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Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto

                         BATENDO ORELHA!…

       Nasceu o potrilho, lindo e gordo, filho de égua boa leiteira, crioula de
campo de lei.
       O guri era mimoso, dormindo em cama limpa e comendo em mesa farta.
       Já de sobreano fizeram uma recolhida grande, sentaram-lhe uns pealos,
pertaram-no pelas orelhas e pelacola e a marca em brasa chiou-lhe na
picanha.
       Andaria nos oito anos quando meteram-lhe nas mãos a cartilha das
letras e o mestre-régio começou a indicarlheas unhas, de palmatoadas.
       O potrilho couceou, na marca. O menino meteu fios de cabelo nos olhos
da santa-luzia...
       Em potranco acompanhava a manada e retouçava com as potrancas,
sem mal nenhum.
       O rapazinho rezava o terço e brincava de esconder com as meninas… o
que custou-lhe uma sapeca de varade marmeleiro.
       Quando o potrilho foi-se enfeitando para repontar, o pastor velho meteu-
lhe os cascos e mais, a dente, botou-ocampo fora: fosse rufiar lá longe!...
       O gurizote, já taludo, quis passar-se de mais com uma prima...; o tio
deu-lhe um chá-de-casca-de-vaca, quesaiu cinza e fedeu a rato!...
       O potro andava corrido, farejando... Mas nem uma petiça arrastadeira
d’água e poronguda, achou, paraconsolo da vida. Té que o caparam.
       O mocito, que era pimpão, foi mandado incorporar. Sentaram-lhe a farda
no lombo.
       Mal sarou da ferida o potro foi pegado: corcoveou, berrou; quebraram-
lhe a boca a tirões, dividiram-lhe abarriga com a cincha; quis planchar-se, e
lanharam-lhe as virilhas a rebenque e as paletas a roseta de espora.Tiraram-
lhe as cócegas... Ficou redomão.
       O recruta marcou passo, horas, pra aprender; entrou na forma; agüentou
descomposturas; deu umasbofetadas num cabo e gurniu solitária e guarda
dobrada, por quinze dias. Cortaram-lhe os cabelos à escovinha eficou
apontado. Era o faxineiro do esquadrão.
       Houve uns apuros de precisão… O rocim foi vendido em lote, para o
regimento.
       Tocou a reunir: era uma ordem de marcha, urgente. O faxineiro recebeu
lança, espadão e tercerola.
       Quando a cavalhada chegou o primeiro serviço dos sargentos foi
assinalar os novos; era simples e ligeiro: umtalho de faca na orelha, rachando-
a. Bagual assim, viravareiúno.
       Quando tocou o bota-sela, o faxineiro estava na porteira, de buçal na
mão, esperando a vez. O laçador laçava,chamava a praça e esta enfrenava... e
cada um roia o osso que lhe tocava.
       — Chê! Enfrena!...
       Foi o reiúno que caiu pro recruta.
       Aí se juntaram os dois parecidos, o bicho e o homem. E a sorte levou os
dois, de parceria, pelo tempo adiante.Curtiram fome, juntos, cada um, do seu
comer, E sede. E frio. E cansaço, mataduras e manqueiras; cheiros depólvora
e respingos de sangue, barulho de músicas, tronar grosso e pipoquear, nas
guerrilhas.
       E de saúde, assim, assim... Um teve sarnagem, o outro
apanhoumuquiranas; se um batia a mutuca, o outrocaçava as pulgas.
       Quando, no verão, o reiúnopelechava, também o faxineiro deixava de
sofrer dores de dentes.
       Passados anos o mancarrão já nem engordava mais, e todo ovado
estava. O fiscal do regimento, sem umapalavra de — Deus te pague —
mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria. Um carroceiro
comprou-o,por patacão e meio, com as ferraduras.
       Passados anos o praça aquele teve baixa, por incapaz, com o bofe em
petição de miséria; e saiu da fileirasem mais família e sem saber oficio. Saiu
com cinco patacas, de resto do soldo, e sem o capote. Foi então sercarregador
de esquina.
       O reiúno apanhava do carroceiro, como boi ladrão!
       O carregador levava dos fregueses descompostura, de criar bicho!
       O reiúno deu em empacar.
       O carregador pegou a traguear.
       O carroceiro um dia, furioso, meteu o cabo do relho entre as orelhas do
empacador e... matou-o.
       A policia uma noite prendeu o borrachão, que resistiu, entonado;
apanhou estouros… e foi para o hospital,
golfando sangue; e esticou o molambo.
       O engraçado é que há gente que se julga muito superior aos reiúnos; e
sabe lá quanto reiúno inveja a sorte da
gente...


Fonte:
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 9.ed., Porto Alegre:
Martins Livreiro, 1998.

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  • 2. e respingos de sangue, barulho de músicas, tronar grosso e pipoquear, nas guerrilhas. E de saúde, assim, assim... Um teve sarnagem, o outro apanhoumuquiranas; se um batia a mutuca, o outrocaçava as pulgas. Quando, no verão, o reiúnopelechava, também o faxineiro deixava de sofrer dores de dentes. Passados anos o mancarrão já nem engordava mais, e todo ovado estava. O fiscal do regimento, sem umapalavra de — Deus te pague — mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria. Um carroceiro comprou-o,por patacão e meio, com as ferraduras. Passados anos o praça aquele teve baixa, por incapaz, com o bofe em petição de miséria; e saiu da fileirasem mais família e sem saber oficio. Saiu com cinco patacas, de resto do soldo, e sem o capote. Foi então sercarregador de esquina. O reiúno apanhava do carroceiro, como boi ladrão! O carregador levava dos fregueses descompostura, de criar bicho! O reiúno deu em empacar. O carregador pegou a traguear. O carroceiro um dia, furioso, meteu o cabo do relho entre as orelhas do empacador e... matou-o. A policia uma noite prendeu o borrachão, que resistiu, entonado; apanhou estouros… e foi para o hospital, golfando sangue; e esticou o molambo. O engraçado é que há gente que se julga muito superior aos reiúnos; e sabe lá quanto reiúno inveja a sorte da gente... Fonte: LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 9.ed., Porto Alegre: Martins Livreiro, 1998.