1. Sábado, 26 de novembro de 2011 O GLOBO CIÊNCIA ●
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. HISTÓRIA
Fotos de divulgação
CENAS DO FILME mexicano “Os últimos cristeiros” (acima e abaixo), de Matias Meyer, que conta a história dos guerrilheiros que resistiram à Segunda Cristiada: ao todo, 250 mil pessoas foram mortas
Trincheiras da fé
Elisa Martins
ciencia@oglobo.com.br
Especial para O GLOBO • CIDADE DO
P
MÉXICO
aís com maioria da popu-
lação católica e devota
da Virgem de Guadalupe,
o México guarda em sua
História um conturbado
período em que os adep-
Filmes resgatam luta pelo direito à religião no México em 1926
tos dessa religião lutaram com ar-
mas pelo direito de exercer sua fé.
Foi durante a Revolução Mexicana,
iniciada em novembro de 1910,
quando a facção revolucionária no Os últimos
poder retirou a autonomia da Igreja
e fechou os templos. O povo reagiu cristeiros
com violência, em um confronto
com o Exército que começou em ● Os guerrilheiros que resisti-
1926 e deixou nada menos que 250 ram à Segunda Cristiada no
mil mortos, entre civis e militares. México são os protagonistas
A dimensão do conflito gerou um de “Os últimos cristeiros”,
trauma social e, por muito tempo, ele apresentado no 4º Festival In-
ficou esquecido. Agora, é resgatado ternacional de Cinema de Para-
no filme “Os últimos cristeiros”, de ty pelo diretor e co-roteirista
Matias Meyer. A produção ganhou Matias Meyer. O tema é familiar
menção honrosa do júri no 4º Festival para ele. A influência veio do
Internacional de Cinema de Paraty e historiador Jean Meyer, seu
ainda não tem data de lançamento no pai. Matias também leu livros
país. Já no ano que vem, está prevista dos guerrilheiros e pesquisou
a estreia de “Cristiada”, nome pelo fotos da época. A produção foi
qual o episódio ficou conhecido, com gravada no México, em cená-
direção de Dean Wright e tendo Eva rios reais de batalhas da Cris-
Longoria e Andy Garcia no elenco. tiada, como Jalisco, Aguasca-
A Cristiada começou após uma lientes e Zacatecas. Alguns ato-
disputa entre facções que lutavam na res, aliás, são descendentes de
Revolução Mexicana. A que se sobre- cristeiros e, para Meyer, repre-
“
pôs às demais, diferentemente da ba- sentam a alma da película.
se popular e campesina de Emiliano — Não é um filme históri-
Zapata e Pancho Villa — ícones do Reprodução co. Para isso, existem os li-
início do conflito —, representava vros — ressaltou o diretor. —
uma classe média anticlerical. No po- Preferi transportar o espec-
der, essa facção incluiu na Constitui- tador à vida cotidiana dos úl-
ção de 1917 uma série de artigos con- timos guerrilheiros cristei-
tra a Igreja. As medidas só foram pu- ros, acompanhá-los em sua
blicadas em agosto de 1926, durante solidão, dúvidas e sofrimen-
o governo de Plutarco Elias Calles. Os Tanto o governo como a Igreja subestimaram to. Os militares são vistos de
sacerdotes passaram a precisar de longe. Já a Igreja é represen-
uma autorização governamental para a força da fé religiosa mexicana tada por um padre rebelde
realizar cultos, e foram proibidos de Jean Meyer, historiador que escuta as confissões dos
votar e serem votados. A Igreja já não que já foram excomungados.
poderia ter proprieda- Reprodução Há uma cena importante em
des. A lei valeria para to- que o coronel cristeiro Flo-
das as crenças, mas, rencio Estrada explica ao pa-
diante da onipresença dre: “Nossa luta não é pela
do catolicismo à época, Igreja, mas por Deus”.
o alvo era claro. Assus- .
tada e em represália ao
governo, a Igreja sus- e com a contrariedade da Igreja. Ca-
pendeu os cultos nos tólicos que mantiveram a luta arma-
templos. Como respos- da foram excomungados. A Igreja op-
ta, o governo decidiu fe- tou por respeitar o pacto com o go-
char as igrejas e proibir verno, mesmo que o outro lado não o
a realização de cerimô- ACIMA, um registro de Emiliano Zapata, herói fizesse, até a posse do novo presiden-
nias também em casas. da Revolução Mexicana (ao lado): sua facção te. De fato, a paz só voltou em 1938,
— Calles achava que quando Lázaro Cárdenas assumiu o
a suspensão dos cultos foi vencida por uma outra, representante da poder. Ainda assim, alguns cristeiros
diminuiria o número de classe média anticlerical mantiveram a luta até 1941.
fiéis até o fim do catoli- — Foi uma tragédia, o que expli-
cismo no México — explicou ao GLO- Religiosa, organização de jovens es- recia que o povo ia a uma peregrina- bispos exilados e reabriu os templos, ca o posterior silêncio da Igreja e
BO o historiador Jean Meyer, pai do tudantes fundada para unificar os ca- ção. O episódio se assemelha, de cer- permitido a retomada dos cultos. do Estado — lembrou Meyer. —
cineasta. — Mas tanto o governo co- tólicos, liderou um boicote econômi- to modo, à guerra de Canudos. Não — A maioria dos católicos pen- Embora o governo não fosse cair,
mo a Igreja subestimaram a força da co ao governo. Diante da recusa do pela dimensão mística de fim do sou que havia ganhado — contou o muitos cristeiros acreditavam que
fé religiosa mexicana. Não se conside- Estado em reformar a Constituição, o mundo, porque os cristeiros real- historiador. — Mas alguns dirigen- não poderiam ser derrotados. Só
rou que o povo se rebelaria. movimento lançou uma revolução ar- mente tinham esperança de vencer, tes da Liga e chefes cristeiros não que a Igreja cedeu, apesar de ter
Meyer deixou a França nos anos mada em massa em janeiro de 1927. mas pelo contexto de fé popular entenderam. A lei não mudou. Por ganhado a longo prazo.
1960 para concluir uma tese sobre Os guerrilheiros ficaram conhecidos agredida por quem não a entendia. que, então, havia morrido tanta Hoje, a Igreja Católica no México é
a Cristiada. Sem acesso aos restri- como “cristeiros”. O nome foi deriva- Durante três anos, houve negocia- gente? A Igreja, no entanto, orde- uma das mais fortes da América La-
tos arquivos da Igreja e do Estado, do de “cristos-reis”, maneira depre- ções entre a Igreja e o governo, com nou que os críticos se calassem. Em tina. Os artigos da Constituição con-
decidiu investigar por conta pró- ciativa pela qual eram chamados pe- mediações internacionais de França 1932, o governo violou os acordos e trários à Igreja desapareceram, e,
pria: entrevistou os guerrilheiros lo Exército. Para eles, cujo grito era e Peru, Chile e Estados Unidos. Um voltou a fechar templos e a negar li- em 1992, o México estabeleceu rela-
sobreviventes, juntou relatos e fo- “Viva Cristo-Rei!”, a chacota transfor- milhão e meio de mexicanos fugiram cenças a sacerdotes. E, para preve- ções diplomáticas com o Vaticano.
tos e virou o maior especialista so- mou-se em motivo de orgulho. para o território vizinho neste perío- nir um novo levante, ordenou o as- — Se antes a Igreja não tocava
bre o tema no México, onde vive. — Eles achavam que seria fácil do. Em 1929, chegou-se a um acordo. sassinato dos chefes cristeiros. na Cristiada, hoje tenta capitalizá-
A população resistiu ao fechamen- derrotar o governo, mas faltavam or- O governo afirmou que nunca havia Começou, então, a Segunda Cristia- la — ressaltou o historiador. —
to dos templos. Ao mesmo tempo, a ganização e recursos — opinou pretendido intrometer-se nos assun- da. Os cristeiros voltaram a se rebe- Não fala nos combatentes, mas em
Liga Nacional de Defesa da Liberdade Meyer. — Nos primeiros levantes, pa- tos católicos. Autorizou a volta dos lar, mas desta vez em menor número mártires que morreram pela fé. ■