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2010/2011
Mestrado em Estudos Sociais da Ciência
Sociologia da Ciência
ENTRE O ETHOS E A FRAUDE
Docente – Professor Doutor António Firmino da Costa
Maria Teresa Reis Varela Pereira nº 36476
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
- 2 -
Teresa Varela Sociologia da Ciência
INDÍCE
Introdução…………………………………………………………………………..03
O Ethos da Ciência………………………………………………………………….03
A Sociedade do Risco………………………………………………………………05
Ética - Quem deve decidir o que se faz em ciência?..................................................06
A Bioética…………………………………………………………………………...08
Conclusão…………………………………………………………….……………..09
Bibliografia……………………………………………………………………….…11
INDÍCE DE TABELAS
Tabela I - Eurobarometer - Young People and Science - Analytical repot – 2008...08
ANEXOS
Declaração
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
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Teresa Varela Sociologia da Ciência
Introdução
«A ciência pode ensinar-nos como fazer bombas atómicas ou manipulações genéticas,
mas não pode responder à questão moral: devemos ou não fabricar engenhos nucleares
ou empreender um programa de manipulações genéticas? A própria decisão de “fazer
ou não ciência” também não é do domínio da ciência». Hubert Reeves in“Malicorne,
Reflexões de um observador da natureza”
O homem utiliza a ciência desde o princípio dos tempos, ainda que inicialmente a
usasse de uma forma inconsciente. Progressivamente procurou entender o mundo que o
rodeava, adaptá-lo e alterá-lo de acordo com as suas necessidades. Descobriu e criou
leis e regras para as suas descobertas e para a forma de as realizar, tal como o fez para
se organizar em sociedades.
O conhecimento confere poder ao seu detentor. Hoje, tal como nos primórdios do
tempo, aqueles que detêm o conhecimento e os recursos para o utilizar, são os que
determinam e condicionam a utilização da ciência e das suas aplicações.
Mas o conhecimento, por si só, não tem ética, nem moral. Logo, o problema do
conhecimento não é tê-lo, mas, sim, utilizá-lo. É a sua utilização que se encontra
intrinsecamente relacionada com a ética, a moral e o respeito pelo mundo que nos
rodeia.
Algures, entre os limites do Ethos e da Fraude, existe uma zona cinzenta, por vezes até
mesmo negra, da utilização do conhecimento, a qual, muitas vezes, menospreza, agride
e destrói, não só os princípios de ética e moral, mas, acima de tudo, o próprio homem e
a natureza.
“Entre o Ethos e a Fraude” pretende ser um pequeno ensaio reflexivo acerca da
utilização da ciência, ao longo dos tempos, e, particularmente, nos séculos XX e XXI.
O Ethos da Ciência
Robert Merton, “The Ethos of Science” (1942) in “On Social Structure and Science”,
definiu o Ethos da ciência como sendo composto por quatro princípios básicos:
Universalismo - os trabalhos científicos devem seguir padrões universais de avaliação;
Comunismo - o conhecimento proporcionado pelo trabalho científico é um património
comum da humanidade e não propriedade privada de algum indivíduo; Desinteresse - o
único objectivo, a curto prazo, do trabalho científico é a ampliação do conhecimento
humano; Cepticismo Organizado - o cientista não deve ser objecto de qualquer forma de
preconceito e de conclusões precipitadas sobre seus trabalhos.
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
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Teresa Varela Sociologia da Ciência
Ao relançarmos um olhar sobre a história da ciência, constatamos que, amiúde, estes
princípios não foram seguidos e, a coberto dos mais diversos pretextos, esta foi utilizada
de uma forma desviante.
Assim, a título de exemplo, constatamos que, na Idade Média e não só, a Igreja
condicionou a ciência e os cientistas, por considerar que esta atentava contra os seus
dogmas e princípios; a Alemanha nazi, ao abrigo de diversos pretextos, incluindo o de
uma suposta superioridade da raça ariana, atentou contra a dignidade e integridade física
de seres humanos, ao realizar as mais atrozes experiências com seres humanos; os EUA
desenvolveram e utilizaram a bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki, alegando a
necessidade de pôr fim a uma guerra prolongada.
Estes procedimentos são, também, a antítese do defendido por Robert Boyle (in Some
considerations Touching the Usefulness of Experimental Natural Philosophy (Oxford,
1664), o qual afirmava que os principais objectivos da ciência eram a manifestação da
Glória de Deus e o bem da humanidade.
Hoje, em plena Sociedade do Conhecimento, na Era da Globalização, o conhecimento
tornou-se como que um enorme gigante desajeitado, munido de diversos tentáculos,
sempre sujeito às mais variadas pressões e interesses dos diversos intervenientes das
sociedades que, se por um lado, procura descobrir novas formas de melhorar a vida dos
homens, por outro, atarefa-se a reduzir os efeitos nocivos dessas mesmas descobertas e,
simultaneamente, utiliza a ciência como arma ou agente dissuasor, nas guerras e lutas
pelo poder, entre países ou potências e dentro dos próprios países, ou, num outro tipo de
guerra, nas organizações ou empresas, como forma de retirar maiores dividendos ou
aniquilar a concorrência.
Nesta era das sociedades em rede, em que as distâncias e as dificuldades de informação
e de comunicação se dissolvem à distância de um click, conjuntamente com um cada
vez maior conhecimento científico por parte dos cidadãos, faria sentido que estes
exercessem um certo controlo sobre a ciência, ou seja, sobre o que se investiga, como se
investiga, com que finalidade se investiga, quais os riscos associados ao que se investiga
e como são utilizados, em termos práticos, os resultados dessas investigações, cujo
objectivo deveria ser o de colocar a ciência cada vez mais ao serviço da humanidade e
não o inverso, contribuindo, assim, para que a zona cinzenta da ciência, originada pelos
mais variados jogos de interesses, tivesse tendência para diminuir.
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
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Teresa Varela Sociologia da Ciência
A Sociedade do Risco
“…a ciência está em perigo e, por isso, torna-se perigosa.” in “Para uma Sociologia
da Ciência”(p.7) – Pierre Bourdieu
No seu livro “Sociedade do Risco” (1986) Ulrich Beck manifesta o seu pensamento,
que se centra na caracterização de um novo tipo de sociedade submetida a fortes riscos e
processos de individualização. São elementos centrais de identificação desta sociedade
as catástrofes ecológicas, as crises financeiras, o terrorismo e as guerras preventivas.
Beck distingue duas Modernidades, uma primeira, a industrial, com início no século
XVIII, e a segunda, nos finais do milénio, a Modernidade Reflexiva, um processo no
qual são postas em causa, tornando-se objecto de "reflexão", as assunções fundamentais,
as insuficiências e as antinomias da primeira modernidade.
“…o que distingue a "modernidade reflexiva" e a torna problemática é o facto de que
devemos encontrar respostas radicais aos desafios e aos riscos produzidos pela própria
modernidade. Os desafios poderão ser vencidos se conseguirmos produzir mais e
melhores tecnologias, mais e melhor desenvolvimento económico, mais e melhor
diferenciação funcional. E estas são as condições para vencer o desemprego, a
destruição do ambiente natural, o egoísmo social e assim por diante. in” A sociedade
global do risco - Uma discussão entre Ulrich BECK e Danilo ZOLO”
Embora o pensamento de Beck não se centre de forma particular na ciência ou na
sociologia da ciência, não deixa de reflectir o mundo e as sociedades de que esta é, não
só parte integrante, mas, também, uma das principais impulsionadoras das suas
alterações e mudanças, sendo a ela própria inerentes diversos riscos, e estando
umbilicalmente ligada com todos os elementos centrais da sociedade do risco,
A ânsia do conhecimento aliada às necessidades de bem-estar social, aos problemas
ambientais e aos interesses dos diversos poderes políticos e económicos catapultaram a
ciência e a tecnologia para patamares que, até há bem pouco tempo, eram apenas
objecto da ficção científica. Contudo, este conhecimento e tecnologia contêm riscos de
diversas índoles, apelidados de “novos riscos”, estes, de acordo com Maria Eduarda
Gonçalves in “Os Portugueses e os Novos Riscos”, são a nova face do progresso e
encontram-se associados a escolhas, escolhas essas que resultam “…de complexos e
muitas vezes tácitos processos de decisões sociais, económicos e políticos cujas
consequências são dificilmente compreensíveis ou controláveis”.
Segundo a mesma autora, a consciência social perante o risco tem vindo a pôr em causa
o paradigma tecnocrático. No entanto, refere também a existência de uma passividade
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
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Teresa Varela Sociologia da Ciência
generalizada, quer relativamente à procura de informação, em relação a esses riscos,
quer relativamente a acções concretas de protesto, por parte dos cidadãos, pelo menos
no que se refere à realidade portuguesa.
Em “Taking European Knowledge Society Seriously”, Ulrike Felt afirma que existe um
desconforto público em relação à ciência, causado pelo risco associado às inovações
científicas e reconhece que as práticas institucionais da ciência e da tecnologia
dependem de profundos interesses e valores sociais
Conquanto, nem as sociedades, nem a Ciência sejam estáticas, o ser humano tem
sempre uma certa resistência à mudança, até porque a qualquer mudança está sempre
associado um certo risco,
Se definirmos risco como a possibilidade da ocorrência de um factor negativo, causado
pela utilização de uma determinada descoberta científica ou tecnologia, concluiremos
que é necessário avaliar, quer a probabilidade desse risco se concretizar, quer o
benefício que essa utilização nos trará, para que possamos decidir se é razoável
corrermos o referido risco. Mas, na realidade, nem sempre esta aparente lapalissada é a
prática mais corrente, pois que, ainda que “fazer ciência” seja da competência dos
cientistas, essa decisão está condicionada a diversos factores económicos e políticos, os
quais nem sempre utilizam o bom senso como critério para a avaliação do risco,
elegendo para tal outros critérios, tais como, a solidez dos mercados, o lucro rápido, a
supremacia tecnológica ou bélica, ou o poder político.
Assim, as questões que esta problemática coloca são, entre outras, quem deve avaliar o
risco, como deve ser avaliado, de quem ou de quê depende a utilização dessa descoberta
ou tecnologia, o quê ou quem beneficia com ela,
Quando nos referimos a risco, associamo-lo imediatamente a factores que nos podem
prejudicar física, financeira ou ambientalmente, contudo existem outro riscos ligados
aos valores éticos, morais, sociais e religiosos, os quais ao serem postos em causa,
podem fazer perigar o equilíbrio das sociedades enquanto tal.
Ética - Quem deve decidir o que se faz em ciência?
Tohmas Kuhn, in “A Estrutura das Revoluções Científicas”, considera próprios da
ciência os aspectos históricos e sociológicos que envolvem a actividade científica. Na
sua perspectiva, a ciência evolui segundo distintas fases: estabelecimento de um
paradigma; período de ciência normal; crise; ciência extraordinária; revolução
científica; estabelecimento de novo paradigma,
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
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Teresa Varela Sociologia da Ciência
Então, se a Era da Globalização é o novo paradigma das sociedades, também a ciência
tem um novo paradigma, o qual terá sido antecedido de um período de crise, outro de
ciência extraordinária e de uma revolução científica, em sintonia com as inúmeras
transformações e descobertas que ocorreram, a todos os níveis, nas sociedades do séc.
XX e na primeira década do séc. XXI.
Ulrik Felt in “Taking European Knowledge Society Seriously” (Cap. 8 A Robust and
Sustainable European Knowledge Society) inclui nas “Conclusões e Recomendações”
deste estudo a necessidade da criação de um novo “Community Research Council” o
qual, através dos seus diversos membros, cientistas e não cientistas, criaria as condições
para o desenvolvimento da ciência na Europa, de acordo com as necessidades de todos
os países e também o Desenvolvimento de uma Ética Institucional, não só interessada
nas definições dos paradigmas éticos, mas também nos problemas éticos relacionados
com as preocupações dos cidadãos.
Já Rafael Marques in” Dilemas da Civilização Tecnológica” (Cap. X) defende uma ética
amoral, naquela que denomina como a sociedade da reciprocidade, a qual não deve
assentar em “…pressupostos moralistas da existência de um curso certo e universal de
acção, e recusa a construção de uma bitola inequívoca de aferição das acções
humanas, em torno dos termos bipolares do bom/mau e do certo/errado.”
Enquanto Helga Nowotny, in “Re-Thinking Science”, define quatro argumentos ou
Processos principais, 1º Ciência Modo 2 e Sociedade Modo 2, 2º de “comunicação
reversa”, 3º de contextualização, 4º Agora – espaço de diálogo e confraternização -, que,
interagindo entre si, fornecerão o suporte para repensar a ciência e, talvez, produzam os
elementos para um novo “contrato” entre a ciência e a sociedade. Já in “The Public
Nature of Science under Assault” afirma que o estado age como amortecedor e
mediador entre a ciência e os cidadãos e, simultaneamente, que a ciência está
directamente exposta às pressões dos mercados.
Quem deve então decidir o que se faz em ciência? De acordo com estes autores, ainda
que com perspectivas diferentes, as opiniões, valores e interesses dos cidadãos e da
sociedade são algo que a ciência tem que ter conta. Mas, tal como as perspectivas dos
autores são diferentes, também o serão as dos diversos parceiros sociais e as de cada um
dos milhões de cidadãos.
Em plena Era do Conhecimento, é pertinente questionarmo-nos se, efectivamente, o
conhecimento científico dos cidadãos em geral é suficiente para que estes possam fazer
escolhas conscientes relativamente à ciência e à tecnologia.
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
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Teresa Varela Sociologia da Ciência
Um estudo realizado em 2008,“Young people and science”, do qual se apresenta uma
tabela relativa à questão: “Quem deve ter a maior influência nas decisões acerca da
divisão dos fundos para investigação?”, reflecte de alguma forma a dificuldade em
determinar quem deve decidir sobre a ciência. Nesta tabela pode verificar-se que os
jovens dos diversos países não têm uma opinião unânime acerca de quem deve decidir
como se dividem os fundos para investigação, o que é o mesmo que dizer quem deve
decidir o que é que se investiga.
Contudo, parece fundamental que sejam as sociedades, no seu todo, e respeitando os
valores morais, sociais, religiosos, éticos, ambientais e humanistas, que lhes são
próprios, a decidir para onde se deve encaminhar a humanidade. No entanto, em virtude
da diversidade de interlocutores, dos quais são indissociáveis diferentes valores morais
e sociais, e que agem de acordo com os seus próprios interesses, não será fácil atingir
um consenso, estando, assim, a ciência e a tecnologia mais sujeitas a pressões e desvios.
A Bioética
Abordar a Bioética é tentar objectivar, num campo mais restrito, mas de uma
extraordinária complexidade e interligações, tudo o que atrás foi exposto. É abordar a
investigação científica e as tecnologias associadas, nas investigações e aplicações da
ciência no próprio homem, com todas as implicações que lhes estão vinculadas.
Tabela 1- Eurobarometer - Young People and science - Analytical repot - 2008
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
- 9 -
Teresa Varela Sociologia da Ciência
A Bioética é uma investigação transdisciplinar, que compreende disciplinas tão diversas
quanto a biologia, a medicina, a ética filosófica, o direito (bio-direito), a teologia, bem
como, a psicologia e a sociologia. Incide sobre as questões éticas suscitadas pela
medicina, ciências da vida e tecnologias associadas, na sua aplicação aos seres
humanos, reflectindo sobre questões onde não existe consenso, tais como, a fertilização
in vitro, a clonagem, os transgénicos e as pesquisas com células tronco, assim como
sobre a responsabilidade moral dos cientistas e demais intervenientes, nas investigações
e suas aplicações.
“Em Outubro de 2005, a Conferência Geral da UNESCO adoptou por aclamação a
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Pela primeira vez na
história da bioética, os Estados-membros comprometeram-se, e à comunidade
internacional, a respeitar e aplicar os princípios fundamentais da bioética condensados
num texto único.” In Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos –
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
A investigação científica nas ciências médicas, biomédicas e ciências da vida tem tido
uma enorme evolução, nas últimas décadas, permitindo melhorar e aumentar a
qualidade de vida da humanidade, encontrando novas e eficazes soluções na área da
saúde, recorrendo, para tal, a novíssimas tecnologias.
No entanto, muitas destas investigações e aplicações tecnológicas têm aspectos
controversos, principalmente, a nível ético e moral, como é o caso da fertilização in
vitro, a utilização de embriões para fins de investigação, ou a clonagem reprodutiva.
Estas foram já objecto de legislação, nomeadamente através da Convenção de Oviedo, a
qual tem força de lei em diversos países, entre os quais Portugal, que tem também
legislação própria (Lei nº 32/2006 de 26 de Julho).
Se, por um lado, estas investigações têm aspectos negativos graves e moral, religiosa ou
humanistamente condenáveis, tais como, a destruição de embriões ou o aproveitamento
da clonagem para fins menos claros, por outro, trazem benefícios imensos como, por
exemplo, tornarem possível que muitos casais inférteis tenham filhos, ou que se
vislumbre uma esperança para os paraplégicos, através da regeneração da medula óssea.
Conclusão
Os procedimentos da humanidade têm sido postos em causa, ao longo dos tempos e a
todos os níveis, pois que, muitos deles, atentam contra a própria humanidade, das mais
diversas formas, e contra o planeta em que vivemos, com todos os seus ecossistemas.
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
- 10 -
Teresa Varela Sociologia da Ciência
A ciência e a tecnologia, como elementos fundamentais da evolução do homem e das
sociedades, têm, por isso, vindo a ser postas em causa, quer seja pelos riscos que
implicam, pelos valores sociais e morais que atacam ou pelo mau uso que lhes é dado.
Os princípios e limites da Ética, da Moral, da Religião, da Legalidade e da Protecção do
Ambiente procuram definir padrões de conduta, nos diversos sectores da vida em
sociedade, com o objectivo de controlar e esbater as acções nocivas do homem e de os
conduzir, e às sociedades, no caminho da evolução e bem-estar.
Contudo, a verdadeira evolução da humanidade parece eternamente adiada, em virtude
dos valores diferirem de povo para povo e de era para era e, principalmente, das
incontáveis violações daqueles princípios e limites, ao que se vem adicionar a zona
cinzenta, que é a zona de actuação da humanidade, na qual esta contorna esses mesmos
princípios e limites.
A Era da Globalização coexiste com as Sociedades do Conhecimento, do Risco e em
Rede, com uma evolução científica e tecnológica sem paralelo e com a maior
miscigenação e hibridação de todos os tempos. Estamos a assistir ao nascimento de uma
nova cultura, uma Cultura Global, extraordinariamente rica, porque consubstancia uma
enorme profusão de características e saberes provenientes dos diversos povos e que, por
isso mesmo, origina igual profusão de dilemas nas sociedades.
A Bioética pode ser vista como símbolo dos dilemas da sociedade actual, pois a sua
dialéctica compreende todos os sistemas das sociedades e põe em causa os seus valores,
e, também, como o factor mais determinante para uma eventual mutação da
humanidade, pois, através de descobertas e manipulações de elementos como o ADN ou
o genoma humano, poderá conduzir ao nascimento do novo homem.
A amplitude da capacidade cognitiva do homem é ainda um mistério mas, mais
misteriosa do que a sua amplitude é a forma como, muitas vezes, o homem a utiliza,
pois que parece desligada de valores morais, sociais ou humanísticos, concentrando-se
apenas no lucro, no poder e no reconhecimento, sem olhar a riscos, nem ao sacrifício da
humanidade ou da natureza. Será que esta nova Cultura Global e o Novo Homem
originarão uma nova Ética que não dará a lugar questões como a colocada por Pierre
Bourdieu, in “Para uma Sociologia da Ciência (p. 17) “…a ciência, sobretudo a
legitimidade da ciência e a utilização legítima da ciência são motivos permanentes de
luta social e no próprio seio do mundo da ciência.”?
Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011
- 11 -
Teresa Varela Sociologia da Ciência
Bibliografia
Bourdieu, Pierre in “Para uma Sociologia da Ciência” – Edições 70
Carneiro, Roberto “Hibridação e Aventura Humana” in “A cor dos Media”,
Comunicação & Cultura, Comunicação & Cultura N.º 1 – Primavera -Verão (2006),
Quimera
Felt, Ulrik “A Robust and Sustainable European Knowledge Society” (Cap. 8), in
“Taking European Knowledge Society Seriously”, Luxembourg, DG Research,
European Commission
Gonçalves, Maria Eduarda in “Os Portugueses e os Novos Riscos”, Lisboa Imprensa de
Ciências Sociais
Hottois, G (2001) “Bioéthique”, G. Hottois & J-N. Missa, in « Nouvelle encyclopédie
de bioéthique”, Bruxelles: De Boeck
Kuhn,,Tohmas (2009 [1962,1969]) in “A Estrutura das Revoluções Científicas”, Lisboa,
Guerra e Paz
Marques, Rafael “Os fundamentos de uma ética amoral. A sociedade da reciprocidade”
(Cap. X) in “Dilemas da Civilização Tecnológica”, Hermínio Martins e José Luís
Garcia (coord.), Estudos e Investigações 28, Lisboa, Imprensa das Ciências Sociais
Merton, Robert (1996) “The Ethos of Science” (1942) in “On Social Structure and
Science”
Nowotny, Helga, Peter Scott and Michael Gibbons (2001) in “Re-Thinking Science.
Science and the Public in an Age of Uncertainty”, Oxford, Polity Press
Nowotny, Helga et al (2005) in “The Public Nature of Science under Assault. Politics,
Markets Science and Law”, Berlin, Springer
Reeves, Hubert in “Malicorne, Reflexões de um observador da natureza”, Colecção:
Ciência Aberta – 43, Gradiva Publicações
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, in
“Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”
“Lei nº 32/2006 de 26 de Julho” in “Diário da República, 1.a série “- N.o 143, 26 de
Julho de 2006
Council of Europe in “Convention For The Protection Of Human Rights And Dignity Of
The Human Being With Regard To The Application Of Biology And Medicine: Convention
On Human Rights And Biomedicine” , (E.T. Series - No. 164) Oviedo, 4.Iv.1997
http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bio%C3%A9tica

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ENTRE O ETTHOS E A FRAUDE - Final.docx

  • 1. - 2010/2011 Mestrado em Estudos Sociais da Ciência Sociologia da Ciência ENTRE O ETHOS E A FRAUDE Docente – Professor Doutor António Firmino da Costa Maria Teresa Reis Varela Pereira nº 36476
  • 2. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 2 - Teresa Varela Sociologia da Ciência INDÍCE Introdução…………………………………………………………………………..03 O Ethos da Ciência………………………………………………………………….03 A Sociedade do Risco………………………………………………………………05 Ética - Quem deve decidir o que se faz em ciência?..................................................06 A Bioética…………………………………………………………………………...08 Conclusão…………………………………………………………….……………..09 Bibliografia……………………………………………………………………….…11 INDÍCE DE TABELAS Tabela I - Eurobarometer - Young People and Science - Analytical repot – 2008...08 ANEXOS Declaração
  • 3. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 3 - Teresa Varela Sociologia da Ciência Introdução «A ciência pode ensinar-nos como fazer bombas atómicas ou manipulações genéticas, mas não pode responder à questão moral: devemos ou não fabricar engenhos nucleares ou empreender um programa de manipulações genéticas? A própria decisão de “fazer ou não ciência” também não é do domínio da ciência». Hubert Reeves in“Malicorne, Reflexões de um observador da natureza” O homem utiliza a ciência desde o princípio dos tempos, ainda que inicialmente a usasse de uma forma inconsciente. Progressivamente procurou entender o mundo que o rodeava, adaptá-lo e alterá-lo de acordo com as suas necessidades. Descobriu e criou leis e regras para as suas descobertas e para a forma de as realizar, tal como o fez para se organizar em sociedades. O conhecimento confere poder ao seu detentor. Hoje, tal como nos primórdios do tempo, aqueles que detêm o conhecimento e os recursos para o utilizar, são os que determinam e condicionam a utilização da ciência e das suas aplicações. Mas o conhecimento, por si só, não tem ética, nem moral. Logo, o problema do conhecimento não é tê-lo, mas, sim, utilizá-lo. É a sua utilização que se encontra intrinsecamente relacionada com a ética, a moral e o respeito pelo mundo que nos rodeia. Algures, entre os limites do Ethos e da Fraude, existe uma zona cinzenta, por vezes até mesmo negra, da utilização do conhecimento, a qual, muitas vezes, menospreza, agride e destrói, não só os princípios de ética e moral, mas, acima de tudo, o próprio homem e a natureza. “Entre o Ethos e a Fraude” pretende ser um pequeno ensaio reflexivo acerca da utilização da ciência, ao longo dos tempos, e, particularmente, nos séculos XX e XXI. O Ethos da Ciência Robert Merton, “The Ethos of Science” (1942) in “On Social Structure and Science”, definiu o Ethos da ciência como sendo composto por quatro princípios básicos: Universalismo - os trabalhos científicos devem seguir padrões universais de avaliação; Comunismo - o conhecimento proporcionado pelo trabalho científico é um património comum da humanidade e não propriedade privada de algum indivíduo; Desinteresse - o único objectivo, a curto prazo, do trabalho científico é a ampliação do conhecimento humano; Cepticismo Organizado - o cientista não deve ser objecto de qualquer forma de preconceito e de conclusões precipitadas sobre seus trabalhos.
  • 4. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 4 - Teresa Varela Sociologia da Ciência Ao relançarmos um olhar sobre a história da ciência, constatamos que, amiúde, estes princípios não foram seguidos e, a coberto dos mais diversos pretextos, esta foi utilizada de uma forma desviante. Assim, a título de exemplo, constatamos que, na Idade Média e não só, a Igreja condicionou a ciência e os cientistas, por considerar que esta atentava contra os seus dogmas e princípios; a Alemanha nazi, ao abrigo de diversos pretextos, incluindo o de uma suposta superioridade da raça ariana, atentou contra a dignidade e integridade física de seres humanos, ao realizar as mais atrozes experiências com seres humanos; os EUA desenvolveram e utilizaram a bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki, alegando a necessidade de pôr fim a uma guerra prolongada. Estes procedimentos são, também, a antítese do defendido por Robert Boyle (in Some considerations Touching the Usefulness of Experimental Natural Philosophy (Oxford, 1664), o qual afirmava que os principais objectivos da ciência eram a manifestação da Glória de Deus e o bem da humanidade. Hoje, em plena Sociedade do Conhecimento, na Era da Globalização, o conhecimento tornou-se como que um enorme gigante desajeitado, munido de diversos tentáculos, sempre sujeito às mais variadas pressões e interesses dos diversos intervenientes das sociedades que, se por um lado, procura descobrir novas formas de melhorar a vida dos homens, por outro, atarefa-se a reduzir os efeitos nocivos dessas mesmas descobertas e, simultaneamente, utiliza a ciência como arma ou agente dissuasor, nas guerras e lutas pelo poder, entre países ou potências e dentro dos próprios países, ou, num outro tipo de guerra, nas organizações ou empresas, como forma de retirar maiores dividendos ou aniquilar a concorrência. Nesta era das sociedades em rede, em que as distâncias e as dificuldades de informação e de comunicação se dissolvem à distância de um click, conjuntamente com um cada vez maior conhecimento científico por parte dos cidadãos, faria sentido que estes exercessem um certo controlo sobre a ciência, ou seja, sobre o que se investiga, como se investiga, com que finalidade se investiga, quais os riscos associados ao que se investiga e como são utilizados, em termos práticos, os resultados dessas investigações, cujo objectivo deveria ser o de colocar a ciência cada vez mais ao serviço da humanidade e não o inverso, contribuindo, assim, para que a zona cinzenta da ciência, originada pelos mais variados jogos de interesses, tivesse tendência para diminuir.
  • 5. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 5 - Teresa Varela Sociologia da Ciência A Sociedade do Risco “…a ciência está em perigo e, por isso, torna-se perigosa.” in “Para uma Sociologia da Ciência”(p.7) – Pierre Bourdieu No seu livro “Sociedade do Risco” (1986) Ulrich Beck manifesta o seu pensamento, que se centra na caracterização de um novo tipo de sociedade submetida a fortes riscos e processos de individualização. São elementos centrais de identificação desta sociedade as catástrofes ecológicas, as crises financeiras, o terrorismo e as guerras preventivas. Beck distingue duas Modernidades, uma primeira, a industrial, com início no século XVIII, e a segunda, nos finais do milénio, a Modernidade Reflexiva, um processo no qual são postas em causa, tornando-se objecto de "reflexão", as assunções fundamentais, as insuficiências e as antinomias da primeira modernidade. “…o que distingue a "modernidade reflexiva" e a torna problemática é o facto de que devemos encontrar respostas radicais aos desafios e aos riscos produzidos pela própria modernidade. Os desafios poderão ser vencidos se conseguirmos produzir mais e melhores tecnologias, mais e melhor desenvolvimento económico, mais e melhor diferenciação funcional. E estas são as condições para vencer o desemprego, a destruição do ambiente natural, o egoísmo social e assim por diante. in” A sociedade global do risco - Uma discussão entre Ulrich BECK e Danilo ZOLO” Embora o pensamento de Beck não se centre de forma particular na ciência ou na sociologia da ciência, não deixa de reflectir o mundo e as sociedades de que esta é, não só parte integrante, mas, também, uma das principais impulsionadoras das suas alterações e mudanças, sendo a ela própria inerentes diversos riscos, e estando umbilicalmente ligada com todos os elementos centrais da sociedade do risco, A ânsia do conhecimento aliada às necessidades de bem-estar social, aos problemas ambientais e aos interesses dos diversos poderes políticos e económicos catapultaram a ciência e a tecnologia para patamares que, até há bem pouco tempo, eram apenas objecto da ficção científica. Contudo, este conhecimento e tecnologia contêm riscos de diversas índoles, apelidados de “novos riscos”, estes, de acordo com Maria Eduarda Gonçalves in “Os Portugueses e os Novos Riscos”, são a nova face do progresso e encontram-se associados a escolhas, escolhas essas que resultam “…de complexos e muitas vezes tácitos processos de decisões sociais, económicos e políticos cujas consequências são dificilmente compreensíveis ou controláveis”. Segundo a mesma autora, a consciência social perante o risco tem vindo a pôr em causa o paradigma tecnocrático. No entanto, refere também a existência de uma passividade
  • 6. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 6 - Teresa Varela Sociologia da Ciência generalizada, quer relativamente à procura de informação, em relação a esses riscos, quer relativamente a acções concretas de protesto, por parte dos cidadãos, pelo menos no que se refere à realidade portuguesa. Em “Taking European Knowledge Society Seriously”, Ulrike Felt afirma que existe um desconforto público em relação à ciência, causado pelo risco associado às inovações científicas e reconhece que as práticas institucionais da ciência e da tecnologia dependem de profundos interesses e valores sociais Conquanto, nem as sociedades, nem a Ciência sejam estáticas, o ser humano tem sempre uma certa resistência à mudança, até porque a qualquer mudança está sempre associado um certo risco, Se definirmos risco como a possibilidade da ocorrência de um factor negativo, causado pela utilização de uma determinada descoberta científica ou tecnologia, concluiremos que é necessário avaliar, quer a probabilidade desse risco se concretizar, quer o benefício que essa utilização nos trará, para que possamos decidir se é razoável corrermos o referido risco. Mas, na realidade, nem sempre esta aparente lapalissada é a prática mais corrente, pois que, ainda que “fazer ciência” seja da competência dos cientistas, essa decisão está condicionada a diversos factores económicos e políticos, os quais nem sempre utilizam o bom senso como critério para a avaliação do risco, elegendo para tal outros critérios, tais como, a solidez dos mercados, o lucro rápido, a supremacia tecnológica ou bélica, ou o poder político. Assim, as questões que esta problemática coloca são, entre outras, quem deve avaliar o risco, como deve ser avaliado, de quem ou de quê depende a utilização dessa descoberta ou tecnologia, o quê ou quem beneficia com ela, Quando nos referimos a risco, associamo-lo imediatamente a factores que nos podem prejudicar física, financeira ou ambientalmente, contudo existem outro riscos ligados aos valores éticos, morais, sociais e religiosos, os quais ao serem postos em causa, podem fazer perigar o equilíbrio das sociedades enquanto tal. Ética - Quem deve decidir o que se faz em ciência? Tohmas Kuhn, in “A Estrutura das Revoluções Científicas”, considera próprios da ciência os aspectos históricos e sociológicos que envolvem a actividade científica. Na sua perspectiva, a ciência evolui segundo distintas fases: estabelecimento de um paradigma; período de ciência normal; crise; ciência extraordinária; revolução científica; estabelecimento de novo paradigma,
  • 7. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 7 - Teresa Varela Sociologia da Ciência Então, se a Era da Globalização é o novo paradigma das sociedades, também a ciência tem um novo paradigma, o qual terá sido antecedido de um período de crise, outro de ciência extraordinária e de uma revolução científica, em sintonia com as inúmeras transformações e descobertas que ocorreram, a todos os níveis, nas sociedades do séc. XX e na primeira década do séc. XXI. Ulrik Felt in “Taking European Knowledge Society Seriously” (Cap. 8 A Robust and Sustainable European Knowledge Society) inclui nas “Conclusões e Recomendações” deste estudo a necessidade da criação de um novo “Community Research Council” o qual, através dos seus diversos membros, cientistas e não cientistas, criaria as condições para o desenvolvimento da ciência na Europa, de acordo com as necessidades de todos os países e também o Desenvolvimento de uma Ética Institucional, não só interessada nas definições dos paradigmas éticos, mas também nos problemas éticos relacionados com as preocupações dos cidadãos. Já Rafael Marques in” Dilemas da Civilização Tecnológica” (Cap. X) defende uma ética amoral, naquela que denomina como a sociedade da reciprocidade, a qual não deve assentar em “…pressupostos moralistas da existência de um curso certo e universal de acção, e recusa a construção de uma bitola inequívoca de aferição das acções humanas, em torno dos termos bipolares do bom/mau e do certo/errado.” Enquanto Helga Nowotny, in “Re-Thinking Science”, define quatro argumentos ou Processos principais, 1º Ciência Modo 2 e Sociedade Modo 2, 2º de “comunicação reversa”, 3º de contextualização, 4º Agora – espaço de diálogo e confraternização -, que, interagindo entre si, fornecerão o suporte para repensar a ciência e, talvez, produzam os elementos para um novo “contrato” entre a ciência e a sociedade. Já in “The Public Nature of Science under Assault” afirma que o estado age como amortecedor e mediador entre a ciência e os cidadãos e, simultaneamente, que a ciência está directamente exposta às pressões dos mercados. Quem deve então decidir o que se faz em ciência? De acordo com estes autores, ainda que com perspectivas diferentes, as opiniões, valores e interesses dos cidadãos e da sociedade são algo que a ciência tem que ter conta. Mas, tal como as perspectivas dos autores são diferentes, também o serão as dos diversos parceiros sociais e as de cada um dos milhões de cidadãos. Em plena Era do Conhecimento, é pertinente questionarmo-nos se, efectivamente, o conhecimento científico dos cidadãos em geral é suficiente para que estes possam fazer escolhas conscientes relativamente à ciência e à tecnologia.
  • 8. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 8 - Teresa Varela Sociologia da Ciência Um estudo realizado em 2008,“Young people and science”, do qual se apresenta uma tabela relativa à questão: “Quem deve ter a maior influência nas decisões acerca da divisão dos fundos para investigação?”, reflecte de alguma forma a dificuldade em determinar quem deve decidir sobre a ciência. Nesta tabela pode verificar-se que os jovens dos diversos países não têm uma opinião unânime acerca de quem deve decidir como se dividem os fundos para investigação, o que é o mesmo que dizer quem deve decidir o que é que se investiga. Contudo, parece fundamental que sejam as sociedades, no seu todo, e respeitando os valores morais, sociais, religiosos, éticos, ambientais e humanistas, que lhes são próprios, a decidir para onde se deve encaminhar a humanidade. No entanto, em virtude da diversidade de interlocutores, dos quais são indissociáveis diferentes valores morais e sociais, e que agem de acordo com os seus próprios interesses, não será fácil atingir um consenso, estando, assim, a ciência e a tecnologia mais sujeitas a pressões e desvios. A Bioética Abordar a Bioética é tentar objectivar, num campo mais restrito, mas de uma extraordinária complexidade e interligações, tudo o que atrás foi exposto. É abordar a investigação científica e as tecnologias associadas, nas investigações e aplicações da ciência no próprio homem, com todas as implicações que lhes estão vinculadas. Tabela 1- Eurobarometer - Young People and science - Analytical repot - 2008
  • 9. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 9 - Teresa Varela Sociologia da Ciência A Bioética é uma investigação transdisciplinar, que compreende disciplinas tão diversas quanto a biologia, a medicina, a ética filosófica, o direito (bio-direito), a teologia, bem como, a psicologia e a sociologia. Incide sobre as questões éticas suscitadas pela medicina, ciências da vida e tecnologias associadas, na sua aplicação aos seres humanos, reflectindo sobre questões onde não existe consenso, tais como, a fertilização in vitro, a clonagem, os transgénicos e as pesquisas com células tronco, assim como sobre a responsabilidade moral dos cientistas e demais intervenientes, nas investigações e suas aplicações. “Em Outubro de 2005, a Conferência Geral da UNESCO adoptou por aclamação a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Pela primeira vez na história da bioética, os Estados-membros comprometeram-se, e à comunidade internacional, a respeitar e aplicar os princípios fundamentais da bioética condensados num texto único.” In Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos – UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura A investigação científica nas ciências médicas, biomédicas e ciências da vida tem tido uma enorme evolução, nas últimas décadas, permitindo melhorar e aumentar a qualidade de vida da humanidade, encontrando novas e eficazes soluções na área da saúde, recorrendo, para tal, a novíssimas tecnologias. No entanto, muitas destas investigações e aplicações tecnológicas têm aspectos controversos, principalmente, a nível ético e moral, como é o caso da fertilização in vitro, a utilização de embriões para fins de investigação, ou a clonagem reprodutiva. Estas foram já objecto de legislação, nomeadamente através da Convenção de Oviedo, a qual tem força de lei em diversos países, entre os quais Portugal, que tem também legislação própria (Lei nº 32/2006 de 26 de Julho). Se, por um lado, estas investigações têm aspectos negativos graves e moral, religiosa ou humanistamente condenáveis, tais como, a destruição de embriões ou o aproveitamento da clonagem para fins menos claros, por outro, trazem benefícios imensos como, por exemplo, tornarem possível que muitos casais inférteis tenham filhos, ou que se vislumbre uma esperança para os paraplégicos, através da regeneração da medula óssea. Conclusão Os procedimentos da humanidade têm sido postos em causa, ao longo dos tempos e a todos os níveis, pois que, muitos deles, atentam contra a própria humanidade, das mais diversas formas, e contra o planeta em que vivemos, com todos os seus ecossistemas.
  • 10. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 10 - Teresa Varela Sociologia da Ciência A ciência e a tecnologia, como elementos fundamentais da evolução do homem e das sociedades, têm, por isso, vindo a ser postas em causa, quer seja pelos riscos que implicam, pelos valores sociais e morais que atacam ou pelo mau uso que lhes é dado. Os princípios e limites da Ética, da Moral, da Religião, da Legalidade e da Protecção do Ambiente procuram definir padrões de conduta, nos diversos sectores da vida em sociedade, com o objectivo de controlar e esbater as acções nocivas do homem e de os conduzir, e às sociedades, no caminho da evolução e bem-estar. Contudo, a verdadeira evolução da humanidade parece eternamente adiada, em virtude dos valores diferirem de povo para povo e de era para era e, principalmente, das incontáveis violações daqueles princípios e limites, ao que se vem adicionar a zona cinzenta, que é a zona de actuação da humanidade, na qual esta contorna esses mesmos princípios e limites. A Era da Globalização coexiste com as Sociedades do Conhecimento, do Risco e em Rede, com uma evolução científica e tecnológica sem paralelo e com a maior miscigenação e hibridação de todos os tempos. Estamos a assistir ao nascimento de uma nova cultura, uma Cultura Global, extraordinariamente rica, porque consubstancia uma enorme profusão de características e saberes provenientes dos diversos povos e que, por isso mesmo, origina igual profusão de dilemas nas sociedades. A Bioética pode ser vista como símbolo dos dilemas da sociedade actual, pois a sua dialéctica compreende todos os sistemas das sociedades e põe em causa os seus valores, e, também, como o factor mais determinante para uma eventual mutação da humanidade, pois, através de descobertas e manipulações de elementos como o ADN ou o genoma humano, poderá conduzir ao nascimento do novo homem. A amplitude da capacidade cognitiva do homem é ainda um mistério mas, mais misteriosa do que a sua amplitude é a forma como, muitas vezes, o homem a utiliza, pois que parece desligada de valores morais, sociais ou humanísticos, concentrando-se apenas no lucro, no poder e no reconhecimento, sem olhar a riscos, nem ao sacrifício da humanidade ou da natureza. Será que esta nova Cultura Global e o Novo Homem originarão uma nova Ética que não dará a lugar questões como a colocada por Pierre Bourdieu, in “Para uma Sociologia da Ciência (p. 17) “…a ciência, sobretudo a legitimidade da ciência e a utilização legítima da ciência são motivos permanentes de luta social e no próprio seio do mundo da ciência.”?
  • 11. Entre o Ethos e a Fraude 2010/2011 - 11 - Teresa Varela Sociologia da Ciência Bibliografia Bourdieu, Pierre in “Para uma Sociologia da Ciência” – Edições 70 Carneiro, Roberto “Hibridação e Aventura Humana” in “A cor dos Media”, Comunicação & Cultura, Comunicação & Cultura N.º 1 – Primavera -Verão (2006), Quimera Felt, Ulrik “A Robust and Sustainable European Knowledge Society” (Cap. 8), in “Taking European Knowledge Society Seriously”, Luxembourg, DG Research, European Commission Gonçalves, Maria Eduarda in “Os Portugueses e os Novos Riscos”, Lisboa Imprensa de Ciências Sociais Hottois, G (2001) “Bioéthique”, G. Hottois & J-N. Missa, in « Nouvelle encyclopédie de bioéthique”, Bruxelles: De Boeck Kuhn,,Tohmas (2009 [1962,1969]) in “A Estrutura das Revoluções Científicas”, Lisboa, Guerra e Paz Marques, Rafael “Os fundamentos de uma ética amoral. A sociedade da reciprocidade” (Cap. X) in “Dilemas da Civilização Tecnológica”, Hermínio Martins e José Luís Garcia (coord.), Estudos e Investigações 28, Lisboa, Imprensa das Ciências Sociais Merton, Robert (1996) “The Ethos of Science” (1942) in “On Social Structure and Science” Nowotny, Helga, Peter Scott and Michael Gibbons (2001) in “Re-Thinking Science. Science and the Public in an Age of Uncertainty”, Oxford, Polity Press Nowotny, Helga et al (2005) in “The Public Nature of Science under Assault. Politics, Markets Science and Law”, Berlin, Springer Reeves, Hubert in “Malicorne, Reflexões de um observador da natureza”, Colecção: Ciência Aberta – 43, Gradiva Publicações UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, in “Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos” “Lei nº 32/2006 de 26 de Julho” in “Diário da República, 1.a série “- N.o 143, 26 de Julho de 2006 Council of Europe in “Convention For The Protection Of Human Rights And Dignity Of The Human Being With Regard To The Application Of Biology And Medicine: Convention On Human Rights And Biomedicine” , (E.T. Series - No. 164) Oviedo, 4.Iv.1997 http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm http://pt.wikipedia.org/wiki/Bio%C3%A9tica