1) O documento descreve escavações arqueológicas em andamento no local do antigo Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro, que recebia os corpos de escravos mortos.
2) Análises de isótopos em dentes recuperados indicam que as pessoas vieram de diversas partes da África, mostrando a amplitude do tráfico de escravos para o Rio.
3) Os pesquisadores encontraram sinais de práticas de higiene oral africanas nos dentes de recém-chegados, mas não nos de
1. Sábado, 19 de novembro de 2011 O GLOBO CIÊNCIA ●
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. HISTÓRIA
Um drama sob o
chão da cidade
Análise do Cemitério dos Pretos Novos destaca
colossal dimensão da escravidão no Rio
Ana Lucia Azevedo Cemitério dos
ala@oglobo.com.br Pretos Novos
S
epultada por toneladas de
terra e séculos de esqueci- ito
r opós
mento, jaz no Centro antigo Rua P
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Rua L
do Rio, uma dolorosa me-
mória da escravidão. São os res-
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Leônc
quícios do Cemitério dos Pretos
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Novos, cimentados sob os bairros
Rua do Cemitério
Rua Cem ério
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da Gamboa e da Saúde. Eles reapa-
de Al
(hoje Rua
recem aos poucos, em escava- Pedro Ernesto)
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ções, análises de ossos, dentes e
objetos. Cada um deles revela um
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pouco mais de uma história que
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assombra pelas dimensões da ESCRAVO É açoitado
em fazenda: imagem
crueldade e da ambição que trou- registrada por Debret
xeram da África milhões de escra-
vos para o Rio. Uma dessas análi-
ses foi concluída este ano e con-
firma a tese de que a cidade foi um
Costão de Ilha das
dos maiores portos de entrada de Cobras
N.S. da Saúde
escravos das Américas.
Pessoas escravizadas originárias Escavações
de quase todas as partes da África
chegavam ao Rio e daqui podiam
Saco da
começam
ser levadas para o restante do país.
Muitas não resistiam às condições
Gamboa este mês
Ru
desumanas da travessia do Atlânti-
a
da
co ou do mercado de escravos do Renato Grandelle
Qu
Rio e eram enterradas perto do por- renato.grandelle@oglobo.com.br
itan
to. O termo enterro é, de fato, um Paço
r Imperial
da
eufemismo. Os corpos eram aban- o As escavações dos vestí-
vid
●
donados à decomposição ou quei- u o gios do Cemitério dos Pretos
o O arm Ponta do
mados. Contorno ad C Novos entraram em uma no-
Campo de Ru do Calabouço
da cidade a va fase esta semana. Até ago-
em 1820 Santana Ru
Trabalho de detetive Contorno da
ra restritas ao interior de
algumas edificações da Gam-
de alta tecnologia cidade nos
dias atuais
Praia de
Santa Luzia
boa, uma equipe do Progra-
ma de Pós-Graduação em Ar-
queologia do Museu Nacio-
● Nos anos 1990, alguns desses cor- nal/UFRJ recebeu autoriza-
pos foram encontrados durante a ção da prefeitura para levar
reforma de uma casa na Rua Pedro os trabalhos para a rua. Os
Ernesto, na Gamboa. Arqueólogos pesquisadores esperam
do Instituto de Arqueologia Brasilei- comprovar, ainda este mês,
ra fizeram ali em 1996 um resgate do que o cemitério era muito
que fora acidentalmente exposto, menor do que se pensava —
publicando depois os primeiros es- teria menos de um quartei-
tudos. Mas foi só este ano que cien- rão. Alguns trabalhos acadê-
tistas concluíram uma análise mais micos chegaram a especular
detalhada dos dentes e ossos. Um que as valas estenderiam-se
trabalho de detetive, com tecnolo- sob praticamente toda a
gia moderna, para investigar um Gamboa e a Saúde.
drama de quase 200 anos. Apoiada Os arqueólogos Reinaldo
pelo CNPq e pela Faperj, a pesquisa Tavares e Tânia Andrade estão
reuniu cientistas da Escola Nacional à frente do projeto, que vai
de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), do realizar escavações em sete
Museu Nacional/UFRJ, do Laborató- áreas pontuais, junto ao meio-
rio Geochronos da UnB e da Univer- fio de três ruas: Pedro Ernesto,
sidade de Indiana, nos EUA. Leôncio de Andrade e do Pro-
— Há vestígios de 30 pessoas. pósito, na Gamboa.
Estão muito degradados — diz Tavares acredita que os
Sheila Mendonça, bioantropóloga vestígios do cemitério po-
da Ensp. dem ser encontrados a ape-
O DNA, de tão degradado, por en- nas 70 centímetros de pro-
quanto nada revelou. Mas os pes- fundidade. Esta proximidade
quisadores recorreram a uma técni- do solo é notória desde seus
ca diferente e menos conhecida pe- MERCADO DE ESCRAVOS no Valongo: destino dos negros que não morriam na cruel travessia da África para o Brasil tempos de funcionamento.
lo público. Chamada de análise de Quando chovia, partes dos
isótopos de estrôncio, ela mede a em 1760. Por 70 anos, funcionou ali Pretos Novos o mais africano do tavam misturados — analisa Sheila. corpos enterrados ficavam
proporção desse elemento químico uma fábrica de horrores. O marquês Brasil — diz Sheila. Das 30 pessoas, só duas estavam expostos, para horror dos
nos dentes. É uma espécie de DNA se viu obrigado a abrir um novo ce- Ela, Ricardo e outros pesquisado- fora do padrão esperado. Um era vizinhos do cemitério. Suas
geoquímico. O estrôncio é um metal mitério depois que o porto de escra- res, incluindo Murilo Quintans Bas- um homem mais velho, que poderia queixas levaram, em 1821, o
de nome estranho e características vos foi transferido da Praça XV para tos e Roberto Ventura, da UnB, bus- viver no Rio há mais tempo, e outro juiz de crime de Santa Rita
curiosas. Essas proporções são as- o Valongo (atual Rua Camerino). cam pistas sobre as origens dessas talvez não fosse africano. visitar o local.
sinaturas geoquímicas que depen- — Temos que levar em conta que pessoas mortas pouco após o de- — Todos os demais eram africa- Luiz de Souza Vasconcellos,
dem das características das rochas nosso conceito moderno de cemité- sembarque. Com as histórias dos nos recém-chegados. Um dos aspec- ocupante do cargo, não es-
de uma dada região. rio não se aplica ao que existia mortos esperam dar vida a um dos tos que nos chamou a atenção foi condeu o espanto diante da-
— A análise do estrôncio do es- àquela época. O Cemitério dos Pre- menos conhecidos capítulos da his- encontrar dentes com sinais de po- quele cenário. Segundo o livro
malte dos dentes permanentes, tos Novos consistia em um lugar tória da escravidão no Brasil. limento — observa Sheila. “À flor da terra”, em que Júlio
que são formados na infância e cercado, onde os corpos eram quei- O polimento é fruto de uma forma César Medeiros narra a his-
não se remodelam, revela um indí-
cio de onde viveu uma pessoa nos
mados ou deixados insepultos. Co-
vas eram abertas e corpos, empilha- Polimento de dentes de higiene oral praticada por mui-
tos povos africanos.
tória do Pretos Novos, o juiz
estimou o cemitério em 50
primeiros anos de vida — explica
Ricardo Ventura Santos, coorde-
dos — explica Sheila.
Os pesquisadores calculam que em recém-chegados — Esse polimento era resultado
da mastigação de plantas específi-
braças, o equivalente, hoje, à
área de um campo de futebol.
nador do grupo, da Ensp e pesqui- lá tenham sido enterradas, pelo cas, funcionava como pasta de den- Sua medição está sendo ve-
sador do Setor de Antropologia menos, de 20 mil a 30 mil pessoas. ● Depois que o cemitério foi fecha- tes. Mas só há sinais da prática em rificada agora.
Biológica do Museu Nacional. O Cemitério dos Pretos Novos era do (por motivos “sanitários” e le- recém-chegados. Depois, elas não ti- Outra surpresa dos ar-
A diversidade geológica na Áfri- o destino de muitos dos que já gais, já que o tráfico de escravos nham mais como limpar os dentes queólogos é relacionada ao
ca compreende quase toda aquela chegavam doentes. Ele podia ser foi proibido), a cidade começou a dessa forma e os sinais desapare- estado precário dos vestí-
existente no planeta. O estrôncio avistado do porto e do mercado aterrar o pântano e a praia. Terra ciam. Alguns dos que analisamos gios. Ao contrário do que se
extraído dos dentes das pessoas de escravos do Valongo, para hor- e areia cobriram os restos dos possuíam sinais bem claros, indi- pensava, os ossos não estão
enterradas no Cemitério dos Pre- ror dos cativos. O cemitério pas- mortos e a memória. A Rua do Ce- cando que deveriam ter chegado há quebrados só por causa da
tos Novos reflete essa diversidade sou a receber os enterros antes mitério, por exemplo, hoje chama- pouco tempo — frisa Sheila. má conservação daquele sí-
planetária. destinados ao Largo de Santa Rita, se Pedro Ernesto. Ao analisar marcas de polimento tio arqueológico.
— As pessoas ali vieram de todas em frente à Igreja de Santa Rita. Até agora, nunca houve escava- talvez seja possível identificar que — Os ossos dos mortos eram
as partes da África. Nosso estudo — Não existem estimativas da ta- ções contínuas na região dos Pre- espécies eram usadas, onde exis- quebrados pelos funcionários
reforça como o tráfico de escravos xa de mortalidade dos escravos que tos Novos. O material analisado é tiam e, assim, de onde veio a pessoa do cemitério — destaca. — Co-
era uma prática espalhada pelo con- chegavam ao porto, mas sabemos resultado do trabalho da bioar- que as utilizavam. O trabalho conti- mo a vala comum era reaberta
tinente africano. Indica também as que deveria ser elevadíssima. Um queóloga Lilia Cheuiche Macha- nua. Mas será fundamental que es- várias vezes e estava cada vez
monumentais dimensões do tráfico dos aspectos importantes das pes- do, do IAB. Lilia observou que a cavações revelem mais restos mor- mais cheia, a solução para que
realizado pelo porto do Rio — des- soas enterradas lá reside no fato maioria dos mortos era de ho- tais e busquem reconstruir outros novos corpos coubessem de-
taca Ventura. que, ao que tudo indica, apenas 5% mens jovens, inclusive crianças. dramas pessoais integrantes de um baixo da terra era partir os que
O Cemitério dos Pretos Novos foi das pessoas enterradas lá não eram — Todo o material que analisamos dos mais dolorosos momentos da já estavam lá dentro.
criado pelo Marquês do Lavradio escravas. Isso torna o Cemitério dos vem de quatro buracos. Os ossos es- história do Brasil. ■ .