O documento descreve um homem chamado JB que está passando o réveillon no Rio de Janeiro com uma amante chamada Elisa. No dia 31, JB sai secretamente do hotel onde estavam hospedados para ir ao outro hotel onde mantinha uma suíte, a fim de preparar sua fuga para Nova Iorque e assim poder passar o ano novo com sua família como tinha prometido, mas acabou enfrentando uma série de eventos inesperados.
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Era noite do dia 31 de dezembro. Pelo horário de Brasília, os
relógios já se aproximavam da virada do ano no Brasil.
Esbaforido, suando em bicas, como se falava antigamente, um
sujeito chegou à primeira classe do voo para Nova Iorque, já depois
da última chamada para o embarque. Foi ele entrando, e a porta da
aeronave sendo fechada.
Vamos chamá-lo de JB, suas iniciais. Assim era tratado desde
a infância por familiares, amigos, companheiros de negócios e tra-
moias de alto nível e até por desconhecidos – estes acompanhavam
suas façanhas através da mídia ou das redes sociais da província.
Ele procurou seu lugar, sentou na confortável cadeira que lhe esta-
va reservada, reclinou a poltrona, respirou fundo e aceitou o cham-
panhe que a aeromoça ofereceu com um certo ar de perplexidade
estampado no rosto maquiado.
A razão do espanto da comissária não era difícil de adivinhar.
Nas últimas horas, JB passara por tantas surpresas impactantes e
intensas emoções, despendera tamanho esforço físico e emocional
que sabia, sem precisar olhar no espelho: o seu rosto estava total-
mente fora dos padrões normais. E não apenas o rosto. A sudorese,
a respiração ofegante, a mão tremendo quando foi apanhar e teve
que segurar a taça da bebida, tudo denunciava sua instabilidade.
Uma situação anormal para aquele ambiente acostumado a acolher
pessoas geralmente relaxadas, que embarcavam objetivando des-
frutar dos agradáveis confortos e mimos próprios de uma viagem
atendida com serviços privilegiados.
Bem, antes que a frase a seguir se torne dispensável, se é que já
não se tornou, vamos ressaltar que quase absolutamente nada na-
quela noite, imaginada para ser perfeita, acontecera na vida de JB
conforme o roteiro minuciosamente planejado. Pelo contrário. Fora
surpreendido por uma torrente de acontecimentos tão inusitados
que não lembrava de ter assistido algo similar sequer no cinema.
O único ponto positivo que conseguia relacionar naquele
momento é que chegara a tempo para o voo, cuja passagem fora
comprada como parte do seu projeto, apenas para lhe fornecer
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eventual álibi diante da família, e não para ser efetivamente utili-
zada. Ironicamente, não ter cancelado a reserva a tempo constituiu
a sua sorte. Diante dos acontecimentos recentes, sair do país ime-
diatamente era o encaminhamento mais oportuno para a sua vida.
A partida estava próxima, logo veio o aviso padrão da cabine.
JB endireitou a poltrona, afivelou o cinto de segurança, devolveu a
taça vazia, colocou o celular no modo avião, fechou os olhos e ten-
tou se desligar do mundo, como forma de proporcionar minutos de
repouso ao cérebro exausto.
A tranquilidade durou alguns bons minutos. Tão logo a ae-
ronave decolou e atingiu a altitude de cruzeiro, o seu estado de
meditação foi interrompido pela voz falsamente eufórica do pilo-
to anunciando a meia-noite e a chegada do ano-novo. Feliz 2018
para todos.
Foi a senha para que o avião se transformasse numa festa
de confraternização. Participou, um tanto atônito, da alegre cele-
bração que de repente fez com que todos os ocupantes do espaço
se comportassem como velhos e queridos amigos. Foi forçado a
levantar-se pela passageira da poltrona ao lado. Como um autô-
mato, trafegou pelos corredores, sacudido por uma turbulência
moderada, desejou felicidades, trocou abraços e beijinhos com
gente que nunca vira.
Réveillon nas alturas. Isso definitivamente não estava nas
suas expectativas. Tentou relaxar e entrar no clima, sem muito êxi-
to. Para sua satisfação, a turbulência aumentou, forçando o pilo-
to a ordenar o recolhimento do serviço de bordo. Todos voltaram
aos seus lugares e mantiveram os cintos afivelados, o que acabou a
festa e amainou a euforia. Os balanços que se seguiram, quase que
calaram até os mais animados. Quando, cerca de meia hora depois,
os sinais de apertar cintos se apagaram, o clima de comemoração
tinha ficado para trás.
Restabelecido o serviço, JB dispensou o jantar, pediu uma dose
dupla de uísque, engoliu em dois ágeis movimentos de quem estava
acostumado a beber scotch sem gelo. Sentiu o efeito confortante
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da bebida, chamada de espiritual porque percorre imediatamen-
te o caminho do estômago ao cérebro, onde instala um estado de
agradável enlevo. Degustando tal sensação, reclinou mais uma vez
a poltrona e tentou relaxar.
Mais tranquilo, enquanto a aeronave prosseguia o demorado
deslocamento, foi concedendo espaços à memória. Como se esti-
vesse vivendo um sonho, começou a rememorar os recentes acon-
tecimentos, tentando juntar as peças daquele inusitado quebra-ca-
beças, de modo a que algo finalmente fizesse sentido e o ajudasse a
entender o que de fato tinha ocorrido.
JB estava hospedado na companhia de uma mulher belíssima
em hotel antigo, luxuoso e algo decadente, situado entre a Avenida
Niemeyer e a praia, no Rio de Janeiro. Exigência dela, como vere-
mos lá adiante. Chegaram desde a tarde da véspera. Ele já estava no
Rio, sua base mais frequente de operação comercial, e foi esperá-
-la no Aeroporto Santos Dumont. Ela veio pela ponte aérea de São
Paulo, onde funcionava a sede de um dos negócios da sua família,
que administrava com brilho.
Um abraço apertado, apoio com as bagagens, um carro de luxo
os esperava com motorista. Troca de carinhos durante o percurso,
check-in na recepção VIP, hospedagem em suíte de luxo na parte
baixa do hotel, praticamente sobre o mar. Uma delícia de lugar.
JB bem que tentou aproveitar o clima romântico e encantador
da varanda no fim de tarde sobre a Baía de Guanabara para avançar
nas intimidades. Todo o seu corpo era uma bomba de tesão prestes
a explodir. Ela foi receptiva, permitiu que lhe abrisse blusa, mor-
discasse a orelha, lambesse o pescoço, beijasse o colo, acariciasse os
bicos dos seios. Nada mais. A partir daí, terreno proibido.
Lembre-se do nosso compromisso, recordou ela algumas vezes.
Vamos fazer amor somente amanhã, na virada do ano, bebendo um cham-
panhe delicioso, iluminando o nosso carinho com os clarões da noite e dos
fogos, embalando nossos gemidos com o barulho do mar.
E assim ficaram nas preliminares das preliminares. Saíram
para jantar, restaurante moderno e aconchegante no Leblon, vinho
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de mil dólares, caviar, luxo total. Troca intensa de carinhos e beijos
ardentes, sentados lado a lado na poltrona, mãos trocando carícias
provocativas sob a toalha da mesa.
A noite prosseguiu em tormentosa delícia. Sentaram bem à
vontade na varanda. Abriram um champanhe de qualidade. O tesão
dele não tinha como aumentar. Ela ainda provocava, passando a mão
nas partes íntimas, colocando os dedos molhados na boca dele.
Na hora de dormir, ela veio do banheiro vestida com uma ca-
misola estonteante, realçando cada detalhe do seu corpo perfeito.
Um alumbramento, JB pensou nos versos de Manoel Bandeira. Não
foi o seu primeiro, mas foi o maior de todos.
Aconchegaram-se para dormir embalados pelas ondas, ele a
abraçou por trás. Porém já nem tentou mais quebrar o compromis-
so, melhor dizendo, o fetiche. Estava convencido da inutilidade de
insistir para antecipar a transa, ela era duríssima na queda. Fazer
amor, conforme fora combinado, só na noite seguinte. Iriam virar o
ano abraçados, penetrados, para se despejarem de gozo junto com
a explosão do maior espetáculo pirotécnico do Universo. O nosso vai
ser o maior orgasmo do mundo, querido. Vale a pena aguardar, era o seu
argumento final.
No outro dia acordaram tarde, a tempo para o café no restau-
rante de vista encantadora sobre o mar azul pontilhado de fasci-
nantes ilhotas. Impossível fugir das frases óbvias de carinho e tesão
e dos elogios à paisagem maravilhosa. Não é à toa que se diz: no Rio
de Janeiro, a natureza esculpiu a sua obra mais sublime.
Passaram parte da tarde na piscina, bebericando uma dose de
boa cachaça pernambucana. De leve, para não prejudicar a noite.
Foi difícil para JB manter a compostura diante do biquíni minús-
culo, do corpo sedutor, do cheiro inebriante da parceira. Teve que
recorrer a uma camisa bem comprida.
Almoçaram pratos leves, na verdade comeram camarões espe-
ciais, dividiram uma lagosta grelhada e se recolheram. Cochilaram,
ou melhor, dormiram no fim da tarde, abraçados, antevendo os
momentos que viveriam depois.
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No começo da noite, lá pelas 19 horas, ele se despediu terna-
mente da companheira. Dorme mais um tempinho, soprou no seu
ouvido. Ela resmungou um pouco, mas aparentemente continuou
dormindo. A saída já estava combinada, embora só JB soubesse das
verdadeiras razões da escapada. A versão oficial era que iria apa-
nhar o smoking. Pé ante pé, JB fechou a porta com delicadeza e
subiu para o pátio, onde discretamente pegou um táxi e se dirigiu
para o outro hotel onde também estava hospedado.
Era da mesma forma um estabelecimento tradicional, embora
de porte muito menor, localizado ali perto, na praia de Ipanema.
Lá, ele mantinha uma suíte permanentemente alugada, que utili-
zava como sua moradia eventual na cidade. Era como se fosse uma
outra casa, com roupas, utensílios e artigos variados para não ser
necessário se preocupar com bagagem nas suas frequentes vindas
ao Rio de Janeiro. Viajava com mala de mão, contendo o mínimo
necessário para o conforto no deslocamento e alguma eventualida-
de no percurso.
Nessa noite, entretanto, o apartamento cumpria uma função
extra. Era parte importante na estratégia para fazer o seu plano dar
certo em todas as frentes. Porque não foi dito até agora que JB era
casado, e não apenas isso: tinha combinado passar o réveillon com
toda a família – esposa, duas filhas, dois genros, um filho e três ne-
tos, em Nova Iorque.
Ele já sabia, havia um bom tempo, que não tinha a menor inten-
ção de cumprir isso. A sedução e as exigências da ninfa que o acom-
panhavajátinhamdeterminadooutroroteiro. Oembarquecomtoda
a família estava originalmente marcado para logo depois do Natal.
Contudo, na última hora, alegando fatos inesperados, necessidades
incontornáveis de clientes, ficou no Brasil. Disse que precisava resol-
ver algumas coisas; prometeu viajar dois ou três dias depois.
A artimanha tinha aderência. Estava respaldada em aconte-
cimentos não exatamente incomuns naquele momento de insta-
bilidade política. O País vivia uma verdadeira montanha russa de
emoções. Os fatos que ocupavam todos os noticiários interferiam
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nas suas atividades de consultor e lobista. De desculpa em descul-
pa, para deixar o fato cada vez mais consumado, acabou marcando
a ida para o dia 31. Perdia o tão aguardado réveillon mas chegaria a
tempo de almoçarem todos juntos no primeiro dia do ano.
A razão alegada de haver deixado o smoking para lavar no outro
hotel atendia aos dois lados da questão. Para Elisa – esse era o nome
da deusa por quem estava loucamente apaixonado e por quem es-
tava correndo tantos riscos – era uma boa desculpa que justificava
a sua ausência naquele momento. Constituía a justificativa perfeita
para não gerar perguntas nem beicinhos por parte dela e ter uma boa
cobertura para telefonar com calma para a esposa e a família. Desse
modo, ficaria bem à vontade e poderia desfiar, sem constrangimen-
tos, as explicações finais para a permanência no Brasil por mais uns
dias. Nenhuma mulher, por mais cúmplice e encantada que esteja,
gosta de ouvir o seu príncipe em conversa pessoal com a outra.
Além disso, a ligação de um telefone fixo, do seu apartamento
habitual, daria mais credibilidade às suas desculpas para não em-
barcar. Pelo menos não deixaria dúvida de que se encontrava no seu
lugar costumeiro. E, fácil de verificar, sem nenhuma companhia.
Chegou ao hotel em Ipanema sem problemas, cumprimentou
os funcionários, fez questão de pagar adiantado o mês de janeiro.
Pediu duas doses do seu uísque preferido no bar, bebeu uma água
mineral, distribuiu gorjetas generosas, foi visto por tudo e por to-
dos. Subiu para o quarto com o copo de uísque na mão, derramou o
conteúdo na pia, tratou de fazer a ligação.
Essa história de não se poder nos dias de hoje falar francamen-
te ao telefone tem suas vantagens. Justificou a ligação do fixo do ho-
tel porque, como é corriqueiro por ocasiões festivas, essas porcarias
de celulares não funcionam. Colou direitinho. A esposa, claro, não
gostou da notícia de que novos acontecimentos inesperados, que
seriam explicados ao vivo, estavam retendo JB no Brasil. Lamentou
muito sua ausência justamente nos primeiros dias do mês progra-
mado para o merecido descanso em família nos Estados Unidos.
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Nem sei ainda quando vou poder ir, tenho umas coisas ligadas à
Operação para resolver antes, depois te explico os detalhes. Nesses tem-
pos, qualquer menção à palavra operação funcionava como uma
senha. Justificava a omissão de explicações detalhadas sobre fatos
que não deviam ser falados a longa distância. Fica calma, tentava
tranquilizar, não é nada de mais, só uns poucos dias. Resolvo tudo e nos
encontramos aí, passamos o mês juntos. Isso, eu com a cabeça aliviada, cla-
ro, meu amor, mais uma semana para compensar, fica tranquila, não vai
acontecer nada em janeiro mesmo. Sim, o julgamento de Lula, claro, mas
não me diz respeito, quanto mais longe estiver, melhor.
Foi tão convincente que acabou consolado pela esposa. Faz o
que for preciso, meu amor, entendi tudo, espera um instante que vou cha-
mar as crianças. Bem, crianças era cacoete de mãe, modo de falar.
Como foi dito, eram três filhos adultos, duas moças casadas com
maridos dedicados e interessados, cada casal com um filho, e mais
o rapaz, pai solteiro de JB Neto. Que aproveitou a viagem para in-
tegrar o herdeiro com a família. O garoto morava com a mãe em
Fortaleza, encontravam-se com certo espaçamento. JB Filho era o
queridinho do papai. Playboy conhecido nas noitadas do Recife,
Rio e de São Paulo, amigo de modelos, atrizes e atores globais, nem
pensava em casar, naturalmente, que a vida é bela e não tem pressa.
JB cumprimentou um por um, pacientemente. Mamãe explica,
não dá para falar por telefone, vejo vocês em breve, não deixem minha ausên-
cia interferir. Feliz Ano-Novo, se não falar mais com vocês, meus queridos,
beijos para todos, se der mais tarde ainda ligo. Não, não ligo, vocês vão estar
na rua com muito frio, falamos amanhã.
Cumprida essa parte mais delicada, vestiu uma camisa colo-
rida e inédita, colocou um boné, uns despropositados óculos escu-
ros, pegou o smoking numa posição que encobria o rosto e parte do
corpo e bateu em retirada o mais discretamente possível. Desceu
pelo elevador funcional, desembarcou na área de serviço e saiu pela
porta específica, sem ninguém dar conta dos seus movimentos.
Tudo isso era parte do plano. Cuidados talvez excessivos de
quem estava com a consciência da culpa. Caso por alguma razão
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alguém da família o procurasse, o celular estaria fora de área.
Ligariam então para o hotel, sua presença seria confirmada, dei-
xariam recado. As telefonistas já estavam orientadas permanente-
mente para, chegando qualquer mensagem de qualquer procedên-
cia, comunicar a ele em um celular diferente, utilizava vários. Um
permanente para contatos oficiais com a família, amigos e clientes
declarados. Um outro para contatos reservados ou sigilosos, esse
nunca ficava desligado. Era o seu principal instrumento de traba-
lho, mas trocava tão frequentemente de número que a família não
se dava ao trabalho de conhecer.
Até para o caso de algum dos parentes tentar ligar à meia-
-noite, estava justificado. Cheguei ao hotel, bebi uns uísques, dor-
mi, acordei com o barulho da festa, desci para ver os fogos. Versão
inquestionável. Com tudo sob controle, pegou um táxi e voltou para
o hotel na Niemeyer. Movimento quase nenhum na entrada e no
lobby. Um funcionário lustrava laboriosamente os metais das por-
tas de vidro, nem levantou os olhos quando passou. Quase todos
os hóspedes estavam recolhidos, repousando, guardando energias
para o que viria mais tarde. Entrou desapercebido, pegou o eleva-
dor e desceu. Conforme já foi dito, o estabelecimento, aproveitando
o relevo, construiu as melhores suítes na parte baixa, no mesmo
nível da piscina e dos equipamentos de lazer.
Saiu do elevador rapidamente. Para tomar pé no contexto,
olhou para o lado direito, quando sua direção era para a esquerda.
Assim, não teve como evitar a trombada com um homem forte e
mal-encarado que vinha correndo pelo corredor e dobrara em cima
do hall dos elevadores, onde JB desembarcara.
Ainda não foi dito, mas o nosso herói também não era peque-
no nem magro. Logo, caíram os dois. Preocupado em não se ma-
chucar e ainda preservar o smoking, apenas gritou um palavrão.
Não prestou muita atenção no outro, que se levantou rápido, olhou
fixamente no seu rosto como se estivesse vendo um fantasma, le-
vantou e imediatamente continuou a correr. Logo desapareceu nas
sombras e sinuosidades da área de lazer.
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No meio da confusão, duas coisas chamaram a atenção de JB.
Apesar da ligeira visualização, ficou com a nítida e forte impressão
de que conhecia o outro de algum lugar; no momento, não lhe ocor-
reu nenhuma ideia de onde ou quando, mas que conhecia, conhecia.
Verdade que essa história de reconhecer qualquer pessoa é
complicada. Muita gente parece com muita gente, chega mesmo
a se confundir, não são raros os casos de semelhanças incríveis,
gente separada ao nascer, conforme brincadeira de uma revista
de circulação nacional. E que justifica uma das mais medíocres e
bem-sucedidas abordagens nas noitadas da vida: Eu te conheço de
algum lugar, de onde mesmo a gente se conhece?
Alguns dizem que existem 365 formas de pessoas, uma para
cada dia do ano, o que diferencia é a variedade de tamanhos e de
detalhes, óculos, penteados, estilo de vestir, essas coisas. Além da
classificação por tamanhos.
Por coincidência, semelhança é a razão de ser dessa história,
como se verá nos próximos parágrafos. Mesmo caído, até esboçou
um sorriso ao lembrar o motivo do início de toda aquela aventura.
Observou, também, que algo caíra da mão, do bolso ou da cintu-
ra do sujeito e escorregara para trás do frondoso jarro de plantas
que ornava o hall. Era algo metálico, fez o barulho característico em
contato com o piso, mas nem se interessou em averiguar.
JB levantou, apanhou os óculos, dirigiu-se para o quarto. Bateu
na porta para avisar que estava entrando e, na tentativa de descon-
trair o retorno, imitou o personagem do antigo desenho animado:
Querida, cheguei. Quando abriu a porta, tomou o maior susto da sua
vida. No quarto, mais desarrumado do que deixara, dois corpos es-
tendidos, ensanguentados, aparentemente mortos: o de Elisa e o
dele próprio.
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12. II .
A cena do crime
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Nunca, nem nos piores pesadelos, JB jamais se imaginara
olhando diretamente para ele mesmo, morto, com um tiro na cabe-
ça. Pelo menos, essa seria a primeira impressão de qualquer obser-
vador. Ele, naturalmente, não sentia nenhuma dúvida sobre isso.
Bebera quase nada até então. Estava lúcido e tinha certeza de que
estava vivíssimo, mesmo se enxergando defunto. Até porque o co-
tovelo e o ombro direitos estavam começando a doer por causa da
queda, e quem está morto nem em sonhos sente dor.
Mas, que era algo muitíssimo estanho e impactante, era, sem
dúvida. Para que se tenha uma ideia do imenso susto, até com a
camisa que usara para ir à piscina o cadáver que parecia ser o seu
estava vestido.
A surpresa imobiliza, mesmo os mais experientes, frios e
calculistas. Ao se deparar com aquele cenário dantesco, JB teve a
sabedoria de se dar um tempo antes de tomar qualquer atitude.
Precisava, em primeiro lugar, assimilar a situação. Assim, recos-
tou-se na porta trancada do apartamento, olhos fechados, e, por
alguns minutos, permaneceu como que anestesiado, sem sequer
fazer esforço para pensar.
Apenas repetia, como um mantra, o batido lugar comum:
Calma, JB, muita calma nessa hora. Como se tivesse saído da luz di-
reto para a escuridão, de vez em quando piscava os olhos, apenas
para se ir se acostumando com o ambiente. Só faltava, como se diz
na literatura de segunda linha, beliscar o rosto para certificar-se de
que estava mesmo acordado.
Estava. Infelizmente, o quadro era real, e ele tinha que atuar
da melhor forma possível para administrar uma encrenca daquele
tamanho.
Tentou conter o coração, que batia acelerado, enxugou o suor
que escorria pela face. Chegara a hora de provar para si mesmo que
era capaz de agir em causa própria com a mesma frieza e eficiência
com que se movia no pantanoso terreno dos problemas alheios.
Vamos revelar logo com todas as letras: existiam dois JB, do
ponto de vista profissional. O primeiro era habituado a ganhar di-
nheiro para atar ou desatar complexos nós empresariais, levantar
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14. 22.
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oportunidades, encaminhar negociações. O outro atuava na clan-
destinidade. Operava para limpar a sujeira produzida por negócios
malconduzidos de terceiros, não raro recebia cachês milionários
por esses préstimos. Assim, estava acostumado a lidar com situa-
ções complexas e delicadas, legais ou criminosas.
Encontrar soluções para os outros é tranquilo, como para um
cirurgião é fácil operar um estranho. Porém, com envolvimento pes-
soal, as emoções entram em cena e interferem no encaminhamento.
Assim, tinha que isolar o mais que pudesse os sentimentos e atuar da
melhor e mais isenta forma possível. Precisava encontrar uma saída
satisfatória para o grande impasse em que estava envolvido.
Agir sem nenhuma referência é difícil para qualquer um. E ele
não lembrava de jamais ter ouvido menção a algum acontecimen-
to semelhante, que pudesse lhe servir para orientar no caminho a
seguir. Tinha que improvisar. Estava acostumado a fazer isso, era
treinado para pensar rápido, mas, como diz a sabedoria popular:
casa de ferreiro, espeto de pau.
Por isso, se concedeu algum tempo. Aos poucos, foi recuperan-
doacapacidadedepensarcomclareza.Aindadeolhossemifechados,
passouaordenarasideias. A desgraçajáestavafeita,agoraeracorrer
atrásdoprejuízo.Senadaétãoruimquenãopossapiorar,aprimeira
constatação que fez foi de que não poderia cometer qualquer erro,
por menor que fosse, para evitar o agravamento do quadro.
Desse modo, focou a atenção no imediato, primeiro as primei-
ras coisas, do resto cuidaria depois. Definiu a prioridade. O seu ob-
jetivo era sair ileso e de preferência incógnito daquela confusão.
Aparecer no noticiário com qualquer tipo de envolvimento naque-
las mortes significaria, num estalar de dedos, a destruição da sua
vida familiar e social. E com certeza reduziria a pó as duas faces das
suas atividades profissionais. O seu conceito como cidadão de bem
fornecia a necessária cobertura para as práticas ilegais. Teria que
fazer o que fosse necessário para deixar o seu nome fora do escân-
dalo inevitável que se seguiria à descoberta dos corpos.
Não havia meio de evitar a exploração por parte da mídia. A
imprensa, saturada pela rotina dos tiroteios e massacres nas áreas
carentes da cidade e pela investigação exaustiva de crimes do
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colarinho branco, teria, com os detalhes daquela tragédia real, en-
volvendo pessoas bonitas, ricas e famosas, um prato cheio de novi-
dades insólitas. Audiência garantida.
Era preciso, da mesma forma, esvaziar ao máximo as investi-
gações, que poderiam virar uma novela com muitos capítulos, pro-
tagonizada por delegados ávidos pela atenção da mídia.
Para elaborar uma linha de raciocínio que conduzisse à saí-
da desejada, rememorou rapidamente o histórico daquela hospe-
dagem nada convencional. Os caprichos impostos por Elisa para
aquele encontro, o fato de ele ter se submetido a uma situação fan-
tasiosa e esdrúxula, constituíam circunstâncias que, agora, pode-
riam ser revertidas a seu favor. Quem sabe serem decisivas para ele
ficar fora da encrenca?
Com isso claro, sentiu-se motivado e passou a se mover no
ambiente para ganhar familiaridade com os detalhes. Verificou o
pulso e constatou que Elisa, apesar de morta, havia algum tempo,
segundo lhe pareceu no toque, estava linda. Até mesmo o fio de
sangue que escorrera do ferimento na testa contribuía para aquela
beleza improvável.
A perfuração fora feita com tamanha precisão que parecia um
daqueles sinais característicos que as mulheres indianas usam para
diferenciar as castas. O corpo, sentado na poltrona, semidespido,
conseguia ser erótico naquela terrível circunstância.
Caído sobre a cama, o homem, também tinha mesmo falecido,
nenhuma ajuda poderia ser prestada. Naquele momento, sentiu
um alívio. O fato de ambos estarem mortos o desobrigava a chamar
um socorro médico; nada mais podia ser feito. E ainda mais lhe
restava algum tempo para agir, pois estava acostumado a se mover
com rapidez.
Mas, como justificar sua presença no quarto do sujeito assas-
sinado? A pergunta não calava na sua mente. A questão de quem
se tratava já tinha sido respondida desde o primeiro instante. Não
podia ser outra pessoa, senão o ex-marido de Elisa.
Ex é forma de dizer. Estavam separados de fato, mas permane-
ciam casados juridicamente. Ele e JB eram muito parecidos, princi-
palmentequandovistosdefrenteedelonge.Quasesósias,passariam
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16. 24.
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por irmãos gêmeos. Em várias ocasiões até parentes distantes e ami-
gos próximos confundiram os dois. A semelhança era a razão da pre-
sençadeambosnolocal,semsombradedúvida,emboraJBnãofizes-
se a mínima ideia de como e por que o outro fora parar ali.
A cabeça da gente é uma máquina de divagações. Naquela
hora dramática, JB recordou um impressionante episódio causado
por essa semelhança, que muito o beneficiara na época. Anos atrás,
estava ele no Aeroporto de Guarulhos, em viagem para um país afri-
cano. A sua missão era atuar nos bastidores de uma vultosa concor-
rência internacional, do interesse de uma grande empreiteira.
Voo atrasado, sentou no bar da área de embarque, pediu uma
bebida e ficou folheando uma revista enquanto aguardava. Nisso,
aproximou-se uma pessoa dessas tantas que você pode até conhe-
cer, mas não sabe de onde e não tem a menor ideia do nome. O ou-
tro puxou um papo com intimidade desproporcional. Rapaz, nunca
mais nos vimos, como vai tua vida? Casou? Tem filhos? Desfiou triviali-
dades habituais em conversas entre amigos que há muito não se
viam. Em pouco tempo JB identificou com quem o indivíduo pen-
sava que estava falando. Era o tal, o então marido de Elisa, que ago-
ra jazia prostrado na sua frente.
Como tinha horas de sobra no aeroporto, resolveu deixar o
papo rolar, sem esclarecer o equívoco, apenas para passar o tem-
po. O interlocutor falava pelos cotovelos, dava detalhes da sua vida
pessoal e da história comum com o outro. Assim, JB ficou sabendo
que foram colegas de CPOR, no Recife, fizeram farras juntos, na-
moraram duas primas. Depois, ele mudou-se para São Paulo, pra-
ticamente não se viram mais, cada qual sabendo da vida do outro
muito por alto, à distância.
À certa altura, vieram as perguntas específicas: O teu voo tam-
bém está atrasado? Você está indo para Angola? Não acredito. Eu também
vou para lá. E, na sequência, sem ser perguntado, contou que traba-
lhava para uma empreiteira que ia participar de uma concorrência,
era a mesma na qual JB iria atuar. Jogo de cartas marcadas, disse o
outro com ar de superioridade. Sua missão era só acompanhar o
processo, evitar desvios de rota ou vazamentos de informações, ve-
rificar se todas as exigências estavam sendo cumpridas.
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Coincidência devia ter limites, mas não tem. Os dois estavam
indo tratar da mesma coisa para empresas diferentes. Só que, ao
contrário do outro, JB ia aventurar. Sabiam, ele e o cliente, que as
chances eram mínimas naquele certame bilionário. O objetivo da
empresa era marcar posição, apresentar-se como player no merca-
do internacional. Usando uma metáfora futebolística, figura de lin-
guagem muito em voga na época, quem não joga não ganha torcida.
A conversa comprida do interlocutor deu a JB tempo para
montar sua própria versão para a viagem. Como sabia que o sósia
do Recife operava no mercado financeiro com uma factoring for-
mal e também era um conhecido doleiro e agiota, com atuação no
Nordeste, montou uma genérica, porém suficiente versão.
Estaria intermediando financiamentos de órgãos oficiais
brasileiros para o governo angolano. Transações importantes, em
dólar, para financiar obras públicas, talvez até o objeto da própria
concorrência, quem sabe. Era o bastante para satisfazer a curiosi-
dade do interlocutor e justificar eventual encontro de ambos em
ambientes oficiais. Restava o problema do nome, que resolveria
adiante. Havendo necessidade, já tinha uma conversa pronta sobre
isso. Não chegou a ser necessário. Foi a primeira vez que passaria
um período sendo chamado pelo apelido do rival.
Viagem longa, felizmente não iam se hospedar no mesmo ho-
tel, detalhe que facilitava muito a vida e, a essas alturas, os álibis
de JB. Marcaram um encontro para o dia seguinte, ao entardecer.
Depois de consumirem meia garrafa de uísque, na beira da piscina,
a suposta amizade estava plenamente restabelecida. JB sabia o su-
ficiente para evitar qualquer saia justa.
Durante quase dois meses, continuou se passando pelo agora
defunto, representando o papel de agente financeiro. E a amizade
só fez se estreitar, a confiança aumentando a cada dia, confidên-
cias rolando soltas. JB confidenciava coisas sigilosas, picantes e
naturalmente falsas dele e verdadeiras de terceiros conhecidos no
cenário político ou econômico. Todo dia, terminado o expediente,
os dois se encontravam para conversar, beber, nadar, jogar tênis.
JB sempre ia ao hotel do outro, ou o apanhava para atividades ex-
ternas. Restaurantes ou bares, normalmente. Às sextas-feiras e
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sábados, dedicavam a noite a animados programas nas melhores
boates, com lindas mulheres, geralmente do leste europeu.
Cada qual contava sempre as suas atividades do dia. JB falava
por alto, desenvolvendo em linhas gerais o seu enredo imaginário.
Negociações difíceis, os africanos queriam dinheiro a custo zero.
Dessa forma não tinha sequer como ele ganhar. Já o sujeito, falas-
trão por natureza, relatava o dia a dia em minúcias, sem esconder
as tratativas, os acertos, os subornos combinados, as articulações
políticas no Brasil. Deixava escapar os menores detalhes da pro-
posta. Lá para adiante, em noitada de muita bebida e inebriantes
mulheres, soltou o preço final definido por seu cliente.
Com base nas informações colhidas, JB indicou os obstáculos a
ser removidos, o preço de cada elemento chave no processo, aquém
e além-mar. Instruiu a formatação da proposta nos mínimos deta-
lhes. Mesmo sem ser a empresa preferida pelo governo brasileiro,
financiador da empreitada, os seus clientes acabaram vencedores
do cobiçado certame. Êxito total. O sucesso inesperado é sempre
mais gostoso.
Concluída a tarefa, recebeu os vultosos honorários a que fez jus.
Guardou segredo sobre como conseguiu monitorar com tamanha
precisão a concorrência. Ganhou pontos no estreito e disputado mer-
cado do lobby, o padrão de vida deu um salto. Administrando tal êxito
com muita competência, chegara até ali na restrita lista dos melhores
do mercado e, o que era mais valioso naquele momento turbulento e
devoradordereputações,semqueimaçãopúblicadequalquerespécie.
O amigo circunstancial quando, tempos depois, descobriu a ra-
zão do seu retumbante fracasso, não achou graça nenhuma. Os pa-
trões desde o primeiro momento ficaram cuspindo fogo. O mundo
é pequeno, as versões circulam, os empresários acabaram sabendo
que a razão do fiasco foi a língua solta do seu homem de confian-
ça. Tiveram a má ideia de se queixarem ao presidente da República,
que os colocara na empreitada. Pegou mal. Àquelas alturas, orienta-
dos por JB, que conhecia detalhes de todos os acertos e dispunha de
acessos preciosos a gabinetes do poder, os vencedores já tinham se
organizado, oferecendo mais vantagens que os protegidos originais.
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Os diretores da empresa concorrente acabaram ridiculariza-
dos pelo desbocado presidente. Quem manda vocês serem otários, esca-
larem um perna de pau para bater o pênalti que eu cavei e dei de bandeja?
Bem feito para aprenderem a trabalhar. O rancor dos poderosos em-
preiteiros acabou sobrando para o intermediário falastrão. Perdeu
o meio de vida e a credibilidade. Para sobreviver, conseguiu uma
franquia no interior de São Paulo. Andou rosnando ameaças pelos
cantos, JB não dera maior atenção.
A narrativa desse episódio bizarro na África é suficiente para
multiplicar a dramaticidade do quadro vivido naquele apartamen-
to de luxo. Será que tinha algo a ver com o desfecho macabro com
o qual se deparava? Ou se tratava de algo completamente diver-
so? Quanto pesaram as outras conexões que acabaram cruzando
o destino dos dois homens? Eram muitas as perguntas possíveis.
Haveria tempo depois para catar respostas.
A precedência do momento era administrar aquela calamida-
de. A semelhança entre ambos, pensou, teria que ser novamente
usada a seu favor. Iria, se bem explorada, ajudá-lo no seu intento
imediato, que era não ter o seu nome envolvido.
Sem tempo a perder, JB consolidou a sua estratégia. Definiu
que o fundamental era tentar esgotar o tema dentro do próprio
apartamento. Quanto mais restrito o espaço da investigação, me-
lhor. O quadro que encontrou era de claro duplo assassinato. Uma
investigação bem-feita transformaria ele próprio no principal
suspeito. Resolveu então simular um crime passional seguido de
suicídio, tragédia que faz parte do imaginário coletivo há séculos.
Drama fácil de explicar, de digerir e de cair no esquecimento. O
morto teria que parecer o assassino.
A presença de qualquer terceiro na cena só poderia complicar
a situação. Um matador, por exemplo, abriria novas linhas de in-
vestigação, levantaria temas obscuros. Não interessa a ninguém,
principalmente em tempos de Operação, ter a polícia bisbilhotan-
do no seu encalço. Por mais cuidados que tome vida afora, é muito
difícil que alguém escape ileso de qualquer investigação rigorosa.
Todo mundo tem seus esqueletos no armário.
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Como bem disse um ministro do Supremo Tribunal Federal,
nesse tipo de investigação, quando se puxa uma pena, vem uma gali-
nha, quando se puxa a galinha, vem o galinheiro. Indo além, se vem o
galinheiro, pode vir também a raposa, e aí mora o perigo maior.
O desafio era como transformar o duplo assassinato em crime
passional, de modo a ser assimilado como tal pela sociedade, pela
mídia e principalmente pela própria polícia. Não tinha dúvidas de
que o assassino era o cara com quem trombara na saída do eleva-
dor. Logo, lembrou: é preciso verificar o objeto que caiu da atrás do
jarro, provavelmente a arma do crime. Estava certo. Atrás do or-
namento, fora da vista dos passantes, encontrou uma pistola com
silenciador, daqueles modelos de filme de espionagem.
JB estava se movendo com tranquilidade, apesar das câmeras
de segurança.
Precavido, consciente de que a divulgação do seu caso com
Elisa seria explosiva, antes mesmo de se hospedar, tratou de mini-
mizar alguns riscos. Subornou ele mesmo o responsável pela opera-
ção dos equipamentos. Garantiu uma pane no sistema de vigilância
eletrônica do hotel que só seria relatada e corrigida após o feriado,
ou seja, quando já deveria ter deixado o estabelecimento.
Evitava, assim registros inconvenientes, perigosos nessa épo-
ca de redes sociais. Um boato é um boato, uma gravação tem um
poder destrutivo infinitamente maior. Parecia que estava adivi-
nhando, diria qualquer observador. Graças a esses cuidados, pode
apanhar a arma e voltar sem alvoroço para o apartamento.
A partir dalí, modificou tudo. Ciente de que não existe altera-
ção perfeita de cena de crime, forjou um ambiente totalmente di-
verso do que encontrara. A precisão dos tiros, ambos na cabeça das
vítimas, atestava um trabalho de matador profissional, executado
com perfeição. Precisava parecer coisa de amador.
Uma pergunta martelava sua cabeça: quem era o alvo do cri-
minoso, ele mesmo ou o marido de Elisa? Ou, quem sabe, a pró-
pria mulher? Independentemente da resposta, os mortos são os
outros, menos mau. Muito melhor ter o problema para resolver do
que ser o problema a ser resolvido.
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JB calçou na mão direita a luva que compunha sua veste de
noite, colocou a arma na mão do morto e disparou vários tiros em
diversas direções, para fazer de contas que acontecera perseguição
e tentativa de defesa. Queria dar a entender que a precisão do tiro
na testa da mulher ocorrera por mero acaso. Depois, disparou a
esmo bem perto da cabeça do homem, de modo a deixar também ali
resíduos de pólvora e sugerir que ele tinha cometido suicídio após
matar a mulher.
Feito isso, dedicou-se a espalhar objetos pelo quarto para in-
dicar disputa corporal. Fechou a blusa aberta de Elisa e, num pu-
xavante ríspido, arrancou botões, que se espalharam no ambiente.
Derrubou uma garrafa de refrigerante, espalhou coisas pelo quarto.
Em seguida, tratou de suprimir todos os vestígios de sua pre-
sença. Apagou cuidadosamente impressões digitais, até nas tornei-
ras e maçanetas. Colocou copos na mão do morto para gravar digi-
tais e deixar bem registrada a suposta utilização. Fez o mesmo com
utensílios pessoais como desodorante, pasta e escovas de dentes.
Limpou tudo o que pudesse registrar a sua presença, de sabonetes
a cotonetes. Removeu vestígios de todos os objetos que lembrava
ter tocado. Retirou todas as peças que pudessem ser identificadas
como suas. O resto da bagagem passaria como propriedade do
morto, já foi dito que os portes eram semelhantes.
Lançou um sofrido olhar de adeus para Elisa, uma lágrima es-
correu no seu rosto. Em seguida, saiu. Para minimizar a possibili-
dade de qualquer novo transtorno, pulou a grade da varanda apoia-
do numa toalha de rosto, desceu pela escadinha que leva à praia e
afastou-se, caminhando pelas sombras.
Na avenida, conseguiu um táxi. Voltou ao seu hotel habitual,
entrou simulando naturalidade, um vai e vem normal do hóspede,
passou despercebido. Tomou um banho, organizou a mala de mão
com um casaco e cachecol para encarar o frio na chegada, avisou na
recepção que estava viajando, saiu dessa vez ostensivamente, fez
questão de ser visto, pegou o táxi e rumou para o aeroporto.
No outro dia, como originalmente anunciado, almoçou com a
família em Nova Iorque. A partir de agora, imaginou, sua vida reen-
contrava o curso natural.
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