1. 4
.
● SEGUNDO CADERNO O GLOBO Sábado, 19 de novembro de 2011
PERFIL
Das estrelas do cinema ao morro
Cicely Berry, inglesa que foi treinadora vocal de astros e dá aulas para presos, fala sobre parceria com grupo do Vidigal
Leonardo Aversa
Mauro Ventura lares para grandes atores, em
geral porque iam interpretar um
mventura@oglobo.com.br
papel shakespeariano. Não faz
A
violência no Morro do mais isso há tempos, mas traba-
Vidigal nunca foi pro- lha todos os dias na companhia.
blema para a inglesa Ci- Um dos alunos era Sean Conne-
cely Berry. Acompa- ry. A exemplo de outros famo-
nhada de Guti Fraga, diretor do sos, ela explica que sua voz era
grupo Nós do Morro, ela sempre maravilhosa — “era só uma
caminhou tranquila pela favela. questão de fazê-lo relaxar”, diz
Agora, até os tiros que costuma- ela, que mereceu um perfil do
va ouvir sumiram, graças à pa- jornal “The Guardian” em julho
cificação. Em compensação, o com o título: “Cicely Berry, trei-
maior obstáculo à sua subida nadora de voz das estrelas”.
permanece. Os muitos degraus Também ensinou políticos
e escadas obrigam essa senhora ingleses, que procuravam fa-
de 85 anos a apoiar-se com di- lar melhor em público.
ficuldade em uma bengala. — Mas não sou particular-
Nada que desanime a diretora mente interessada nesse tra-
de voz da Royal Shakespeare balho — diz ela, que só cuidou
Company, uma das mais presti- da voz de políticos que admi-
giadas companhias de teatro do ra, todos eles do Partido Tra-
mundo. Cicely — ou Cis, como é balhista britânico.
conhecida no meio — chegou na O diretor inglês Paul Herita-
quarta à noite ao Rio, dando con- ge é testemunha do interesse
tinuidade a uma parceria com o político de Cicely. Ele sabia de
Nós do Morro iniciada em 1995. seu trabalho com presos e es-
— Na época, era um teatrinho creveu uma carta convidando-
nos fundos de uma escola públi- a para um projeto semelhante.
ca. Hoje o grupo tem uma sede e Não tinha ilusões de que acei-
um palco próprios. E o cinema, tasse, mas ela topou. Na noite
a TV e o teatro se abriram para o em que a diretora foi à cadeia,
trabalho deles. Mas a essência era dia de eleição, e Cicely quis
permanece a mesma. Já naquela acompanhar pela TV.
ocasião a Royal doou ao Nós do — Vi a sua raiva com a vitória
Morro o seu conhecimento, e de Margaret Thatcher. Ela tem
ele nos mostrou como a paixão paixão pela política e pela vida. É
pelo teatro e a satisfação de in- uma paixão para o agora e para
terpretar resultam num teatro as possibilidades de futuro. Até
vivo nos palcos. hoje, quando sobe o morro, quer
mostrar aos jovens as oportuni-
Bebida quase a matou dades que podem ter no mundo.
Cicely diz ter encontrado no Ela não deixa que a gente seja
Nós do Morro o ponto central de menos do que pode ser.
seu trabalho, que ela retirou de
uma frase da peça “The Spanish Uma autodefinida marxista
tragedy”, de Thomas Kyd: “On- Embora menos frequente, o
de as palavras não prevalecem, cinema também já recorreu ao
a violência domina.” As ativida- talento de Cicely. Ela foi “trei-
des com o grupo são parte de nadora de diálogo” de filmes
um currículo amplo o suficiente como “O último imperador” e
para incluir de trabalhos com “Beleza roubada”, os dois de
prisioneiros a aulas para artistas Bernardo Bertolucci.
como Sean Connery, Judi Dench, — Fiz porque ele é meu ami-
Helen Hunt, Samuel L. Jackson, go. E um bom marxista.
Anthony Hopkins, Jeremy Irons, E ela se definiria dessa for-
Ian McKellen e Peter Finch. ma?
Em qualquer dos casos, a — Eu gosto de me descrever
ideia é liberar a imaginação pela assim — diz ela, para quem
linguagem. Para isso, ela usa um “Rei Lear” é a maior peça mar-
método de trabalho muito físi- xista já escrita. E a melhor de
co. Há um exercício em que a todos os tempos.
pessoa fala o texto — em geral Ela mesma já dirigiu uma
Shakespeare ou outro clássico montagem do texto. Justamente
— enquanto tenta avançar, sen- por essa preferência de Cicely é
do contida pelas demais. que Guti Fraga pretende ence-
— Com o ator, essa resistên- nar o espetáculo, em colabora-
cia que ele recebe dos outros faz ção com a diretora de voz ingle-
com que encontre a linguagem sa. Cicely conserva a mesma
dentro do próprio corpo. Ele paixão que já dura quase 80
descobre o significado sem pen- anos por Shakespeare.
sar. Com o detento, ele libera — Pena que reverenciem
sentimentos que não consegue tanto Shakespeare. Ele está es-
expressar de outra maneira. Ga- crevendo para o agora, para as
nha orgulho, status e autoesti- situações que enfrentamos ho-
ma. Tem prazer e confiança em je. Fala sobre tudo o que se
si mesmo, e passa a se respon- passa nas nossas vidas.
sabilizar. E tanto os presos como Ela luta para que as pessoas
os atores do Nós do Morro têm recuperem a conexão que ha-
uma grande satisfação falando o via com o som das palavras do
texto de Shakespeare porque ele dramaturgo.
trata de sentimentos profundos, — Na época dele, somente 8%
“ “
algo que eles possuem. CICELY BERRY, diretora de voz da Royal Shakespeare Company, com a favela do Vidigal ao fundo: de Sean Connery a detentos ingleses da população sabiam ler. Elas
Cicely entrou para a Royal entendiam o significado pelo
Shakespeare Company em 1969 som e pelo ritmo — diz ela, que
— a companhia se tornou assim no Multishow. Em 2006, o grupo diz ela, que nos anos 1940 en- veio ao Rio participar do Fórum
a primeira a ter uma professora levou sua versão de “Os dois ca- trou para a Central School of Shakespeare, que celebra os 25
de voz em tempo integral. Mas valheiros de Verona” à sede da Speech and Drama. anos do Nós do Morro.
ela considera 1970 como a ver- Royal Shakespeare Company. Já na Royal, participou da Hoje, segunda e terça-feira,
dadeira data de sua entrada. — A paixão do Nós do Morro montagem de “Sonho de uma ela realiza oficina para atores e
— É que em 1969 eu estava aliada ao seu amadurecimento noite de verão” feita por Peter diretores. Também na segunda e
bêbada o ano inteiro. Bebia Ela é um divisor de foi uma aula para nossos profis- Brook, em 1970. Ela tem paixão na terça, fala para os grupos de
qualquer coisa. Quase morri. O
médico achava que eu ia ficar
águas na vida do sionais. Hoje ele está em pé de
igualdade com grupos de teatro
— Ele me ensinou como es-
cutar o ator. E, mais do que is-
pela política teatro Casa das Fases (Londri-
na) e Entelechy Arts (Londres).
com o cérebro afetado por cau- grupo. Transforma- do mundo todo — atesta. so, como escutar a linguagem, e pela vida. Cicely E, na quarta, ministra uma mas-
sa do alcoolismo — diz ela, en- Guti Fraga, diretor do Nós do para saber o que está aconte- ter class e participa de uma me-
quanto toma água com gás e be- se o tempo inteiro, Morro, diz que ela “é um divisor cendo nela. Peter me deu con- Berry não deixa sa-redonda aberta ao público, a
lisca um camarão enrolado com é uma das maiores de águas” na vida do grupo. fiança no meu trabalho. que a gente seja partir das 17h, na Academia Bra-
bacon e melado. — Cicely se transforma o tem- Em “The voice and the actor”, sileira de Letras. Entre outros
Cicely internou-se num centro inspirações da po inteiro, é uma das maiores primeiro dos cinco livros que Ci- menos do que convidados, estão Justin Audi-
de recuperação e nunca mais be- minha vida inspirações da minha vida. cely escreveu, Brook diz: “Ela podemos ser bert, da Royal, e Heritage, dire-
beu. De lá para cá, a Royal Sha- O entusiasmo de Cicely pelas baseou seu trabalho na convic- tor do People’s Palace Projects
kespeare Company já trocou to- Guti Fraga, diretor do grupo artes veio cedo. O pai, funcioná- ção de que, enquanto tudo está Paul Heritage, diretor da (PPP), ONG responsável pelo in-
dos os seus diretores, com exce- Nós do Morro rio público de classe baixa, era presente na natureza, nossos ONG People’s Palace Projects tercâmbio cultural entre Brasil e
ção dela e de John Barton, que amante da música. Treinou o co- instintos naturais foram limita- Inglaterra por meio do Fórum
atua mais como conselheiro. Em ro da igreja local e tinha por há- dos desde o nascimento por vá- Shakespeare.
2011, a companhia está comple- move encontros de jovens com bito reger a música tocada no rios processos — pelo condicio- cem”), uma lista de ex-alunos dá — Eu me sinto parte da famí-
tando seu cinquentenário, en- Shakespeare no país todo. Te- rádio da casa. Mas ela acabou se namento decorrente de uma so- depoimento, como Emily Wat- lia do Nós do Morro, e esse pro-
quanto o Nós do Morro celebra mos um departamento só sobre interessando por poesia. ciedade deformada. Um ator son (“Cicely conecta pessoas jeto é uma forma de dar conti-
25 anos. O grupo inglês continua eventos de Shakespeare. Fize- — Era meu refúgio, uma fuga precisa de exercícios precisos e com o que elas são, e permite nuidade a nosso intercâmbio em
com sua sede em Stratford- mos há dois anos “Romeu e Ju- da minha família, que tinha mui- entendimento claro para liberar que o som que sai de sua voz re- um momento tão importante e
upon-Avon, terra natal de Sha- lieta” no Twitter. O departamen- ta vida. Havia muita gritaria, suas possibilidades ocultas e vele tudo”) e Helen Hunt (“Ela simbólico como o aniversário de
kespeare, mas virou uma com- to de voz, que só tinha eu, agora muita discussão. aprender a dura tarefa de ser me interessa porque eu nunca 25 anos — diz ela. — Mas, como
panhia nacional e internacional. tem mais quatro pessoas. Cicely nunca quis ser atriz. verdadeiro, condizente com o encontrei outra pessoa tão inte- das outras vezes, trata-se de fa-
— Ela se expandiu muito. O Da mesma forma, o grupo do — Gosto de ser a melhor no instinto do momento.” ressada. Interessada em ouvir zer com que os jovens possam
departamento de educação, que Vidigal cresceu e hoje, além do que faço. Quis encontrar meu No documentário sobre ela, um texto de Shakespeare de uma encontrar a alegria de falar as
criei nos anos 1970, agora é teatro e do cinema, está com ato- próprio caminho, e ele passa- intitulado “Where words prevail” nova maneira. Ela me inspira”). palavras de Shakespeare e en-
enorme, com dez pessoas, e pro- res no seriado “Mais X favela”, va por trabalhar com voz — (“Onde as palavras prevale- Ela deu muitas aulas particu- contrar essa linguagem. ■