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SLOW COFFEE
O perfil dos consumidores da terceira onda do café
Preparado por Thais Manoela Buarque Corrêa, da ESPM-RJ.1
Recomendado para as disciplinas de: comportamento de consumo, antropologia do
consumo e pesquisa qualitativa.
Resumo
O mercado de cafés está passando por transformações em meio a movimentos de consumo
responsável e à valorização do prazer gastronômico. Recentemente, uma nova forma
de apreciação do produto, que passa pela origem e processo de produção do mesmo tem
atraído um número crescente de adeptos à chamada “terceira onda” do café. O presente
estudo visa investigar quem são os consumidores desse nicho e quais valores orientam
suas escolhas de consumo.
Palavras-chave
Cafés especiais, terceira onda, slow food, comportamento de consumo, sustentabilidade.
Julho/2016
1
Este caso foi escrito inteiramente a partir de informações cedidas pela indústria pesquisada e outras
fontes mencionadas no tópico "Referências". Não é intenção do autor avaliar ou julgar o movimento
estratégico da indústria em questão. Este texto é destinado exclusivamente ao estudo e à discussão
acadêmica, sendo vedada a sua utilização ou reprodução em qualquer outra forma. A violação aos
direitos autorais sujeitará o infrator às penalidades da Lei. Direitos Reservados ESPM.
APRESENTAÇÃO
O café está presente nos lares brasileiros há quatro séculos. Além de abastecer o mercado
nacional, a exportação para diversos países fez com que a indústria recebesse um alto
investimento, o que se traduziu em reconhecimento internacional. O café brasileiro é
considerado um dos melhores do mundo. No entanto, o que poucos sabem é que o café
que é exportado não é igual ao que fica. Os grãos selecionados para exportação são
geralmente superiores, e o brasileiro se acostumou com um café que ainda não está no
seu melhor.
A história do café como bem de consumo é categorizada em três fases, ou “ondas”. Na
primeira onda, após a segunda guerra mundial, o café ganhou mais distribuição e tornou-
se um produto massificado. Em seguida, o período conhecido como a segunda onda se
deu com a chegada das cafeterias “premium”, principalmente a Starbucks, explorando
novos sabores, misturas e formatos, como as cápsulas. A característica mais marcante
dessa “onda” é a experiência social de se tomar café e os valores a ela agregados.
Atualmente, prolifera-se lentamente a terceira onda do café: na qual valoriza-se a
sustentabilidade do processo de produção, o comércio justo e transparente e a qualidade
do produto final. A terceira onda caminha lado a lado com o movimento Slow Food e as
tendências apontadas pelo Marketing 3.0, sendo a junção de uma preocupação com o
meio ambiente, com o bem-estar social e a desaceleração do consumo: descartando o que
é excesso e valorizando a produção local.
Este estudo de caso se propõe a investigar o perfil dos consumidores de cafés especiais:
comportamento, desejos e hábitos de consumo, bem como os valores que os levam a
investir em produtos mais caros e conscientes. A partir de um estudo com inspiração
etnográfica online e off-line e pesquisa qualitativa com consumidores e peritos, será
possível diagnosticar comportamentos em comum entre o público de terceira onda e traçar
o seu perfil. O estudo almeja, ainda, descobrir se a terceira onda seria um “mindset” de
consumo, indicando que o comportamento seja replicado para outros segmentos, tais
como moda e turismo, à medida que o consumo responsável continue seu crescimento.
ELEMENTOS CONTEXTUAIS
O Mercado Brasileiro de Café
A indústria do café no Brasil movimenta bilhões de reais. Além do tradicional moído, a
Associação Brasileira da Indústria de Café afirma que o consumo de café em cápsulas
está em forte ascensão, contabilizando uma alta de 34,61% entre 2014 e 2015. Nos
últimos dez anos, o crescimento foi de 19 milhões para R$1,4 bilhão, segundo o Bureau
de Inteligência Competitiva do Café. A previsão é de que o setor movimente mais de
R$20 bilhões até 2019. O desenvolvimento intenso se dá pela quebra de patente da
Nespresso, abrindo espaço para novos players na produção de cápsulas. No entanto, a
Abic lembra que a cápsula ainda é pouco consumida nos lares brasileiros, nos quais a
preferência é pelo café torrado e moído, representando 81% do consumo2
. Atualmente, a
3 Corações SA domina o mercado com 20,5% de participação, seguida pela Sara Lee
Cafés do Brasil com 17%, detentora da marca Pilão, e Nestlé com 10,5%
(EUROMONITOR, 2016).
O Movimento Slow
O movimento Slow Food surgiu na Itália em 1986, quando Carlo Petrini se opôs à
inauguração de um restaurante fast-food no centro histórico de Roma. Na época, o italiano
iniciou o movimento que valoriza a comida artesanal, a degustação com calma e a
responsabilidade no processo de produção3
. De acordo com o movimento, o alimento
deve ser bom, limpo e justo: de boa qualidade, produzido de forma legal e sem prejudicar
o ambiente, e de modo que os produtores recebam um valor equitativo pelo seu trabalho.
Apesar de existir há décadas, a filosofia slow começou a ganhar mais força nos últimos
anos, devido aos avanços da tecnologia e consequente aceleração do cotidiano, na qual o
tempo se tornou escassez. O movimento slow hoje vai além da comida, abrindo vertentes
como slow travel, slow cities, slow fashion, slow school e, dentro do guarda-chuva de
slow food: slow coffee. A filosofia slow é concomitante à crescente conscientização da
sociedade em relação ao excesso que produzimos, seja de lixo, de informação, de desejos
ou necessidades. Hoje, observamos uma tendência à condenação do superficial, do rápido
2
Disponível em: http://www.icafebr.com.br/publicacao2/84030Relatorio%20v5%20n1.pdf; acesso em
jun. 2016.
3
Disponível em: www.slowfoodbrasil.com/slowfood/filosofia; acesso em jun. 2016.
e efêmero. O valor da experiência está na sua profundidade, na imersão no momento, na
lenta degustação de uma xícara de café.
As Ondas do Café
O consumo de café é categorizado por ondas, segundo o Bureau de Inteligência
Competitiva do Café. A primeira onda foi impulsionada pelo investimento na produção
em massa após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o Bureau, o café virou commodity
graças à energia que proporcionava. Nesse período, a distribuição em escala mundial era
o foco, e o produto era “mais consumido do que apreciado” (2012, p.3)4
. O café de
primeira onda era de baixa qualidade, o que não fazia diferença na época pois o produto
era valorizado pelo seu efeito, e não o sabor. O café começou a fazer parte de um ritual
diário de consumo nos lares e locais de trabalho.
Na segunda onda, começou-se a explorar diferentes formas de cultivar, colher e torrar o
grão. A chegada das cafeterias de “specialty coffee” como a Starbucks iniciou o processo
de descomoditização do café, introduzindo novos blends de Arábica aos consumidores
que antes eram acostumados com o grão Robusta (Conillon), que costuma ser mais
amargo e barato. Espresso, latté, machiatto e capuccino foram termos que ganharam
espaço no mercado de cafés, em decorrência do preparo em máquina popularizado pela
segunda onda. Cafeterias como a Starbucks mudaram a forma de se consumir café. Se
antes existia apenas a casa e o trabalho, a cafeteria surgiu como um espaço alternativo
para socialização e experiência de café.
Enquanto a primeira onda foi marcada pela disponibilidade do café e a segunda pela
descoberta de novas experiências de consumo, a terceira onda abre um leque totalmente
novo de possibilidades. Trata-se da “vinificação do café”, na qual o processo de cultivo,
o terroir (características do clima e solo), a origem do grão e os métodos de torra,
moagem e extração são elementos cruciais para o resultado final.
Os vinhos se distinguem uns dos outros e são mais valorizados de acordo
com a variedade da uva, a região produtora e especificidades do
processamento. É exatamente isso o que querem as indústrias de torrefação
e produtores com o mercado de cafés especiais: revelar aos consumidores
que a bebida café vai muito além do aroma e da cor, pois oferece, no sabor,
graus diferenciados de acidez, doçura, amargor e corpo. Como se os cafés
brasileiros variassem numa escala similar à que vai de um vinho branco leve
a um tinto mais encorpado. (TEIXEIRA apud MARTINS, 2015, p. 5)
4
Disponível em: https://issuu.com/educesar/docs/terceira_onda; acesso em jun. 2016
O café então, começa a ser apreciado pelo seu sabor e método de produção. Na terceira
onda, valoriza-se a sustentabilidade do cultivo e o comércio justo, sendo então um
movimento que faz o caminho inverso da massificação. Para esse nicho de consumidores,
diversos aspectos afetam o resultado do café que consomem, e, consequentemente,
influenciam a valorização que eles dão a determinadas torras ou grãos. Nas embalagens
de café terceira onda, é comum encontrar a descrição do processo utilizado, em que
fazenda o grão é plantado e às vezes até o nome do produtor. A origem torna-se uma
espécie de pedigree do café especial. O mesmo grão pode ser preparado de diversas
formas, moído mais fino ou mais grosso, preparado na cafeteira italiana, coado no filtro
Hario, feito na prensa francesa ou aeropress. Os diferentes métodos de extração, a espera
pela temperatura perfeita para não queimar o pó – tudo isso requer bastante conhecimento
e cuidado, desde à plantação até chegar na xícara.
Barista: o sommelier do café
Atualmente, cursos de barista (especialista do café) multiplicam-se pelas grandes cidades,
assim como eventos de competição para premiar a melhor xícara. Esses cursos são
procurados não só pelos que pretendem trabalhar com a bebida, mas também por
apreciadores que gostariam de saber preparar o seu café de formas diferentes e
experimentar sensações diversas.
O interesse pela pluralidade do café também se vê refletido na existência dos clubes
especializados. Com o advento da tecnologia, a distribuição do café especial cresce e se
diversifica, assim como a disseminação do conhecimento sobre o tema. No Brasil,
existem assinaturas de clubes de café, possibilitando ao assinante receber em casa
diferentes cafés especiais mensalmente, e, assim, aventurar o paladar.
Figura 1: Banner para e-commerce de café
Fonte: www.haveacoffee.com.br
Mais do que uma paixão, o café hoje também é um hobby. A bebida carrega uma gama
de significados subjetivos, os quais ajudam a criar uma diferenciação em grupos sociais.
É importante frisar que uma “onda” não acaba quando a outra começa, as três convivem
simultaneamente e atendem a consumidores diferentes. Neste estudo, exploraremos o
terroir do nicho terceira onda para descobrir quem é o “geek do café”: quais são os seus
valores, influências e hábitos de consumo.
FATOS
Com o objetivo de colher insumos a serem aprofundados no estudo, foi feita uma pesquisa
exploratória com inspiração netnográfica acerca do mundo do café, antes mesmo de se
iniciar uma leitura teórica sobre o tema. Em seguida, dados secundários sobre o consumo
de café foram obtidos através de artigos e pesquisas de consumo da categoria. Após essa
fase, a pesquisadora frequentou eventos de café e cafeterias que utilizam métodos
“terceira onda” de extração no Rio de Janeiro. Essa observação-participante fez com que
a pesquisadora levantasse hipóteses sobre o perfil de consumidores de café terceira onda,
fundamentados sob a perspectiva de Carl Honoré (Movimento Slow) e Pierre Bourdieu.
Por fim, as hipóteses foram testadas através de entrevistas com consumidores e peritos.
A fase exploratória do estudo, na qual utilizou-se o método inspirado em netnografia,
permitiu uma observação do discurso utilizado por amantes do café e principalmente a
forma como eles costumam expor seus momentos de consumo na internet. Essa técnica
foi escolhida para evitar um olhar enviesado já informado sobre o tema, viabilizando uma
diagnóstico prévio sobre os hábitos de consumo do público em questão. Já que, de início,
este estudo não contemplou um grupo de participantes específico, foram considerados a
priori os amantes de café no Instagram; os quais se declaram através da hashtag
“#coffeelover”.
A hashtag foi utilizada como ponto de partida para detectar comportamentos em comum
entre consumidores de terceira onda e analisar como eles se diferem ou se assemelham
aos de segunda onda. A pesquisadora já possuía a informação de que, dentro do conceito
das ondas, os consumidores da segunda costumam tomar café de sabores diferentes, sendo
frequentadores de cafeterias como a Starbucks, e consumindo cafés em cápsulas dentro
ou fora de casa. A terceira onda, por sua vez, seria um público atraído por grãos especiais
de café e detentor de conhecimento sobre diversos métodos de extração.
A observação do contexto utilizado nas fotos do Instagram que continham a hashtag fez
com que a pesquisadora pudesse descobrir os locais onde o café era consumido por quem
postou, sendo por vezes cafeterias especializadas ou até mesmo em casa. A partir dessa
informação, a conta de Instagram da cafeteria também foi explorada, permitindo uma
análise do discurso que atrai o consumidor, bem como da estética visual que compõe as
fotos. Assim, foi feita uma separação dos elementos relacionados a cada grupo,
culminando em duas descrições.
O consumidor de segunda onda
Hiper-conectado, esse consumidor valoriza experiências de consumo memoráveis,
personalizadas e principalmente fotografáveis. Mais importante do que o produto são os
significados agregados. Legendas como “faça para o ‘gram’” e comentários como “as
coisas que fazemos pelo ‘gram’” indicam uma preocupação com a produção estética da
foto, o que aparenta afetar diretamente as escolhas de consumo.
Figuras 2 e 3: Imagens de momentos de consumo “apple and coffee”
Fonte: Instagram @appleandcoffee
Para esse consumidor, ir a um café é uma experiência social, mesmo quando está sozinho.
Apesar de se interessar pelos diferentes sabores de café, a praticidade da cápsula ou de
comprar o café́ pronto e customizado parece ser um forte atrativo. Esse consumidor
aparenta dar bastante valor a experiências gastronômicas, e mais ainda quando elas são
esteticamente agradáveis.
O consumidor de terceira onda
Simpatizante do movimento Slow Food, o consumidor de terceira onda leva a importância
da personalização da experiência um passo adiante. O processo de produção do seu café
importa, desde o cultivo do grão até chegar à xícara. Esse consumidor gosta de explorar
diferentes métodos e sabores e exige que o comércio seja justo. Mais do que espectador,
ele se sente co-produtor do seu café e abriria mão da praticidade em nome do frescor e
naturalidade do produto final.
Figura 3: Posts sobre a importância do grão e de acompanhar o processo
Fonte: Instagram: @citygirlcoffee
A página @citygirlcoffee ressalta em sua comunicação a importância de se saber a origem
do café, de se ter um processo sustentável e um propósito. A marca comunica seu
compromisso com produtoras mulheres, configurando um café que defende uma causa
social: o empoderamento das mulheres.
Figura 4: Post sobre a origem e propósito do “City Girl Coffee”
Fonte: Instagram: @citygirlcoffee
O “café com propósito” é reflexo de uma forte tendência de comportamento: a de
consumo responsável e sustentável. Ao discutir tendências do consumo alimentar, a
antropóloga Lívia Barbosa ressalta o teor político que rege as escolhas e influencia as
definições de gosto.
A alimentação e o comer transformaram-se nas últimas décadas. Passaram de
um ato concebido pelas pessoas como sendo da esfera das preferências
individuais e privadas – do “meu” gosto e do “meu” direito de escolha – a um
comportamento com conseqüências diretas na esfera pública. Desse modo,
suscitaram reações das mais diversas e virulentas e, também, provocaram a
organização de pessoas em torno de temas relacionados à alimentação, como
é o caso do slow food e do comércio justo, entre outros (BARBOSA apud
Poggio; Marins de Sá, 2006; Silva, 2005; Wilkinson, 2006).
O gosto, então, é muito mais complexo do que parece. Além de ser um ato político, é
uma construção cultural, social e econômica. Ao realizar uma observação participante
durante o estudo, percebi que isso também se aplica aos cafés especiais.
A Distinção – um relato pessoal
Quando soube que haveria um evento sobre cafés em uma cafeteria “terceira onda” do
Rio de Janeiro, não hesitei. Essa era uma ótima oportunidade para descobrir um pouco
mais sobre esse assunto e observar as pessoas que se interessam pelo produto e seus
valores agregados.
O evento ocorreu através de dois ciclos. No primeiro, havia uma mesa com grãos
distintos. O barista explicava a diferença entre eles, os fatores que influenciam no cultivo
e características como a durabilidade e doçura natural. Ele explicou que os cafés mais
conhecidos geralmente são feitos de uma mistura dos grãos, contendo uma proporção
maior do grão inferior (conilon), que é mais amargo e mais barato do que o arábica e
possui mais cafeína. No segundo ciclo, tivemos a oportunidade de provar as diferenças
entre o café Pilão, o Melitta tradicional e o café próprio da cafeteria – em ordem de
“grandeza”. Os cafés eram coados ao mesmo tempo na nossa frente, e o choque começou
pelo aroma. Eu pensava que gostava do cheiro do café normal, mas descobri que não é
nada comparado ao café especial, 100% arábica e recém-moído. Ao provar o Pilão
primeiro, sem açúcar, a rejeição já era esperada, pois costumo tomar o meu café bem
doce. No entanto, pude perceber a diferença no sabor entre os três cafés e como eles iam
ficando gradualmente mais adocicados a cada degustação. O café superior poderia ser
tomado sem açúcar, o que para mim era impensável. Após algumas xícaras, percebi que
era questão de treinar o paladar.
À medida que eu degustava os cafés, observava as reações dos outros consumidores:
“ainda tenho meio quilo de Pilão em casa! E agora? Não vou conseguir mais! ”, exclamou
um deles. Pensei o mesmo: agora vai ser difícil tomar café “normal” (e tem sido). Voltei
para e primeira mesa e observei outro grupo passando pela “aula” sobre os grãos. O
barista, dessa vez, comentava sobre as diferenças nas nuances do sabor. “Quando
cultivado com mais elevação, esse aqui pode produzir ácido málico, o que faz com que
ele tenha uma nota de maçã verde. ” O rapaz que estava ao meu lado entendia
perfeitamente essas relações com a música, as “notas” e “acordes” que descrevem o sabor,
e inclusive dialogava através de associações com o vinho. Eu, que nunca tinha ouvido
esse tipo de comparação e não sabia sobre vinhos, perguntei: “mas como assim fica com
gosto de maçã? ” O outro rapaz explicava que era uma analogia sobre a reação do nosso
paladar, e não do sabor. Que o sabor produz uma memória sensorial, assim como o aroma,
e nos remete a outras sensações. Foi nesse momento que eu me lembrei de Pierre
Bourdieu. Eu, que já viajei bastante e que há muito tempo me interesso por arte,
simbolismos e analogias, me senti desprovida do capital cultural necessário para entender
aquele mundo; assim como Bourdieu descreve em sua obra maestra “A Distinção” (2007).
Percebi, então, que a riqueza cultural que possuo em relação a outros temas não me
ajudava muito nesse quesito. Concluí que um conhecimento prévio sobre vinhos, cervejas
e afins poderia me servir como ferramenta para navegar mais facilmente na terceira onda
do café – o que eu viria a investigar na fase seguinte, através de entrevistas com seis
consumidores e três especialistas.
A Força do Habitus
Atualmente, a classe social ainda é erroneamente utilizada para prever gosto e estilos de
vida de determinados públicos-alvo. Consumidores são encaixotados com base em dados
principalmente demográficos e econômicos, o que é bastante limitado. À luz de Pierre
Bourdieu, podemos perceber que diversos fatores influenciam o gosto e estilo de vida.
Neste estudo, focaremos na integração entre o capital econômico, social, cultural e
simbólico, que juntos formam o habitus: “sistema de disposições duráveis e transponíveis
que, integrando experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de
percepções, apreciações e ações” (BRUBAKER apud BOURDIEU, 1985. p. 760).
Resumidamente, o autor propõe que as nossas vivências e experiências obtidas no berço
familiar e através das relações sociais, juntamente com o nosso poder aquisitivo e o
prestígio dado a certos conhecimentos, influenciam os nossos interesses e ajudam a
compor o gosto. Neste estudo, usaremos esse conceito para entender o habitus como força
motriz no avanço dentro da terceira onda do café.
[...] os poderes sociais fundamentais são: em primeiro lugar o capital
econômico, em suas diversas formas; em segundo lugar o capital cultural, ou
melhor, o capital informacional também em suas diversas formas; em terceiro
lugar, duas formas de capital que estão altamente correlacionadas: o capital
social, que consiste nos recursos baseados em contatos e participação em
grupos e o capital simbólico que é a forma que os diferentes tipos de capital
toma uma vez percebidos e reconhecidos como legítimos. (SILVA apud
BOURDIEU, p. 25, 1995)
Para Bourdieu, o capital cultural pode ser incorporado ou institucionalizado. O
incorporado é o conhecimento adquirido através da família, incentivado por ela ou
suscitado pelas vivências e oportunidades obtidas. O institucionalizado é o capital cultural
aprendido em instituições oficiais, como a escola. Esse conhecimento prévio faz com que
seu detentor possa caminhar a passos mais largos em comparação com quem não possui
essa vantagem.
Capital cultural indica acesso a conhecimento e informações ligadas a uma
cultura específica; aquela que é considerada mais legítima ou superior pela
sociedade como um todo [...] A esse tipo de cultura só terão acesso indivíduos
que desenvolverem um esquema de apreciação necessário para tal. (SILVA
apud BOURDIEU, p. 27)
Em relação ao café, temos como exemplo o capital incorporado de Maria Teresa, dentista
e também produtora de café em Minas Gerais. Apesar de nunca ter recebido instrução
oficializada sobre o cultivo e preparo do café, ela herdou esse conhecimento de forma
natural através da sua família, que já está no ramo há cerca de sessenta anos.
Quando eu nasci, eu morava nessa fazenda (onde cultiva café). A minha casa
devia ter uns cinco cômodos. Um deles era para guardar café. Então eu brinco
que já nasci cheirando a café. A minha mãe, quando estava grávida de mim, já
comprava café e negociava.... Então faz parte da minha vida desde que eu
estava no útero. Meu avô foi pioneiro na região. (Entrevista, Maria Teresa
Mendes, 2016)
“Maitê” disse que sabe reconhecer um bom café pelo sabor, mas que precisaria de um
curso para entender bem as especificações. Ela sabe diferenciar se um café está mais
amargo ou mais suave, por exemplo, e consegue identificar se o grão é do cerrado mineiro
ou das montanhas do Espírito Santo, mas não saberia explicar como. Caso decida fazer
um curso para se especializar, Maitê terá uma grande vantagem em comparação com
quem não tenha capital cultural incorporado acerca da produção e cultivo do café.
Ricardo, barista do Espírito Santo, descobriu o café especial em 2013 e desde então não
parou de se especializar. Ele adquiriu seu capital cultural (institucionalizado) sobre café
através de um curso de barista e de pesquisas que realiza para aprimorar o conhecimento.
Ao discutir as similaridades entre café e vinho, Ricardo demonstra seu capital cultural
institucionalizado através de termos mais técnicos:
Assim como o vinho, o café especial é muito complexo e conseguimos
identificar várias notas sensoriais diferentes em grãos cultivados em diferentes
lugares do mundo. Podemos inclusive diferenciar grãos plantados na África
(Etiópia e Kenya por exemplo) de grãos plantados na América Central. Isso
por causa de vários fatores como terroir, clima, altitude, umidade, etc. Todos
esses fatores podem diferenciar as uvas utilizadas na produção do vinho. Já
temos inclusive projetos para fazer selos de indicação geográfica para cafés
plantados no Espirito Santo, que têm uma complexidade única não encontrada
em outros lugares no Brasil, da mesma forma que é feita com selos de
indicação geográfica para vinhos de uvas de Bordeaux, por exemplo.
(Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016)
A partir do conceito de capital cultural, podemos traçar um paralelo com o público que
se interessaria pelas especificações do café. Alguém que já fez um curso de sommelier de
vinhos, por exemplo, teria mais facilidade e provavelmente interesse em entender o café
especial quando descobrir que ele existe. Paula Oliveira, de São Paulo, afirmou em sua
entrevista que fez o curso por conta da sua profissão (professora de gastronomia) e por
interesse pessoal, e depois disso começou a estudar informalmente o café e a cachaça.
O capital social não deixa de ser relevante, visto que o café é culturalmente repleto de
associações afetivas de momentos sociais, seja em família, entre amigos ou no trabalho.
Na terceira onda, conhecer especialistas ou amantes de café é um meio de obter
conhecimento, discutir modos de preparo e preferências. Israel, consumidor do Rio de
Janeiro, descreve o café como “uma desculpa gostosa para bons relacionamentos. ” Ele
descobriu o café especial através de amigos em uma cafeteria: “aprendi a apreciar a
bebida frequentando o Curto Café. Eu diria que as pessoas e interações de lá foram
definidoras do meu interesse, não era mais uma relação de consumo, era um
relacionamento transparente com o café como coadjuvante. ”
Para o barista Ricardo, o capital econômico é bastante importante nesse meio. O café
especial é mais caro e o conhecimento sobre seus diversos métodos de extração faz com
que o consumidor se torne mais exigente, o que resulta em um alto investimento:
Eu acredito que a condição financeira seja uma barreira, sim. O café especial
é em média dez vezes mais caro que um café tradicional comprado no
supermercado. Não é todo mundo que pode gastar de R$20,00 a R$50 em
média em um pacotinho de 250 gramas, sem falar nos equipamentos como
moedor, balança, prensa francesa... O que muita gente está fazendo é tornando
isso um ritual de preparo muito meticuloso. Com isso o consumo diário de café
diminui, tanto por causa do preço quanto por causa do processo de preparo da
bebida que requer um cuidado muito maior e mais tempo. Enquanto em um
café tradicional moído nós fazemos uma garrafa de café e tomamos algumas
xícaras, no café especial nós fazemos somente o que iremos tomar, sem
desperdício e tudo meticulosamente pesado e dosado. Normalmente eu tomo
somente duas xícaras de café por dia (uma de manhã e outra à tarde).
(Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016)
Maitê comenta que o prazer que encontra em cafés especiais, vinhos, queijos e cervejas a
faz abrir mão de outros tipos de entretenimento, como viagens. Ela afirma que essa
sofisticação do paladar é algo que o brasileiro está descobrindo agora, e diz que às vezes
prefere priorizar essas escolhas de consumo para conseguir suprir suas vontades
gastronômicas. O pensamento de Carl Honoré sobre o movimento slow corrobora com o
de Maitê e Ricardo. Segundo o autor, a tendência é que cada vez mais seja valorizada a
qualidade em detrimento da quantidade (p. 26, 2005).
Renne, consumidor residente do Rio de Janeiro, concorda que apreciar o café especial
custa caro. Ele conta que adquiriu uma cafeteira italiana, e que apesar de também gostar
de café filtrado ainda não conseguiu comprar um filtro Hario (considerado o melhor). No
entanto, já encomendou uma prensa francesa, e diz que o próximo passo será um moedor.
As barreiras econômicas e o conhecimento necessário sobre métodos de preparo sugerem
que dentro da própria terceira onda existam “sub-ondas”. Utilizando o conceito de habitus
como metáfora, podemos inferir que os tipos de capital apontados por Bourdieu podem
servir como ferramentas que ajudam a navegar mais rápido. Enquanto alguns
consumidores precisam atravessar nadando, outros podem possuir uma prancha de surf
ou ter amigos que emprestem um barco. A velocidade com que se avança é diretamente
influenciada pela predisposição cultural, social e econômica do consumidor.
Terceira onda: um “mindset” de consumo?
Ricardo Aguirre descreveu o consumidor de cafés especiais como “um público mais
‘seleto’ que gosta de uma bebida diferente e não se preocupa em pagar mais por isso. Eles
gostam de saber sobre a história do café, origem, se preocupam muito com a questão da
sustentabilidade e gostam muito de grãos orgânicos. ”
Essa percepção está intimamente relacionada com a que foi levantada sobre o perfil desse
público na fase netnográfica. A partir das entrevistas com os consumidores, nuances do
que seria um “mindset” de consumo terceira onda foram identificadas. Renne afirmou
que para ele a ideia de que haja um caminho mais curto entre o produtor e o consumidor
é muito importante, e que não concorda com a “filosofia” da Starbucks. Gaia, de São
Paulo, afirmou que sempre lê os rótulos para saber de onde o café veio, e que também
possui essa relação ao preferir comida orgânica, de produtores locais. Ela revelou que
normalmente compra roupas usadas, o que indica que o consumo responsável é muito
presente nas suas escolhas. Elis, também de São Paulo, conta que costuma comprar
comida orgânica e que é muito seletiva na hora de comprar roupas. “Pesquiso bem sobre
marcas, material que utilizam, tipo de mão de obra, onde a peça foi fabricada, etc.”
Apesar de essa tendência estar se fortalecendo, vale ressaltar que nem todos os que se
interessam pelo café especial seriam atraídos apenas pelo “ato político” de apoiar
produtos sustentáveis, mais saudáveis e que praticam o comércio justo. O prazer do sabor
e as descobertas no modo de preparo são fortes atrativos para esse mercado, podendo
abranger diversos públicos que – dependendo do seu interesse e habitus, não precisariam
avançar tanto dentro da terceira onda do café. Não é necessário se tornar barista e comprar
um moedor para apreciar uma boa xícara.
Perspectivas sobre esse mercado
O mercado de cafés especiais está em expansão e tem atraído novos players, no entanto,
o conhecimento sobre essa categoria ainda é pouco difundido no Brasil. Para Ricardo,
isso acontece porque há um bloqueio das importações de café verde pelo governo federal,
com a intenção de proteger o mercado nacional.
Se essa importação fosse permitida, teríamos muito mais cafés especiais no
Brasil de diversos lugares do mundo. Isso iria movimentar muito mais o
mercado de cafés especiais, fazendo com que nossos profissionais se
especializassem cada vez mais para concorrer em igualdade com esses grãos
especiais de outros lugares do mundo. (Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016)
O barista acredita que dentro de cinco anos já haja algum tipo de liberação, o que permitirá
que o mercado cresça ainda mais. Para Gustavo, sócio e diretor comercial da Moccato,
produtora de café fresco em cápsulas, a principal responsável pela falta de conhecimento
sobre a qualidade do café é a publicidade.
Acredito que parte desta desinformação seja causada pela indústria tradicional
de cafés, que passou grande boa parte do tempo, propagandeando atributos
como "força" e "tradição" que na verdade representavam cafés de baixa
qualidade, torrados em excesso. Do outro lado, havia também os grandes
produtores que não se interessavam pelo café especial em função da baixa
produtividade e da necessidade de ocupar e produzir em grandes áreas sem a
garantia de venda de captura no preço de venda (quando comparado ao preço
da commodity). (Entrevista, Gustavo Henrique Silva, 2016)
Atualmente, a maioria dos brasileiros acredita que um com café tem que ser forte, e o
amargor seria um atributo relacionado a essa força. À medida que mais pessoas provem
o café especial, é possível que essa perspectiva mude com o tempo, mas dificilmente o
café tradicional irá perder o seu lugar por conta do seu preço e penetração de mercado.
Pode ser que com o aumento da concorrência essas marcas populares se forcem a
melhorar a sua qualidade, o que no fim das contas irá beneficiar a todos nós amantes do
café.
QUESTÕES PARA DISCUSSÃO
1. O estudo aponta características sobre os consumidores de segunda onda do café.
Que estratégia você usaria para atraí-los para a terceira onda?
2. A partir das descrições levantadas neste estudo, como você acha que o consumidor
de terceira onda viaja? Que tipo de experiência seria interessante para ele?
3. Que estratégia você utilizaria para atrair um consumidor de primeira onda direto
para a terceira? O que seria importante para um consumidor que não consome café
de máquinas e não é atraído por blends de cafeterias premium?
4. O que as empresas produtoras de café em cápsulas devem fazer para se precaver
de críticas relacionadas ao lixo que geram? Como evitar perder consumidores
cada vez mais conscientes?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bureau de Inteligência Competitiva do Café; Relatório Internacional de Tendências do
Café; Disponível em: < http://bit.ly/2a3ihrl >.; Acesso em 10 de junho de 2016.
EUROMONITOR. Passport: Coffee in Brazil. Londres: Euromonitor, 2016.
Bureau de Inteligência Competitiva do Café; A Terceira Onda do Consumo de Café;
Disponível em: <https://issuu.com/educesar/docs/terceira_onda>.; Acesso em 15 de
junho de 2016.
TEIXEIRA, Lucas de Vasconcelos. Os Cafés paulistanos e a terceira onda do consumo
de café. 2015.
BARBOSA, Lívia. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos
brasileiros. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ha/v13n28/a05v1328.pdf>.;
Acesso em 20 de julho de 2016.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre, RS: Zouk, 2007.
BRUBAKER, R. Rethinking classical theory: the sociological vision of Pierre Bourdieu.
Theory and Society, v. 14, n. 6, p.745-775, 1985.
SILVA, Gilda Olinto do Valle. Capital cultural, classe e gênero em Bourdieu.
Informare: Cadernos do Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação.
Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, v.1, n.2, jul./dez. p. 24-36, 1995. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1995.
HONORÉ, Carl. Devagar. Rio de Janeiro: Record, 2005.
AGUIRRE, Ricardo: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de
Janeiro: ESPM/RJ 2016.
MENDES, Maria Teresa: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de
Janeiro: ESPM/RJ 2016.
SILVA, Gustavo Henrique: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio
de Janeiro: ESPM/RJ 2016.
BASTOS, Renne: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro:
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RIBEIRO, Elis: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro:
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PASSAROLI, Gaia: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de
Janeiro: ESPM/RJ 2016.
TEIXEIRA, Israel: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de
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Oliveira, Paula: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro:
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Case Study_Café_Thais Buarque

  • 1. SLOW COFFEE O perfil dos consumidores da terceira onda do café Preparado por Thais Manoela Buarque Corrêa, da ESPM-RJ.1 Recomendado para as disciplinas de: comportamento de consumo, antropologia do consumo e pesquisa qualitativa. Resumo O mercado de cafés está passando por transformações em meio a movimentos de consumo responsável e à valorização do prazer gastronômico. Recentemente, uma nova forma de apreciação do produto, que passa pela origem e processo de produção do mesmo tem atraído um número crescente de adeptos à chamada “terceira onda” do café. O presente estudo visa investigar quem são os consumidores desse nicho e quais valores orientam suas escolhas de consumo. Palavras-chave Cafés especiais, terceira onda, slow food, comportamento de consumo, sustentabilidade. Julho/2016 1 Este caso foi escrito inteiramente a partir de informações cedidas pela indústria pesquisada e outras fontes mencionadas no tópico "Referências". Não é intenção do autor avaliar ou julgar o movimento estratégico da indústria em questão. Este texto é destinado exclusivamente ao estudo e à discussão acadêmica, sendo vedada a sua utilização ou reprodução em qualquer outra forma. A violação aos direitos autorais sujeitará o infrator às penalidades da Lei. Direitos Reservados ESPM.
  • 2. APRESENTAÇÃO O café está presente nos lares brasileiros há quatro séculos. Além de abastecer o mercado nacional, a exportação para diversos países fez com que a indústria recebesse um alto investimento, o que se traduziu em reconhecimento internacional. O café brasileiro é considerado um dos melhores do mundo. No entanto, o que poucos sabem é que o café que é exportado não é igual ao que fica. Os grãos selecionados para exportação são geralmente superiores, e o brasileiro se acostumou com um café que ainda não está no seu melhor. A história do café como bem de consumo é categorizada em três fases, ou “ondas”. Na primeira onda, após a segunda guerra mundial, o café ganhou mais distribuição e tornou- se um produto massificado. Em seguida, o período conhecido como a segunda onda se deu com a chegada das cafeterias “premium”, principalmente a Starbucks, explorando novos sabores, misturas e formatos, como as cápsulas. A característica mais marcante dessa “onda” é a experiência social de se tomar café e os valores a ela agregados. Atualmente, prolifera-se lentamente a terceira onda do café: na qual valoriza-se a sustentabilidade do processo de produção, o comércio justo e transparente e a qualidade do produto final. A terceira onda caminha lado a lado com o movimento Slow Food e as tendências apontadas pelo Marketing 3.0, sendo a junção de uma preocupação com o meio ambiente, com o bem-estar social e a desaceleração do consumo: descartando o que é excesso e valorizando a produção local. Este estudo de caso se propõe a investigar o perfil dos consumidores de cafés especiais: comportamento, desejos e hábitos de consumo, bem como os valores que os levam a investir em produtos mais caros e conscientes. A partir de um estudo com inspiração etnográfica online e off-line e pesquisa qualitativa com consumidores e peritos, será possível diagnosticar comportamentos em comum entre o público de terceira onda e traçar o seu perfil. O estudo almeja, ainda, descobrir se a terceira onda seria um “mindset” de consumo, indicando que o comportamento seja replicado para outros segmentos, tais como moda e turismo, à medida que o consumo responsável continue seu crescimento.
  • 3. ELEMENTOS CONTEXTUAIS O Mercado Brasileiro de Café A indústria do café no Brasil movimenta bilhões de reais. Além do tradicional moído, a Associação Brasileira da Indústria de Café afirma que o consumo de café em cápsulas está em forte ascensão, contabilizando uma alta de 34,61% entre 2014 e 2015. Nos últimos dez anos, o crescimento foi de 19 milhões para R$1,4 bilhão, segundo o Bureau de Inteligência Competitiva do Café. A previsão é de que o setor movimente mais de R$20 bilhões até 2019. O desenvolvimento intenso se dá pela quebra de patente da Nespresso, abrindo espaço para novos players na produção de cápsulas. No entanto, a Abic lembra que a cápsula ainda é pouco consumida nos lares brasileiros, nos quais a preferência é pelo café torrado e moído, representando 81% do consumo2 . Atualmente, a 3 Corações SA domina o mercado com 20,5% de participação, seguida pela Sara Lee Cafés do Brasil com 17%, detentora da marca Pilão, e Nestlé com 10,5% (EUROMONITOR, 2016). O Movimento Slow O movimento Slow Food surgiu na Itália em 1986, quando Carlo Petrini se opôs à inauguração de um restaurante fast-food no centro histórico de Roma. Na época, o italiano iniciou o movimento que valoriza a comida artesanal, a degustação com calma e a responsabilidade no processo de produção3 . De acordo com o movimento, o alimento deve ser bom, limpo e justo: de boa qualidade, produzido de forma legal e sem prejudicar o ambiente, e de modo que os produtores recebam um valor equitativo pelo seu trabalho. Apesar de existir há décadas, a filosofia slow começou a ganhar mais força nos últimos anos, devido aos avanços da tecnologia e consequente aceleração do cotidiano, na qual o tempo se tornou escassez. O movimento slow hoje vai além da comida, abrindo vertentes como slow travel, slow cities, slow fashion, slow school e, dentro do guarda-chuva de slow food: slow coffee. A filosofia slow é concomitante à crescente conscientização da sociedade em relação ao excesso que produzimos, seja de lixo, de informação, de desejos ou necessidades. Hoje, observamos uma tendência à condenação do superficial, do rápido 2 Disponível em: http://www.icafebr.com.br/publicacao2/84030Relatorio%20v5%20n1.pdf; acesso em jun. 2016. 3 Disponível em: www.slowfoodbrasil.com/slowfood/filosofia; acesso em jun. 2016.
  • 4. e efêmero. O valor da experiência está na sua profundidade, na imersão no momento, na lenta degustação de uma xícara de café. As Ondas do Café O consumo de café é categorizado por ondas, segundo o Bureau de Inteligência Competitiva do Café. A primeira onda foi impulsionada pelo investimento na produção em massa após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o Bureau, o café virou commodity graças à energia que proporcionava. Nesse período, a distribuição em escala mundial era o foco, e o produto era “mais consumido do que apreciado” (2012, p.3)4 . O café de primeira onda era de baixa qualidade, o que não fazia diferença na época pois o produto era valorizado pelo seu efeito, e não o sabor. O café começou a fazer parte de um ritual diário de consumo nos lares e locais de trabalho. Na segunda onda, começou-se a explorar diferentes formas de cultivar, colher e torrar o grão. A chegada das cafeterias de “specialty coffee” como a Starbucks iniciou o processo de descomoditização do café, introduzindo novos blends de Arábica aos consumidores que antes eram acostumados com o grão Robusta (Conillon), que costuma ser mais amargo e barato. Espresso, latté, machiatto e capuccino foram termos que ganharam espaço no mercado de cafés, em decorrência do preparo em máquina popularizado pela segunda onda. Cafeterias como a Starbucks mudaram a forma de se consumir café. Se antes existia apenas a casa e o trabalho, a cafeteria surgiu como um espaço alternativo para socialização e experiência de café. Enquanto a primeira onda foi marcada pela disponibilidade do café e a segunda pela descoberta de novas experiências de consumo, a terceira onda abre um leque totalmente novo de possibilidades. Trata-se da “vinificação do café”, na qual o processo de cultivo, o terroir (características do clima e solo), a origem do grão e os métodos de torra, moagem e extração são elementos cruciais para o resultado final. Os vinhos se distinguem uns dos outros e são mais valorizados de acordo com a variedade da uva, a região produtora e especificidades do processamento. É exatamente isso o que querem as indústrias de torrefação e produtores com o mercado de cafés especiais: revelar aos consumidores que a bebida café vai muito além do aroma e da cor, pois oferece, no sabor, graus diferenciados de acidez, doçura, amargor e corpo. Como se os cafés brasileiros variassem numa escala similar à que vai de um vinho branco leve a um tinto mais encorpado. (TEIXEIRA apud MARTINS, 2015, p. 5) 4 Disponível em: https://issuu.com/educesar/docs/terceira_onda; acesso em jun. 2016
  • 5. O café então, começa a ser apreciado pelo seu sabor e método de produção. Na terceira onda, valoriza-se a sustentabilidade do cultivo e o comércio justo, sendo então um movimento que faz o caminho inverso da massificação. Para esse nicho de consumidores, diversos aspectos afetam o resultado do café que consomem, e, consequentemente, influenciam a valorização que eles dão a determinadas torras ou grãos. Nas embalagens de café terceira onda, é comum encontrar a descrição do processo utilizado, em que fazenda o grão é plantado e às vezes até o nome do produtor. A origem torna-se uma espécie de pedigree do café especial. O mesmo grão pode ser preparado de diversas formas, moído mais fino ou mais grosso, preparado na cafeteira italiana, coado no filtro Hario, feito na prensa francesa ou aeropress. Os diferentes métodos de extração, a espera pela temperatura perfeita para não queimar o pó – tudo isso requer bastante conhecimento e cuidado, desde à plantação até chegar na xícara. Barista: o sommelier do café Atualmente, cursos de barista (especialista do café) multiplicam-se pelas grandes cidades, assim como eventos de competição para premiar a melhor xícara. Esses cursos são procurados não só pelos que pretendem trabalhar com a bebida, mas também por apreciadores que gostariam de saber preparar o seu café de formas diferentes e experimentar sensações diversas. O interesse pela pluralidade do café também se vê refletido na existência dos clubes especializados. Com o advento da tecnologia, a distribuição do café especial cresce e se diversifica, assim como a disseminação do conhecimento sobre o tema. No Brasil, existem assinaturas de clubes de café, possibilitando ao assinante receber em casa diferentes cafés especiais mensalmente, e, assim, aventurar o paladar. Figura 1: Banner para e-commerce de café Fonte: www.haveacoffee.com.br
  • 6. Mais do que uma paixão, o café hoje também é um hobby. A bebida carrega uma gama de significados subjetivos, os quais ajudam a criar uma diferenciação em grupos sociais. É importante frisar que uma “onda” não acaba quando a outra começa, as três convivem simultaneamente e atendem a consumidores diferentes. Neste estudo, exploraremos o terroir do nicho terceira onda para descobrir quem é o “geek do café”: quais são os seus valores, influências e hábitos de consumo. FATOS Com o objetivo de colher insumos a serem aprofundados no estudo, foi feita uma pesquisa exploratória com inspiração netnográfica acerca do mundo do café, antes mesmo de se iniciar uma leitura teórica sobre o tema. Em seguida, dados secundários sobre o consumo de café foram obtidos através de artigos e pesquisas de consumo da categoria. Após essa fase, a pesquisadora frequentou eventos de café e cafeterias que utilizam métodos “terceira onda” de extração no Rio de Janeiro. Essa observação-participante fez com que a pesquisadora levantasse hipóteses sobre o perfil de consumidores de café terceira onda, fundamentados sob a perspectiva de Carl Honoré (Movimento Slow) e Pierre Bourdieu. Por fim, as hipóteses foram testadas através de entrevistas com consumidores e peritos. A fase exploratória do estudo, na qual utilizou-se o método inspirado em netnografia, permitiu uma observação do discurso utilizado por amantes do café e principalmente a forma como eles costumam expor seus momentos de consumo na internet. Essa técnica foi escolhida para evitar um olhar enviesado já informado sobre o tema, viabilizando uma diagnóstico prévio sobre os hábitos de consumo do público em questão. Já que, de início, este estudo não contemplou um grupo de participantes específico, foram considerados a priori os amantes de café no Instagram; os quais se declaram através da hashtag “#coffeelover”. A hashtag foi utilizada como ponto de partida para detectar comportamentos em comum entre consumidores de terceira onda e analisar como eles se diferem ou se assemelham aos de segunda onda. A pesquisadora já possuía a informação de que, dentro do conceito das ondas, os consumidores da segunda costumam tomar café de sabores diferentes, sendo frequentadores de cafeterias como a Starbucks, e consumindo cafés em cápsulas dentro
  • 7. ou fora de casa. A terceira onda, por sua vez, seria um público atraído por grãos especiais de café e detentor de conhecimento sobre diversos métodos de extração. A observação do contexto utilizado nas fotos do Instagram que continham a hashtag fez com que a pesquisadora pudesse descobrir os locais onde o café era consumido por quem postou, sendo por vezes cafeterias especializadas ou até mesmo em casa. A partir dessa informação, a conta de Instagram da cafeteria também foi explorada, permitindo uma análise do discurso que atrai o consumidor, bem como da estética visual que compõe as fotos. Assim, foi feita uma separação dos elementos relacionados a cada grupo, culminando em duas descrições. O consumidor de segunda onda Hiper-conectado, esse consumidor valoriza experiências de consumo memoráveis, personalizadas e principalmente fotografáveis. Mais importante do que o produto são os significados agregados. Legendas como “faça para o ‘gram’” e comentários como “as coisas que fazemos pelo ‘gram’” indicam uma preocupação com a produção estética da foto, o que aparenta afetar diretamente as escolhas de consumo. Figuras 2 e 3: Imagens de momentos de consumo “apple and coffee” Fonte: Instagram @appleandcoffee Para esse consumidor, ir a um café é uma experiência social, mesmo quando está sozinho. Apesar de se interessar pelos diferentes sabores de café, a praticidade da cápsula ou de comprar o café́ pronto e customizado parece ser um forte atrativo. Esse consumidor aparenta dar bastante valor a experiências gastronômicas, e mais ainda quando elas são esteticamente agradáveis.
  • 8. O consumidor de terceira onda Simpatizante do movimento Slow Food, o consumidor de terceira onda leva a importância da personalização da experiência um passo adiante. O processo de produção do seu café importa, desde o cultivo do grão até chegar à xícara. Esse consumidor gosta de explorar diferentes métodos e sabores e exige que o comércio seja justo. Mais do que espectador, ele se sente co-produtor do seu café e abriria mão da praticidade em nome do frescor e naturalidade do produto final. Figura 3: Posts sobre a importância do grão e de acompanhar o processo Fonte: Instagram: @citygirlcoffee A página @citygirlcoffee ressalta em sua comunicação a importância de se saber a origem do café, de se ter um processo sustentável e um propósito. A marca comunica seu compromisso com produtoras mulheres, configurando um café que defende uma causa social: o empoderamento das mulheres. Figura 4: Post sobre a origem e propósito do “City Girl Coffee” Fonte: Instagram: @citygirlcoffee O “café com propósito” é reflexo de uma forte tendência de comportamento: a de consumo responsável e sustentável. Ao discutir tendências do consumo alimentar, a
  • 9. antropóloga Lívia Barbosa ressalta o teor político que rege as escolhas e influencia as definições de gosto. A alimentação e o comer transformaram-se nas últimas décadas. Passaram de um ato concebido pelas pessoas como sendo da esfera das preferências individuais e privadas – do “meu” gosto e do “meu” direito de escolha – a um comportamento com conseqüências diretas na esfera pública. Desse modo, suscitaram reações das mais diversas e virulentas e, também, provocaram a organização de pessoas em torno de temas relacionados à alimentação, como é o caso do slow food e do comércio justo, entre outros (BARBOSA apud Poggio; Marins de Sá, 2006; Silva, 2005; Wilkinson, 2006). O gosto, então, é muito mais complexo do que parece. Além de ser um ato político, é uma construção cultural, social e econômica. Ao realizar uma observação participante durante o estudo, percebi que isso também se aplica aos cafés especiais. A Distinção – um relato pessoal Quando soube que haveria um evento sobre cafés em uma cafeteria “terceira onda” do Rio de Janeiro, não hesitei. Essa era uma ótima oportunidade para descobrir um pouco mais sobre esse assunto e observar as pessoas que se interessam pelo produto e seus valores agregados. O evento ocorreu através de dois ciclos. No primeiro, havia uma mesa com grãos distintos. O barista explicava a diferença entre eles, os fatores que influenciam no cultivo e características como a durabilidade e doçura natural. Ele explicou que os cafés mais conhecidos geralmente são feitos de uma mistura dos grãos, contendo uma proporção maior do grão inferior (conilon), que é mais amargo e mais barato do que o arábica e possui mais cafeína. No segundo ciclo, tivemos a oportunidade de provar as diferenças entre o café Pilão, o Melitta tradicional e o café próprio da cafeteria – em ordem de “grandeza”. Os cafés eram coados ao mesmo tempo na nossa frente, e o choque começou pelo aroma. Eu pensava que gostava do cheiro do café normal, mas descobri que não é nada comparado ao café especial, 100% arábica e recém-moído. Ao provar o Pilão primeiro, sem açúcar, a rejeição já era esperada, pois costumo tomar o meu café bem doce. No entanto, pude perceber a diferença no sabor entre os três cafés e como eles iam ficando gradualmente mais adocicados a cada degustação. O café superior poderia ser tomado sem açúcar, o que para mim era impensável. Após algumas xícaras, percebi que era questão de treinar o paladar.
  • 10. À medida que eu degustava os cafés, observava as reações dos outros consumidores: “ainda tenho meio quilo de Pilão em casa! E agora? Não vou conseguir mais! ”, exclamou um deles. Pensei o mesmo: agora vai ser difícil tomar café “normal” (e tem sido). Voltei para e primeira mesa e observei outro grupo passando pela “aula” sobre os grãos. O barista, dessa vez, comentava sobre as diferenças nas nuances do sabor. “Quando cultivado com mais elevação, esse aqui pode produzir ácido málico, o que faz com que ele tenha uma nota de maçã verde. ” O rapaz que estava ao meu lado entendia perfeitamente essas relações com a música, as “notas” e “acordes” que descrevem o sabor, e inclusive dialogava através de associações com o vinho. Eu, que nunca tinha ouvido esse tipo de comparação e não sabia sobre vinhos, perguntei: “mas como assim fica com gosto de maçã? ” O outro rapaz explicava que era uma analogia sobre a reação do nosso paladar, e não do sabor. Que o sabor produz uma memória sensorial, assim como o aroma, e nos remete a outras sensações. Foi nesse momento que eu me lembrei de Pierre Bourdieu. Eu, que já viajei bastante e que há muito tempo me interesso por arte, simbolismos e analogias, me senti desprovida do capital cultural necessário para entender aquele mundo; assim como Bourdieu descreve em sua obra maestra “A Distinção” (2007). Percebi, então, que a riqueza cultural que possuo em relação a outros temas não me ajudava muito nesse quesito. Concluí que um conhecimento prévio sobre vinhos, cervejas e afins poderia me servir como ferramenta para navegar mais facilmente na terceira onda do café – o que eu viria a investigar na fase seguinte, através de entrevistas com seis consumidores e três especialistas. A Força do Habitus Atualmente, a classe social ainda é erroneamente utilizada para prever gosto e estilos de vida de determinados públicos-alvo. Consumidores são encaixotados com base em dados principalmente demográficos e econômicos, o que é bastante limitado. À luz de Pierre Bourdieu, podemos perceber que diversos fatores influenciam o gosto e estilo de vida. Neste estudo, focaremos na integração entre o capital econômico, social, cultural e simbólico, que juntos formam o habitus: “sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações” (BRUBAKER apud BOURDIEU, 1985. p. 760). Resumidamente, o autor propõe que as nossas vivências e experiências obtidas no berço familiar e através das relações sociais, juntamente com o nosso poder aquisitivo e o prestígio dado a certos conhecimentos, influenciam os nossos interesses e ajudam a
  • 11. compor o gosto. Neste estudo, usaremos esse conceito para entender o habitus como força motriz no avanço dentro da terceira onda do café. [...] os poderes sociais fundamentais são: em primeiro lugar o capital econômico, em suas diversas formas; em segundo lugar o capital cultural, ou melhor, o capital informacional também em suas diversas formas; em terceiro lugar, duas formas de capital que estão altamente correlacionadas: o capital social, que consiste nos recursos baseados em contatos e participação em grupos e o capital simbólico que é a forma que os diferentes tipos de capital toma uma vez percebidos e reconhecidos como legítimos. (SILVA apud BOURDIEU, p. 25, 1995) Para Bourdieu, o capital cultural pode ser incorporado ou institucionalizado. O incorporado é o conhecimento adquirido através da família, incentivado por ela ou suscitado pelas vivências e oportunidades obtidas. O institucionalizado é o capital cultural aprendido em instituições oficiais, como a escola. Esse conhecimento prévio faz com que seu detentor possa caminhar a passos mais largos em comparação com quem não possui essa vantagem. Capital cultural indica acesso a conhecimento e informações ligadas a uma cultura específica; aquela que é considerada mais legítima ou superior pela sociedade como um todo [...] A esse tipo de cultura só terão acesso indivíduos que desenvolverem um esquema de apreciação necessário para tal. (SILVA apud BOURDIEU, p. 27) Em relação ao café, temos como exemplo o capital incorporado de Maria Teresa, dentista e também produtora de café em Minas Gerais. Apesar de nunca ter recebido instrução oficializada sobre o cultivo e preparo do café, ela herdou esse conhecimento de forma natural através da sua família, que já está no ramo há cerca de sessenta anos. Quando eu nasci, eu morava nessa fazenda (onde cultiva café). A minha casa devia ter uns cinco cômodos. Um deles era para guardar café. Então eu brinco que já nasci cheirando a café. A minha mãe, quando estava grávida de mim, já comprava café e negociava.... Então faz parte da minha vida desde que eu estava no útero. Meu avô foi pioneiro na região. (Entrevista, Maria Teresa Mendes, 2016) “Maitê” disse que sabe reconhecer um bom café pelo sabor, mas que precisaria de um curso para entender bem as especificações. Ela sabe diferenciar se um café está mais amargo ou mais suave, por exemplo, e consegue identificar se o grão é do cerrado mineiro ou das montanhas do Espírito Santo, mas não saberia explicar como. Caso decida fazer um curso para se especializar, Maitê terá uma grande vantagem em comparação com quem não tenha capital cultural incorporado acerca da produção e cultivo do café. Ricardo, barista do Espírito Santo, descobriu o café especial em 2013 e desde então não parou de se especializar. Ele adquiriu seu capital cultural (institucionalizado) sobre café
  • 12. através de um curso de barista e de pesquisas que realiza para aprimorar o conhecimento. Ao discutir as similaridades entre café e vinho, Ricardo demonstra seu capital cultural institucionalizado através de termos mais técnicos: Assim como o vinho, o café especial é muito complexo e conseguimos identificar várias notas sensoriais diferentes em grãos cultivados em diferentes lugares do mundo. Podemos inclusive diferenciar grãos plantados na África (Etiópia e Kenya por exemplo) de grãos plantados na América Central. Isso por causa de vários fatores como terroir, clima, altitude, umidade, etc. Todos esses fatores podem diferenciar as uvas utilizadas na produção do vinho. Já temos inclusive projetos para fazer selos de indicação geográfica para cafés plantados no Espirito Santo, que têm uma complexidade única não encontrada em outros lugares no Brasil, da mesma forma que é feita com selos de indicação geográfica para vinhos de uvas de Bordeaux, por exemplo. (Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016) A partir do conceito de capital cultural, podemos traçar um paralelo com o público que se interessaria pelas especificações do café. Alguém que já fez um curso de sommelier de vinhos, por exemplo, teria mais facilidade e provavelmente interesse em entender o café especial quando descobrir que ele existe. Paula Oliveira, de São Paulo, afirmou em sua entrevista que fez o curso por conta da sua profissão (professora de gastronomia) e por interesse pessoal, e depois disso começou a estudar informalmente o café e a cachaça. O capital social não deixa de ser relevante, visto que o café é culturalmente repleto de associações afetivas de momentos sociais, seja em família, entre amigos ou no trabalho. Na terceira onda, conhecer especialistas ou amantes de café é um meio de obter conhecimento, discutir modos de preparo e preferências. Israel, consumidor do Rio de Janeiro, descreve o café como “uma desculpa gostosa para bons relacionamentos. ” Ele descobriu o café especial através de amigos em uma cafeteria: “aprendi a apreciar a bebida frequentando o Curto Café. Eu diria que as pessoas e interações de lá foram definidoras do meu interesse, não era mais uma relação de consumo, era um relacionamento transparente com o café como coadjuvante. ” Para o barista Ricardo, o capital econômico é bastante importante nesse meio. O café especial é mais caro e o conhecimento sobre seus diversos métodos de extração faz com que o consumidor se torne mais exigente, o que resulta em um alto investimento: Eu acredito que a condição financeira seja uma barreira, sim. O café especial é em média dez vezes mais caro que um café tradicional comprado no supermercado. Não é todo mundo que pode gastar de R$20,00 a R$50 em média em um pacotinho de 250 gramas, sem falar nos equipamentos como moedor, balança, prensa francesa... O que muita gente está fazendo é tornando isso um ritual de preparo muito meticuloso. Com isso o consumo diário de café
  • 13. diminui, tanto por causa do preço quanto por causa do processo de preparo da bebida que requer um cuidado muito maior e mais tempo. Enquanto em um café tradicional moído nós fazemos uma garrafa de café e tomamos algumas xícaras, no café especial nós fazemos somente o que iremos tomar, sem desperdício e tudo meticulosamente pesado e dosado. Normalmente eu tomo somente duas xícaras de café por dia (uma de manhã e outra à tarde). (Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016) Maitê comenta que o prazer que encontra em cafés especiais, vinhos, queijos e cervejas a faz abrir mão de outros tipos de entretenimento, como viagens. Ela afirma que essa sofisticação do paladar é algo que o brasileiro está descobrindo agora, e diz que às vezes prefere priorizar essas escolhas de consumo para conseguir suprir suas vontades gastronômicas. O pensamento de Carl Honoré sobre o movimento slow corrobora com o de Maitê e Ricardo. Segundo o autor, a tendência é que cada vez mais seja valorizada a qualidade em detrimento da quantidade (p. 26, 2005). Renne, consumidor residente do Rio de Janeiro, concorda que apreciar o café especial custa caro. Ele conta que adquiriu uma cafeteira italiana, e que apesar de também gostar de café filtrado ainda não conseguiu comprar um filtro Hario (considerado o melhor). No entanto, já encomendou uma prensa francesa, e diz que o próximo passo será um moedor. As barreiras econômicas e o conhecimento necessário sobre métodos de preparo sugerem que dentro da própria terceira onda existam “sub-ondas”. Utilizando o conceito de habitus como metáfora, podemos inferir que os tipos de capital apontados por Bourdieu podem servir como ferramentas que ajudam a navegar mais rápido. Enquanto alguns consumidores precisam atravessar nadando, outros podem possuir uma prancha de surf ou ter amigos que emprestem um barco. A velocidade com que se avança é diretamente influenciada pela predisposição cultural, social e econômica do consumidor. Terceira onda: um “mindset” de consumo? Ricardo Aguirre descreveu o consumidor de cafés especiais como “um público mais ‘seleto’ que gosta de uma bebida diferente e não se preocupa em pagar mais por isso. Eles gostam de saber sobre a história do café, origem, se preocupam muito com a questão da sustentabilidade e gostam muito de grãos orgânicos. ” Essa percepção está intimamente relacionada com a que foi levantada sobre o perfil desse público na fase netnográfica. A partir das entrevistas com os consumidores, nuances do que seria um “mindset” de consumo terceira onda foram identificadas. Renne afirmou que para ele a ideia de que haja um caminho mais curto entre o produtor e o consumidor
  • 14. é muito importante, e que não concorda com a “filosofia” da Starbucks. Gaia, de São Paulo, afirmou que sempre lê os rótulos para saber de onde o café veio, e que também possui essa relação ao preferir comida orgânica, de produtores locais. Ela revelou que normalmente compra roupas usadas, o que indica que o consumo responsável é muito presente nas suas escolhas. Elis, também de São Paulo, conta que costuma comprar comida orgânica e que é muito seletiva na hora de comprar roupas. “Pesquiso bem sobre marcas, material que utilizam, tipo de mão de obra, onde a peça foi fabricada, etc.” Apesar de essa tendência estar se fortalecendo, vale ressaltar que nem todos os que se interessam pelo café especial seriam atraídos apenas pelo “ato político” de apoiar produtos sustentáveis, mais saudáveis e que praticam o comércio justo. O prazer do sabor e as descobertas no modo de preparo são fortes atrativos para esse mercado, podendo abranger diversos públicos que – dependendo do seu interesse e habitus, não precisariam avançar tanto dentro da terceira onda do café. Não é necessário se tornar barista e comprar um moedor para apreciar uma boa xícara. Perspectivas sobre esse mercado O mercado de cafés especiais está em expansão e tem atraído novos players, no entanto, o conhecimento sobre essa categoria ainda é pouco difundido no Brasil. Para Ricardo, isso acontece porque há um bloqueio das importações de café verde pelo governo federal, com a intenção de proteger o mercado nacional. Se essa importação fosse permitida, teríamos muito mais cafés especiais no Brasil de diversos lugares do mundo. Isso iria movimentar muito mais o mercado de cafés especiais, fazendo com que nossos profissionais se especializassem cada vez mais para concorrer em igualdade com esses grãos especiais de outros lugares do mundo. (Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016) O barista acredita que dentro de cinco anos já haja algum tipo de liberação, o que permitirá que o mercado cresça ainda mais. Para Gustavo, sócio e diretor comercial da Moccato, produtora de café fresco em cápsulas, a principal responsável pela falta de conhecimento sobre a qualidade do café é a publicidade. Acredito que parte desta desinformação seja causada pela indústria tradicional de cafés, que passou grande boa parte do tempo, propagandeando atributos como "força" e "tradição" que na verdade representavam cafés de baixa qualidade, torrados em excesso. Do outro lado, havia também os grandes produtores que não se interessavam pelo café especial em função da baixa produtividade e da necessidade de ocupar e produzir em grandes áreas sem a
  • 15. garantia de venda de captura no preço de venda (quando comparado ao preço da commodity). (Entrevista, Gustavo Henrique Silva, 2016) Atualmente, a maioria dos brasileiros acredita que um com café tem que ser forte, e o amargor seria um atributo relacionado a essa força. À medida que mais pessoas provem o café especial, é possível que essa perspectiva mude com o tempo, mas dificilmente o café tradicional irá perder o seu lugar por conta do seu preço e penetração de mercado. Pode ser que com o aumento da concorrência essas marcas populares se forcem a melhorar a sua qualidade, o que no fim das contas irá beneficiar a todos nós amantes do café. QUESTÕES PARA DISCUSSÃO 1. O estudo aponta características sobre os consumidores de segunda onda do café. Que estratégia você usaria para atraí-los para a terceira onda? 2. A partir das descrições levantadas neste estudo, como você acha que o consumidor de terceira onda viaja? Que tipo de experiência seria interessante para ele? 3. Que estratégia você utilizaria para atrair um consumidor de primeira onda direto para a terceira? O que seria importante para um consumidor que não consome café de máquinas e não é atraído por blends de cafeterias premium? 4. O que as empresas produtoras de café em cápsulas devem fazer para se precaver de críticas relacionadas ao lixo que geram? Como evitar perder consumidores cada vez mais conscientes?
  • 16. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bureau de Inteligência Competitiva do Café; Relatório Internacional de Tendências do Café; Disponível em: < http://bit.ly/2a3ihrl >.; Acesso em 10 de junho de 2016. EUROMONITOR. Passport: Coffee in Brazil. Londres: Euromonitor, 2016. Bureau de Inteligência Competitiva do Café; A Terceira Onda do Consumo de Café; Disponível em: <https://issuu.com/educesar/docs/terceira_onda>.; Acesso em 15 de junho de 2016. TEIXEIRA, Lucas de Vasconcelos. Os Cafés paulistanos e a terceira onda do consumo de café. 2015. BARBOSA, Lívia. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos brasileiros. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ha/v13n28/a05v1328.pdf>.; Acesso em 20 de julho de 2016. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. BRUBAKER, R. Rethinking classical theory: the sociological vision of Pierre Bourdieu. Theory and Society, v. 14, n. 6, p.745-775, 1985. SILVA, Gilda Olinto do Valle. Capital cultural, classe e gênero em Bourdieu. Informare: Cadernos do Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação. Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, v.1, n.2, jul./dez. p. 24-36, 1995. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. HONORÉ, Carl. Devagar. Rio de Janeiro: Record, 2005. AGUIRRE, Ricardo: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016. MENDES, Maria Teresa: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016. SILVA, Gustavo Henrique: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016. BASTOS, Renne: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016. RIBEIRO, Elis: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016. PASSAROLI, Gaia: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016. TEIXEIRA, Israel: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016 Oliveira, Paula: entrevista [jun.2016]. Entrevistadora. Thais Buarque. Rio de Janeiro: ESPM/RJ 2016