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Capítulo I



um enigma abala o cedro



Nina caminhava em ritmo de passeio pela rodagem que ia de Campo Alegre em direção
ao Cedro, no sol ainda quente no meio daquela tarde de janeiro.

Estava preparada para promover, logo mais à noite, a maior confusão, o mais completo
bafafá, um escândalo nunca antes visto na história deste país. Tanto que, ninguém
duvidasse, iria repercutir até no exterior.

Descera do trem, vindo do Recife. Podia ter escolhido se deslocar até a vila de carro, de
charrete, até a cavalo, mas preferiu andar mesmo a pé. Não quis conversa com ninguém,
muito menos prestou atenção nas muitas rodas que se formavam no pátio da estação, as
pessoas falando baixo, quase cochichando.

A caminhada lhe faria bem. Duas léguas, se tanto, poucas horas de uma andança que
ajudaria a arejar o juízo, espairecer com a paisagem de verão, além de contribuir para
manter suas pernas roliças, a bunda alta, os peitos empinados.

Não era mais nenhuma mocinha, todavia sabia manter seus encantos, caprichava nos
pontos fortes.

Estava ansiosa como nunca, o coração batendo tão acelerado que parecia querer sair pela
boca. Exatamente por conta dessa excitação, precisava se acalmar e organizar as ideias
da melhor maneira, repensar cada detalhe do plano que traçara para o momento da sua
vitória definitiva. Os últimos dias tinham sido muito agitados e emocionantes. E,
precisamente naquela noite, ela não poderia errar em qualquer detalhe.

Assim como são as pessoas, são as criaturas. Desde menina, mantinha o mesmo estilo:
fogo no rabo, espada na língua. E o mesmo objetivo: casar virgem. Para conseguir esse
feito se empenhava com a determinação de quem enfrenta diariamente uma guerra de
vida ou morte. Era ardente, endiabrada, virou a cabeça de muitos homens, preservando o
precioso título de moça donzela. Se vivia em estado de quase permanente excitação, o
problema era exclusivamente dela. Quando eventualmente passou das medidas e fez
gente tremelicar no compasso da vida, paciência, não era da conta de seu ninguém.
Gostava da brincadeira, era especialista em proporcionar prazer, mas sabia impor seus
limites.

Mostrava-se capaz de relevar qualquer insulto, menos os que punham em dúvida sua
virgindade. Precisava defender a honra de donzela com unhas e dentes todo santo dia,
desde que o fogueteiro Ambrósio vivia esculhambando com ela em todo lugar e, o que é
pior, estimulando e até pagando gente sem eira nem beira para fazer o mesmo. Assim, era
obrigada a renovar sempre seu compromisso de subir ao altar virgem, embora quase todo
mundo achasse que isso era impossível, não passava de uma promessa furada.

Por sua vez, sabia como ninguém promover uma algazarra.

Falava pelos cotovelos, sempre alto e bom som. Diziam que, quando criança, tinha bebido
água de chocalho. Sentia apurado prazer em dar notícias, principalmente as ruins.
Quando não dispunha de informação nova, inventava. Utilizava uma técnica aprimorada
para espalhar boatos. Contava ter ouvido dizer que fulano passava por dificuldades
financeiras ou que beltrano estava levando chifre da mulher, ela mesma não sabia, estava
vendendo pelo preço da compra. Assim, sem se comprometer, disseminava todo tipo de
intrigas.

Uma das suas maiores satisfações era quando alguém vinha lhe contar um boato criado
por ela. Sentia então um encantamento consigo mesma, um êxtase, como se fora um
grande artista saboreando a aclamação de sua obra prima.

Quando acontecia isso, aí era que caprichava, levando adiante o assunto, agora
enriquecido de novos detalhes e escorado em fonte certa e precisa. Pelo sim, pelo não,
nunca faltava gente querendo ficar bem com ela, até lhe bajulando, coisa que ela muito
apreciava.

A agitação de Nina naquela tarde era mais do que justificada. Dessa vez, não estava
lidando com boatos nem invenções. Conseguira documentos da maior importância.

Na bolsa que trazia atravessada no peito, feito embornal de cangaceiro, carregava provas
definitivas, levantadas através de um complexo trabalho que lembrava a atuação de uma
espiã internacional, uma verdadeira Mata Hari morena.

A divulgação desses documentos iria lascar em bandas o fogueteiro como também causar
grandes estragos na política do estado, além de criar sérios embaraços diplomáticos para
o governo federal. Porém esse lado político da questão não lhe interessava em
absolutamente nada. Podiam até derrubar a ditadura que ela não estava nem aí. Tudo o
que desejava era destruir o filho de uma égua do Ambrósio. Além, naturalmente, de
comprovar que continuava com o hímen na condição em que viera ao mundo. E ponto
final.

Para alcançar este segundo porém não menos importante objetivo, conduzia um valioso
papel que, por capricho, pensava esfregar na cara dos maledicentes do Cedro, de
Limoeiro, de Bom Jardim, do diabo a quatro. Um novo e indiscutível atestado de que seu
cabaço estava preservado.

Teria o prazer de observar os seus inimigos se roendo, por dentro e por fora. Só assim, seu
triunfo seria completo.

Ri melhor quem ri por último, como se diz. O primeiro atestado que conseguira, tempos
atrás, foi contestado, questionado, ridicularizado. Provara, através de laudo médico, que
ainda era virgem, apesar das agarrações, dos sarros atrás dos muros, dos chambregos, dos
namoros complacentes e dos noivados com excesso de intimidade. Levaram na galhofa.
Duvidaram da capacidade do médico, fizeram piadas sobre a visão do Dr. Evaristo, já
desgastada pelos anos.

Aquele doutor é incapaz de distinguir entre uma porca dando de mamar e uma mulher
parindo, vai lá saber o que é uma moça donzela?

Agora, queria ver quem ousaria debochar de uma perícia assinada nada mais nada menos
do que pelo renomado Dr. Tavares, chefe dos legistas do estado e um dos profissionais
mais requisitados do país na sua especialidade. Quase todo dia aparecia nos programas
policiais de rádio, dando a última palavra nas mais intrincadas questões.
Não era qualquer pé-rapado que conseguia um parecer emitido pelo famoso e respeitado
legista. Principalmente tratando-se de um assunto particular, íntimo, sem ser provocado
pela justiça. Exibir um atestado daqueles, com cópias tiradas em cartório da capital, era
também uma demonstração de grande prestígio.

Para dedicar atenção integral a documentos tão valiosos, deixara a bagagem guardada na
própria estação do trem, com as mais novas revistas de variedades, roupas último modelo
de forte influência norte-americana, inclusive duas calças compridas que haveriam de
fazer muito sucesso, os perfumes, os pós de arroz, os vidros de Postafen, remédio que fazia
bunda de mulher crescer.

Deixar tantas novidades para trás era a maior prova da importância do material que
carregava. As maletas ficavam bem guardadas, mandaria apanhar depois, no dia
seguinte, ou até mais para adiante, portador é o que não falta no mundo.

Naquele momento, queria se concentrar totalmente na preciosidade que conseguira e no
planejamento do espetáculo que pretendia proporcionar.

Seu alvo, Ambrósio, era um fenômeno. Um reles fogueteiro, misterioso e desacreditado,
que vivia maltrapilho e imundo, até o dia em que fugira do Cedro, após matar a mulher,
Carminha, e o seu amante, o português Clemente, um rico comerciante, no que fora até
então o crime mais comentado nas redondezas.

Dizem que carrapeta nunca chega a pião. A trajetória de Ambrósio contrariou esse
provérbio popular. Em pleno Estado Novo, reapareceu, bem vestido, endinheirado, e o que
é mais surpreendente, de braços dados com o Dr. Arnaldo e a turma do governo. Logo ele,
que escapara do linchamento e da cadeia graças ao pessoal que agora estava na oposição.

Além de se transformar em importante industrial do segmento de fogos de artifício,
tornara-se uma figura marcante no mundo econômico e político do país. Mantinha
relações pessoais com altas figuras do regime, fazia negócios de grande porte com o
governo, dizia-se que era protegido diretamente pelo próprio ditador. Exportava seus
produtos para o Brasil inteiro.

Toda girândola que anunciava a presença de governadores, ministros ou do presidente da
República, os espetáculos pirotécnicos mais importantes e pagos pelos cofres públicos,
inclusive o da comemoração do ano-novo, no Rio de Janeiro, vinham de suas fábricas,
instaladas no Cedro e na capital do país.

Nina sofreu o diabo na mão do fogueteiro depois que este voltara, rico e poderoso,
esquecido de muita coisa, porém sem perdoar nada. Pagou pelo que fez e o que não fez
desde que o desalmado botou na cabeça que ela alcovitara a sem-vergonhice entre sua
mulher e o português. Interpretação totalmente equivocada. Servira de mensageira entre
os pombinhos, é verdade, porém com o objetivo de ganhar tempo, encontrar uma saída,
evitar uma desmoralização antecipada de Ambrósio e também, é justo admitir, para se
manter bem informada. Se não fosse ela, a intermediação seria feita por outra pessoa, o
resultado poderia ter sido até pior.

Não teve interferência no rumo trágico dos acontecimentos. Que poderes dispunha para
levar bom senso a uma paixão desvairada? Como poderia transmitir equilíbrio a um
marido transtornado pela traição da esposa? Ambrósio matou a mulher e o amante porque
bem quis, ela sequer estava no local e, se estivesse, não poderia ter feito nada para evitar.
De acordo com sua própria avaliação, até tinha se comportado muito discretamente no
episódio. Os detalhes exclusivos que sabia, só comentou depois do fatídico desfecho.
Afinal, não era baú para ficar guardando segredo dos outros. Porém se esforçou para
limpar o conceito de Ambrósio, dizendo em todo canto que esse negócio de levar ponta é
besteira, todo mundo está sujeito, só se arrisca quem vai à luta, chifre é ornamento de
guerreiro.

Em vez de se mostrar reconhecido, o fogueteiro jogou sobre os seus ombros a culpa pela
traição da mulher. Ainda bem que ela não foi a única vítima desse ódio injustificável. O
coisa ruim agiu com o mesmo espírito de ingratidão relativamente a Mariano Protestante,
que acobertou sua fuga com risco da própria vida. Sem falar na covardia perpetrada
contra o coronel Nemézio, que na época estava de cima, lhe deu proteção e usou sua
influência para limpar o nome do assassino com a justiça.

O promotor acatou a tese de violenta emoção para justificar o duplo assassinato passional
e o fogueteiro ficou livre, sem um padre-nosso de penitência. O coronel fez mais ainda.
Financiou a viagem do corno para o Rio de Janeiro, onde recomeçaria a vida e de onde
voltaria coberto de soberba, contaminado pelo vírus da traição e sedento de vingança.

Desde que começara o Estado Novo, Nemézio Protágoras, de Limoeiro, coronel da Guarda
Nacional, com muito orgulho, perdeu força com o governo. Jamais Nina captou bem esse
imbróglio, tinha certa dificuldade para entender as misteriosas engrenagens que movem a
política. Valdemir, o professor comunista que ela jurava ser seu último e definitivo amor,
argumentava que eram contradições no interior da decadente classe dominante. Mas
convenhamos, uma conversa dessas explica mas não justifica, como o povo gosta de
dizer.

O certo mesmo é que naqueles tempos de ditadura quem casava e batizava era o Dr.
Arnaldo, de Bom Jardim, arquirrival do coronel. Sua primeira providência foi transformar o
Cedro, vila que até então era pertencente a Limoeiro, em distrito de Bom Jardim. Decisão
vinda de cima, dos altos escalões do poder, porém sem pé nem cabeça, olhando-se pelo
lado social, cultural e até geográfico. Iniciativa estapafúrdia que só se justificava pela
queda de braços travada entre os políticos. O certo é que ficou assim. E ninguém
desmancha um fato histórico, não adianta chiadeira, a realidade é mais forte do que fogo
ladeira acima ou água ladeira abaixo.

A perda da vila doía no coração do coronel Nemézio, abalava a autoestima dos
limoeirenses. Era a prova do completo desprestígio, para quem tivesse qualquer fiapo de
dúvida. O Cedro situa-se praticamente nas portas de Limoeiro. O Dr. Arnaldo fazia
questão de estimular o desenvolvimento do local para provocar e enfraquecer o adversário
a bem dizer no seu terreiro.

O progresso era incentivado pelas hostes do poder estadual e financiado pelo crédito fácil
do Banco do Brasil. Assim, rapidamente o Cedro transformou-se em importante polo
industrial e comercial. Ganhava terreno a cada dia em relação a todas as localidades
importantes da região, com novos empreendimentos, a começar pela fábrica de fogos do
próprio Ambrósio.

Também se destacavam no novo quadro econômico o motor de descaroçar algodão, as
olarias, as movelarias, organizações capazes de despertar admiração em qualquer cidade
de porte. Sem contar inúmeros artesanatos menores, contudo afamados e respeitados até
na capital, como o fabrico de redes e os maravilhosos trabalhos saídos das mãos mágicas
das rendeiras. E para reforçar essa tendência favorável, lojas de grande conceito se
instalavam no lugar.

A despeito de todo esse surto de crescimento, ninguém falava mais em emancipação
política, o grande sonho acalentado na década anterior. A palavra tornara-se proibida,
subversiva, além de inútil, pois o governo ditatorial acabara com os partidos, as eleições,
as câmaras de vereadores.

O desejo dos moradores do Cedro, agora, era virar sede do município, projeto
matreiramente acalentado pelo grupo político de Dr. Arnaldo.

Arnaldinho, filho e provável sucessor do líder bonjardinense, era o prefeito nomeado do
município. Pelo menos uma vez por mês, vinha despachar na sede da subprefeitura do
Cedro, reformada e ampliada. Passava dias, trazia secretários, tomava decisões, a vaidade
dos cedrenses nas alturas.

Nesse contexto, a inocente festa de São Sebastião transformou-se em instrumento de
feroz disputa. O santo também era padroeiro de Limoeiro, anualmente homenageado com
uma festa de arromba. A decisão do grupo político de Dr. Arnaldo era fazer no Cedro um
evento para competir pelo menos de igual para igual, de preferência para ganhar, se
possível dando um banho na cidade rival. Na realidade era isso o que acontecia
ultimamente graças, em primeiro lugar, à participação de Ambrósio.

A cada ano a festa de Limoeiro se esvaziava, as firmas comerciais reduzindo o patrocínio
com medo dos agentes fiscais, implacáveis com as empresas que desagradavam ao
governo. Já a comemoração do Cedro ganhava fôlego. Uma semana inteira de atos
religiosos e festanças profanas. O monsenhor Gomes escolhia, entre as pessoas mais ricas
e influentes, um patrocinador para cada noite, chamado de noiteiro ou festeiro.

Cada um desses festeiros procurava caprichar na decoração da igreja, na arrecadação de
prendas para o bingo, na contratação de bandas de música, na pirotecnia. Essa disputa, a
dos fogos mais belos, tinha um vencedor por antecipação: Ambrósio.

Sua noite transformara-se na maior atração dentre as festas religiosas do interior de
Pernambuco, do Nordeste, quiçá do Brasil. Atraía gente de todo lugar, inclusive altas
autoridades convidadas pelo Dr. Arnaldo, personagens graúdas do regime, como o prefeito
nomeado da capital e o interventor do estado. Até o chefe de gabinete do ditador
apareceu certa noite, cercado de seguranças por todos os lados, nunca o Cedro vira tanto
agente secreto. E era forçoso reconhecer, todos se deslumbravam, os fogos de artifício de
Ambrósio faziam jus ao nome comercial que ostentavam: Sublime.

Era então que o fogueteiro se transformava em rei. Ou mesmo um deus. Sua vaidade se
satisfazia plenamente, levando-o a esquecer as dificuldades e desmoralizações do
passado. Recebia tantos cumprimentos das autoridades, delegados de polícia, juízes de
direito, gerentes de bancos, coletores de impostos, senhores de engenho, industriais,
comerciantes, visitantes ilustres que chegavam em automóveis importados, vários deles
último modelo, apesar das dificuldades provocadas pela Grande Guerra, que sequer virava
a cabeça para ouvir os elogios dos Zé Ninguém. E especialmente nesta noite, além das
mais altas autoridades do estado e representantes do governo federal, estava também
sendo aguardado o cônsul norte-americano em pessoa.

Era essa apoteose que Nina pretendia estragar. No domingo anterior, na hora em que a
feira semanal estava mais movimentada, atravessara a rua principal, no meio das bancas
de miudezas e sapatos, passou pela feira de frutas, pela área dos vendedores de carne, foi
até o loré, onde se vendia tecido de todos os tipos, anunciando aos gritos que tinha uma
comunicação importante a fazer, que daquela vez ia acabar com Ambrósio para sempre.

Todo mundo conhecia a fuxiqueira, seus destemperos, mentiras, exageros, sua língua de
trapo. Porém o ser humano é um animal curioso por natureza. Bastava sua voz se fazer
ouvir, as pessoas iam logo colocando as cabeças na janela, saindo para a calçada, se
amontoando em torno dela, para não ficarem por fora do assunto.

Foi assim que um expressivo aglomerado se formou. Feirantes, almocreves, moradores
dos engenhos e das fazendas, além do povo da rua, todos se acotovelavam no pé da
calçada alta da igreja. Parecia um comício. Nina, apocalíptica, cabelos despenteados,
vermelha pelo esforço e pela quentura do sol, o vestido escandalosamente justo realçando
suas formas impecáveis, gritou a plenos pulmões que antes da semana findar Ambrósio ia
ter o que merecia. Vocês vão ver, dessa vez eu dou cabo da raça desse troço, desse
fariseu, traíra, salafrário, cínico, difamador, sepulcro caiado, esse corno por derradeiro.

E concluiu: tua hora chegou, Satanás.

Nina retirou-se, deixou a expressão pairando no ar. Essa qualidade ela também tinha.
Dizia frases que marcavam, eram repetidas, se entranhavam na memória do povo. Todo
mundo ainda lembrava da sentença que lançara sobre Joca, tempos atrás. Exatamente no
dia em que botara para correr o comerciante e industrial do algodão, que não resistiu à
fúria do seu ódio e trocou as prósperas atividades urbanas pela compra de um decadente
engenho de açúcar.

Na caminhada para o seu esperado momento de glória, ela relembrava, mesmo sem
querer, aquela ocasião histórica. Joca abandonando o Cedro numa comitiva de carros de
bois, rumo à propriedade que adquirira, ela gritando no meio da rua: senhor de engenho,
só se for de merda.

Procurou se desvencilhar dessas agradáveis recordações. Concentre-se, Nina, hoje será o
grande momento. O plano traçado era simples e parecia eficiente. Ela ia esperar o
intervalo entre o fim da missa e o começo do espetáculo pirotécnico. Naquele momento,
os músicos estariam se deslocando, as rodas de conversa falando baixo, os devotos saindo
da igreja, o monsenhor Gomes trocando as vestes da celebração, as autoridades se
acomodando no lugar de honra, os protestantes se aglomerando à distância, afinal
também eram filhos de Deus e tinham direito de assistir àquele alumbramento.

Repassou cuidadosamente os detalhes da sua estratégia. Tudo haveria de ser
devidamente sincronizado. Aproveitaria o momento certo para soltar o seu grito de
guerra, o estridente prefixo que fazia tremer quem carregava podres no balaio.

Ensaiava o seu discurso: atenção pessoal, tenho grandes novidades para contar. Prometi
que hoje acabaria com Ambrósio, é o que vou fazer. Tenho aqui documentos oficiais de
uma Comissão Internacional de Inquérito que provam que esse fogueteiro, além de corno
juramentado e assassino é também ladrão. Veja, mestre Almirante, com os seus próprios
olhos. Olhe aqui, seu Amaro. Espie d. Nenzinha. monsenhor Gomes, o senhor que prega a
honestidade, repare onde o seu nome está metido. Cheguem todos, podem examinar à
vontade. É o maior escândalo dessa República.

Verifiquem de onde vem o dinheiro que vai ser torrado daqui a pouco para enganar os
trouxas. Dr. Arnaldinho, nosso insigne prefeito, seu nome também está envolvido na
bandalheira,tenho certeza de que o senhor não sabia, também foi enganado por esse
Judas. Tome aqui a prova, é cópia, pode ficar.

Seria o maior fuzuê, Ambrósio procurando um buraco para se enterrar, o juiz solicitando
ordem, o interventor exigindo respeito. Provavelmente lhe dariam voz de prisão, outros
certamente exigiriam a detenção do fogueteiro. Nada disso importava. Estava disposta a
correr todos os riscos. A vingança é prato que se come frio, como Almirante repetia. Ela
esperava há muito tempo por uma oportunidade. Não ia deixar escapar.

Com esse roteiro fervilhando na cabeça, atravessou o rio Tracunhaém por um vau, as
águas corriam mansas, só precisou tirar os sapatos e levantar a saia. Parou na sombra
carinhosa da ingazeira grande para recobrar o fôlego antes de entrar na vila. Estranhou o
pequeno movimento, já era hora dos matutos estarem chegando para a celebração.

O trajeto que estava seguindo era parte do plano. Se descesse do trem em Limoeiro,
chegaria pela ponte, perto da sua casa. Vindo de Campo Alegre, como era o caso,
atravessaria toda a povoação, fazendo zoada, falando alto, chamando atenção das pessoas,
aumentando as expectativas, mostrando que sua promessa seria rigorosamente cumprida.

Foi com esse espírito que entrou no Cedro, cumprimentando os passantes, olá pessoal,
voltei, é hoje que eu acabo com esse fogueteiro safado, vai dar cachorro em quarenta e
cinco. Estranhou a pouca receptividade, olhares atravessados, gente entrando em casa
antes dela passar. Nem parecia dia de festa. A rua vazia, onde estavam os tabuleiros de
alfenins, algodão-doce, castanha-confeitada? Onde os caldos de cana, as bancas de jogos?

Notou, curiosa, que o carrossel estava parado, nem uma criança brincava nos balanços
armados na rua. As bandeirinhas da decoração pareciam dançar tristes, embaladas pela
brisa amena da tarde. Já quase na frente da igreja, onde havia um bom número de rodas
de conversa, anunciou mais uma vez: é hoje que acabo com o sacripanta do Ambrósio.

Foi então que Tiago, o alfaiate comunista, aproximou-se, puxou-a pelo braço como se
fosse para um canto de parede e disse quase sussurrando: Nina, acabe com essa
palhaçada, respeite o morto.

Morto? Quem está morto? Ambrósio? Não é possível.

Possível era, claro, pois, segundo ensinava o sábio Almirante, para morrer basta estar vivo.
Tiago foi enfático, para não deixar dúvida: Ambrósio bateu a caçoleta. Abotoou o paletó.
Entregou a alma ao diabo. Desinfetou o beco. Só não se mudou ainda para a cidade dos
pés juntos porque o corpo foi levado para o Recife, é um caso muito enigmático, vai ter
autópsia e tudo.

A moça estava pasma. Em outro momento a notícia seria motivo de comemoração.
Aquela, porém, era a ocasião mais inoportuna e desaconselhável para o fogueteiro ter
esticado o cambito. Sentiu sua vingança, que parecia tão sólida, desmanchar-se no ar. O
assombro estampado no rosto era mais eloquente do que qualquer discurso.

Tentou perguntar alguma coisa. Como foi isso seu Tiago? As palavras vieram com
dificuldade. O alfaiate deu com os ombros e afastou-se lentamente. Observou o entorno,
era o destino de todos os olhares. A perplexidade quase podia ser vista flutuando no
espaço, como nuvens escuras em dia de tempestade.
Pela primeira vez na vida, Nina não conseguiu segurar o queixo. Ficou parada no meio da
rua, olhos esbugalhados, boca aberta.

Até que Lutércio da Roleta gritou de lá, implacável: fecha a boca, fuxiqueira, se não tu vai
engolir mosca.

Sorte dela que nenhuma estava voando por ali naquela hora.

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Capítulo i original

  • 1. Capítulo I um enigma abala o cedro Nina caminhava em ritmo de passeio pela rodagem que ia de Campo Alegre em direção ao Cedro, no sol ainda quente no meio daquela tarde de janeiro. Estava preparada para promover, logo mais à noite, a maior confusão, o mais completo bafafá, um escândalo nunca antes visto na história deste país. Tanto que, ninguém duvidasse, iria repercutir até no exterior. Descera do trem, vindo do Recife. Podia ter escolhido se deslocar até a vila de carro, de charrete, até a cavalo, mas preferiu andar mesmo a pé. Não quis conversa com ninguém, muito menos prestou atenção nas muitas rodas que se formavam no pátio da estação, as pessoas falando baixo, quase cochichando. A caminhada lhe faria bem. Duas léguas, se tanto, poucas horas de uma andança que ajudaria a arejar o juízo, espairecer com a paisagem de verão, além de contribuir para manter suas pernas roliças, a bunda alta, os peitos empinados. Não era mais nenhuma mocinha, todavia sabia manter seus encantos, caprichava nos pontos fortes. Estava ansiosa como nunca, o coração batendo tão acelerado que parecia querer sair pela boca. Exatamente por conta dessa excitação, precisava se acalmar e organizar as ideias da melhor maneira, repensar cada detalhe do plano que traçara para o momento da sua vitória definitiva. Os últimos dias tinham sido muito agitados e emocionantes. E, precisamente naquela noite, ela não poderia errar em qualquer detalhe. Assim como são as pessoas, são as criaturas. Desde menina, mantinha o mesmo estilo: fogo no rabo, espada na língua. E o mesmo objetivo: casar virgem. Para conseguir esse feito se empenhava com a determinação de quem enfrenta diariamente uma guerra de vida ou morte. Era ardente, endiabrada, virou a cabeça de muitos homens, preservando o precioso título de moça donzela. Se vivia em estado de quase permanente excitação, o problema era exclusivamente dela. Quando eventualmente passou das medidas e fez gente tremelicar no compasso da vida, paciência, não era da conta de seu ninguém. Gostava da brincadeira, era especialista em proporcionar prazer, mas sabia impor seus limites. Mostrava-se capaz de relevar qualquer insulto, menos os que punham em dúvida sua virgindade. Precisava defender a honra de donzela com unhas e dentes todo santo dia, desde que o fogueteiro Ambrósio vivia esculhambando com ela em todo lugar e, o que é pior, estimulando e até pagando gente sem eira nem beira para fazer o mesmo. Assim, era obrigada a renovar sempre seu compromisso de subir ao altar virgem, embora quase todo mundo achasse que isso era impossível, não passava de uma promessa furada. Por sua vez, sabia como ninguém promover uma algazarra. Falava pelos cotovelos, sempre alto e bom som. Diziam que, quando criança, tinha bebido água de chocalho. Sentia apurado prazer em dar notícias, principalmente as ruins.
  • 2. Quando não dispunha de informação nova, inventava. Utilizava uma técnica aprimorada para espalhar boatos. Contava ter ouvido dizer que fulano passava por dificuldades financeiras ou que beltrano estava levando chifre da mulher, ela mesma não sabia, estava vendendo pelo preço da compra. Assim, sem se comprometer, disseminava todo tipo de intrigas. Uma das suas maiores satisfações era quando alguém vinha lhe contar um boato criado por ela. Sentia então um encantamento consigo mesma, um êxtase, como se fora um grande artista saboreando a aclamação de sua obra prima. Quando acontecia isso, aí era que caprichava, levando adiante o assunto, agora enriquecido de novos detalhes e escorado em fonte certa e precisa. Pelo sim, pelo não, nunca faltava gente querendo ficar bem com ela, até lhe bajulando, coisa que ela muito apreciava. A agitação de Nina naquela tarde era mais do que justificada. Dessa vez, não estava lidando com boatos nem invenções. Conseguira documentos da maior importância. Na bolsa que trazia atravessada no peito, feito embornal de cangaceiro, carregava provas definitivas, levantadas através de um complexo trabalho que lembrava a atuação de uma espiã internacional, uma verdadeira Mata Hari morena. A divulgação desses documentos iria lascar em bandas o fogueteiro como também causar grandes estragos na política do estado, além de criar sérios embaraços diplomáticos para o governo federal. Porém esse lado político da questão não lhe interessava em absolutamente nada. Podiam até derrubar a ditadura que ela não estava nem aí. Tudo o que desejava era destruir o filho de uma égua do Ambrósio. Além, naturalmente, de comprovar que continuava com o hímen na condição em que viera ao mundo. E ponto final. Para alcançar este segundo porém não menos importante objetivo, conduzia um valioso papel que, por capricho, pensava esfregar na cara dos maledicentes do Cedro, de Limoeiro, de Bom Jardim, do diabo a quatro. Um novo e indiscutível atestado de que seu cabaço estava preservado. Teria o prazer de observar os seus inimigos se roendo, por dentro e por fora. Só assim, seu triunfo seria completo. Ri melhor quem ri por último, como se diz. O primeiro atestado que conseguira, tempos atrás, foi contestado, questionado, ridicularizado. Provara, através de laudo médico, que ainda era virgem, apesar das agarrações, dos sarros atrás dos muros, dos chambregos, dos namoros complacentes e dos noivados com excesso de intimidade. Levaram na galhofa. Duvidaram da capacidade do médico, fizeram piadas sobre a visão do Dr. Evaristo, já desgastada pelos anos. Aquele doutor é incapaz de distinguir entre uma porca dando de mamar e uma mulher parindo, vai lá saber o que é uma moça donzela? Agora, queria ver quem ousaria debochar de uma perícia assinada nada mais nada menos do que pelo renomado Dr. Tavares, chefe dos legistas do estado e um dos profissionais mais requisitados do país na sua especialidade. Quase todo dia aparecia nos programas policiais de rádio, dando a última palavra nas mais intrincadas questões.
  • 3. Não era qualquer pé-rapado que conseguia um parecer emitido pelo famoso e respeitado legista. Principalmente tratando-se de um assunto particular, íntimo, sem ser provocado pela justiça. Exibir um atestado daqueles, com cópias tiradas em cartório da capital, era também uma demonstração de grande prestígio. Para dedicar atenção integral a documentos tão valiosos, deixara a bagagem guardada na própria estação do trem, com as mais novas revistas de variedades, roupas último modelo de forte influência norte-americana, inclusive duas calças compridas que haveriam de fazer muito sucesso, os perfumes, os pós de arroz, os vidros de Postafen, remédio que fazia bunda de mulher crescer. Deixar tantas novidades para trás era a maior prova da importância do material que carregava. As maletas ficavam bem guardadas, mandaria apanhar depois, no dia seguinte, ou até mais para adiante, portador é o que não falta no mundo. Naquele momento, queria se concentrar totalmente na preciosidade que conseguira e no planejamento do espetáculo que pretendia proporcionar. Seu alvo, Ambrósio, era um fenômeno. Um reles fogueteiro, misterioso e desacreditado, que vivia maltrapilho e imundo, até o dia em que fugira do Cedro, após matar a mulher, Carminha, e o seu amante, o português Clemente, um rico comerciante, no que fora até então o crime mais comentado nas redondezas. Dizem que carrapeta nunca chega a pião. A trajetória de Ambrósio contrariou esse provérbio popular. Em pleno Estado Novo, reapareceu, bem vestido, endinheirado, e o que é mais surpreendente, de braços dados com o Dr. Arnaldo e a turma do governo. Logo ele, que escapara do linchamento e da cadeia graças ao pessoal que agora estava na oposição. Além de se transformar em importante industrial do segmento de fogos de artifício, tornara-se uma figura marcante no mundo econômico e político do país. Mantinha relações pessoais com altas figuras do regime, fazia negócios de grande porte com o governo, dizia-se que era protegido diretamente pelo próprio ditador. Exportava seus produtos para o Brasil inteiro. Toda girândola que anunciava a presença de governadores, ministros ou do presidente da República, os espetáculos pirotécnicos mais importantes e pagos pelos cofres públicos, inclusive o da comemoração do ano-novo, no Rio de Janeiro, vinham de suas fábricas, instaladas no Cedro e na capital do país. Nina sofreu o diabo na mão do fogueteiro depois que este voltara, rico e poderoso, esquecido de muita coisa, porém sem perdoar nada. Pagou pelo que fez e o que não fez desde que o desalmado botou na cabeça que ela alcovitara a sem-vergonhice entre sua mulher e o português. Interpretação totalmente equivocada. Servira de mensageira entre os pombinhos, é verdade, porém com o objetivo de ganhar tempo, encontrar uma saída, evitar uma desmoralização antecipada de Ambrósio e também, é justo admitir, para se manter bem informada. Se não fosse ela, a intermediação seria feita por outra pessoa, o resultado poderia ter sido até pior. Não teve interferência no rumo trágico dos acontecimentos. Que poderes dispunha para levar bom senso a uma paixão desvairada? Como poderia transmitir equilíbrio a um marido transtornado pela traição da esposa? Ambrósio matou a mulher e o amante porque bem quis, ela sequer estava no local e, se estivesse, não poderia ter feito nada para evitar.
  • 4. De acordo com sua própria avaliação, até tinha se comportado muito discretamente no episódio. Os detalhes exclusivos que sabia, só comentou depois do fatídico desfecho. Afinal, não era baú para ficar guardando segredo dos outros. Porém se esforçou para limpar o conceito de Ambrósio, dizendo em todo canto que esse negócio de levar ponta é besteira, todo mundo está sujeito, só se arrisca quem vai à luta, chifre é ornamento de guerreiro. Em vez de se mostrar reconhecido, o fogueteiro jogou sobre os seus ombros a culpa pela traição da mulher. Ainda bem que ela não foi a única vítima desse ódio injustificável. O coisa ruim agiu com o mesmo espírito de ingratidão relativamente a Mariano Protestante, que acobertou sua fuga com risco da própria vida. Sem falar na covardia perpetrada contra o coronel Nemézio, que na época estava de cima, lhe deu proteção e usou sua influência para limpar o nome do assassino com a justiça. O promotor acatou a tese de violenta emoção para justificar o duplo assassinato passional e o fogueteiro ficou livre, sem um padre-nosso de penitência. O coronel fez mais ainda. Financiou a viagem do corno para o Rio de Janeiro, onde recomeçaria a vida e de onde voltaria coberto de soberba, contaminado pelo vírus da traição e sedento de vingança. Desde que começara o Estado Novo, Nemézio Protágoras, de Limoeiro, coronel da Guarda Nacional, com muito orgulho, perdeu força com o governo. Jamais Nina captou bem esse imbróglio, tinha certa dificuldade para entender as misteriosas engrenagens que movem a política. Valdemir, o professor comunista que ela jurava ser seu último e definitivo amor, argumentava que eram contradições no interior da decadente classe dominante. Mas convenhamos, uma conversa dessas explica mas não justifica, como o povo gosta de dizer. O certo mesmo é que naqueles tempos de ditadura quem casava e batizava era o Dr. Arnaldo, de Bom Jardim, arquirrival do coronel. Sua primeira providência foi transformar o Cedro, vila que até então era pertencente a Limoeiro, em distrito de Bom Jardim. Decisão vinda de cima, dos altos escalões do poder, porém sem pé nem cabeça, olhando-se pelo lado social, cultural e até geográfico. Iniciativa estapafúrdia que só se justificava pela queda de braços travada entre os políticos. O certo é que ficou assim. E ninguém desmancha um fato histórico, não adianta chiadeira, a realidade é mais forte do que fogo ladeira acima ou água ladeira abaixo. A perda da vila doía no coração do coronel Nemézio, abalava a autoestima dos limoeirenses. Era a prova do completo desprestígio, para quem tivesse qualquer fiapo de dúvida. O Cedro situa-se praticamente nas portas de Limoeiro. O Dr. Arnaldo fazia questão de estimular o desenvolvimento do local para provocar e enfraquecer o adversário a bem dizer no seu terreiro. O progresso era incentivado pelas hostes do poder estadual e financiado pelo crédito fácil do Banco do Brasil. Assim, rapidamente o Cedro transformou-se em importante polo industrial e comercial. Ganhava terreno a cada dia em relação a todas as localidades importantes da região, com novos empreendimentos, a começar pela fábrica de fogos do próprio Ambrósio. Também se destacavam no novo quadro econômico o motor de descaroçar algodão, as olarias, as movelarias, organizações capazes de despertar admiração em qualquer cidade de porte. Sem contar inúmeros artesanatos menores, contudo afamados e respeitados até na capital, como o fabrico de redes e os maravilhosos trabalhos saídos das mãos mágicas
  • 5. das rendeiras. E para reforçar essa tendência favorável, lojas de grande conceito se instalavam no lugar. A despeito de todo esse surto de crescimento, ninguém falava mais em emancipação política, o grande sonho acalentado na década anterior. A palavra tornara-se proibida, subversiva, além de inútil, pois o governo ditatorial acabara com os partidos, as eleições, as câmaras de vereadores. O desejo dos moradores do Cedro, agora, era virar sede do município, projeto matreiramente acalentado pelo grupo político de Dr. Arnaldo. Arnaldinho, filho e provável sucessor do líder bonjardinense, era o prefeito nomeado do município. Pelo menos uma vez por mês, vinha despachar na sede da subprefeitura do Cedro, reformada e ampliada. Passava dias, trazia secretários, tomava decisões, a vaidade dos cedrenses nas alturas. Nesse contexto, a inocente festa de São Sebastião transformou-se em instrumento de feroz disputa. O santo também era padroeiro de Limoeiro, anualmente homenageado com uma festa de arromba. A decisão do grupo político de Dr. Arnaldo era fazer no Cedro um evento para competir pelo menos de igual para igual, de preferência para ganhar, se possível dando um banho na cidade rival. Na realidade era isso o que acontecia ultimamente graças, em primeiro lugar, à participação de Ambrósio. A cada ano a festa de Limoeiro se esvaziava, as firmas comerciais reduzindo o patrocínio com medo dos agentes fiscais, implacáveis com as empresas que desagradavam ao governo. Já a comemoração do Cedro ganhava fôlego. Uma semana inteira de atos religiosos e festanças profanas. O monsenhor Gomes escolhia, entre as pessoas mais ricas e influentes, um patrocinador para cada noite, chamado de noiteiro ou festeiro. Cada um desses festeiros procurava caprichar na decoração da igreja, na arrecadação de prendas para o bingo, na contratação de bandas de música, na pirotecnia. Essa disputa, a dos fogos mais belos, tinha um vencedor por antecipação: Ambrósio. Sua noite transformara-se na maior atração dentre as festas religiosas do interior de Pernambuco, do Nordeste, quiçá do Brasil. Atraía gente de todo lugar, inclusive altas autoridades convidadas pelo Dr. Arnaldo, personagens graúdas do regime, como o prefeito nomeado da capital e o interventor do estado. Até o chefe de gabinete do ditador apareceu certa noite, cercado de seguranças por todos os lados, nunca o Cedro vira tanto agente secreto. E era forçoso reconhecer, todos se deslumbravam, os fogos de artifício de Ambrósio faziam jus ao nome comercial que ostentavam: Sublime. Era então que o fogueteiro se transformava em rei. Ou mesmo um deus. Sua vaidade se satisfazia plenamente, levando-o a esquecer as dificuldades e desmoralizações do passado. Recebia tantos cumprimentos das autoridades, delegados de polícia, juízes de direito, gerentes de bancos, coletores de impostos, senhores de engenho, industriais, comerciantes, visitantes ilustres que chegavam em automóveis importados, vários deles último modelo, apesar das dificuldades provocadas pela Grande Guerra, que sequer virava a cabeça para ouvir os elogios dos Zé Ninguém. E especialmente nesta noite, além das mais altas autoridades do estado e representantes do governo federal, estava também sendo aguardado o cônsul norte-americano em pessoa. Era essa apoteose que Nina pretendia estragar. No domingo anterior, na hora em que a feira semanal estava mais movimentada, atravessara a rua principal, no meio das bancas
  • 6. de miudezas e sapatos, passou pela feira de frutas, pela área dos vendedores de carne, foi até o loré, onde se vendia tecido de todos os tipos, anunciando aos gritos que tinha uma comunicação importante a fazer, que daquela vez ia acabar com Ambrósio para sempre. Todo mundo conhecia a fuxiqueira, seus destemperos, mentiras, exageros, sua língua de trapo. Porém o ser humano é um animal curioso por natureza. Bastava sua voz se fazer ouvir, as pessoas iam logo colocando as cabeças na janela, saindo para a calçada, se amontoando em torno dela, para não ficarem por fora do assunto. Foi assim que um expressivo aglomerado se formou. Feirantes, almocreves, moradores dos engenhos e das fazendas, além do povo da rua, todos se acotovelavam no pé da calçada alta da igreja. Parecia um comício. Nina, apocalíptica, cabelos despenteados, vermelha pelo esforço e pela quentura do sol, o vestido escandalosamente justo realçando suas formas impecáveis, gritou a plenos pulmões que antes da semana findar Ambrósio ia ter o que merecia. Vocês vão ver, dessa vez eu dou cabo da raça desse troço, desse fariseu, traíra, salafrário, cínico, difamador, sepulcro caiado, esse corno por derradeiro. E concluiu: tua hora chegou, Satanás. Nina retirou-se, deixou a expressão pairando no ar. Essa qualidade ela também tinha. Dizia frases que marcavam, eram repetidas, se entranhavam na memória do povo. Todo mundo ainda lembrava da sentença que lançara sobre Joca, tempos atrás. Exatamente no dia em que botara para correr o comerciante e industrial do algodão, que não resistiu à fúria do seu ódio e trocou as prósperas atividades urbanas pela compra de um decadente engenho de açúcar. Na caminhada para o seu esperado momento de glória, ela relembrava, mesmo sem querer, aquela ocasião histórica. Joca abandonando o Cedro numa comitiva de carros de bois, rumo à propriedade que adquirira, ela gritando no meio da rua: senhor de engenho, só se for de merda. Procurou se desvencilhar dessas agradáveis recordações. Concentre-se, Nina, hoje será o grande momento. O plano traçado era simples e parecia eficiente. Ela ia esperar o intervalo entre o fim da missa e o começo do espetáculo pirotécnico. Naquele momento, os músicos estariam se deslocando, as rodas de conversa falando baixo, os devotos saindo da igreja, o monsenhor Gomes trocando as vestes da celebração, as autoridades se acomodando no lugar de honra, os protestantes se aglomerando à distância, afinal também eram filhos de Deus e tinham direito de assistir àquele alumbramento. Repassou cuidadosamente os detalhes da sua estratégia. Tudo haveria de ser devidamente sincronizado. Aproveitaria o momento certo para soltar o seu grito de guerra, o estridente prefixo que fazia tremer quem carregava podres no balaio. Ensaiava o seu discurso: atenção pessoal, tenho grandes novidades para contar. Prometi que hoje acabaria com Ambrósio, é o que vou fazer. Tenho aqui documentos oficiais de uma Comissão Internacional de Inquérito que provam que esse fogueteiro, além de corno juramentado e assassino é também ladrão. Veja, mestre Almirante, com os seus próprios olhos. Olhe aqui, seu Amaro. Espie d. Nenzinha. monsenhor Gomes, o senhor que prega a honestidade, repare onde o seu nome está metido. Cheguem todos, podem examinar à vontade. É o maior escândalo dessa República. Verifiquem de onde vem o dinheiro que vai ser torrado daqui a pouco para enganar os trouxas. Dr. Arnaldinho, nosso insigne prefeito, seu nome também está envolvido na
  • 7. bandalheira,tenho certeza de que o senhor não sabia, também foi enganado por esse Judas. Tome aqui a prova, é cópia, pode ficar. Seria o maior fuzuê, Ambrósio procurando um buraco para se enterrar, o juiz solicitando ordem, o interventor exigindo respeito. Provavelmente lhe dariam voz de prisão, outros certamente exigiriam a detenção do fogueteiro. Nada disso importava. Estava disposta a correr todos os riscos. A vingança é prato que se come frio, como Almirante repetia. Ela esperava há muito tempo por uma oportunidade. Não ia deixar escapar. Com esse roteiro fervilhando na cabeça, atravessou o rio Tracunhaém por um vau, as águas corriam mansas, só precisou tirar os sapatos e levantar a saia. Parou na sombra carinhosa da ingazeira grande para recobrar o fôlego antes de entrar na vila. Estranhou o pequeno movimento, já era hora dos matutos estarem chegando para a celebração. O trajeto que estava seguindo era parte do plano. Se descesse do trem em Limoeiro, chegaria pela ponte, perto da sua casa. Vindo de Campo Alegre, como era o caso, atravessaria toda a povoação, fazendo zoada, falando alto, chamando atenção das pessoas, aumentando as expectativas, mostrando que sua promessa seria rigorosamente cumprida. Foi com esse espírito que entrou no Cedro, cumprimentando os passantes, olá pessoal, voltei, é hoje que eu acabo com esse fogueteiro safado, vai dar cachorro em quarenta e cinco. Estranhou a pouca receptividade, olhares atravessados, gente entrando em casa antes dela passar. Nem parecia dia de festa. A rua vazia, onde estavam os tabuleiros de alfenins, algodão-doce, castanha-confeitada? Onde os caldos de cana, as bancas de jogos? Notou, curiosa, que o carrossel estava parado, nem uma criança brincava nos balanços armados na rua. As bandeirinhas da decoração pareciam dançar tristes, embaladas pela brisa amena da tarde. Já quase na frente da igreja, onde havia um bom número de rodas de conversa, anunciou mais uma vez: é hoje que acabo com o sacripanta do Ambrósio. Foi então que Tiago, o alfaiate comunista, aproximou-se, puxou-a pelo braço como se fosse para um canto de parede e disse quase sussurrando: Nina, acabe com essa palhaçada, respeite o morto. Morto? Quem está morto? Ambrósio? Não é possível. Possível era, claro, pois, segundo ensinava o sábio Almirante, para morrer basta estar vivo. Tiago foi enfático, para não deixar dúvida: Ambrósio bateu a caçoleta. Abotoou o paletó. Entregou a alma ao diabo. Desinfetou o beco. Só não se mudou ainda para a cidade dos pés juntos porque o corpo foi levado para o Recife, é um caso muito enigmático, vai ter autópsia e tudo. A moça estava pasma. Em outro momento a notícia seria motivo de comemoração. Aquela, porém, era a ocasião mais inoportuna e desaconselhável para o fogueteiro ter esticado o cambito. Sentiu sua vingança, que parecia tão sólida, desmanchar-se no ar. O assombro estampado no rosto era mais eloquente do que qualquer discurso. Tentou perguntar alguma coisa. Como foi isso seu Tiago? As palavras vieram com dificuldade. O alfaiate deu com os ombros e afastou-se lentamente. Observou o entorno, era o destino de todos os olhares. A perplexidade quase podia ser vista flutuando no espaço, como nuvens escuras em dia de tempestade.
  • 8. Pela primeira vez na vida, Nina não conseguiu segurar o queixo. Ficou parada no meio da rua, olhos esbugalhados, boca aberta. Até que Lutércio da Roleta gritou de lá, implacável: fecha a boca, fuxiqueira, se não tu vai engolir mosca. Sorte dela que nenhuma estava voando por ali naquela hora.