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Março/2009
                                                                   Jacqueline Freire
O cobrador que lia
Sentei. Aquelas cadeiras não eram de todo confortáveis, mas o trajeto até minha
casa não era tão longo assim. Estava cansada. Pensava em como a vida pode ser
difícil, pensamento este que me afloraria e me perturbaria a existência durante
muitos longos anos. Por uma ocasião do destino, percebi-me ali, naquele
coletivo. Um vento leve soprou e eu vi a praça. Estava quente, muito quente
aquele dia.

O motorista resolveu comprar água. Nós, os passageiros, tivemos de esperar
cinco minutos que pareceram durar algumas horas calorentas. De repente eu
olhei para o cobrador. Tinha um olhar infantil, de criança mesmo. Não o olhar
infantil que quer dizer que a pessoa não sabe muito. Mas aquele olhar infantil
que quer dizer que a pessoa tem muito que ver ainda. É diferente, você sabe.

Ele abriu a gaveta. Mas, ao invés de tirar dali dinheiro, tickets de passagem, ou
algo do tipo, havia em suas mãos apenas um livro. Um livro de Graciliano. Vidas
Secas. Era mesmo um dia quente aquele. Ele, o cobrador, tinha um leve sorriso
nos lábios. Parecia não saber que havia passageiros apressados por perto.
Enquanto o motorista voltava ao seu posto, ele abriu o livro. Ainda estava nas
primeiras páginas, mas seu interesse era o mesmo de alguém que já no fim da
história, quer saber como será o final de tudo.

Uma curva. Os passageiros tinham pressa. Alguns conversavam alto. Mas o
cobrador não parecia se incomodar com a conversa alta. Apenas lia com
atenção. Mas também, parava de tempos em tempos, tempos marcados, ora
para saber onde estava, ora para mostrar-se interessado pela conversa que o
motorista incessantemente tentava iniciar com ele. Incrível como quando
queremos fazer uma coisa, muitas outras aparecem para impedir. Uma parada.
Ele não parou a leitura. O passageiro esperou um pouco impaciente, mas ele
também parecia sem paciência de ter que atender àquele monte de gente que
tentava constantemente atrapalhar sua leitura.

Ele continuou a leitura interrompida por algum tempo. Era angustiante
observar. Até que em um certo ponto do caminho, ele simplesmente guardou o
livro. Parecia estar vencido pelo cansaço. Mas, como perceberia mais tarde, era
apenas uma breve pausa. Visto que logo logo, em algum momento do trajeto
onde o movimento de passageiros fosse mais calmo, ele voltaria a abrir o livro,
como aconteceu na parada ali na praça. Voltaria a mostrar, para quem estivesse
ali para ver, que podemos estar no sufoco, mas nossa intenção é sempre mais
importante.

Desci. Ele continuou a viagem, como seu trabalho previa. Mas eu já não mais
sabia qual era o seu trabalho. Cobrar as passagens, ou ler aquele livro. Receber o
dinheiro das pessoas, ou viajar pelas páginas de Graciliano, que talvez, nunca
viesse a saber que um dia, um de seus leitores mais interessados, fosse um
cobrador em serviço. De repente, começou a chover.
Março/2009
Jacqueline Freire

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O Cobrador Que Lia

  • 1. Março/2009 Jacqueline Freire O cobrador que lia Sentei. Aquelas cadeiras não eram de todo confortáveis, mas o trajeto até minha casa não era tão longo assim. Estava cansada. Pensava em como a vida pode ser difícil, pensamento este que me afloraria e me perturbaria a existência durante muitos longos anos. Por uma ocasião do destino, percebi-me ali, naquele coletivo. Um vento leve soprou e eu vi a praça. Estava quente, muito quente aquele dia. O motorista resolveu comprar água. Nós, os passageiros, tivemos de esperar cinco minutos que pareceram durar algumas horas calorentas. De repente eu olhei para o cobrador. Tinha um olhar infantil, de criança mesmo. Não o olhar infantil que quer dizer que a pessoa não sabe muito. Mas aquele olhar infantil que quer dizer que a pessoa tem muito que ver ainda. É diferente, você sabe. Ele abriu a gaveta. Mas, ao invés de tirar dali dinheiro, tickets de passagem, ou algo do tipo, havia em suas mãos apenas um livro. Um livro de Graciliano. Vidas Secas. Era mesmo um dia quente aquele. Ele, o cobrador, tinha um leve sorriso nos lábios. Parecia não saber que havia passageiros apressados por perto. Enquanto o motorista voltava ao seu posto, ele abriu o livro. Ainda estava nas primeiras páginas, mas seu interesse era o mesmo de alguém que já no fim da história, quer saber como será o final de tudo. Uma curva. Os passageiros tinham pressa. Alguns conversavam alto. Mas o cobrador não parecia se incomodar com a conversa alta. Apenas lia com atenção. Mas também, parava de tempos em tempos, tempos marcados, ora para saber onde estava, ora para mostrar-se interessado pela conversa que o motorista incessantemente tentava iniciar com ele. Incrível como quando queremos fazer uma coisa, muitas outras aparecem para impedir. Uma parada. Ele não parou a leitura. O passageiro esperou um pouco impaciente, mas ele também parecia sem paciência de ter que atender àquele monte de gente que tentava constantemente atrapalhar sua leitura. Ele continuou a leitura interrompida por algum tempo. Era angustiante observar. Até que em um certo ponto do caminho, ele simplesmente guardou o livro. Parecia estar vencido pelo cansaço. Mas, como perceberia mais tarde, era apenas uma breve pausa. Visto que logo logo, em algum momento do trajeto onde o movimento de passageiros fosse mais calmo, ele voltaria a abrir o livro, como aconteceu na parada ali na praça. Voltaria a mostrar, para quem estivesse ali para ver, que podemos estar no sufoco, mas nossa intenção é sempre mais importante. Desci. Ele continuou a viagem, como seu trabalho previa. Mas eu já não mais sabia qual era o seu trabalho. Cobrar as passagens, ou ler aquele livro. Receber o dinheiro das pessoas, ou viajar pelas páginas de Graciliano, que talvez, nunca viesse a saber que um dia, um de seus leitores mais interessados, fosse um cobrador em serviço. De repente, começou a chover.