o alerta feito em julho da-
quele ano pelo ministro das relações exteriores, Oswaldo Aranha, avisando
que haveria uma guerra e que o Brasil não podia ficar neutro. O Governo
Vargas, àquela altura, demonstrava nitidamente sua simpatia pelo bloco
do Eixo, mas tentava ficar à margem do conflito.
No ano de 1941, os americanos acabaram entrando na guerra, após
o inesperado ataque do Japão à base de Pearl Harbor, em 7 de dezembro
daquele ano. Meses antes, também em 1941, no Brasil, foi criado o Minis-
tério da Aeronáutica e organizada a FAB. Em outubro, o Governo Vargas
já havia assinado um acordo com os EUA. Em troca da permissão de ins-
talação de bases norte-americanas em Belém, Natal e Recife, os Estados
Unidos se comprometeriam a financiar a construção da Companhia Side-
rúrgica Nacional (CSN).
No ano seguinte, os subseqüentes torpedeamentos de navios mer-
cantes brasileiros por submarinos alemães levaram o Brasil a romper re-
lações diplomáticas com o Eixo e depois ingressar no conflito, em agosto
de 1942, pressionado por amplas manifestações populares, inclusive no
Recife. A ordem expressa havia partido do próprio Hitler, em 15 de junho
de 1942, determinando o torpedeamento de embarcações nos portos de
Santos, Rio de Janeiro e Recife. O objetivo desses ataques era tornar ina-
cessíveis, aos barcos dos países neutros, os mares que banham as costas da
Grã-Bretanha.
Com a ajuda financeira dos EUA, em agosto de 1942, a Base Aérea
de Natal era inaugurada, visitada cinco meses mais tarde pelo próprio pre-
sidente americano Franklin Delano Roosevelt, em companhia de Vargas,
oportunidade em que os Estados Unidos elevaram para US$ 45 milhões o
empréstimo para a construção da usina de Volta Redonda.
Em janeiro daquele mesmo ano, a Ilha de Fernando de Noronha
era declarada zona militar, sendo convertida em território nacional. Além
das bases físicas, os americanos doaram caças ao governo brasileiro e
ajudaram na criação do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva da
Aeronáutica, fundado no mesmo dia em que Vargas declarou guerra ao
Eixo. A especialização de Plínio na aeronáutica ocorreu numa escola ame-
ricana de avião que funcionava em São Paulo. Em 1944, o Brasil participou
29. 43
efetivamente da guerra ao lado dos aliados, atacando a Itália com a Força
Expedicionária Brasileira (FEB), composta por 25 mil homens enviados ao
campo de batalha.
O Nordeste brasileiro onde Plínio iria servir mais tarde era uma po-
sição estratégica para os aliados e Natal foi escolhida para receber uma
base área de apoio aos aviões que passavam para a África e dali para a Eu-
ropa. O interesse dos Estados Unidos era ter o controle sobre toda a costa
brasileira. Com o sucesso do Brasil no conflito, a cidade ficou conhecida
no meio militar e fora dele, mais tarde, como Trampolim da Vitória. A Força
do Atlântico Sul, como ficou conhecida a cooperação entre os america-
nos e os brasileiros, tinha sede no Recife e, pela FAB, era coordenada pelo
brigadeiro Eduardo Gomes, à época comandante da I e II Zonas Aéreas,
sediadas em Belém e no Recife.
O general dos ares, como Plínio se referia a Eduardo Gomes, além
de passar à história como o comandante responsável pelo transporte
aéreo de homens e material, patrulhamento da costa, cobertura aérea e
comboio de navios mercantes, além dos ataques de aviões brasileiros a
submarinos do Eixo, também desempenhou um papel importante nas
batalhas que o humilde escudeiro, como Plínio se auto-intitulava, travou
para tirar Nova Jerusalém do papel.
Eduardo Gomes, uma legendária figura das Forças Armadas brasi-
leiras, realmente teve muita sensibilidade com os planos para Nova Jeru-
salém e o fato de terem várias coisas em comum ajuda a explicar as razões
que levaram o então ministro da Aeronáutica a ajudar o humilde escudei-
ro. Inicialmente, eram conhecidos como figuras fechadas e clericais. Os
dois tiveram uma infância pobre. Havia ainda ligações mais telúricas com
Pernambuco. O bisavô paterno de Eduardo Gomes, Félix Peixoto de Brito
e Melo, lutou em 1822 pela Independência do Brasil e nas revoluções de
1824 (Confederação do Equador) e de 1848 (Praieira), em Pernambuco.
Entre Plínio e Eduardo Gomes havia outros pontos afetivos de liga-
ção. O brigadeiro pode ter desenvolvido uma grande admiração por Plínio
porque o pai, Luiz Gomes, também foi jornalista, tendo trabalhado como
redator do Jornal do Brasil, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Além disso
tudo, o brigadeiro devia enxergar na figura do visionário Plínio o mesmo
fervor que moveu muitos anos antes o empreendedor Luiz Gomes. O pai
abandonou uma bem sucedida carreira militar na Marinha para se dedicar
à construção de uma ferrovia no Rio de Janeiro, empreendimento que
acabou provocando a sua ruína financeira. Antes disso, era um homem de
vastas posses.
A principal ajuda, entretanto, pode ter sido dada de forma indire-
ta, com o exemplo de suas convicções democráticas. Hábil interlocutor,
embora severo, e tido como uma pessoa de fino trato, Eduardo Gomes
destacou-se inicialmente na vida nacional por ser um democrata e liberal.
30. 44
Aos 49 anos, em 1945, o padrinho de Plínio na FAB já era reconhe-
cido dentro e fora das Forças Armadas, especialmente por aqueles que
acompanharam os sobressaltos da guerra. Desde o final de 1944, com
a vitória na guerra na Itália, o nome do comandante Eduardo Gomes já
era cogitado como candidato à presidência da República, uma vez que
o Brasil respirava os ares da redemocratização, com eleições marcadas
para 1945. A juventude e a intelectualidade de meados da década de 40
estavam literalmente hipnotizadas pelo brigadeiro e não apenas porque o
herói da Aeronáutica lembrava Charles Boyer, astro do cinema francês da
época. O fato de o brigadeiro ter conseguido promover uma coexistência
pacífica entre brasileiros e norte-americanos só aumentou seu prestígio.
O ingresso de Plínio na FAB, justamente em 1945, coincide com o
processo de redemocratização do país, quando o Brasil estava sendo obri-
gado a escolher entre dois militares, depois de 15 anos de ditadura Vargas.
Justamente pela afinidade com o companheiro de farda, com toda certeza
Plínio votou em Eduardo Gomes no pleito de 1945, quando o brigadeiro
mediu forças, pela oposicionista União Democrática Nacional (UDN), con-
tra o candidato de Vargas, marechal Eurico Gaspar Dutra, o ministro da
Guerra que disputava como candidato do situacionista Partido Social De-
mocrático (PSD). Dutra ganhou a presidência com 54% dos votos, apoiado
na força do partido organizado nacionalmente pelos ex-interventores
de Vargas, mas Eduardo Gomes não perdeu o prestígio que conquistara.
Derrotado depois por Vargas nas eleições presidenciais de 1950, recusou
o convite deste para que assumisse o Ministério da Aeronáutica. Em 1954,
Eduardo Gomes chegou ao cargo de ministro da Aeronáutica do Governo
Café Filho, que assumiu com a morte de Getúlio Vargas.
No tempo da ditadura militar, apesar de ter apoiado inicialmente o
Golpe de 1964, já em 1966, na qualidade de ministro da Aeronáutica de
Castelo Branco, o brigadeiro lustrou sua biografia ao liderar uma parcela
das Forças Armadas que se colocava contra o recrudescimento do pro-
cesso de cassação de mandatos políticos. Ele se contrapunha à linha dura,
que insistia para que o presidente, o marechal Humberto de Alencar Cas-
tello Branco, levasse adiante a “limpeza do terreno” com maior rigor.
A séria crise que se desenrolou na FAB, em pleno regime militar,
em 1968, com o famoso caso Para-Sar (como era conhecida a unidade
especial de busca e salvamento da Aeronáutica) dá uma idéia do caráter
de Eduardo Gomes. No final daquele ano, veio a público que a unidade
estava sendo usada por um grupo de radicais de extrema direita dentro
da corporação, com aval do próprio ministério. O capitão Sérgio Miranda
de Carvalho, lotado no Para-Sar, foi punido por ter se recusado a cumprir
ordens ilegais, que incluíam o uso da unidade para o extermínio de líderes
políticos e estudantis, além de outros atos terroristas que seriam depois
imputados à esquerda.
31. 45
O capitão Sérgio Miranda
denunciou que essas ordens ha-
viam sido dadas em uma reunião
realizada no próprio gabinete do
ministro da Aeronáutica, Márcio
de Souza e Mello, um dos expo-
entes da linha dura do governo
militar, no dia 14 de julho de
1968, pelo então chefe de gabi-
nete do ministro, o brigadeiro
João Paulo Burnier. A reunião
contou com a presença de 40 in-
tegrantes do Para-Sar, sendo sete
oficiais e os demais sargentos e
cabos. Os oficiais sustentaram a
versão do assessor do ministro,
enquanto os sargentos e cabos
confirmaram que a versão do ca-
pitão Sérgio Miranda era correta.
Por causa das denúncias, o
capitão Sérgio Miranda foi refor-
O suboficial Plínio
Pacheco apoiou-se mado no ano seguinte, em 1969.
nas “asas da pátria” O ex-ministro Eduardo Gomes,
para ganhar o mun- que se aposentara um ano antes,
do e nunca deixou saiu em defesa do capitão Sér-
de agradecer gio Miranda. Além do capitão, o
aos generais dos
ares, especialmente brigadeiro Itamar Rocha, diretor
ao brigadeiro de rotas aéreas e responsável
Eduardo Gomes pelo inquérito do caso (que aca-
bou incriminando Burnier e seu
grupo), também foi exonerado e
preso, acirrando a crise, com uma
série de manifestações dos briga-
deiros e oficiais superiores.
Em novembro de 1971,
o ministro Márcio de Souza e
Mello deixa o governo atacando
o ex-ministro Eduardo Gomes,
a quem acusava de intromissão
na direção da Aeronáutica. Logo
depois, o brigadeiro João Paulo
Burnier também foi afastado do
comando da III Zona Aérea, no
32. 46
Rio de Janeiro, mas os dois episódios apenas consolidaram a falsa impres-
são de que o setor que agia sob a liderança moral de Eduardo Gomes ha-
via voltado a prevalecer na FAB.
O ex-ministro Eduardo Gomes não desistiu e, em março de 1974, faz
chegar às mãos do presidente Geisel uma apaixonada carta em que pedia
que fosse corrigida o que chamava de injustiça que lhe oprimia o cansa-
do coração. Nessa mesma carta, Eduardo Gomes classifica Burnier como
um insano mental, inspirado por instintos perversos e sanguinários, sob
o pretexto de proteger o Brasil dos comunistas. No mesmo documento,
Eduardo Gomes elogiava o capitão Sérgio Miranda, por ter impedido que
o Para-Sar fosse convertido em uma esquadrão da morte e instrumento
de política assassina. O capitão Sérgio Miranda, entretanto, nunca foi
reintegrado à Aeronáutica e Eduardo Gomes morreu em 1981, no Rio de
Janeiro, sem ter visto a injustiça corrigida.
A ajuda do brigadeiro Eduardo Gomes, além de ter garantido um
ordenado da Aeronáutica à família Pacheco, entre 1965 e 1970, para que
Plínio estivesse à disposição de Nova Jerusalém como militar da ativa,
também o manteve afastado do período de maior turbulência na FAB.
Pessoalmente, Plínio era contra a tortura e deixou registrada, mes-
mo de forma cifrada, devido à censura da época, sua repulsa em uma
carta escrita para uma amiga atriz. “Estou copiando para você uns troços
de uns casos acontecidos há uma porrada de anos e você junta com ou-
tros troços e me diz porque estou escrevendo tudo isto e dizendo tudo
isto. Aí, você vai deduzir porque vou atravessar o rio e puta que o pariu.
Vou misturar tudo aqui é para fazer bem bagunça dentro da tua cabeça e
estomago e fazer tu pensar até estourar ou entender”, diz, referindo-se a
uma série de relatos de casos de tortura, fictícios ou não. A amizade com
o legendário brigadeiro, entretanto, lhe custaria caro mais tarde, quando
o ex-ministro se aposentou e a linha dura tomou conta do comando da
Aeronáutica.
No meio militar, outro oficial de alta patente marcou as relações de
Plínio com a caserna foi o general Zenildo Zoroastro de Lucena, que impri-
miu na sua passagem pela vida pública o espírito democrático e combate
ao autoritarismo. Em 1945, quando Plínio ingressou na Aeronáutica, em
São Paulo, Zenildo, com apenas 15 anos, acabara de sentar praça, em Re-
sende, no Rio de Janeiro, na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman),
dando início a uma carreira de sucesso nas Forças Armadas. O destino dos
dois só haveria de se cruzar, por força de laços familiares, mais de uma
década depois.
O primeiro teste público das convicções democráticas de Lucena se
deu no início da década de 90. Depois do processo de impeachment do
ex-presidente Fernando Collor, em 1992, os militares da reserva começa-
ram a criticar duramente o governo do presidente Itamar Franco, dizendo
33. 47
que não se estava dando um tratamento adequado às Forças Armadas.
Em junho de 1993, o deputado federal e capitão da reserva Jair Bolsonaro
fez declarações públicas favoráveis ao fechamento do Congresso e à volta
do regime de exceção. Zenildo sustentou que naquele momento a prio-
ridade não era a questão militar e sim os problemas sócio-econômicos,
garantiu o apoio do Exército ao Governo e afastou qualquer possibilidade
de golpe.
Em 1995, Zenildo, mantido como ministro do Exército, tornou-
-se o principal colaborador do presidente Fernando Henrique Cardoso
entre os chefes militares e ajudou a vencer resistências às propostas do
Executivo no interior das Forças Armadas. Naquele ano, Zenildo foi um
dos responsáveis, juntamente com o ministro da Aeronáutica, brigadeiro
Mauro Gandra, pela aprovação da Lei de Desaparecidos Políticos. A pro-
posta de lei havia sido elaborada pelo Ministério da Justiça e tinha como
objetivo conceder atestado de óbito a 152 pessoas desaparecidas durante
o regime militar (1964-1985), pois dos 369 opositores mortos, somente
217 eram reconhecidos oficialmente. A referida lei previa o pagamento de
indenizações às famílias das vítimas e este ponto foi o que mais encontrou
resistências, principalmente entre os militares da reserva. Em agosto de
1995, o ministro chegou a lançar uma nota oficial de apoio ao projeto, que
acabou sendo aprovada no mês seguinte. Através dessa lei, foram benefi-
ciadas centenas de famílias, entre elas a do jornalista Vladimir Herzog, e as
dos líderes guerrilheiros Carlos Mariguelha e Carlos Lamarca. No Governo
FHC, Zenildo Lucena, além de estimular a divulgação de documentos refe-
rentes ao período militar, também determinou a exoneração de funcioná-
rios comprometidos com o autoritarismo. O caso mais notório foi o afasta-
mento, em setembro de 1995, do adido militar da Embaixada do Brasil em
Londres, coronel Armando Avólio Filho, acusado de prática de tortura pela
Anistia Internacional.
Além do brigadeiro Eduardo Gomes, Plínio também teve como con-
temporâneo na Aeronáutica um jovem médico chamado Nilo Coelho. Ao
contrário de Plínio, Nilo entrou na Aeronáutica de forma casual. Ainda es-
tudante de medicina, em Salvador, o jovem Nilo Coelho chegou a estar à
frente de passeatas que percorreram o centro de Salvador conclamando a
opinião pública a reagir contra a ameaça nazista. Nilo foi convocado para
a guerra, mas como era quintanista de medicina, não chegou a embarcar
para a Itália. O pai dele, o coronel Quelê (Clementino Coelho), já era um
político importante no Sertão do São Francisco e conseguiu que o filho,
logo depois de formado, prestasse serviço militar. Diplomado em 1944,
Nilo optou pela Aeronáutica, tendo ido cumprir estágio na FAB em Cam-
po Grande, no Mato Grosso. Em 1947, o jovem Nilo Coelho venceu sua
primeira batalha eleitoral, elegendo-se deputado estadual, tendo sido o
candidato mais votado no interior e o terceiro mais votado em todo o Es-
34. 48
tado. O colega de farda, mais tarde guindado ao cargo de governador do
Estado, iria ajudar Plínio de forma decisiva, como se verá mais tarde.
35. 49
Capítulo IV
Caminhando sobre as águas
A fuga para Fernando de Noronha
A PAIXÃO DE PLÍNIO
37. 51
A fuga para Noronha
Depois de abandonar a loucura da vida em São Paulo, Plínio, náufra-
go da vida, foi levado por um mar de mágoas para o arquipélago de Fer-
nando de Noronha, onde trabalhou no destacamento de controle aéreo
da Aeronáutica a partir de 1948. Nas ilhas vulcânicas, seu primeiro contato
com a pedra, uma nova e maravilhosa vida se abriu à sua frente. “O sol, ao
nascer, me encontrava sobre um rochedo, com um short no corpo e um
livro na mão”, relembra, em uma carta de 1962, ao amigo Victor Moreira.
O cheiro da maré, a lufada de vento no rosto, a carícia áspera da
neblina salgada eram intimidades que Plínio descobriu rapidamente que
amava. Olhar os navios chegando ou os acompanhar até que desapare-
cessem no horizonte não passavam de um pretexto para estar junto ao
mar. “Meus dias eram pescando, descobrindo os segredos das praias e
dos penhascos, declamando poemas. Eu era dono de minhas horas e dos
meus minutos. Se não queria ver caras, não via. Era a liberdade absoluta.
Não a liberdade que eu buscava, mas a de que precisava”.
O isolamento foi completo e proposital. “De laços afetivos, só me
ligava ao continente uma carta mensal, ao menos, de minha mãe”, lembra
o próprio missivista. Numa dessas cartas, Plínio ressaltava as duas facetas
de Noronha que ele enxergava naquela época: “A amplidão dos grandes
céus, a luminosidade deslumbrante do sol ardente, a solidão concentrada,
o homem imutável”.
Naquela época, percorrer as praias, antes da cinco da manhã, era
principalmente uma terapia pessoal.
Curiosamente, fugindo para Fernando de Noronha, Plínio buscava,
na verdade, se encontrar. “Aqueles anos foram necessários para que eu
raspasse, do meu corpo e de minha alma, tudo que a imbecilidade, a cre-
tinice, uma má formação, uma impregnação de conceitos caolhos, lhes
tinham incrustado”, enumera. “Não fui para Fernando de Noronha com
38. 52
o propósito de fazer isto nem aquilo. Eu só queria sair da loucura de São
Paulo e tentar viver a terra, o espaço, eu”, contou Plínio, inebriado com o ar
de Noronha, revigorante e doce, atraente em todos os sentidos humanos.
“Àquela altura da vida, tão cansado de desastres (amorosos), arrastado
daqui para lá e de lá para cá pelo destino, arriscaria a minha vida numa
oportunidade para remendá-la ou para, de vez, com ela acabar”, explicava,
dando uma idéia do quanto gostaria de mudar de vida.
Composto por 21 ilhas e ilhotas rochosas, o arquipélago era mesmo
o porto seguro naquele momento. Na ilha principal, também chamada
Fernando de Noronha, devia ter menos pé de gente do que formações
vulcânicas naquela época. Era, portanto, o local ideal para não ver caras.
Era um mundo sem jornal, sem revista, sem TV, sem radinho de pilha,
sem outdoor. “O rádio só pegava programas dirigidos ao exterior. Mundo
pequeno, das mesmas caras, mesmos assuntos, sem assunto. Movimento
só das nuvens no céu, das ondas no mar, do vôo dos pássaros marítimos.
Enfim, um mundo que, mesmo que você não quisesse, colocaria em geral
você-com-você”, relembrava Plínio. Somente agora, com a consolidação do
turismo, existe uma média mensal de 500 moradores temporários, além de
uma população fixa de 2.200 ilhéus.
O italiano Constantino Pellegrino, que conheceu Plínio e trabalhou
em Noronha por mais de 30 anos para a empresa Italcable, instalada na
ilha desde 1925 e responsável pelo cabo submarino que garantia o serviço
de telégrafo até a 2ª Guerra Mundial, lembra que a vida era muito dura
naqueles dias. “Naquele tempo, ter um rádio era sorte. Não havia bibliote-
cas. Aí um livro passava de mão em mão, depois se devolvia. A leitura era
a distração da gente, para não endoidar”, diz Pellegrino, que completou 83
anos em 2004.
Com formação em ciência política, economia e comércio na Itália,
Pellegrino conta que a vida social em Noronha era o maior desafio para um
jovem de 29 anos. “Havia uma certa segregação. Os oficiais mais gradua-
dos viviam na vila militar. Os rapazes da aeronáutica, que eram solteiros,
aproveitavam as festas de aniversário para se divertir, visto que não havia
muita distração. Até duas vezes por semana havia convites, sempre de um
colega ou esposa de um colega. Naquela época, era normal que todos fu-
massem muito. Mas, como a bebida era proibida, uma garrafa de cachaça
valia ouro. Eles bebiam batida, uma mistura de álcool e frutas. O Carnaval
era uma beleza, no salão da casa do governador, com muita gente, amigos,
convidados e os filhos que vinham do continente. Os funcionários da base
eram os mais festeiros. Plínio freqüentava pouco essas festas. Gostava mais
de ficar na base. Era simples, sempre sério, mas simpático”, relembra o ami-
go.
Nas suas cartas, Plínio não revela amores na ilha, mas não deixa de
criticar a moral vigente. “A moral pública não permitia mulher que não
39. 53
Quem não joga, apita. Plínio busca exercer liderança até na hora da prática do
fosse a mulher ou filha de alguém ou empregada. Elas eram vigiadas, ob-
servadas, espreitadas”, relembra, nas cartas endereçadas ao amigo Victor
Moreira.
Outra maneira de se distrair nas horas vagas e matar o tempo era
a prática de esportes. Nos finais de semana, havia jogos de futebol, vo-
leibol ou tênis, na quadra que havia na sede da empresa italiana. Hoje, o
local está parcialmente em ruínas e parcialmente invadido por famílias
de ilhéus. “Como Plínio não jogava bem, funcionava como juiz”, conta Pel-
legrino. Os expedicionários da base aérea, em sua maioria jovens do Sul
como Plínio, formavam um time. O Exército tinha outro. Os funcionários
da Italcable, mais um, a exemplo do time da vila local, formado por nati-
vos e descendentes dos antigos prisioneiros da ilha.A historiadora Marieta
Borges Lins e Silva, responsável pelo resgate histórico de Fernando de No-
ronha, guarda uma foto rara dessa época onde Plínio posa para a posteri-
dade, de short e com uma bola na mão, apitando uma partida de voleibol
entre os colegas de farda, vestindo uma camiseta com as lendárias “asas
de um povo soberano”, a insígnia da FAB. Nessa época, Plínio também pra-
40. 54
ticou equitação na ilha, pois o cavalo era um meio de transporte comum.
Naquele final da década de 40, Plínio ficou trabalhando no posto
de controle aéreo da Aeronáutica. Desde a entrada do Brasil na 2ª Guerra
Mundial (1939-1945), as Forças Armadas tinham montado um destaca-
mento misto, instalado com o objetivo de vigiar todo o Atlântico Sul. O
mundo estava em guerra com os países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália)
e o arquipélago de Fernando de Noronha, como ponto mais a leste do con-
tinente sul-americano, era importante para acompanhar os movimentos
da máquina de guerra alemã. A rigor, até quando o Governo Vargas (1930-
1945) manteve uma posição neutra, o destacamento de Fernando de No-
ronha servia apenas para observação. Quando a pressão norte-americana
obrigou Vargas a negociar a cessão das bases de Natal e do Recife, os ame-
ricanos chegaram a montar uma base aérea em Fernando de Noronha, um
apoio que foi essencial para a vitória aliada no norte da África. Um pouco
antes da decisão de Getúlio Vargas, o serviço secreto alemão informara ao
comando nazista que o Brasil se alinharia aos EUA, Inglaterra e França (os
Aliados), fazendo com que tivesse início uma série de afundamentos de
navios brasileiros não apenas em águas internacionais, mas até mesmo na
costa nordestina, com destaque para Sergipe e Bahia. No Recife, em agosto
de 1942, famílias de italianos, alemães e japoneses foram agredidas como
revide a tais afundamentos. Cinco navios tinham sido afundados, com mais
de 300 mortes.
No tempo da guerra, em Noronhas os americanos construíram di-
versos galpões e fizeram uma nova pista de pouso, no local da que era
operada antes pelos franceses da Air France. Quando o conflito acabou,
deixaram tudo. Não levaram nada.
Plínio começou a servir em Noronha quando os tempos já estavam
calmos, no final da década de 40. Anos antes, entre 1942 e 1943, a convite
do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, um jovem advogado,
chamado Eraldo Gueiros Leite, servira junto ao conselho de Justiça Militar
do mesmo destacamento, depois de ter sido nomeado, em 1941, substi-
tuto de promotor de auditoria da 7ª Região Militar, com sede no Recife.
Naquela oportunidade, os destinos dos dois não chegaram a se cruzar.
Mais tarde, Eraldo Gueiros, já eleito governador do Estado, teria um papel
importante na vida de Plínio.
Mesmo depois do fim do conflito, o assunto 2ª Guerra Mundial ainda
galvanizava os debates. Pellegrino conta que Plínio se interessava em des-
cobrir as diferenças entre o nazismo e o fascismo, este último nascido em
1922, com a chegada ao poder, na Itália, de Benito Mussolini. “Eu só via be-
nefícios no fascismo. Como os benefícios sociais criados com a Previdência,
que Vargas copiou, em 1930, depois de mandar uma comissão à Itália”, cita
Pellegrino. Além de política, Plínio demonstrava interesse por todo tipo de
arte. “Na verdade, ele gostava mais de falar sobre cultura. Perguntava como
41. 55
era a vida na Itália, enquanto me oferecia chimarrão, que eu experimentei
e não gostei. Plínio gostava muito de ler, especialmente sobre a história
das civilizações, a história dos egípcios, coisas assim”.
Na ilha, o que o náufrago gaúcho não sabia é que aquele banco de
areia perdido nos mares da eternidade lhe reservava mais do que descan-
so eterno. “As coisas aconteceram mais por conseqüência”, narraria, anos
depois. A mais de 300 quilômetros do continente (a capital mais próxima,
Natal, fica a 350 quilômetros de distância), na ilha o dinheiro tinha valor
relativo e, às vezes, não tinha valor algum. Só havia produtos ou objetos
essenciais à venda. Às vezes, estes acabavam. O desabastecimento ocorria
por atrasos nos navios ou aviões. Até gêneros básicos de alimentação fal-
tavam. Foi justamente por falta de certas coisas que começou a dar vazão
ao seu espírito empreendedor.
Plínio relatava que, como de vez em quando faltava comida e não
havia onde comprar, ele preparou um pedaço de terra e fez uma pequena
horta para ter verduras frescas. “Meio dia de pescaria no mar dava peixe
para uma pessoa comer toda uma semana e ainda sobrava um tanto que
era vendido a um frigorífico do governo. No início tudo bem, mas depois
complicou”, contou Plínio.
Naqueles anos, Plínio era muito influenciado pelas leituras dos
escritores que o fascinavam. Citava-os com freqüência e comparava sua
própria disposição a escritores e personagens. Citava o filósofo Henry
David Thoreau, mais ligado ao trabalho, à terra, à vida prática, e Mellors,
o personagem de D.H. Lawrence que criava faisões para a nobreza mas
não queria saber de dinheiro. Citava ainda Huxley e seu personagem Mr.
Propter.
Plínio tentava colocar em prática os ensinamentos do filósofo e es-
critor americano Thoreau, cuja obra inspirou diversos movimentos sociais
e políticos do século 20 e, mais tarde, foi uma referência essencial para
movimento ecológico, a partir dos anos 50, e para a contracultura das
décadas de 60 e 70 do século passado. Ao contrário do tipo de vida domi-
nante no seu país de origem nos dias de hoje, a obra de Thoreau pregava
a simplicidade, o respeito à natureza, o pacifismo, o desapego aos bens
materiais e a liberdade em relação ao Estado, entre outros valores.
O escritor ficou famoso quando, em 1845, recém-formado pela já
prestigiosa e exclusiva Universidade de Harvard, construiu uma cabana
– ao custo de US$ 28 – às margens do lago Walden, nas proximidades da
cidade de Concord, no Estado de Massachusetts, Costa Leste dos Estados
Unidos.
Nesse lugar, Thoreau viveu por dois anos, do seu esforço e das opor-
tunidades que a natureza lhe oferecia para manter-se. Naquele tempo, ele
escreveu um diário, base do livro chamado justamente Walden, modes-
tamente publicado em 1854. A primeira edição, de cinco mil exemplares,
42. 56
levou cinco anos para se esgotar. Com o tempo, entretanto, o livro tornou-
-se um best-seller, com mais de 200 edições e traduções para 25 línguas,
além do inglês. Em agosto de 2004, comemorou-se nos Estados Unidos o
sesquicentenário da primeira edição de Walden.
Antes de Walden, Thoreau já havia escrito e publicado A desobe-
diência civil, livro que influenciou decisivamente a resistência pacífica de
Gandhi, Luther King e outros. Também teria servido de inspiração para a
resistência dinamarquesa na 2ª Guerra Mundial, a luta contra o Apartheid
na África do Sul e o combate à Guerra do Vietnã, nos anos 60 e 70.
Já Mellors (personagem central de O Amante de Lady Chatterlay),
era um severo crítico da sociedade materialista. O terceiro citado, Aldous
Huxley, é autor de clássicos da literatura que expressam desilusão, cinismo
e questionamentos. Mr. Propter é um dos personagens de Também o Cisne
Morre, um exame do narcisismo e da superficialidade da cultura americana
e sua obsessão pela juventude.
“No início tudo bem. Em Fernando de Noronha, eu estava numa de
Thoreau na vida prática (trabalhando a terra) e numa de Mellors na vida-
-vida (criando faisão). Comecei a me perder quando deixei-me envolver
por Mr. Propter (ajudando demais os outros). Não que a filosofia dele não
fosse certa. É que tinha vários ângulos e eu que me impus já há algum
tempo uma porra de humanismo, enveredei por esse caminho”, compara,
em carta escrita em 1979.
Como um Thoreau da Esmeralda do Atlântico, Plínio conta que co-
meçou a plantar e criar aquilo que era essencial à sua subsistência, mas foi
surpreendido pela produtividade da terra. “Aconteceu o que a minha inex-
periência não podia prever. Como lá em Noronha toda a ilha é uma reserva
de guano (fosfato de cálcio que é resultado do excremento de aves, o que
dá uma cor esbranquiçada às rochas cobertas pelo material), a terra da ilha
é de uma fertilidade incrível”, relata, em suas cartas.
O jovem Plínio explicou aos amigos que não podia abandonar a ter-
ra porque sempre foi muito ligado a ela e essa ligação dava-lhe uma paz
que dificilmente conseguia em outras atividades. O outro motivo alegado
para trabalhar com a terra era bastante inusitado. “O trabalho de duas a
três horas por dia, parte da manhã e à tarde, era também uma necessidade
física. Isso me ajudava parcialmente na solução do problema sexo”, reve-
lava, sem nenhum constrangimento, a respeito do período de aparente
privação.
Havia pelo menos duas alternativas para contornar o excesso de pro-
dução da terra, mas Plínio não queria optar por nenhuma delas. A primeira
era jogar fora o excesso, o que ele achava um absurdo. Dar às pessoas ele
também não queria. “Dar, no fim, faz mais mal do que bem a essas pessoas.
Abandoná-las eu também não devia nem podia”, resumiu.
A solução encontrada foi a criação de porcos, para consumir o exces-
43. 57
so de produção de verduras. Como os porcos não vivem apenas de uma
dieta vegetariana, Plínio fez um acordo com o encarregado da alimen-
tação do pessoal da Aeronáutica. Ele forneceria a verdura necessária ao
pessoal. Em troca, as sobras de comida eram usadas para a alimentação
dos porcos. Acontece que os porcos cresceram, procriaram e, com isso,
surgiram dois novos problemas: vender os porcos crescidos e ampliar a
horta para alimentar as novas crias.
Mais ou menos nessa época, premido pelas circunstâncias, o es-
pírito empreendedor de Plínio começava a se revelar. “Não havia outra
solução. Era botar um trabalhador para ajudar na ampliação da horta e
também tomar conta dos porcos, cada vez nascendo mais”, relembrou
tempos depois.
Com um ano, Plínio tinha dois trabalhadores e tanto porco que a
horta, mesmo ampliada, e com as sobras de comida, não dava para ali-
mentar tudo. Não havia, de novo, outra solução, senão ampliar a produ-
ção. Plínio conseguiu consertar um trator que estava jogado numa das
oficinas. Descobriu ainda uma sucata de guerra, uma grade de discos de
arar terra. Depois, escolheu uma área de três hectares, preparou a terra e
quando as chuvas chegaram colocou gente para semear milho, para ali-
mentar os porcos.
Plínio sabia que plantações como a de milho requerem uma cul-
tura paralela que agregue nitrogênio à terra (em geral o feijão ou a fava).
Acontece que feijão não dava na ilha. Como a terra é muito forte, as folhas
crescem até quase o tamanho de uma folha de jerimum e o feijão não
aparece. A solução foi mandar plantar uma parte de fava e o restante de
algodão. Com o tratorzinho consertado, Plínio mandou fazer uma capina-
deira para que o trabalho de preparação do terreno fosse mecanizado. A
máquina faz a maior parte do trabalho, mas sempre é preciso ajuda manu-
al, para limpar perto dos pés das plantas, exigindo mais gente para isso. E
depois vem a colheita do milho, da fava, do algodão, e mais gente. E para
a debulha do milho e da fava mais gente era necessária.
A alta produção, sonho de qualquer agricultor interessado em lu-
cros, inquietava o incipiente produtor. “O pior é que a terra amiga cada vez
mais foi se tornando inimiga. A produção de milho foi mais que o dobro
necessário à alimentação dos porcos que existiam ou iriam nascer por um
ano”, explicou, constatando que não havia consumo local para tanta fava e
que o algodão era cultura de exportação. O excesso de carne de porco era
vendido na própria ilha, a verdura também já excedendo, o excesso já era
mandado uma parte de avião toda semana para um hospital de Natal.
Com pouco, não sem se aperceber, Plínio estava se transformando
em um próspero comerciante. “Agora as coisas estavam se complicando
ainda mais. A saída foi mandar um trabalhador a Campina Grande, na Pa-
raíba, negociar algodão, milho e fava. E trazer sacos, ensacar, e transportar
44. 58
para o navio no fim do mês até o porto de Recife, e desembarcar no porto,
e carregar em caminhões até Campina Grande. E entregar, e receber o che-
que e descontar o cheque”.
Era como se a loucura de São Paulo estivesse de volta.
Com tantos afazeres, Plínio logo percebeu que ia naufragar naquele
mar de excessos. “O meu ideal, a terra, o espaço, eu soçobrara. Era impor-
tante me livrar daquilo tudo, reencontrar-me novamente, descomplicando
tudo, parando, acabando com tudo. E foi o que fiz. Vendi o que podia ser
vendido. Dei o que não podia e me libertei de tudo”, relembra. “E fui ver o
mar, andar no mar, nadar no mar, navegar no mar. Contemplar a terra, ob-
servar o espaço, estudar o céu e a terra. E ler, escrever, ouvir música. Eu, eu,
a paz”, resume.
Desse tempo, em suas cartas, sobre a beleza selvagem e solitária da
ilha, Plínio cita os rochedos da Baía do Sueste, as alvas areias das praias do
Sancho, batidas por azulados verdes mares de estúpida violência. Em um
clima poético, cita também o céu e suas plácidas noites estreladas, de lu-
ares de luas mortas. Nas reminiscências das histórias do mar, Plínio revela,
tempos mais tarde, que sofreu ali um choque, com a descoberta de um es-
tranho povo que vivia e contava fantásticas histórias. Mas gente significava
problemas para Plínio. Os únicos habitantes que lhe interessavam eram as
gaivotas, os caranguejos. “Tudo correu às mil maravilhas até enquanto era
eu para cá e o meu humanismo para lá”, anotou.
Ocorre que um dia chegou um trabalhador na casa de Plínio e come-
çou a contar a vida dele. “Era ele, a mulher, não sei quantos filhos, o leite,
a comida, roupa, remédio, tudo burro sem escola, a metade doente, tudo
fraco, só ele trabalhando para sustentar a todos”. Nessa época, também
não adiantava os que pudessem ou quisessem trabalhar, pois não havia
trabalho. O que se ganhava como salário-mínimo do governo não dava
para conseguir um terço do que necessitavam.
- Pois é, e a solução?, perguntou-lhe Plínio.
- Não sei, não tem, respondeu o homem.
- Tem solução, a terra, disse-lhe Plínio.
Muitos anos mais tarde, Plínio contou que se arrependeu de voltar
ao assunto. “Quando disse àquele homem que a terra era a solução, dia-
bolicamente Mr. Propter entrou em mim. Só fui perceber muito tempo
depois”, relembra.
Na época, a receita chegou a ser dada de forma pormenorizada.
“Você pega uma foice, bota abaixo a vegetação alta, depois retraça a terra
toda com trator e grade de disco, planta milho, fava, algodão, jerimum,
vende o algodão, tira uma parte dos outros produtos para consumir e
outra parte vende. E na terra, trabalha homem, mulher e menino. Além
disso, você pode fazer uma hortinha no quintal da casa e ter verdura, que
é capaz de não consumir tudo, então manda um menino vender o que não
45. 59
conseguir, que já ajuda. E tendo verdura, milho, jerimum, também dá para
criar uma meia dúzia de galinhas, e tem o ovo e a galinha para comer ou
vender. Dá também para engordar um porquinho. No fim do ano, você
tem seis vezes mais do que ganha do governo e juntando um com o outro
salário dá para mudar essa vida um pouco”, recomendou Plínio.
O trabalhador concordou com a criação da horta e da lavoura, mas
achou difícil tocar aquela empreitada sem o trator para preparar a terra,
sem a capinadeira para limpar. “Acho que não dá. E também não entendo
dessas coisas de verdura, não tendo as sementes nem as mudas. E depois
eu não sei como vender lá fora o algodão, o milho e as outras coisas. Eu
acho que resolvia, que mudava, mas não sei, parece muito complicado. É,
é muito complicado”, concordou Plínio.
Naquele dia, ao fim do diálogo com o homem simples, Plínio ficou
muito sensibilizado. “O trabalhador foi embora deixando aquela miséria
de vida dentro de mim. Alguns dias depois chegou outro, a família, o sa-
lário, a solução. E vai e eu fico com mais esta parte de mais outro. E vem
mais um outro e vai e mais outro, cada um voltando com sua parte inteira,
mas todos deixando dentro de mim todas aquelas partes”, relembra.
Como era um homem sensível, Plínio não podia ficar omisso diante
daquela realidade. Ele achava que não dava para ficar somente com pala-
vras do tipo “pois é, é muito complicado” como resposta. Naquela ocasião,
com a pessoa que era, Plínio não tinha estrutura psicológica para conti-
nuar ou permanecer imóvel, mesmo sabendo que tinha que abrir mão da
tão sonhada paz. “A solução estava muito mais nas minhas mãos, desde
que eu me dispusesse a, mais uma vez, renunciar ao meu mundo, à minha
paz, retornando à terra, sementes, máquinas, produção, produzir, produ-
zir. Eu era a solução para aquilo tudo, reduzir aquela miséria, melhorar um
pouco a vida das pessoas e talvez abrir novos horizontes”.
Anos mais tarde, incentivando o amigo Victor Moreira a seguir em
frente com a carreira de pintor, Plínio explicou em detalhes essa filosofia
de vida, relatando a importância de doar-se, repartir o conhecimento. Para
ele, fazer algo que fique é a mesma coisa que busca um sentido para a
vida.
“Não é o que fazemos que importa, mas sim as perspectivas que
estamos abrindo a alguém sempre que fazemos alguma coisa. Não é o
que fazemos a nós próprios que nos dá sentido na vida, mas sim o sen-
tido que podemos dar à vida dos outros. No fim, só conseguiremos esse
sentido quando encontrarmos um sentido para a nossa vida. A vida é algo
mais do que nascer e morrer, mais do que uma simples luta pela sobrevi-
vência, pois que os animais também nascem, lutam e morrem. Enquanto
não estivermos fazendo algo que fique, não estaremos fazendo mais do
que viver. No momento, porém, que encontrarmos uma idéia e tivermos
coragem de a fazer andar, teremos encontrado um sentido na vida e es-
46. 60
taremos dando a outros esse sentido”, escreveu. “Em resumo, não é o que
sabemos que importa, mas o que podemos dar aos outros deste saber. De
tudo, uma descoberta foi a mais importante. Não adianta descobrir e saber
tudo, sobre qualquer forma de conhecimento e saber, se o fazemos só pelo
fato de conhecer e saber. Você poderá obter as duas coisas no momento
em que decidir transmitir aos outros o que descobriu e sabe”.
Plínio, assim, acabou aceitando o desafio de ajudar às pessoas sim-
ples do lugar. No caso, apenas impôs a condição de não ser dono de nada,
não usufruir de nada. Assim, os gostos, os desgostos, o trabalho, a eventual
gratidão ou quase certa ingratidão, durante todo o processo, não deveriam
entrar em jogo, embora de qualquer forma fizessem parte do jogo. “Se, no
fim, para mim, fosse valido, tudo bem. Se não fosse, estava feito e não ha-
via mais o que fazer. Acho que foi nessa ocasião que aprendi a conjugar o
verbo resignar-se”, escreveu, tempos depois.
Plínio pediu a um dos trabalhadores que chamasse todos os outros
para conversar e ver o que podia ser feito. Eles acertaram que cada um
escolheria um pedaço de terra e botaria abaixo a vegetação alta. Plínio
pegaria o trator e entregaria a terra arada, mandaria comprar as sementes
para as lavouras e os trabalhadores preparariam os canteiros nos quintais
para as hortas. Plínio entregaria ainda o adubo e levaria as mudas, além de
ensinar como plantar e cuidar a terra. E ainda se comprometeu a ajudar na
orientação da agricultura e providências para a exportação do que fosse
necessário.
No entanto, tudo isso estava condicionado a uma série de exigên-
cias. Os trabalhadores deveriam pintar suas casas com cal branca e manter
tudo lavado e limpo, incluindo as crianças. Os pequenos também deviam
ser colocados na escola. Plínio comprometeu-se a dar um jeito junto ao
governo local. Plínio não queria ver florescer apenas a terra. O objetivo era
plantar sementes para uma vida melhor. “Consegui escola e as crianças
começaram a estudar”, comemorou, na época.
Conforme o acordo, as áreas foram sendo desbastadas da vegetação
alta e Plínio passou o trator e aprontou a terra. Os trabalhadores, enquan-
to esperavam as chuvas, começaram a preparar as hortas. As casas foram
pintadas. Quando as chuvas chegaram, o plantio foi feito e veio a colheita,
separando-se o que devia ser exportado. Como o transporte de navio era
muito complicado, o próprio Plínio convenceu o pessoal da FAB a ceder
alguns aviões para transportar parte da produção diretamente para Cam-
pina Grande. Dois dos trabalhadores foram escalados para acompanhar
a descarga e recarga no aeroporto para a cidade, realizando a venda e o
recebimento do dinheiro. Com tudo concluído, o dinheiro da produção de
cada um foi entregue ao seu dono.
Plínio sabia que ninguém sai da miséria com um ano, mesmo que
seja bom de trabalho, mas se dava por satisfeito pois, de qualquer forma,
47. 61
todos tinham o que comer, do que tinham produzido, e havia algum di-
nheiro para comprar o que não produziam. Como a colheita foi boa, deu
para comprar alguma roupa e até mesmo algum móvel. Na avaliação que
fez, Plínio anotou que, se o resultado econômico era importante, mais im-
portante era que as crianças estavam andando limpas, na escola. As casas
eram pintadas agora já por hábito. As mulheres e os homens já sabiam
que precisavam manter as hortas. Alguns já tinham até plantado algumas
flores na frente das casas. O lixo não era mais jogado nos quintais, mas
coletado em tambores e incinerado. “Houve mudanças”, exultou Plínio,
com grande satisfação.
No segundo ano, os trabalhadores tiveram receio de que não hou-
vesse continuidade, mas tudo acabou sendo mais fácil, principalmente
para Plínio, que não precisou mais orientar ninguém. O seu trabalho era
apenas entregar a terra arada, providenciar as sementes, passar o trator-
zinho com a capinadeira e conseguir o transporte após a colheita. “Tudo
bem plantado, colhido, vendido o que tinha de ser vendido, a vida deles
teve uma mudança ainda maior após o segundo ano. As pessoas botaram
dentro de casa mais alguma coisa, como roupa, louça, panela”, contabili-
zou.
No terceiro ano, ninguém perguntou mais nada a Plínio nem ele
teve tempo de responder. Nada havia a perguntar e muito menos a
responder. Na verdade, para Plínio não houve nem terceiro ano em seu
calendário agrícola. Um certo dia chegou um telegrama perguntando
candidamente onde ele desejava servir. Em bom português, para onde
gostaria de ser transferido. “Alguém, fora ou dentro da ilha eu não sei, mas
no alto, decidiu que havia alguma coisa errada acontecendo”, relembra o
suboficial da Aeronáutica. “Com isso, morreu dentro de mim não apenas
Thoreau, mas também Mr. Propter, Mellors. O que havia dentro de mim
não morreu, mas com ele também se perdeu. E muito pior, pois se perdeu
mais de uma vez”, confidenciou mais tarde.
Cinco anos depois de chegar em Fernando de Noronha, apesar
dos dissabores, Plínio saiu da ilha com um balanço positivo. “É claro que
não saí de lá santo nem sábio, mas saí um pouco homem. Conseguira me
reencontrar. Descobrira que se pode ser feliz com pouco, quase nada e
que não se deixa de ser infeliz por ter muito. E que um homem só está
só quando ele é um burro. Valeu a pena a experiência. Valeu? Não valeu?
Na hora em que resolvo ressuscitar só a parte boa dos mortos, valeu. Aí a
gente começa a relembrar tudo, a pensar e a concluir... Falando sincera-
mente. Qual é a importância?”, questiona-se Plínio, mais tarde, referindo-
-se ao que chamou poeticamente de fantasmas nas espumas das águas.
Em frente ao mar de Fernando de Noronha, Plínio aprendeu que a
felicidade é como a linha do horizonte, quanto mais a gente se aproxima
dela, mas ela se distancia. Descobriu também, com os nativos, que não é
48. 62
fácil fundear ali. O fundo encontrado a 40 metros do rochedo pode ir facil-
mente de dez a mais de mil metros de profundidade. Naquela hora, mais
do que nunca, era preciso alguma âncora, alguma segurança. “Fiz minha
mala e fui para o Recife”, comentou secamente, após ter recebido o telegra-
ma cheio de candura dos superiores da FAB.
49. 63
Capítulo V
O Moisés do Agreste
A história do patriarca Epaminondas Mendonça
A PAIXÃO DE PLÍNIO
51. 65
A história do patriarca Epaminondas Mendonça
No tempo em que Plínio contava apenas 29 anos e mal acabara de
desembarcar de seu exílio em Fernando de Noronha, por volta de 1955,
a vila de Fazenda Nova, com muito sacrifício, já começara a despontar
no calendário turístico do Estado, embora ainda houvesse um longo
caminho a percorrer. Cerca de 5 mil pessoas já se deslocavam para assis-
tir ao Drama da Paixão, encenado nas ruas de Fazenda Nova, enfrentan-
do as duras condições de acesso do lugar, pois apenas uma estrada de
terra separava, mas do que ligava, os 40 quilômetros entre Caruaru e a
pequena vila. A vida, boa dramaturga para alguns e nem tanto para ou-
tros, entretanto, já cuidava para que o caminho fosse aplainado, antes
mesmo de o governador Agamenon Magalhães fazer a primeira estra-
da até a cidade, nos idos de 1940. O espírito desbravador do patriarca
Epaminondas Mendonça, funcionando como uma espécie de profeta,
já apontara os caminhos para o povo daquele lugar, antes que qualquer
cidade de pedra tivesse sido prometida ou cogitada, sequer em sonho.
Antes das encenações teatrais de cunho religioso, a cidade era conheci-
da apenas por suas fontes termais, descobertas em 1824.
Com mais de 200 anos de história, Brejo da Madre de Deus (de
que Fazenda Nova é hoje distrito) é um dos municípios mais antigos do
Estado e já foi terra de escravos. Nos primórdios do lugar, a religião sem-
pre desempenhou uma influência muito forte. Consta que a comarca
de Brejo, nascida de uma localidade então conhecida como Tabocas, foi
fundada em 1833 pelos frades recoletos da Congregação de São Felipe
de Nery. Em 1859, quando Dom Pedro II esteve no Recife, um intelectual
da cidade, Francisco Alves Cavalcanti Camboim, falou com o imperador
em francês e deixou o monarca tão impressionado que obteve dele o
título de Barão de Buíque, em 1871. O idioma foi aprendido com o frei