SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 25
Baixar para ler offline
teles
Ó
ISU
.
Ar
Título original: LA POLITIQUE.
Copyright O Presses Universitaires de France, para o texto
e o aparelho crítico em que se baseia esta tradução.
Copyright O 1991, Livraria Martins Fontes Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.
1º edição 1991
3º edição 2006
Tradução
ROBERTO LEAL FERREIRA
Feita a partir da versão francesa de Marcel Prélot
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Maria Luiza Favret
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Aristóteles
A política / Aristóteles ; tradução Roberto Leal Ferreira. —
3º ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2006. — (Clássicos)
Título original: La politique.
ISBN 85-336-2323-2
1. Filosofia grega 2. Política I. Título. II. Série.
06-5919 CDD-320
Índices para catálogo sistemático:
1. Ciência política 320
Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 ,
e-mail: infoQmartinsfontes.com.br http:/www.martinsfontes.com.br
A E
Índice
Prefácio ..... irei arerarearerereaaeeaaseeenartaia IX
Nota do tradutor francês.......... seas XIX
BLOBTAJIA sessssueniaren mpuerererancensas
arame senagammeasaa do aquando XXV
Introdução - Da origem do Estado... 1
O Estado e seu governo/A formação da ci-
dade/O homem, “animal cívico”
Livro IT - Do governo doméstico
I Do senhor e do escravo... 9
O poder do senhor ou “despotismo”/A servi-
dão natural/A servidão convencional/ Diferen-
ças entre o “despotismo” e o poder político
IH. Da propriedade e dos meios de adquiri-la.. 19
A aquisição natural ou “economia”/A aqui-
sição artificial ou “crematística”/Apreciação
dos dois modos de aquisição/Algumas ma-
neiras práticas de adquirir
NI. Dos poderes marital e paternal................. 33
As virtudes próprias aos diversos membros
da família
Livro II - Do cidadão e da cidade
IV. Do cidadão... eternas
O critério da cidadania/As diversas espé-
cies de cidadãos/As virtudes que fazem o ci-
dadão e o homem de bem
Y. Da finalidade do Estado, «siso ce smeseiea rerscasmaita
As condições da felicidade particular/Feli-
cidade privada e felicidade pública/A vida
ativa, fonte das duas felicidades
VI. Da eugenia e da educação ............s
Fim pacífico da educação/A regulamenta-
ção dos casamentos e dos nascimentos/A
educação da infância/Caráter público e ob-
jeto da educação/O papel da música/Os li-
mites da ginástica .
VII. Das dimensões e da localização da Cidade.
Grandeza desejável do Estado/A boa loca-
lização da Cidade/A disposição interior
VII. Das funções e das classes sociais...
Os elementos necessários à existência da Ci-
dade/A especialização das funções/Caráter
tradicional das classes/A partilha dos bens
Livro III - Dos governos
IX. Das diversas formas de governo ......... Euriues
Os critérios distintivos: número e justiça/
Discussão dos critérios/A monarquia/A aris-
tocracia/A “República”/A tirania/A oligar-
quia/A democracia
X. Dos três poderes existentes em todo governo
O poder deliberativo/O poder executivo/O
poder judiciário
127
XL. Do melhor GOVERNO cacenassaancececmencnanasaonss
es o so
Relatividade do melhor governo/A melho-
ria do regime estabelecido/Dificuldades de
atribuição da soberania
XII. Crítica das monarquias. «sessions
seis ss
A superioridade da lei/Razão histórica de
ser da monarquia/Conveniência da monar-
quia para certos povos
XIII. Crítica das Repúblicas .............
A igualdade e seus limites/As pretensões
concorrentes/A exceção do gênio/Os direi-
tos do número/A alternância do mando e da
obediência/Apreciação dos diversos tipos
de democracia/As leis das oligarquias
XIV. Das virtudes do justo meio...
Importância e excelência da classe média/
O regime moderado
Livro IV - Da subversão e da conservação
dos governos
XV. Das subversões e de suas causas gerais ......
Permanência do Estado através dos regi-
mes/O excesso de desigualdade, causa prin-
cipal das subversões/As outras causas/Os pre-
textos e ocasiões
XVI. Das revoluções próprias às Repúblicas........
Causas das revoluções na democracia/Cau-
sas das revoluções na oligarquia/Causas das
revoluções na aristocracia
XVII. Das revoluções particulares às monarquias,
Causas comuns à monarquia e à tirania/Su»
221
perioridade da monarquia/Pouca duração
das tiranias
XVIII. Das leis ou práticas salutares às Repúblicas
O respeito às leis e à liberdade/Outras prá-
ticas salutares/O desinteresse/A virtude e a
educação
XIX. Máximas de Estado para as monarquias......
O recurso ao rigor/O uso da moderação
Apêndices
Exame de algumas Constituições que tiveram seu rei-
nado ou que foram apenas projetadas pelos
DUO amava
Apêndice I — Exame das duas Repúblicas de Platão...
Apêndice II — Exame da Constituição de Faléias de
Calcedônia... sanear
Apêndice III — Exame da Constituição de Hipóda-
ns ClaRMÉR
O. a ses deepns onça pude pre rosa
Apêndice IV — Exame das Constituições da Lace-
demônia, de Creta e de Cartago...................
Apêndice V — Notas sobre Licurgo e alguns outros
legisladores ..........teereeeeeeeieeees
231
Fins rúl:
Biblioteca Cos
Prefácio
Só penetramos bem as obras próximas de nós mes-
mos ou de nosso tempo, pelo menos por algum aspecto.
Igualmente, só se amam os escritos cujo autor nos
atrai por seu caráter e por seu exemplo. Ora, Aristóteles,
com a exttema dignidade de vida, a nobreza de pensa-
*mento, gosto por um justo equilíbrio, é para nós, por
toda a sua personalidade, um reconforto.
Com efeito, foi possível classificá-lo não apenas en-
tre os “grandes espíritos”, mas também entre os “grandes
corações”. Na coleção de biografias — quase de hagiogra-
fias — que levava este título, M. D. Roland-Gosselin chega
a esta conclusão um tanto inesperada: “Decididamente,
não é demais dizer que Aristóteles foi um excelente ma-
rido, um pai afetuoso e devotado, um bom homem.” Ela
ilumina com uma luz bastante simpática a fisionomia do
Estagirita, cuja vida, na medida em que a conhecemos exa-
tamente, revela poucos acontecimentos e, afora a educa-
ção de Alexandre, é carente dos grandes cargos que não
raro acompanham os grandes livros consagrados ao Esta-
do e a seu governo.
Aristóteles não é nada mais do que um “intelectual”,
no melhor sentido da palavra, um “letrado” que às vezes
IX
INTRODUÇÃO
Da Origem do Estado
a
O Estado e seu Governo
Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a es-
perança de um bem, seu princípio, assim como de toda
associação, pois todas as ações dos homens têm por fim
aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades,
portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que
é a principal e contém em si todas as outras se propõe à
maior vantagem possível. Chamamo-la Estado ou socie-
dade política.
Enganam-se os que imaginam que o poder de um rei
ou de um magistrado de República só se diferencie do
de um pai de família e de um senhor pelo número maior
de súditos e que não há nenhuma diferença específica en-
tre seus poderes. Segundo eles, se tem poucos súditos é
um senhor; se tem alguns a mais é um pai de família; se
tiver ainda mais é um rei ou um magistrado de Repúbli-
ca. Como se não houvesse diferença entre uma grande fa-
mília e um pequeno Estado, nem entre um rei e um ma-
gistrado de República. A distinção seria que um rei go-
verna sozinho perpetuamente, enquanto um magistrado
de República comanda e obedece alternadamente, em
A Política
virtude da Constituição. Tudo isso, porém, é errado, co-
mo veremos ao examinar esta matéria segundo o méto-
do que usamos em nossas outras obras!.
Como não podemos conhecer melhor as coisas com-
postas do que decompondo-as e analisando-as até seus
mais simples elementos, comecemos por detalhar assim
o Estado e por examinar a diferença das partes, e procu-
remos saber se há uma ordem conveniente para tratar de
cada uma delas.
A Formação da Cidade
Nesta como em qualquer outra matéria, uma exce-
lente atitude consiste em remontar à origem. É preciso,
inicialmente, reunir as pessoas que não podem passar
umas sem as outras, como o macho e a fêmea para a ge-
ração. Esta maneira de se perpetuar não é arbitrária e
não pode, na espécie humana assim como entre os ani-
mais e as plantas, efetuar-se senão naturalmente. É para
a mútua conservação que a natureza deu a um o coman-
do e impôs a submissão ao outro.
Pertence também ao desígnio da natureza que co-
mande quem pode, por sua inteligência, tudo prover e,
pelo contrário, que obedeça quem não possa contribuir
para a prosperidade comum a não ser pelo trabalho de
seu corpo. Esta partilha é salutar para o senhor e para o
escravo.
A condição da mulher difere da do escravo. A natu-
reza, com efeito, não age com parcimônia, como os arte-
sãos de Delfos que forjam suas facas para vários fins; ela
destina cada coisa a um uso especial; cada instrumento
Introdução
que só tem o seu uso é o melhor para ela. Somente entre
os bárbaros a mulher e o escravo estão no mesmo nível.
Assim, esses povos não têm o atributo que importa natu-
ralmente a superioridade e sua sociedade só é composta
de escravos dos dois sexos. Foi isso que fez com que o
poeta acreditasse que &
Os gregos tinham, de direito, poder sobre os bár-
baros,
como se, na natureza, bárbaros e escravos se confundissem.
A principal sociedade natural, que é a família, for-
mou-se, portanto, da dupla reunião do homem e da mu-
lher, do senhor e do escravo. O poeta Hesíodo tinha ra-
zão ao dizer que era preciso antes de tudo
A casa, e depois a mulher e o boi lavrador,
já que o boi desempenha o papel do escravo entre os po-
bres. Assim, a família é a sociedade cotidiana formada
pela natureza e composta de pessoas que comem, como
diz Carondas, o mesmo pão e se esquentam, como diz
Epimênides de Creta, com o mesmo fogo.
A sociedade que em seguida se formou de várias ca-
sas chama-se aldeia e se assemelha perfeitamente à pri-
meira sociedade natural, com a diferença de não ser de
todos os momentos, nem de uma frequentação tão con-
tínua. Ela contém as crianças e as criancinhas, todas ali-
mentadas com o mesmo leite. De qualquer modo, trata-se
de uma colônia tirada da primeira pela natureza.
Assim, as Cidades inicialmente foram, como ainda
hoje o são algumas nações, submetidas ao governo real, |
formadas que eram de reuniões de pessoas que já viviam
sob um monarca. Com efeito, toda família, sendo gover-
nada pelo mais velho como que por um rei, continuava
a viver sob a mesma autoridade, por causa da consan-
guinidade. Este é o pensamento de Homero, quando diz:
A Política
Cada um, senhor absoluto de seus filhos e de suas
mulheres,
Distribui leis a todos...
Isso ocorria porque nos primeiros tempos as famílias
viviam dispersas. É ainda por esta razão que todos os
homens que antigamente viveram e ainda vivem sob reis
dizem que os deuses vivem da mesma maneira, atribuin-
do-lhes o governo das sociedades humanas, já que os
imaginam sob a forma do homem.
O Homem, “Animal Cívico”
A-sociedade que se formou da reunião de várias al-
deias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bas-
tar a si mesma, /sendo organizada não apenas para con-
servar a existência, mas também para buscar o bem-estar.
Esta sociedade, portanto, também está nos desígnios da
natureza, como todas as outras que são seus elementos.
Ora, a natureza de cada coisa é precisamente seu fim.
Assim, quando um ser é perfeito, de qualquer espécie que
ele seja — homem, cavalo, família —, dizemos que ele está
na natureza. Além disso, a coisa que, pela mesma razão,
ultrapassa as outras e se aproxima mais do objetivo pro-
posto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si mes-
ma é uma meta a que tende toda a produção da nature-
za e é também o mais perfeito estado. É, portanto, evi-
dente que toda Cidade está na natureza e que o homem
é naturalmente feito para a sociedade política. Aquele que,
por sua natureza e não por obra do acaso, existisse sem
nenhuma pátria seria um indivíduo detestável, muito aci-
ma ou muito abaixo do homem, segundo Homero:
Introdução -
Um ser sem lar, sem família e sem leis.
Aquele que fosse assim por natureza só respiraria a
guerra, não sendo detido por nenhum freio e, como uma
ave de rapina, estaria sempre pronto para cair sobre os
outros. =,
Assim, o homem é um animal cívico, mais social do
que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A
natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o
dom da palavra, que não devemos confundir com os sons
da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agra-
dáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são,
como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limi-
tado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão
o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento
obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo
e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos
foi principalmente dado o 'órgão da fala. Este comércio
da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil.
O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o pri-
meiro objeto a que se propôs a natureza”. O todo existe
necessariamente antes da parte. As sociedades domésti-
cas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da
Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas dis-
tintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis
quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés
que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome
e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra.
/O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhum -
pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos
outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles,
ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural
leva os homens a este gênero de sociedade.
A Política
O primeiro que a instituiu trouxe-lhe o maior dos bens.
Mas, assim como o homem civilizado é o melhor de to-
dos os animais, aquele que não conhece nem justiça nem
leis é o pior de todos. Não há nada, sobretudo, de mais .
* intolerável do que a injustiça armada. Por si mesmas, as Livro T
armas e a força são indiferentes ao bem e ao mal: é o
princípio motor que qualifica seu uso. Servir-se delas sem
nenhum direito e unicamente para saciar suas paixões
rapaces ou lúbricas é atrocidade e perfídia: Seu uso só é
lícito para a justiça. O discernimento e o respeito ao di-
reito formam a base da vida social e os juízes são seus
primeiros órgãos.
Do Governo Doméstico
CAPÍTULO IV
Do Cidadão
Para bem conhecer a Constituição dos Estados e
suas espécies,
é preciso em primeiro lugar saber o que
é um Estado, pois nem sempre se está de acordo se se
deve imputar fatos ao Estado ou aos que o governam,
quer como chefes únicos, quer num grupo menos nu-
meroso do que o resto da Cidade. Ora, o Estado é o su-
jeito constante da política e do governo; a constituição
política não é senão a ordem dos habitantes que o
compõem.
Como qualquer totalidade, o Estado consiste numa
multidão de partes: é a universalidade dos cidadãos. Co-
mecemos, pois, por examinar o que devemos entender
por cidadão e quem podemos qualificar assim, pois se
trata de uma denominação equívoca e nem todos são unã-
nimes sobre a sua aplicação. Alguém que é cidadão nu-
ma democracia não o é numa oligarquia.
O Critério da Cidadania
Falemos aqui apenas dos cidadãos de nascimento, e
não dos naturalizados.
41
A Política
Não é a residência que constitui o cidadão: os estran-
geiros e os escravos não são “cidadãos”, mas sim “habi-
tantes”.
Tampouco é a simples qualidade de julgável ou o di-
reito de citar em justiça. Para isso, basta estar em relações
de negócios e ter ao mesmo tempo alguma coisa a resol-
ver. Mesmo assim, há muitos lugares em que os estrangei-
ros não são admitidos nas audiências dos tribunais senão
quando apresentam uma caução. Não participam, então,
a não ser de um modo imperfeito, dos direitos da Cidade.
É mais ou menos o mesmo que acontece com as
crianças que ainda não têm idade para serem inscritas na
função cívica e com os velhos que, pela idade, estão isen-
tos de qualquer serviço. Não podemos dizer simplesmen-
te que eles são cidadãos; não são senão supranumerários;
uns são cidadãos em esperança por causa de sua imper-
feição, outros são cidadãos rejeitados por causa de sua de-
crepitude. Terão o nome que se quiser: o nome não im-
porta desde que sejamos compreendidos. Procuramos aqui
o cidadão puro, sem restrições nem modificações.
Com mais forte razão, devemos deliberadamente ris-
car desta lista os infames e os banidos.
Portanto, o que constitui propriamente o cidadão, sua
qualidade verdadeiramente característica, é o direito de vo-
to nas Assembléias e de participação no exercício do po-
der público em sua pátria.
Há dois tipos de poderes: uns são temporários, só são
atribuídos por certo tempo e não se podem obter duas ve-
zes em seguida; os outros não têm tempo fixo, como o de
julgar nos tribunais ou de votar nas assembléias.
Objetar-se-á, talvez, que estes últimos não são ver-
dadeiros poderes e não participam de modo algum do
42
Livro
governo. Mas seria ridículo contestar esta denominação
de quem se pronuncia sobre os interesses maiores do Es-
tado. Aliás, pouco importa, essa é apenas uma questão de
palavras. Não possuímos, com efeito, um termo comum
sob o qual possamos colocar a função de juiz e a de
membro da Assembléia. Será, se se quiser, um poder sem
nome. Ora, chamamos “cidadão” quem quer que seja ad-
mitido nessa participação e é por ela, principalmente,
que o distinguimos de qualquer outro habitante.
Convém ainda notar que nas coisas cujo sujeito per-
tence a espécies diferentes, sem outra relação entre si,
senão que uma é a primeira, a outra a segunda e assim
por diante, não há absolutamente nada ou muito pouco
em comum. É o que se observa nas formas de governo:
são de diferentes espécies, umas primitivas, outras pos-
teriores. Entre estas últimas devem ser contadas as cor-
rompidas e degeneradas, que vêm necessariamente depois
das que permaneceram sãs e intactas. (Explicaremos mais
adiante em que consiste a degenerescência”.) Portanto, o
cidadão não pode ser o mesmo em todas as formas de
governo. É sobretudo na democracia que é preciso pro- -
curar aquele de que falamos; não que ele não possa ser
encontrado também nos outros Estados, mas neles não
se acha necessariamente. Em alguns deles, o povo não é
nada. Não há Assembléia geral, pelo menos ordinária,
mas simples convocações extraordinárias. Tudo se deci-
de pelos diversos magistrados, segundo suas atribuições.
Na cerimônia, por exemplo, os éforos tratam dos contra-
tos; os senadores, dos homicídios; as outras magistratu-.
ras, das outras matérias. Acontece o mesmo em Cartago,
onde alguns magistrados decidem sobre tudo.
A definição do cidadão, portanto, é suscetível de maior
ou menor extensão, conforme o gênero do governo. Há
43
A Política
alguns em que o número e o poder dos juízes e dos
membros da Assembléia não é ilimitado, mas restrito pela
constituição. O direito de julgar e deliberar cabe a todos
ou apenas a alguns, e isso sobre todas as matérias, ou
somente sobre algumas. Por aí se pode ver a quem con-
vém o nome de cidadão em cada lugar. É cidadão aquele
que, no país em que reside, é admitido na jurisdição e na
deliberação. É a universalidade deste tipo de gente, com
riqueza suficiente para viver de modo independente, que
constitui a Cidade ou o Estado.
Comumente, o costume é dar o nome de cidadão
“apenas àquele que nasceu de pais cidadãos. De nada ser-
viria que o pai o fosse, se a mãe não for. Em alguns luga-
res, vai-se ainda mais longe, até dois avôs ou a um grau
maior. Surge, então, a dificuldade de saber como serão
eles mesmos cidadãos, este terceiro e este quarto avô. Gór-
gias de Leonte dizia, não se sabe se a sério ou por brin-
cadeira, que, assim como os caldeireiros fazem caldeiras,
assim também os habitantes de Larissa fabricavam laris-
sianos, e que era preciso que os larissianos fabricados ti-
vessem os seus fabricantes. De acordo com nossa defini-
ção, a coisa é simples. Se participarem do poder público,
serão cidadão. A outra definição, que exige que se tenha
nascido de um cidadão ou de uma cidadã, excluiria des-
ta categoria, em contrapartida, os primeiros habitantes e
os próprios fundadores da Cidade.
kHá maior incerteza a respeito daqueles a quem foi
concedido direito à cidadania durante uma revolução,
como fez Clístenes em Atenas, quando, após a expulsão
dos tiranos, formou várias tribos novas de estrangeiros e
até de escravos imigrados. Quanto a eles, a questão não
é saber se são cidadãos, mas se se tornaram tais com jus-
44
tiça ou não. Podemos, também, duvidar se eles se torna-
ram cidadãos de forma legal, não existindo então nenhu-
ma diferença entre a ilegalidade e o erro. Existe, no en-
tanto, uma distinção muito real. Com efeito, vemos pessoas
que alcançam a magistratura por meios ilegais, e não
deixamos, porém, de chamá-los de magistrados, mas ma-
gistrados ilegítimos. Sendo, portanto, o cidadão caracte-
rizado pelo atributo do poder (pois é pela participação no
poder público que o definimos), nada impede de contar
entre os cidadãos as criaturas de Clístenes.
A questão de sua cidadania depende também do ou-
tro problema anunciado acima, se devemos ou não im-
putar ao Estado a sua admissão, o que não é fácil de de-
cidir quando o Estado passa da oligarquia ou da tirania
para a democracia. Pois então o novo Estado não quer
nem pagar as dívidas contraídas anteriormente, conside-
rando-as como feitas não pela Cidade, mas pelo tirano
que recebeu o dinheiro, nem quer manter os outros com-
promissos, pretendendo que certos Estados só subsistem
por violência e não pelo interesse comumtPortanto, se O
mesmo vício ocorrer na democracia, será preciso dizer
de seus atos o que se diz dos da oligarquia e da monar-
quia absoluta ou tirânica.
As Diversas Espécies de Cidadãos
Resta ainda uma dúvida sobre o título de cidadão.
Apenas são os verdadeiros cidadãos os que são admiti-
dos nas funções públicas, ou esta qualidade pode convir
aos operários? Se os contarmos entre OS cidadãos, sem
lhes conferirmos os cargos, esta prerrogativa não será
45
A Política
mais o caráter distintivo do cidadão; se não os contar-
mos, em que classe os colocaremos? Não são nem estran-
geiros, nem naturalizados. Classifica-los-emos da mesma
forma? Não haveria inconvenientes. É assim que excluí-
mos os escravos e os libertos do número dos cidadãos.
Pois não se deve julgar que sejam cidadãos todos
aqueles de que a Cidade não pode prescindir. Quanto a
esta denominação, distinguiremos até entre as crianças e
os homens adultos: estes são cidadãos pura e simples-
mente, aqueles não o são senão em esperança ou imper-
feitamente.
Antigamente, entre alguns povos, o artesão e O operá-
rio estavam no mesmo pé que o escravo e o estrangeiro.
Ainda acontece o mesmo atualmente em muitos lugares, e
jamais um Estado bem constituído fará de um artesão um
cidadão. Caso isso ocorra, pelo menos não devemos espe-
rar dele o civismo de que falaremos: esta virtude não se
encontra em toda parte; ela supõe um homem não apenas
livre, mas cuja existência não o faça precisar dedicar-se aos
trabalhos servis. Ora, que diferença há entre os artesãos ou
outros mercenários e os escravos, a não ser que estes per-
tencem a um particular e aqueles ao público? Por pouco
que prestemos atenção a ela, esta verdade se manifestará;
o desenvolvimento só pode torná-la mais evidente.
Já dissemos que há várias espécies de constituição é
de governo; há, certamente, portanto, vários tipos de ci-
dadãos, sobretudo entre os que chamamos de súditos.
Existem constituições pelas quais os operários e os mer-
cenários devem ser cidadãos, mas existem outras pelas
quais isto é impossível, por exemplo, na aristocracia, se
é que ela existe, assim como em qualquer outro Estado
em que se honrem o mérito e a virtude. As obras da vir-
46
tude são impraticáveis para quem quer que leve uma vida
mecânica e mercenária.
[ Na oligarquia, em que o bem conhecido como rique-
za abre as portas para os melhores cargos, O povo miú-
do não é admitido na classe dos cidadãos. Mas os arte-
sãos não estão incluídos. Eles podem enriquecer-se € s€
tornar cidadãos uma vez que tiverem feito fortuna. Em
Tebas, o próprio comércio dificulta o acesso à cidadania.
Havia uma lei que exigia que se tivesse fechado a loja e
deixado de vender há dez anos para ser admitido.
Existem, em compensação, outros Estados em que à
lei atrai os estrangeiros pela perspectiva do direito de ci-
dadania, pelo menos para seus filhos. Em certas demo-
cracias, por exemplo, basta para ser um cidadão ter nas-
cido de uma mãe do lugar. Em outros lugares, por falta
de cidadãos legítimos, os bastardos são admitidos como
tais. A falta de homens força-os a usar desse recurso. Mas,
quando a população chega à sua justa quantidade, pou-
co a pouco se despedem, primeiro às crianças nascidas
de mãe ou de pai escravos, depois os que só se ligam à
pátria pela mãe, e então só se reconhecem como cida-
dãos os que foram gerados por dois compatriotas.
Resulta de tudo isso que há várias espécies de cida-'
dãos, mas os verdadeiros são apenas os que participam
dos cargos. Quando Homero fala de um fugitivo ou de
um vagabundo, é pela exclusão dos cargos públicos que
o caracteriza.
Tratado sem nenhum respeito, excluído da Cidade.
Quem quer que não participe dela, com efeito, é co-
mo um estrangeiro que acaba de chegar.
Se em algum lugar escondem esta distinção, fechando
os olhos sobre os domiciliados que usurpam à qualidade
de cidadão, é para iludi-los e disfarçar sua malignidade.
47
A Política
As Virtudes que Fazem o Cidadão
e o Homem de Bem
Os objetos que acabamos de tratar levam-nos agora
a examinar se as mesmas virtudes fazem o homem de
bem e o bom cidadão. E, já que esta questão vale a pe-
na, tentemos de início traçar um ligeiro esboço das virtu-
des cívicas.
Podemos comparar os cidadãos aos marinheiros: am-
bos são membros de uma comunidade. Ora, embora os
marinheiros tenham funções muito diferentes, um em-
purrando o remo, outro segurando o leme, um terceiro
vigiando a proa ou desempenhando alguma outra fun-
ção que também tem seu nome, é claro que as tarefas de
cada um têm sua virtude própria, mas sempre há uma
que é comum a todos, dado que todos têm por objetivo
a segurança da navegação, à qual aspiram e concorrem,
cada um à sua maneira. De igual modo, embora as fun-
ções dos cidadãos sejam dessemelhantes, todos trabalham
para a conservação de sua comunidade, ou seja, para a
salvação do Estado. Por conseguinte, é a este interese co-
mum que deve relacionar-se a virtude do cidadão.
Portanto, se há várias espécies de governo, é impos-
sível que as virtudes cívicas e o civismo perfeito sejam os
mesmos em toda parte, ou que eles se confundam com
a virtude absoluta, pela qual distinguimos as pessoas
nobres, É evidente que se pode ser bom cidadão sem pos-
suir virtudes tão eminentes.
| Porém, para melhor discutir esta questão, convém si-
tuarmo-nos no melhor governo possível. Veremos, por um
lado, que é impossível que o Estado seja composto inteira-
mente de homens perfeitos, e, por outro, que é preciso
48
que cada um execute o melhor possível suas funções. Uma
vez que parece impossível que todos os cidadãos se asse-
melhem, não pode o mesmo gênero de virtude fazer O
bom cidadão e o homem de bem. Mas todos devem ser
bons cidadãos. É daí que provém a bondade intrínseca do
Estado, sem que seja necessário que haja entre todos igual-
dade de mérito. O mérito de um homem de bem e o de
um bom cidadão são, portanto, coisas distintas.
O Estado, aliás, é um composto de partes desseme-
lhantes, aproximadamente como O animal se compõe da
alma e do corpo; a alma, de razão e de paixões; a famí-
lia, do homem e da mulher; a casa, do senhor e do escra-
vo. Abrangendo o Estado todas estas partes e muitas
outras de espécie diferente, não pode haver, portanto, O
mesmo gênero de virtudes para uns e para outros. As-
sim, num grupo de dançarinos, é preciso mais talento para
o papel de corifeu do que para O de corista. A desigual-
dade de mérito é, pois, evidente.
Mas não há nenhum lugar em que a virtude do bom
cidadão seja a mesma que a do homem de bem? Quando
falamos de um bom comandante, entendemos por isso um
homem de juízo e de honra; exigimos sobretudo a pru-
dência naquele que governa. Alguns exigem ainda outras
qualidades no governante máximo. Vemo-lo pela educa-
ção dos filhos de reis, que são criados no adestramento
de cavalos e na disciplina militar:
Que não me ostentem todos esses talentos vulgares,
Que mostrem ao Estado as virtudes necessárias,
o que supõe um treinamento particular para as pessoas
desse nível. Se entre os altos funcionários o mesmo méri-
to faz o homem de bem e o bom cidadão; se, ademais, a
qualidade de súdito não exclui a de cidadão, a virtude cí-
49
A Política
vica não será, porém, a mesma coisa que o que chamamos
pura e simplesmente de mérito. Haverá sinonímia ape-
nas em alguns cidadãos, vale dizer, nos que estão no go-
verno do Estado. Em qualquer outra classe, as qualidades
serão distintas. Talvez tenha sido isso que fez Jasão dizer:
Só conheço uma arte e só sei reinar.
No entanto, é bom saber igualmente mandar e obe-
decer, e um cidadão experimentado é aquele que é ca-
paz de ambos os papéis. Suponhamos um homem de bem
que só saiba comandar e um cidadão que saiba um e
outro: eles não terão o mesmo valor; já que, desses dife-
rentes papéis, é preciso que o homem destinado ao co-
mando aprenda um e seus súditos outro, O cidadão que
participa de ambos deve aprendê-los de igual modo e
conhecer os diversos tipos de comando.
Pois há inicialmente o comando do senhor, que se
exerce sobre o que chamamos de empregados necessá-
rios. Não é preciso que aquele que o exerce saiba fazer
os trabalhos servis, basta que saiba utilizá-los; cabe a seus
servidores saber a execução. Assim como há vários tipos
de funções servis, há também vários tipos de escravos.
Entre as pessoas que estão em servidão, é preciso contar
os trabalhadores manuais que vivem, como indica seu
nome, do trabalho de suas mãos e os artesãos que se
ocupam dos ofícios sórdidos. Assim, em alguns lugares,
antigamente, antes que o povo chegasse à extrema licen-
ça, os cargos ou poderes públicos não eram conferidos a
esse tipo de gente. Suas ocupações não convêm nem ao
homem de bem, nem ao alto funcionário, nem ao bom
cidadão, se não for para seu uso pessoal, caso em que
ele é ao mesmo tempo senhor e servo.
Mas há um outro tipo de comando que tem por súdi-
A
tos as pessoas livres e de mesma condição: é o que se
50
Biblioteca Cont
Livro II
chama o governo civil. Só se aprende começando por obe-
decer. Assim, pelo próprio serviço sob as ordens do hi-
parca, se aprende a comandar a cavalaria; servindo sob
o general e os demais oficiais da infantaria, aprende-se a
comandar os diversos graus militares. Existe até uma má-
xima quanto a isto, que diz que não é possível bem co-
mandar se antes não se tiver obedecido. Ora, estes são
dois gêneros diferentes de mérito, e é preciso que um bom
cidadão adquira ambos, saiba obedecer e esteja em con-
dições de comandar.
Ambos também convêm ao homem de bem, embo-
ra de modo diferente, pois a temperança e a justiça dife-
rem até entre pessoas livres, das quais uma é superior e
a outra inferior, por exemplo, entre homem e mulher. A
coragem de um homem se aproximaria da pusilanimida-
de se fosse apenas igual à de uma mulher, e a mulher
passaria por atrevida se não fosse mais reservada do que
um homem em suas palavras. A administração domésti-
ca, em ambos os casos, também deve apresentar alguma
diferença, sendo um encarregado de comprar, outro de
economizar e de conservar.
O mérito especial do que comanda é a prudência.
As outras virtudes lhe são comuns com os que obede-
cem. Estes não precisam de prudência, mas sim de con-
fiança e de docilidade; são como os instrumentos ou então
como o fabricante de alaúdes, e o homem que comanda
é como o executante que os toca.
Sabemos, agora, se as qualidades do homem de bem
e do bom cidadão são ou não as mesmas, como elas se
assemelham e em que diferem.
51
Hannah Arendt
A coNDIÇÃo
HUMANA
Pusfácio de:
CEI ,SO LAFER
10g edição
POHENSE
uvFRsIYARm
10' edição/6' reimpressão - 2007
oww; hmm unâmsízy «chicago Pim, chicagoA mama, osA
o; 95x bmw unívmzly «chicago Au ngm; mma
Ymduzxdo de.
771€ Human Condition
Tradução
Ramo Rama
m arm muwwrmwme
:múmia smmx dosmmdauma.:o
Em Ami. uma. mos.ms
mas Amam mmmmmmm. «11a mm me» ,osrmúzcam
mu. um mzúuwuu mmomww um
mmàz dz m «mn «nom
:saum-ss :mass à
:5mm :mms-2
› oeflmmmfl x 11mm
01mm run no m
cm:a:
mma» à wmawzowwi na ¡zm-zmqwiqucmmfi
w porqualqucfzmmcima-1mmzw mwâmw, sempmmâu
mesmo www no) mae m z 19m
mwzdasomwwsâvpmpnsxzúz mm «mâapci»
Eamon Fom- mvERsn'ÁmA
nm aum-,01mm Rumo. com ru» 2mm noz
Tea-.rzr-Kos-smx zsuv ms
.ma raul" senawvzalo mam. Sijrzzmõ (um -cvvmooó em
Tdsfñx 1m mos-31m 01% -smv-Wz
well.zéunmafilwnsmmwnam mm br
1q WW ibmnwunwmunz em" w
mim no mw
m z.. 1;s
sUMÁRIo
Prólogo .....
capíwlo I _ A CONmÇÃo HUMANA
l. A Vira Activa e a Condição Humana
2. A Expressão Vim Acliva
3. Eternidade versus lmonalldade
Capítulo ll - AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA
. O Homem: Animal Social ou Político .
. A Poli;A e a Famflia U
A Promoção Social
A Esfera Pública: o Comum
. A Esfera Privad a Propriedade
. O Social e o Privado
. A Localização das Ati idades Humanas
owoosipv-à
Íss
Capítulo Ill - LABOR
11. «O Labor do Nosso Corpo e o Trabalho de Nossas Mãos» .. 90
12. 0 Caráter de «Objetm do Mundo ‹ . 104
13. Labor e Vida .
14. Labor e Fenilidade
15. A Privatividade da Propriedade e da Riqueza
ló. Os Instrumentos do Trabalho e a Divisão do Labor .
l7‹ A Sociedade de Consumidores
130
138
de aspiração a imortalidade não se deveu ao pensamento filosófico.
A queda do Imperio Romano demonstrou claramente que nenhuma
obra de mãos mortais pode ser imortal` e foi acompanhada pela
promoção do evangelho r `stão, que pregava uma vida individual
ctema` posiçao de relig ao exclusiva da humanidade ocidental.
Juntas` ambas tornavam fútil e desnecessária qualquer busca de
imortalidade terrena; e conseguiram tão bem transformar a vira
activa e o bios poliri/tm em servos da contemplação que nem mes‹
mo a ascendência do secular na era moderna e a concomitante in-
versão da hierarquia tradicional entre ação e contemplação foram
suficientes para fazer sair do oblivio a procura da imortalidade que,
originalmente` fora a fonte e o centro da vim activa.
30
cAPiTULO ii
As ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA
_4_
O Homem: Animal Social ou Político
A vim activa` ou seja` a vida humana na medida em que se em-
penha ativamente em fazer algo, tem raízes permanentes num
mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens` um mundo
que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente.
As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das ati-
vidades humanas` que não teriam sentido sem tal localização; e, no
entanto, este ambiente` o mundo ao qual viemos` não existiria sem
a atividade humana que o produziu` como no caso de coisas fabri‹
cadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou que o
estabeleceu através da organização. como no caso do corpo politi-
co. Nenhuma vida humana. nem mesmo a vida do eremita em meio
'a natureza selvagem, é possivel sem um mundo que. direta ou indi~
retamente. testemunho a presença de outros seres humanos.
Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de
que os homens vivem juntos; mas a ação è a única que não pode
sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. A atividade
do labor não requer a presença de outros` mas um ser que «labo-
rasse» em completa solidão nao seria humano` e sim um anima!
Ialwrans no sentido mais literal da expressão. Um homem que tra~
balhasse e fabricasse e construisse num murdo habitado somente
por ele mesmo não deixaria de ser um fabricador` mas não seria um
liomvfaber: teria perdido a sua qualidade especificamente humana
e seria, antes, um deus _ certamente não o Criador` mas um d -
miurgo divino como Platão o descreveu em um dos seus mitos. So
a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um
deus e capaz de ação.1 e só a ação depende inteiramente da cons-
tante presença de outros.
l. E notável a Circunstiincia de que os deuses homéricos so agem no
tocante aos homens, governandoaos de longe ou interferindo com o que
3!
Esta relação especial entre a ação e a vida em comum parece
justificar plenamente a antiga tradução do zoim polirikon de Aristo-
teles como animal serious. que já encontramos em Sêneca e que.
até Tomas de Aquino. foi aceita como tradução consagrada: homo
es! natura/iler politicas. id est. .mcialis <‹‹o homem é, por nature~
za, político, isto e. social»).2 Melhor que qualquer teoria complica-
da. esta substituiçao inconsciente do social pelo político revela até
que ponto a concepção original grega de politica havia sido esque-
cida. Para tanto. e significativo. mas não conclusivo. que a palavra
‹‹social›› seja de origem romana. sem qualquer equivalente na lin-
gua ou no pensamento grego. Não obstante. o uso latino da pala-
via .rodelas tinha também originalmente uma acepção claramente
politica. embora limitada: indicava certa aliança entre pessoas para
um fim especifico, como quando os homens se organizavam para
dominar outros ou para cometer um cn'me.x É somente com o ul'
terior conceito de uma .wrietus generis Immunl. uma «sociedade da
se passa entre eles. Alem disso. os conflitos e as lutas entre os deuses
parecem resultar principalmente de sua atuação nos negocios humanos
ou de sua conflitante pamialidade em relação aos mortais. O resultado è
uma historia na qual homens e deuses atuam em oonjunto` mas a trama è
estahcle da pelos mortais` mesmo quando a decisão e tomada numa as-
sembleia de deuses no Olimpo. Creio que a err' mvilrun te ¡Imm ie. de
Homero (Odixsrliu. i. 338). indica essa «co-operação banio canta fei-
tos de deuses e homens. não historias de deuses e historias de homens.
Do mesmo modo. a nrmiu de Hesiodo trata não dos feitos dos deu-
ses. mas da genese do mundo tl lá): narra. portanto. como as coisas pas-
s ram a existir atraves da geração e da procriação (constantemente repe-
tidas). 0 cantor. servo das Musas. canta «os feitos gloriosos dos homens
antigos e os deuses bem~aventurados» l9? li). mas em parte alguma. ao
que eu saiba. os feitos gloriosos dos deuses.
2. A citação e do Index Rerum da edição de Turim das obras de São
Tomas de Aquino (1922). A palavra «polittcum não ocorre no texto.
mas o index faz um resumo correto do que ele quer dizer. como se pode
verificar pela Smumu ¡hm/“gnu i.96. 4: ii.2 109. 3.
3. .Sm wmv rcgf ii em Livio. .uniu rt-clcrit em Cornelio Nepos. Esse
tipo de aliança podia tambem ser real ada para l'ins comerciais. e Tomas
de Aquino ainda añrma que uma «verdadeira unir im» entre negociantes
só existe «quando o proprio investidor compartilha do riscow. isto e'.
quando a sociedade e realmente uma aliança lveja-se W. J. Ashley. Au
Iull'mlntI/wl m English 1:1 rmmuii Hinor". um! 'lllmiry ll93l). p.4|9).
32
espécie humana». que o termo «soeiab começa a adquirir o sentido
geral de condição humana fundamental. Não que Aristoteles ou
Platão ignorasse ou não desse importancia ao fato de que o homem
não pode viver fora da companhia dos homens implesmente não
incluíam tal condição entre as caracteristicas especificamente hu~
manas. Pelo contrario. ela era algo que a vida humana tinha em co-
mum com a vida animal- razão suiiciente para que não pudesse
ser fundamentalmente humana. A companhia natural. meramente
social. da especie humana era vista como limitação imposta pelas
necessidades da vida biológica. necessidades estas que o as mes'
mas para o animal humano e para outras formas de vida animal.
Segundo o pensamento grego. a capacidade humana de organi-
zação política não apenas difere mas e diretamente oposta a essa
associação natural cujo centro e constituido pela casa (oikia) e pela
família. O surgimento da cidade~estado significava que o homem
recebem. «além de sua vida privada. uma especie de segunda vida.
o seu bios polirikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de
existência; e ha uma grande diferença em sua vida entre aquilo que
lhe e proprio (Mion): o que é comum (komo/1)»4 Não se tratava de
mera opinião ou teoria de Aristoteles, mas de simples falo histori-
co: precedera a fundação da polirI a destruição de todas as unidades
organizadas É base do parentesco. tais como a phrulria e a ¡why/e.S
4. Werner laeger. Piudvia ([945). ill. Ill.
5. Embora a tese principal de Fustel de Coulariges. segundo a intro
dução de Tlm Andam City (Anchor. 1956). consista em demonstrar que
«a mesma religião» moldou a antiga organização da familia e a antiga ci-
dade-estado. o autor faz. numerosas referencias que confirmam o fat.) de
que o regime da gem. baseado na religião da familia. e o regime da cida-
de «eram na verdade. duas formas antagonicas de governo. Ou a ci-
dade desapareceria on. com o tempo. desagregaria a familia» lpfiíll. A
contradição dessa grande obra deve-se aparentemente a tentativa de
Coulanges de tratar. num mesmo conjunto. Roma e as cidades‹est dos
gregas: em seus conceitos e demonstrações. o autor baseia~se princip -
mente no sentimento i stitucional e politico de Roma. embora reconheça
que o culto de Vesta «ja perdera o seu vigor na Grecia em tempos mui-
to remotos mas nunca o perdeu em Roma» (além. Não so havia
uma separa o muito maior entre a familia e a cidade na Grecia do que
em Roma. mas somente na Grecia a religiao'olimpica. que era a religião
de Homero e da cidade-estado. era separada da religião mais antiga da
familia e do lar. e superior a esta. Enquanto Vesta. a deusa do lar. pas-
33
De todas as atividades necessarias e presentes nas comunidades
humanas, somente duas eram con deradas politicas e constituintes
do que Aristóteles chamava de him polui/.u a ação (pmrix) e o
discurso (lexix), dos quais sitrge a esfera dos negocios humanos (m
Ion amhropon pragmata, como chamava Platão), que exclui cstr'i›
tamente tudo o que seja apenas necessario ou iitil.
Contudo, embora certamente so a fundação da cidadeestado
tenha possibilitado aos homens passar toda a sua vida na esfera pú-
blica, em ação e em discurso, a convicção de que estas duas capa-
cidades hitmanas são afins uma da outra, além de serem as mais
altas de todas, parece haver precedido a ¡io/is e ter estado presente
no pensamento pre-socratico. A estatura do Aquiles homerico so
pode ser compreendida quando se o ve como «o autor de grandes
feitos e o pronunciador de grandes palavras».t` Diferentemente do
conceito moderno, essas palavras não eram tidas como grandes por
exprimirem grandes pensamentos; pelo contrário, como percebe~
mos pelas ultimas linhas de Antigonu, talvez seja a capacidade de
emitir «grandes palavras» (megalm' Iugui) em resposta a rudes gol~
pes que nos ensine ã reflexão na velhice.7 O pensamento era secun-
sou a ser u protetora de um «lar ciladinu» e tornou-.se parte do cullo ofi-
cial e politico apos a uniñcnção e segunda fundação de Roma, sua equi-
valente grega, Hêstiu,c' mencionada pela primeira vez em Hesiodo, o
unico poeta grego que, em consciente oposição a Homero, louvo a vida
do lar e da familia; na religião oficial da polia. Hèstia teve que ceder a
Dionisio seu lugar na assembleia dos doze deuses olimpicos (veja-se
Mommscn, Rvmisllze Gmchicliw (5a. ed.), Livro l, cap. 12, e Robert
Graves, T/u' Greek Mylhi (l955), Z7.k).
6. A frase e' do discurso de Fênix, Ilíada ix. 443, e refere-se clara-
mente `a educação para a guerra e para a fit/um. a assembleia publica,
nas quais o homem pode sobressair~se dos dem A tradução literal é:
«(teu pai) encarregou-me de ensinar~te tudo isto, para seres um dizedor
de palavras e um fazedor de feitos» tmyrƒmn w mem mzmui prøliz'm m
Mgmt).
7. A tradução literal das últimas linhas de Amigmm ¡USO-54) è a se-
guinte: «Mas as grandes palavras, neutralizando (ou revidando) os gran-
des golpes d ' soberbos, ensinam a compreensão na velhice». Para os
modernos, o gniñcado de ' linhas e tão enigmático que raramente se
encontra um tradutor que as traduza como são. Uma das exceções è a
tradução dc Holderlin: «Grosse Elicke aberJGroSse Streichc der hohen
SchulteracrgcltendJSie haben im Alter gelehrt, zu dcnkenn. A um ni-
34
dat-io no discurso; mas o discurso e a ação eram tidos com eoevt
e coiguziis` da mesma categoria e da mesma espécie; e isto origi-
nalmente Significava não apenas que quase todas as ações politicas,
na medida em que permanecem fora da esfera da violência, são
realmente realizadas por meio de palavras, porem, mais fundamen-
talmente, que o ato de encontrar as palavras adequadas no momen-
to certo, independentemente da informação ou comunicação que
transmitem, constitui uma ação. Somente a pura violência é muda,
e por este motivo a violência, por si so, jarrr `s pode ter grandeza.
Mesmo quando, relativamente tarde na antiguidade, as artes da
guerra e do discurso (rhemri'lte) emergiram como os dois principais
tópicos da educaçao, tal evolução ainda se valia dessa experiência
e dessa tradição anteriores, pré~p‹›lis, e a elas permaneceu sujeita.
Na experiência da polis que, com alguma razão, tem sido con-
siderada o mais loquaz dos corpos politicos, e mais ainda na filoso-
fia política que dela surgiu, a ação e o discurso separaram-se e tor~
naram-se atividades cada vez mais independentes. A enfase passou
da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persua`
são não como forma especificamente humana de responderY repli-
car e enfrentar o que acontece ou o que é feito.” 0 ser politico, o
viver numa polls, significava que tudo era decidido mediante pala-
vras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gre-
vel bem menos elevado, uma historieta contada por Plutarco exemplifica a
relação entre agir e falar. Certa vez, um homem aproximou-se de De-
móstenes e disse ter sido violentamente espancado. «Mas», disse Demo -
tenes, «não sofreste nada do que estàs me dizendo›. O outro levantou a
voz e exclamou: «Eu não sofri nada?» «Agora›, disse lkmóstenes, «es-
cuto a voz de quem foi ofendido e sofreu» (Vidux, «Demosthenes»). Um
último vcstigio dessa antiga conexão entre a fala e o pensamento, ausen-
te em nossa n ao oe exprimir o pensamento atraves de palavras, pode
ser encontrado na popular frase de Cicero: ratio v! umu'o.
8. Tipieo dessa evolução e o fato de que todo político era chamado
de «rhetow e que a retórica, a arte de falar em público, em oposição ã
dialética, que era a arte do discurso filosófico, era definida por Aristote-
les como a arte da persuasão (veja-se Rmirilu l354al2 ii., l355b26 fi).
(A distinção, alias, vem de Platão, (Iorgias 448.) É neste sentido que de-
vemos compreender a opinião grega acerca do declinio de Tebas, atri-
buido ao fato de terem os tebanos `Abandonado a retórica a favor do exer-
cicio militar (veja-se `lacob Burekhardt, Grifchiirhe Kulrurgøsrhk Im.
ed. Kroener, ill, 190).
35
gos, forçar alguém mediante violência, ordenar ao inves de persua-
dir, eram modos pré-politico de lidar com as pessoas, típicos da
vida fora da pol caracteristicos do lar e da vida em fami
qual o chefe da ca a imperava com poderes incontestes e despoti'
cos, ou da vida nos impérios barbaros da Àsi , cujo despotismo era
freqüentemente comparado a organização domestica
A definição aristotelica do homem como won ¡mini/«m não
era apenas alheia e até mesmo oposta a associação natural da vida
no lar; para entende-la inteiramente precisamos acrescentar'lhe a
sua segunda e famosa definição do homem como won logon «Ir/nm
(‹‹um ser vivo dotado de fala»)4 A traduçao latina desta expressão
como animal rationale resulta de uma falha de interpretação não
menos fundamental que a da expressão «animal social»4 Aristoteles
não pretendia definir o homem em geral nem indicar a mais alta ca-
pacidade do homem - que, para ele, não era o logos, isto e, a pa'
lavra ou a razão, mas nous, a capacidade de contemplação, cuja
principal caracteristica é que o seu conteúdo não pode ser reduzido
a palavrasi9 Em suas duas mais famosas definições Aristoteles ape-
nas formulou a opinião corrente na pnlix acerca do homem e do
modo de vida politico; e, segundo essa opinião, todos os que vi-
viam fora da polis - escravos e bárbaros _' eram um'u Iogou, des›
tituídos, naturalmente` não da faculdade de falar, mas de um modo
de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e no
qual a preocupação central de todos os cidadãos era discorrer uns
com os outros
O profundo en'o de interpretação contido na traduçao latina de
‹‹politico» como «sociah talvez não seja tao claro quanto numa dis-
cussâo em que Tomas de Aquino compara a natureza da lei domés-
tica com a lei política: o chefe da família, diz ele, tem certa seme-
lhança com o chefe do reino; mas, acrescenta, o seu poder não e
tão «perfeitm quanto o do reiil° De fato, não só na Grecia e na po-
lix, mas em toda a antiguidade ocidental, teria sido evidente que ate
mesmo o poder do tirano nao era não grande nem tão «perfeitm
quanto o poder com que o paredàmilias, o dominar, reinava na ca-
sa onde mantinha os seus escravos e seus familiares; e isto não
porque o poder do dirigente da cidade fosse igualado e controlado
pela combinação dos poderes dos chefes de família, mas porque o
94 Elim a Nicófmma |i42s25 e 117836 fr
m Tomás de Aquino “pr m. nz. só. s.
36
dominio absoluto e inconteste e a esfera politica propriamente dim
eram mutuamente exclusivas”
_5_
A Polis e a Família
mbora o erro de interpret ao e o equacionamento das esferas
politica e social sejam não antigos quanto a traduçao latina de ex-
pressões gregas e sua adaptação ao pensamento romanocristao, a
confusão que deles decorre agravou'se no uso moderno e na mo-
derna concepção da sociedade A distinção entre uma esfera de vi'
da privada e uma esfera de vida pública corresponde a existência
das esferas da família e da política como entidades diferentes e se-
paradas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estados`
mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem
publica no sentido restrito do termo. é um fenômeno relativamente
novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e
que encontrou sua forma politica no estado nacional
0 que nos interessa neste contexto e a extraordinária dificul-
dade que` devido a esse fato novo. experimentamos em compreen-
der a divisão decisiva entre as esferas pública e privada entre a
esfera da palis e a esfera da família, e finalmente entre as ativida'
des pertinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes a manu-
tenção da vida, divisão esta na qual se baseava todo o antigo pen-
samento politico, que a via como axiomatica e evidente por si mes-
ma4 Em nosso entendimento, a linha diviso a e inteiramente difu-
sa, porque vemos o corpo de povos e comunidades politicas como
uma familia cujos negocios d' 4os devem ser atendidos por uma
administração domestica nacional e gigantesca O pensamento
cientifico que corresponde a essa nova concepçao jã nao e a ciên-
il. os termos i/mmmn e partiram/Im eram portanto sinónimos
como m termos www e ¡tmn/www Dominum ¡mn-«w ¡ami/.mz «prum-«-
run/IL wrrm [ami/turu (Senecee Epn'mlm 47. 12)4 A antiga liberdade
do cidadão romano desapareceu quando os imperadores romanos adota.
ram o titulo de .Minimo «ce nom, quiAuguste et que Tibère encore re-
poussaient comme une male'diction et une injure» (H4 Wallon4 ¡lis/mny
41v [Wu/11mm' drum Iiinznquué “BMX lll, ZI)4
37
cia politicar e sim a «economia nacional» ou a «economia social»
ou, aind' a Vol/cut n'm'lmfn todas as quais indicam uma especie
de «admin' 'tração doméstica eoletiva››:'-` o que chamamos de «so-
ciedade» e' o conjunto de fami ias economicamente organizadas de
modo a constituírem o fac¬ mile de uma única famflia sobre-hu-
mana. e sua i'orma politica de organi'I. çao e' denominada «naçât›».”
Assim. é-nos dificil compreender que, segundo o pensamento dos
antigos neste particular. o proprio termo «economia politica» teria
sido, de certa formar contraditório: pois o que fosse «economico».
relacionado com a vida do individuo e a sobrevivência da especie,
nao era a unto politico. mas dome'stico por definição. “
Histoiicamente, e muito provavel que o surgimento da cidade-
estado e da esfera pública tenha ocorrido as custas da esfera _pnva-
da da familia e do lar." Contudo. a antiga santidade dolar, embora
i'l. Segundo Gunnar Myrdal ('Ihe Pu/¡Iit'ol Ele/nen! ui the Deco/opV
meu! o! 'z-tmmmt 'I'Iim <I953L pod), a idéia da «Economia Social ou
administracao doméstica coletiva (Vol/mi¡rue/1011)» e' um dos «tre focos
principais- em torno dos quais «se cristalizou a especuluçao politica que
impregnou a economia desde o inicio..
13. Nao pretendemos negar com isto que o estudo nacional e sua so-
ciedade sumiram do reino medieval e do feudalismu. em cine estnitura a
l'am' ' e a cusa tem importância jamais igualada na antiguidade classica.
Mas há uma diferença marcante. Dentro da estrutura feudalr as familias
e casas eram quase independentes entre si, de sorte que a casa realr re-
pre. ntando uma determinada regiao territorial e governando os senhores
i'cudais como ¡ii-4mm mm- ¡mr-mu nao pretendia como um governo abso-
luto, ser o chefe de uma famili A «naçâow medieval era um conglome-
rado de familias' seus membros não se consideravam como membros de
uma unica íamil que englobasse toda a nação.
lá. A distinção e' muito clara nos primeiros parágrafos da :comu/tio
de Aristoteles nos quais ele opõe o governo despotico de um so homem
(mon-unhiuL da organização familiar, a organização inteiramente dife-
rente da ¡in/o,
IS. Em Atenas» podemos Ver o ponto de transi ao na legislaç'ao de
Solon. Corretamenter Coulanges ve na lei uteniense que tomou dever f'i-
lizi sustentar os pais a pmvz da perda ao peâez paterno um. me pp. sis-
ló). Contudo o poder paterno so era limitado quando entrava em confli-
to com os intere 'ses da cidader e nunca em beneficio do membroda fa-
milia como individuo` Assim, a pratica de vender crianças e enjeitar fi-
38
muito mais pronunciada na (jre' 'a cl ssiczi que na Roma untiga.3zt~
mais foi inteiramente esquecida. O que impediu que a ¡in/is viol e
as vidas privadas dos seus cidadãos e a l'ez ver como 'agrados os li-
mites que cereavam cada propriedade não foi o respeito pela pro-
priedade privada tal como a concehemos. mas o fato de que em
ser dono de sua casa, o homem não podia participar dos negocios
do mundo porque nao tinha nele lugar algum que lhe pertencesse.”
Ate' mesmo Platão. cujos planos politicos prevíram a abolição da
propriedade privada e a expansão da esfera pública ao ponto de
aniquilar completamente a vida privada ainda falava com grande
reverencia de Zeus Herkeios. o protetor das fronteiras. e chamava
de divinos os ¡io/oi. os limites entre os estados, sem nisso ver qual-
quer contradição'7
O que distinguia a esfera familiar era que nela os homens vi-
viam juntos por serem a isso eompelidos por suas necessidades e
carências. A força compulsiva era a própria vida
-
os penates. os
deuses do lar. eramr segundo Plutarco, «os deu. s que nos fazem
viver e alimentar o nosso corpo»;'x e a vida. para sua manutençao
Ihas pequenos foi exercida durante toda a antiguidade (veju e R. H.
Barrow. Slavr'ry ¡ii the Roman Empire (I928L p.8: «Outros direitos da
pulrl'u punir-mx se haviam tomado obsoletos: mas o direito de enjeitur só
foi proibido no ano 374 de nossa um).
lo. Quanto a estu distinção. e' interessante notar que havia cidades
gregas onde os cidadãos eram obrigados por lei a dividir entre si .suas co-
lheitas e eonsumi-las em comum. embora cada um deles tivesse a pro-
priedade absoluta e ineoriteste do seu pedaço de terra. Veja e Coulan›
ges (op. vii” pol). para quem esta lei em «uma singular eoniradição»:
mas não se trata de contradiçaor porque no conceito dos antigos os
dois tipos de propriedade eram completamente diferentes.
ir. veja-se mi 842.
18. Em Coulanges. up. cn.. p.%-, a referencia a Plutarco e de Quan
Ironm- Romonue SI. Parece~rios estranho que Coulanges com a sua 'enfa-
se unilateral sobre as deidades da regiao dos mortos na religião grega e
romana, tenha deixado pa 'ar despercebido o fato de que esses deuses
não eram meros deuses dos mortos e o culto nao era um mero «culto de
moi-te»Y e sim que essa amiga religião terrena servi-a a vida e à morte eo
mo dois aspectos do mesmo processo. A vida surge da terra e a ela re-
torna; o nascimento e a mone são apenas dois estágios diferenies da
mesma vida biológica sobre a qual os deuses subterrâneos tem influeii-
CIB.
39
individual e sobrevivência como vida da especie. requer a compa-
nhia de outros. O fato de que manutenção individual fosse a tare-
fa do homem e a sobrevivência da especie fosse a tarefa da mu-
lher era tido como obvio; e ambas estas funçoes naturais. o labor
do homem no suprimento de alimentos e o labor da mulher no parO
to. eram sujeitas a mes'ma premência da vida. PortantoY a comuniO
dade natural do lar decorria da necessidade: era a necessidade que
reinava sobre todas as atividades exercidas no lar.
A esfera da polisY ao contrario. era a esfera da liberdade. e se
havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre
as necessidades da vida em familia constituía a condição natural
para a liberdade na polls. A politica não podia. em circunstância al-
guma. ser apenas um meio de proteger a sociedade -- uma socieda-
de de fieis. como na ldade Media. ou uma sociedade de proprietaO
riosY como em Locke. ou uma sociedade inexoravelmente empe-
nhada num processo de aquisição. como em HobbesY ou uma so-
ciedade de produtoresY como em Marx. ou uma sociedade de em'
pregados. como em nossa propria sociedade. ou uma sociedade de
operários. como nos paises socialistas e comunistas. Em todos es-
tes casosY e a liberdade (e. em alguns casos. a pseudoliberdade) da
sociedade que requer e justifica a limitação da autoridade política.
A liberdade situa-se na esfera do social. e a força e a violência tor-
nam-se monopólio do governo.
O que todos os filósofos gregos tinham como certoY por mais
que se opusessem a vida na polir. e que a liberdade situa-se exc'lu-
sivamente na esfera politica; que a necessidade e primordialmente
um fenômeno pré-politico. característico da organização do lar pri»
vado'. e que a força e a violência sao justificadas nesta ultima esfera
por serem Os unicos meios de vencer a necessidade -› por exem-
ploY subjugando escravos
-
e alcançar a liberdade. Uma vez que
todos os seres humanos são sujeitos a necessidade. têm o direito
de empregar a violência contra os outros; a violencia é o ato pre›
politico de libertar»se da necessidade da vida para conquistar a li-
berdade no mundo. Esta liberdade e a condição essencial daquilo
que os gregos chamavam de eudaimonia, «ventura» - estado obje›
tivo dependente. em primeiro lugar. da riqueza e da saúde. Ser po-
bre ou ter ma saúde significava estar sujeito a necessidade fisicaY e
ser um escravo significava estar sujeitoY tambémY a violencia prati-
cada pelo homem. Esta dupla «infelicidade» da escravidão e inteiO
ramente independente do bemestar real e subjetivo do escravo.
AssimY um homem livre e pobre preferia a insegurança de um mer-
40
cado de irabalho que mudasse diariamente a um traballio regular e
garantido; este ultimo. por lhe restringir a liberdade de fazer o que
desejasse a cada diaY ja era considerado servidão (douløiai)Y e até
mesmo o trabalho árduo e penoso era preferivel a vida tranqüila de
que gozavam muitos escravos domesticos.19
No entanto. o poder pre-politico com o qual o chefe da familia
reinava sobre a familia e seus escravosY e que era tido como neces-
sario porque o homem e um animal «sociab antes de ser animal
«politicm` nada tem a ver com o caotico «estado natural» de cuja
violência` segundo o pensamento politico do se'culo dezessete. os
homens só poderiam escapar se estabelecessem um governo queY
atrave's do monopolio do poder e da violenciaY abolisse a «guerra
de todos contra todos» por «atemorizar a todos››.=“7 Pelo contrárioY
iodo o conceito de dominio e de subm .. . de governo e de poder
no sentido em que o concebemos. bem como a ordem regulamentaO
da que os acompanha. eram tidos como pre-politicos. pertencentes
'a esfera privada. e não a esfera pública.
A ¡ru/ii diferenciava›se da familia pelo fato de .somenie conhe-
cer «iguais». ao passo que a familia era o centro da mais severa de'
sigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito
às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não
Comandar. Não significava dominio. como também não significava
submissão.” Assim. dentro da esfera da familia. a liberdade não
ll). A discussão entre Socrates e Eulerus na Memorabilia (ii.8y de
Xenofonte e' bem interessante: Euterus é forçado pela necessidade a tra-
balhar com o seu corpo` e esta seguro de não poder suportar esse tipo de
vida durante muito tempo e de que tera uma velhice indigente. Ainda as-
sim. acha que executar trabalho árduo é melhor que mendigar. Ao ouvir
isto. Sócrates propõe que ele procure alguem «que esteja em melhores
condiçoes e precise de um ajudanie». Euierus responde que não supona-
ria a senz'idão (dou/mu).
20. Rei'erimo-nos aqui a Hobbes. Leninha/1. Pane l. cap. l3.
2l. A mais famosa e mais bela referencia a este assunto e' a discus-
são das diferentes formas de governo em Heródoto (iii. 80-33). na qual
Otanes. o defensor da igualdade grega (íwmmríc). declara nao «querer
governar nem ser governado››. Mas é no mesmo espirito que Aristoteles
diz que a vida do homem livre e' melhor que a do desputa, negando com
a maior naturalidade que o despota fosse livre iPo/¡tir-u. l325a24). Se-
gundo Coulanges. todas as palavras gregas e latinas que exprimem algum
tipo de governo de um homem sobre os outros. como mr, parar. u/iui.
4l
existia. pois o chefe da familia. seu dominante` só era considerado
livre na medida em que tinha a l'aculdade de deixar o lar e ingressar
na est'era politica` onde todos eram iguais` E verdade que esta
igualdade na esfera politica muito pouco tem em comum com o
nosso conceito de igualdade; significava viver entre pares e lidar
somente eotn eles. e pressupunha a existência de «desiguais»: e e '-
tes, de fato. eram sempre a maioria da populaçao na cidade-esta-
dos'2 A igualdade. poflanto` longe de ser relacionada com _a Justiça.
como nos tempos modernos. era a propria essencia da liberdade;
ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de
comandar. e mover-se numa esfera onde não existiam governo nem
governados.
Contudo. termina aqui a possibilidade de descrever, em
termos perfeitamente definidos. a profunda diferença entre os
Conceitos moderno e antigo de politica. No mundo modemo. as es-
feras social e politica diferem muito menos entre si. 0 fato_de que a
politica e' apenas uma função da sociedade - de que a acao. o dis-
curso e o pensamento são. fundamenuilmento superestnituras assen›
tadas no interesse social - não t'oi descoberto por Karl Marx; pelo
contrario. foi uma das premissas axiom'átieas que Marx recebeu.
sem discutir` dos economistas politicosI da era moderna. lista fun-
cionalizaçi'io torna impossivel perceber qualquer grande abismo en-
tre as duas esferas; e nao se trata de uma questão de teona ou de
ideologia. pois. com a ascendência da sociedade. isto _e. a elevacao
do lar doméstico (wikio) ou das atividades eeonomi as ao nivel
público. a administração dome' ` a e todas as questoes antes perti-
nentes a esfera privada da famflia transformaram-se em interesse
«coletivmf1 No mundo moderno. as duas esferas constantemente
Imtiluut, referiam-se originariamente a relações familiares e eram nomes
que os escravos davam a seus senhores (tr/i. tu.. pp.89 if. 228›.
22. A proporção variava` e era certamente exagerada no relato de _Xe-
nofonte obre Esparta. onde` entre quatro mil pe '_oa' na pi' publica.
nâo havia mais que sessenta cidad' s` (Ilifllwut-ii i i.
23. Veja-se lrdal` up. ‹ ir.. «A noção de que a sociedade. como tim
chefe de familia. administra a casa em favor dos seus membros. e pro-
fundamente airaigada na terminologia economica .. Em alemão. a p' a-
vra aítsiiii- tliii/ultflu't/ sugere que existe um sujeito coletivo da ai
vidade economica com um fim comum e valores comuns l-.m ingles.
. 'theory of wealth` ou `theory of welfzire' exprimem ideias semelhan-
42
i'ecacnt uma sobre a outra` como ondas no perene fluir do proprio
processo da vida.
O desaparecimento do abismo que os antigos tinham que
transpor diariamente a fim de transcender a estreita esfera da fa-
milia e «ascenders a esfera politica e fenomeno essencialmente mo-
derno. Esse abismo entre o privado e o público ainda existia de
certa forma na Idade Media. embora houvesse perdido muito da
sua importância e mudado inteiramente de localização. Já se disse
com aceno que` após a queda do lmperio Romano. foi a igreja Ca›
tolica que ofereceu ao homem um substituto para a cidadania antes
outorgada exclusivamente pelo governo municipal.-`A A tensão me-
dieval entre a treva da vida diária e o grandioso esplendor de tudo
o que em sagrado, com a concomitante elevação do secular para o
plano religioso. corresponde em muitos aspectos a ascensão do pri-
vado ao plano publico da antiguidade. . claro que a diferença e
muito marcante; pois. por mais ‹«mundana›› que se tornasse a lgre-
ja` o que mantinha coesa a comunidade de crentes era essencial-
tnente uma preocupação extraterrena. Somente com alguma diñcul›
dade é possivel equacionar o público com o religioso'` mas a esfera
secular sob o feuda smo era. de fato, em sua inteireza` aquiloque a
esfera pública havia sido na antiguidade. Sua principal caracteristi-
ca foi a absorção de todas iis atividades para a esfera do Iar (onde a
imponência dessas atividades era 'apenas privada) e. conseqüente-
mente` a propria existência de uma esfera pública".
tes» (p.l40›. «Que significa uma economia social cuja funçao e' a admi-
nistração doméstica da sociedade? Em primeiro lugar. implica ou sugere
uma analogia entre a sociedade e o individuo que governa a sua casa ou
a da sua familia. Adam Smith e James Mill desenvolveram explicitamen-
te esta analogia. Apos a critica de 1.5 Mill. e com o maior reconheci-
inenio da diferença entre a economia política prática e a teórica` passou-
se a dar menos destaque a essa analogia» (p.|43). O fato de Já não se
usar a analogia pode dever-se ao fato de que a sociedade devorou a uni-
dade familiar ate' tornar-se completo substituto para ela.
24. R. H. Bartow. 'l'lit' Rir/Hunt ll953). Q.l94.
25. As caracteristicas que F.. Levasseut (Him/w dm t!u.‹›.» ou-
t/'lmw o! ill' ¡mt/wmv vii Í'I'ulu e mim! 1789 HW» atribui 'a organizav
ção t'eudzil do trabalho aplicam-se as comunidades (eudais como um
iodo: «Chacun vivait chez soi et vivait de . i-m'emefl Ie noble sur sa seig-
riem-ie. Ie villairi stir sa culture. Ie citadin dans sa ville» (p.229).
43
É tipico desta evolução da esfera privada - e, por sinal, da di-
ferença entre o antigo chefe de familia e o senhor feudal - que es-
te irltimo pudesse administrar justiça dentro dos limites do seu do-
minio, ao passo que o antigo chefe de familia. embora pudesse
exercer um dominio mais ameno ou mais severo, não conhecia leis
nem justiça fora da esfera publica,26 A transferência de todas as ati›
vidades humanas para a esfera privada e o ajustamento de todas
as relações humanas segundo o molde familiar teve profundas re-
percussões nas organizações profissionais especificamente medie›
vais nas proprias cidades - nos _twi'lili, ton/«irrita e ‹‹1i›i¡iri_,¿iit›iit f
e ate' mesmo nas primeiras companhias comercia , nas quais «o lar
comum original parecia estar implicito na propria palavra *compas
nhia' (compartir) (e) em expressões como *aqueles que comem
do mesmo pao', `homcns que compartilham do mesmo pao e do
mesmo vinho'››,71 O conceito medieval de «bem comum». longe de
indicar a existencia de uma esfera politica, reconhecia apenas que
os individuos privados tem interesses materiais e espirituais em cc»
mum, e so podem conservar sua privatividade e cuidar de seus prt'y
prios negocios quando um deles se encarrega de zelar por esses in-
teresses comuns, 0 que distingue da realidade modema esta atitu-
de essencialmente crista em relação a politica nâo e tanto o reco-
nhecimento de um «bem comum» quanto a exclusividade da esfera
privada e a ausência daquela esfera curiosamente hflm'da que cha-
26. O tratamento imparcial dos escravos. que Platão recomenda nas
Lú. (777;, pouca tem ii vez com a justiça. z nâo é fecumendadti por uma
questao de «consideração com os (escravos). mas mais por iima ques-
tão de respeito por nos mesmos»y Quanto à coexistência de duas leis. a
lei politica da justiça e a lei domestica de dominio. vc; e Wallon. «f/i.
til., Il, 200: «La loi, pendant bien lnngtcmps, done abstenait de pé-
netrer dans la famille, oii elle reconn t l`erripire d'une atitre loi». A
jurisdição antiga, especialmente a romana. relativa a assuntos domésti-
cos, tratamento de escravos, relaçoes familiares. etc destinava-sc es-
sencialmente a restringir o poder do chefe de familia que. no mais, era
ilimitado; era imperi tive! que pudesse haver uma norma de itistiça den-
tro da sociedade inteiramente «‹privada» dos próprios' escravos que, por
definicao, Se situavam fora do ambito da lei e sujeitos ao dominio dos
respectivos senhore. Somente o senhor dos escravos, na medida em que
era também um cidadão. ficava .sujeito as normas da lei que. vel por
outra, erri beneficio da cidade, cerccava os seus poderes- na familia.
27. w. J. Ashley. .›,z. Hi.. Mis.
44
marnos de «sociedade››, na qual os interesses privados assumem
importância publica.
Nâo e surpreendente, portanto, que o pensamento medieval,
preocupado exclusivamente com o secular, tenha permanecido
ignorante do abismo entre a vida resguardada do lar e a impiedosa
vulnerabilidade da vida na polir e, conseqüentemente, da virtude
da coragem como uma das atitudes politicas mais elementaresy O
que continua a ser surpreendente e que o unico teorista politico
pós-classico - que, num extraordinario esforço de restaurar a anti-
ga dignidade da politica, percebeu o abismo e compreendeu ate
certo ponto a coragem necessaria para transpóslo v- tenha sido Ma›
quiavcl, que o descreveu na evolução «do Condottiere de uma po-
siçao humilde para um alto posto», da privatividade para o princiO
pado, isto e'. das circunstâncias comuns a todos os homens para a
glória resplandecente das grandes realizações.”
Deixar a familia, originalmente para abraçar alguma empresa
aventureir'ti e gloriosaY e mais tarde simplesmente para dedicar a vi-
da aos negocios da cidade, exigia coragem. pois era só no lar que o
homem se empenhava basicamente em defender a vida e a sobrevi-
vência. Quem quer que ingressasse na esfera politica deveria. em
primeiro lugar, estar disposto a amscar a própria vida; o excessivo
amor a vida era um obstáculo a liberdade e sinal inconfundível de
servilismo.” A coragem, portanto, tomou~se a virtude politica por
28, Esta sascensati» de uma esfera oii categoria mais baixa para ou‹
tra mais alia e um tema recorrente em Maquiaveri (veja-se especialmente
(1 Print ipt', ap. 6, acerca tic Hiero de Siracusa, e cap. 7; e l)i‹iii.io.,
Livro ll. cap. lll.
29. «Já no tempo de Solon, a escravidão era considerada pior que a
morte» (Robert Schlaifci. «Greek Theories of Slavery from Homer to
Atistotle». [Iiiriiiril .Xlutlit'i iii ('Iii.iii‹'iil Piu/timer “936). XLVIl ), Des›
de en o. a ¡›Ii¡1‹i¡›»‹/u‹i ‹«o amor a vidas) e a covardia pa, aram a ser
identificad com a servilitlade. Assim. Platao acreditava ter demonstra-
do a ,servilidade natural dos escravos pelo fato de este. não terem prefe-
rido a morte a escravidão (Remi/rim: šlšoA), A resposta dc Seneca as
queixas dos' escravos talvez ainda contenha um refleXO tardio dessa ati-
tude: «Com a liberdade tao ao alcance de rio as mãos. existe ainda al-
guc'm que seja escravo'R» (Ep. 77. N), e o iii mo se pode dizer de sua
frase r-i/li ii imii-it'mli t-imm tihty , www «iii - «sem a virtude que sa-
he como morrer. a vida e' servi ao» (77. Hi. Para qiie se compreenda a
atitude dos antigos em rei' âo ii escravid v. convém lembrar que a
maioria dos escravos eram inimigos derrotados e que geralmente .so uma
45
excelência, e s aqueles que a possuíam podiam ser admitidos a
uma associação dotada de conteúdo e finalidade politicos e que por
isso mesmo transcendia o mero companheirismo imposto a todos
-
escravos, bárbaros e gregos _ pelas exigência da vida.” A vida
«bowY como Aristoteles qualificava a vida do cidadão, era, portan-
to, não apenas melhorY mas livre de cuidados ou mais nobre que a
vida ordinária mas possuia qualidade inteiramente diferente. Era
‹‹boa›» exatamente porque, tendo dominado as necessidades do
mero viver, tendo-se libertado do labor e do trabalhoY e tendo su-
perado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas
vivas, deixava de ser limitada ao proc o biológico da vida.
Na raiz da consciencia politica grega encontramos uma clareza
e uma eloqüência sem-par na deñnição dessa diferença. Nenhuma
atividade que servi se a mera finalidade de garantir o sustento do
individuo, de somente alimentar o processo vitalY era digna de
adentrar a esfera politica - e isto ao grave risco de abandonarem-
sc o comercio e a manufatura ao engenho de escravos e de estran-
geirosY de sorte que Atenas se transformou realmente na «pensio-
nópolis» com um «proletariado de consumidores» que Max Weber
tão vividumentv. descreveu?I O verdadeiro carater dessa polir é
pequena percentagem era constituida de escravos natas. E enquanto nas
Repúblicas Romunas os escravos eram. de modo geral. trazidos de fora
das fronteiras do dominio romano os escravos gregos eram geralmente
da mesma nacionalidade que os seus senhore" haviam demonstrado sua
natureza servil por não terem cometido suicidio e. como a coragem era a
virtude politica mu- «nal/0m v. haviam demonstrado com isso sua indig-
nidade «naturalm sua incapacidade de serem cidadãos. A atitude em re-
laçao aos ' 'ravos mudou no império Romano nao só devido à influên-
eia do estolcismm mas porque uma proporção muito maior da população
escrava cra escrava de nascimento. Mas mesmo em Romar Virgilio con-
siderava que Iii/rm era intimamente relacionado com a morte inglória
¡Awwo vi).
30. 0 fato de que a coragem diferencia o homem livre do escravo
parece ter sido o (ema de um poema de autoria do poeta cretense Hi-
bri s'. «Minha riqueza é a lança e a espada e o belo escudo. Mas
aqueles que não nusam valer-se da lança e da espada e do belo escudo
que protege o corpo. prostram- de joelhos assombradosr e me chamam
de Senhor e Grande Rei» tcitado por Eduard MeyeL Die Sklaeewi im
Mim-mu (l89SL pill
31. Max Weber. «Agrarverhaltnisse im Altertumm Guam/nella
:iu/mim .'¡n' .Suriul ~- um! Wu'lir/m/¡wmz'lmfm' (WML p. M7.
46
ainda bastante evidente nas filosofias politi as de Platão e Aristote-
les, mesmo que a linha divisória entre a familia e a ¡mlii ocasional-
mente desapareça, especialmente em Platão que‹ provavelmente
seguindo Sócrates. passou a colher os seus exemplos e ilustraçoes
da polls nas experiencias cotidian ' da vida privada, mas também
em Aristoteles, quando este. seguindo Platão, presumiu especulati-
vamente que pelo menos a origem histórica da polir deveria estar
ligada as necessidades da vida, e que somente o seu conteudo ou i'r-
nalidade inerente (lo/m) transcende a vida na ‹‹boa›› vida.
Estes aspectos dos ensinamentos da escola socratic , que logo
se tornariam axiomaticos c banais, eram, na epoca, os mais novos
e mais revolucionan'os; resultavam não da experiência real do indi-
viduo na vida politi aY mas do seu desejo de libertar-se do ônus da
vida politica. um desejo queY em seu proprio entendimentor os filó-
sofos so podiam justificar mediante a demonstração de que até
mesmo esse modo de vida, o mais livre de todos. estava ainda rela-
cionado e subordinado à necessidade. Não obstante, o passado de
verdadeira experiencia politica, pelo menos em Platão e Aristote-
les, continuava tão forte que 'amais houve duvida quanto a distin-
ção entre as esferas da familia e da vida política. Sem a vitoria
sobre as necessidades da vida na familia, nem a vida nem n «boa
vida é possivel; a politicaY porém, amais a a manutenção da vi-
da. No que tange aos membros da polix. a vlda no lar existe em
função da «bom vida na polir.
__ 6 _
A Promoção do Social
passagem da sociedade
-
a ascensão da administracao casei-
ra, de suas atividades, seus problemas e recursos organiza-
cionais - do sombrio interior do lar para a lu'1. da esfera publica
não apenas diluiu a antiga divisão entre o privado e o politico, mas
também alterou o significado dos dois termos e a sua importancia
para a vida do individuo e do cidadão, ao ponto de torna-los quase
irreconhecivei Hoje, nao apenas não concordan'amos com os gre-
gos que uma vida vivida na privatividade do que e' proprio ao indivi-
duo (idr'on), a parte do mundo comumr e «idiota›› por definição.
mas tampouco concordariamos com os romanos para os quais a
47

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a A política de Aristóteles: governo, cidadão e cidade

Escravidao no brasil vol1 - malheiros
Escravidao no brasil   vol1 - malheirosEscravidao no brasil   vol1 - malheiros
Escravidao no brasil vol1 - malheirosSantiago Silva
 
Interpretações_Estado.pdf
Interpretações_Estado.pdfInterpretações_Estado.pdf
Interpretações_Estado.pdfEduardoNeto70
 
Jb news informativo nr. 0294
Jb news   informativo nr. 0294Jb news   informativo nr. 0294
Jb news informativo nr. 0294JB News
 
H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.
H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.
H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.pedrogostoso
 
Cap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia socialCap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia socialJoao Balbi
 
Cap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia socialCap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia socialJoao Balbi
 
Texto para a aula o homem é um animal político
Texto para a aula o homem é um animal políticoTexto para a aula o homem é um animal político
Texto para a aula o homem é um animal políticoCélio Alves de Moura
 
Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1
Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1
Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1cemem
 
apostila 2 ano apliquese 1b.pdf
apostila 2 ano apliquese 1b.pdfapostila 2 ano apliquese 1b.pdf
apostila 2 ano apliquese 1b.pdfcismedeiros
 
Evolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto lima
Evolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto limaEvolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto lima
Evolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto limaSaulo Barreto
 
A sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdf
A sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdfA sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdf
A sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdfIuriTavares4
 
Apresentação1 - Seminário - Rousseau
Apresentação1 - Seminário - RousseauApresentação1 - Seminário - Rousseau
Apresentação1 - Seminário - Rousseauslidesdetrabalho
 
Trabalho com texto sobre Expansão Marítima
Trabalho com texto sobre Expansão MarítimaTrabalho com texto sobre Expansão Marítima
Trabalho com texto sobre Expansão MarítimaZé Knust
 

Semelhante a A política de Aristóteles: governo, cidadão e cidade (20)

Escravidao no brasil vol1 - malheiros
Escravidao no brasil   vol1 - malheirosEscravidao no brasil   vol1 - malheiros
Escravidao no brasil vol1 - malheiros
 
Interpretações_Estado.pdf
Interpretações_Estado.pdfInterpretações_Estado.pdf
Interpretações_Estado.pdf
 
Jb news informativo nr. 0294
Jb news   informativo nr. 0294Jb news   informativo nr. 0294
Jb news informativo nr. 0294
 
Edição n. 27 do CH Noticias - Setembro/2017
Edição n. 27 do CH Noticias - Setembro/2017Edição n. 27 do CH Noticias - Setembro/2017
Edição n. 27 do CH Noticias - Setembro/2017
 
H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.
H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.
H9. 1.bim aluno_2.0.1.3.
 
Edição n. 27 do CH Notícias - Setembro de 2017 - anterior
Edição n. 27 do CH Notícias - Setembro de 2017 - anteriorEdição n. 27 do CH Notícias - Setembro de 2017 - anterior
Edição n. 27 do CH Notícias - Setembro de 2017 - anterior
 
Cap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia socialCap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia social
 
Cap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia socialCap 8 antropologia social
Cap 8 antropologia social
 
Texto para a aula o homem é um animal político
Texto para a aula o homem é um animal políticoTexto para a aula o homem é um animal político
Texto para a aula o homem é um animal político
 
Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1
Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1
Cartilha projeto memória tre_rn_constituições brasileiras_volume 3_tomo 1
 
apostila 2 ano apliquese 1b.pdf
apostila 2 ano apliquese 1b.pdfapostila 2 ano apliquese 1b.pdf
apostila 2 ano apliquese 1b.pdf
 
Evolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto lima
Evolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto limaEvolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto lima
Evolução política dos países latino americanos--1970 gen. flamarion barreto lima
 
Slide do seminário de filosofia
Slide do seminário de filosofiaSlide do seminário de filosofia
Slide do seminário de filosofia
 
A sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdf
A sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdfA sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdf
A sociedade contra o Estado ANTROPOLOGIA.pdf
 
Enviando malheiros1
Enviando malheiros1Enviando malheiros1
Enviando malheiros1
 
Apresentação1 - Seminário - Rousseau
Apresentação1 - Seminário - RousseauApresentação1 - Seminário - Rousseau
Apresentação1 - Seminário - Rousseau
 
Apresentação1r
Apresentação1rApresentação1r
Apresentação1r
 
Caderno Diário O modelo ateniense
Caderno Diário O modelo atenienseCaderno Diário O modelo ateniense
Caderno Diário O modelo ateniense
 
O QUE É POLÍTICA EM ARISTÓTELES
O QUE É POLÍTICA EM ARISTÓTELESO QUE É POLÍTICA EM ARISTÓTELES
O QUE É POLÍTICA EM ARISTÓTELES
 
Trabalho com texto sobre Expansão Marítima
Trabalho com texto sobre Expansão MarítimaTrabalho com texto sobre Expansão Marítima
Trabalho com texto sobre Expansão Marítima
 

A política de Aristóteles: governo, cidadão e cidade

  • 2. Título original: LA POLITIQUE. Copyright O Presses Universitaires de France, para o texto e o aparelho crítico em que se baseia esta tradução. Copyright O 1991, Livraria Martins Fontes Ltda., São Paulo, para a presente edição. 1º edição 1991 3º edição 2006 Tradução ROBERTO LEAL FERREIRA Feita a partir da versão francesa de Marcel Prélot Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revisões gráficas Maria Luiza Favret Dinarte Zorzanelli da Silva Produção gráfica Geraldo Alves Paginação/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Aristóteles A política / Aristóteles ; tradução Roberto Leal Ferreira. — 3º ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2006. — (Clássicos) Título original: La politique. ISBN 85-336-2323-2 1. Filosofia grega 2. Política I. Título. II. Série. 06-5919 CDD-320 Índices para catálogo sistemático: 1. Ciência política 320 Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 , e-mail: infoQmartinsfontes.com.br http:/www.martinsfontes.com.br A E Índice Prefácio ..... irei arerarearerereaaeeaaseeenartaia IX Nota do tradutor francês.......... seas XIX BLOBTAJIA sessssueniaren mpuerererancensas arame senagammeasaa do aquando XXV Introdução - Da origem do Estado... 1 O Estado e seu governo/A formação da ci- dade/O homem, “animal cívico” Livro IT - Do governo doméstico I Do senhor e do escravo... 9 O poder do senhor ou “despotismo”/A servi- dão natural/A servidão convencional/ Diferen- ças entre o “despotismo” e o poder político IH. Da propriedade e dos meios de adquiri-la.. 19 A aquisição natural ou “economia”/A aqui- sição artificial ou “crematística”/Apreciação dos dois modos de aquisição/Algumas ma- neiras práticas de adquirir NI. Dos poderes marital e paternal................. 33 As virtudes próprias aos diversos membros da família
  • 3. Livro II - Do cidadão e da cidade IV. Do cidadão... eternas O critério da cidadania/As diversas espé- cies de cidadãos/As virtudes que fazem o ci- dadão e o homem de bem Y. Da finalidade do Estado, «siso ce smeseiea rerscasmaita As condições da felicidade particular/Feli- cidade privada e felicidade pública/A vida ativa, fonte das duas felicidades VI. Da eugenia e da educação ............s Fim pacífico da educação/A regulamenta- ção dos casamentos e dos nascimentos/A educação da infância/Caráter público e ob- jeto da educação/O papel da música/Os li- mites da ginástica . VII. Das dimensões e da localização da Cidade. Grandeza desejável do Estado/A boa loca- lização da Cidade/A disposição interior VII. Das funções e das classes sociais... Os elementos necessários à existência da Ci- dade/A especialização das funções/Caráter tradicional das classes/A partilha dos bens Livro III - Dos governos IX. Das diversas formas de governo ......... Euriues Os critérios distintivos: número e justiça/ Discussão dos critérios/A monarquia/A aris- tocracia/A “República”/A tirania/A oligar- quia/A democracia X. Dos três poderes existentes em todo governo O poder deliberativo/O poder executivo/O poder judiciário 127 XL. Do melhor GOVERNO cacenassaancececmencnanasaonss es o so Relatividade do melhor governo/A melho- ria do regime estabelecido/Dificuldades de atribuição da soberania XII. Crítica das monarquias. «sessions seis ss A superioridade da lei/Razão histórica de ser da monarquia/Conveniência da monar- quia para certos povos XIII. Crítica das Repúblicas ............. A igualdade e seus limites/As pretensões concorrentes/A exceção do gênio/Os direi- tos do número/A alternância do mando e da obediência/Apreciação dos diversos tipos de democracia/As leis das oligarquias XIV. Das virtudes do justo meio... Importância e excelência da classe média/ O regime moderado Livro IV - Da subversão e da conservação dos governos XV. Das subversões e de suas causas gerais ...... Permanência do Estado através dos regi- mes/O excesso de desigualdade, causa prin- cipal das subversões/As outras causas/Os pre- textos e ocasiões XVI. Das revoluções próprias às Repúblicas........ Causas das revoluções na democracia/Cau- sas das revoluções na oligarquia/Causas das revoluções na aristocracia XVII. Das revoluções particulares às monarquias, Causas comuns à monarquia e à tirania/Su» 221
  • 4. perioridade da monarquia/Pouca duração das tiranias XVIII. Das leis ou práticas salutares às Repúblicas O respeito às leis e à liberdade/Outras prá- ticas salutares/O desinteresse/A virtude e a educação XIX. Máximas de Estado para as monarquias...... O recurso ao rigor/O uso da moderação Apêndices Exame de algumas Constituições que tiveram seu rei- nado ou que foram apenas projetadas pelos DUO amava Apêndice I — Exame das duas Repúblicas de Platão... Apêndice II — Exame da Constituição de Faléias de Calcedônia... sanear Apêndice III — Exame da Constituição de Hipóda- ns ClaRMÉR O. a ses deepns onça pude pre rosa Apêndice IV — Exame das Constituições da Lace- demônia, de Creta e de Cartago................... Apêndice V — Notas sobre Licurgo e alguns outros legisladores ..........teereeeeeeeieeees 231 Fins rúl: Biblioteca Cos Prefácio Só penetramos bem as obras próximas de nós mes- mos ou de nosso tempo, pelo menos por algum aspecto. Igualmente, só se amam os escritos cujo autor nos atrai por seu caráter e por seu exemplo. Ora, Aristóteles, com a exttema dignidade de vida, a nobreza de pensa- *mento, gosto por um justo equilíbrio, é para nós, por toda a sua personalidade, um reconforto. Com efeito, foi possível classificá-lo não apenas en- tre os “grandes espíritos”, mas também entre os “grandes corações”. Na coleção de biografias — quase de hagiogra- fias — que levava este título, M. D. Roland-Gosselin chega a esta conclusão um tanto inesperada: “Decididamente, não é demais dizer que Aristóteles foi um excelente ma- rido, um pai afetuoso e devotado, um bom homem.” Ela ilumina com uma luz bastante simpática a fisionomia do Estagirita, cuja vida, na medida em que a conhecemos exa- tamente, revela poucos acontecimentos e, afora a educa- ção de Alexandre, é carente dos grandes cargos que não raro acompanham os grandes livros consagrados ao Esta- do e a seu governo. Aristóteles não é nada mais do que um “intelectual”, no melhor sentido da palavra, um “letrado” que às vezes IX
  • 5. INTRODUÇÃO Da Origem do Estado a O Estado e seu Governo Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a es- perança de um bem, seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades, portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que é a principal e contém em si todas as outras se propõe à maior vantagem possível. Chamamo-la Estado ou socie- dade política. Enganam-se os que imaginam que o poder de um rei ou de um magistrado de República só se diferencie do de um pai de família e de um senhor pelo número maior de súditos e que não há nenhuma diferença específica en- tre seus poderes. Segundo eles, se tem poucos súditos é um senhor; se tem alguns a mais é um pai de família; se tiver ainda mais é um rei ou um magistrado de Repúbli- ca. Como se não houvesse diferença entre uma grande fa- mília e um pequeno Estado, nem entre um rei e um ma- gistrado de República. A distinção seria que um rei go- verna sozinho perpetuamente, enquanto um magistrado de República comanda e obedece alternadamente, em
  • 6. A Política virtude da Constituição. Tudo isso, porém, é errado, co- mo veremos ao examinar esta matéria segundo o méto- do que usamos em nossas outras obras!. Como não podemos conhecer melhor as coisas com- postas do que decompondo-as e analisando-as até seus mais simples elementos, comecemos por detalhar assim o Estado e por examinar a diferença das partes, e procu- remos saber se há uma ordem conveniente para tratar de cada uma delas. A Formação da Cidade Nesta como em qualquer outra matéria, uma exce- lente atitude consiste em remontar à origem. É preciso, inicialmente, reunir as pessoas que não podem passar umas sem as outras, como o macho e a fêmea para a ge- ração. Esta maneira de se perpetuar não é arbitrária e não pode, na espécie humana assim como entre os ani- mais e as plantas, efetuar-se senão naturalmente. É para a mútua conservação que a natureza deu a um o coman- do e impôs a submissão ao outro. Pertence também ao desígnio da natureza que co- mande quem pode, por sua inteligência, tudo prover e, pelo contrário, que obedeça quem não possa contribuir para a prosperidade comum a não ser pelo trabalho de seu corpo. Esta partilha é salutar para o senhor e para o escravo. A condição da mulher difere da do escravo. A natu- reza, com efeito, não age com parcimônia, como os arte- sãos de Delfos que forjam suas facas para vários fins; ela destina cada coisa a um uso especial; cada instrumento Introdução que só tem o seu uso é o melhor para ela. Somente entre os bárbaros a mulher e o escravo estão no mesmo nível. Assim, esses povos não têm o atributo que importa natu- ralmente a superioridade e sua sociedade só é composta de escravos dos dois sexos. Foi isso que fez com que o poeta acreditasse que & Os gregos tinham, de direito, poder sobre os bár- baros, como se, na natureza, bárbaros e escravos se confundissem. A principal sociedade natural, que é a família, for- mou-se, portanto, da dupla reunião do homem e da mu- lher, do senhor e do escravo. O poeta Hesíodo tinha ra- zão ao dizer que era preciso antes de tudo A casa, e depois a mulher e o boi lavrador, já que o boi desempenha o papel do escravo entre os po- bres. Assim, a família é a sociedade cotidiana formada pela natureza e composta de pessoas que comem, como diz Carondas, o mesmo pão e se esquentam, como diz Epimênides de Creta, com o mesmo fogo. A sociedade que em seguida se formou de várias ca- sas chama-se aldeia e se assemelha perfeitamente à pri- meira sociedade natural, com a diferença de não ser de todos os momentos, nem de uma frequentação tão con- tínua. Ela contém as crianças e as criancinhas, todas ali- mentadas com o mesmo leite. De qualquer modo, trata-se de uma colônia tirada da primeira pela natureza. Assim, as Cidades inicialmente foram, como ainda hoje o são algumas nações, submetidas ao governo real, | formadas que eram de reuniões de pessoas que já viviam sob um monarca. Com efeito, toda família, sendo gover- nada pelo mais velho como que por um rei, continuava a viver sob a mesma autoridade, por causa da consan- guinidade. Este é o pensamento de Homero, quando diz:
  • 7. A Política Cada um, senhor absoluto de seus filhos e de suas mulheres, Distribui leis a todos... Isso ocorria porque nos primeiros tempos as famílias viviam dispersas. É ainda por esta razão que todos os homens que antigamente viveram e ainda vivem sob reis dizem que os deuses vivem da mesma maneira, atribuin- do-lhes o governo das sociedades humanas, já que os imaginam sob a forma do homem. O Homem, “Animal Cívico” A-sociedade que se formou da reunião de várias al- deias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bas- tar a si mesma, /sendo organizada não apenas para con- servar a existência, mas também para buscar o bem-estar. Esta sociedade, portanto, também está nos desígnios da natureza, como todas as outras que são seus elementos. Ora, a natureza de cada coisa é precisamente seu fim. Assim, quando um ser é perfeito, de qualquer espécie que ele seja — homem, cavalo, família —, dizemos que ele está na natureza. Além disso, a coisa que, pela mesma razão, ultrapassa as outras e se aproxima mais do objetivo pro- posto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si mes- ma é uma meta a que tende toda a produção da nature- za e é também o mais perfeito estado. É, portanto, evi- dente que toda Cidade está na natureza e que o homem é naturalmente feito para a sociedade política. Aquele que, por sua natureza e não por obra do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria um indivíduo detestável, muito aci- ma ou muito abaixo do homem, segundo Homero: Introdução - Um ser sem lar, sem família e sem leis. Aquele que fosse assim por natureza só respiraria a guerra, não sendo detido por nenhum freio e, como uma ave de rapina, estaria sempre pronto para cair sobre os outros. =, Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agra- dáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limi- tado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o 'órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil. O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o pri- meiro objeto a que se propôs a natureza”. O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésti- cas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas dis- tintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. /O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhum - pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade.
  • 8. A Política O primeiro que a instituiu trouxe-lhe o maior dos bens. Mas, assim como o homem civilizado é o melhor de to- dos os animais, aquele que não conhece nem justiça nem leis é o pior de todos. Não há nada, sobretudo, de mais . * intolerável do que a injustiça armada. Por si mesmas, as Livro T armas e a força são indiferentes ao bem e ao mal: é o princípio motor que qualifica seu uso. Servir-se delas sem nenhum direito e unicamente para saciar suas paixões rapaces ou lúbricas é atrocidade e perfídia: Seu uso só é lícito para a justiça. O discernimento e o respeito ao di- reito formam a base da vida social e os juízes são seus primeiros órgãos. Do Governo Doméstico
  • 9. CAPÍTULO IV Do Cidadão Para bem conhecer a Constituição dos Estados e suas espécies, é preciso em primeiro lugar saber o que é um Estado, pois nem sempre se está de acordo se se deve imputar fatos ao Estado ou aos que o governam, quer como chefes únicos, quer num grupo menos nu- meroso do que o resto da Cidade. Ora, o Estado é o su- jeito constante da política e do governo; a constituição política não é senão a ordem dos habitantes que o compõem. Como qualquer totalidade, o Estado consiste numa multidão de partes: é a universalidade dos cidadãos. Co- mecemos, pois, por examinar o que devemos entender por cidadão e quem podemos qualificar assim, pois se trata de uma denominação equívoca e nem todos são unã- nimes sobre a sua aplicação. Alguém que é cidadão nu- ma democracia não o é numa oligarquia. O Critério da Cidadania Falemos aqui apenas dos cidadãos de nascimento, e não dos naturalizados. 41
  • 10. A Política Não é a residência que constitui o cidadão: os estran- geiros e os escravos não são “cidadãos”, mas sim “habi- tantes”. Tampouco é a simples qualidade de julgável ou o di- reito de citar em justiça. Para isso, basta estar em relações de negócios e ter ao mesmo tempo alguma coisa a resol- ver. Mesmo assim, há muitos lugares em que os estrangei- ros não são admitidos nas audiências dos tribunais senão quando apresentam uma caução. Não participam, então, a não ser de um modo imperfeito, dos direitos da Cidade. É mais ou menos o mesmo que acontece com as crianças que ainda não têm idade para serem inscritas na função cívica e com os velhos que, pela idade, estão isen- tos de qualquer serviço. Não podemos dizer simplesmen- te que eles são cidadãos; não são senão supranumerários; uns são cidadãos em esperança por causa de sua imper- feição, outros são cidadãos rejeitados por causa de sua de- crepitude. Terão o nome que se quiser: o nome não im- porta desde que sejamos compreendidos. Procuramos aqui o cidadão puro, sem restrições nem modificações. Com mais forte razão, devemos deliberadamente ris- car desta lista os infames e os banidos. Portanto, o que constitui propriamente o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de vo- to nas Assembléias e de participação no exercício do po- der público em sua pátria. Há dois tipos de poderes: uns são temporários, só são atribuídos por certo tempo e não se podem obter duas ve- zes em seguida; os outros não têm tempo fixo, como o de julgar nos tribunais ou de votar nas assembléias. Objetar-se-á, talvez, que estes últimos não são ver- dadeiros poderes e não participam de modo algum do 42 Livro governo. Mas seria ridículo contestar esta denominação de quem se pronuncia sobre os interesses maiores do Es- tado. Aliás, pouco importa, essa é apenas uma questão de palavras. Não possuímos, com efeito, um termo comum sob o qual possamos colocar a função de juiz e a de membro da Assembléia. Será, se se quiser, um poder sem nome. Ora, chamamos “cidadão” quem quer que seja ad- mitido nessa participação e é por ela, principalmente, que o distinguimos de qualquer outro habitante. Convém ainda notar que nas coisas cujo sujeito per- tence a espécies diferentes, sem outra relação entre si, senão que uma é a primeira, a outra a segunda e assim por diante, não há absolutamente nada ou muito pouco em comum. É o que se observa nas formas de governo: são de diferentes espécies, umas primitivas, outras pos- teriores. Entre estas últimas devem ser contadas as cor- rompidas e degeneradas, que vêm necessariamente depois das que permaneceram sãs e intactas. (Explicaremos mais adiante em que consiste a degenerescência”.) Portanto, o cidadão não pode ser o mesmo em todas as formas de governo. É sobretudo na democracia que é preciso pro- - curar aquele de que falamos; não que ele não possa ser encontrado também nos outros Estados, mas neles não se acha necessariamente. Em alguns deles, o povo não é nada. Não há Assembléia geral, pelo menos ordinária, mas simples convocações extraordinárias. Tudo se deci- de pelos diversos magistrados, segundo suas atribuições. Na cerimônia, por exemplo, os éforos tratam dos contra- tos; os senadores, dos homicídios; as outras magistratu-. ras, das outras matérias. Acontece o mesmo em Cartago, onde alguns magistrados decidem sobre tudo. A definição do cidadão, portanto, é suscetível de maior ou menor extensão, conforme o gênero do governo. Há 43
  • 11. A Política alguns em que o número e o poder dos juízes e dos membros da Assembléia não é ilimitado, mas restrito pela constituição. O direito de julgar e deliberar cabe a todos ou apenas a alguns, e isso sobre todas as matérias, ou somente sobre algumas. Por aí se pode ver a quem con- vém o nome de cidadão em cada lugar. É cidadão aquele que, no país em que reside, é admitido na jurisdição e na deliberação. É a universalidade deste tipo de gente, com riqueza suficiente para viver de modo independente, que constitui a Cidade ou o Estado. Comumente, o costume é dar o nome de cidadão “apenas àquele que nasceu de pais cidadãos. De nada ser- viria que o pai o fosse, se a mãe não for. Em alguns luga- res, vai-se ainda mais longe, até dois avôs ou a um grau maior. Surge, então, a dificuldade de saber como serão eles mesmos cidadãos, este terceiro e este quarto avô. Gór- gias de Leonte dizia, não se sabe se a sério ou por brin- cadeira, que, assim como os caldeireiros fazem caldeiras, assim também os habitantes de Larissa fabricavam laris- sianos, e que era preciso que os larissianos fabricados ti- vessem os seus fabricantes. De acordo com nossa defini- ção, a coisa é simples. Se participarem do poder público, serão cidadão. A outra definição, que exige que se tenha nascido de um cidadão ou de uma cidadã, excluiria des- ta categoria, em contrapartida, os primeiros habitantes e os próprios fundadores da Cidade. kHá maior incerteza a respeito daqueles a quem foi concedido direito à cidadania durante uma revolução, como fez Clístenes em Atenas, quando, após a expulsão dos tiranos, formou várias tribos novas de estrangeiros e até de escravos imigrados. Quanto a eles, a questão não é saber se são cidadãos, mas se se tornaram tais com jus- 44 tiça ou não. Podemos, também, duvidar se eles se torna- ram cidadãos de forma legal, não existindo então nenhu- ma diferença entre a ilegalidade e o erro. Existe, no en- tanto, uma distinção muito real. Com efeito, vemos pessoas que alcançam a magistratura por meios ilegais, e não deixamos, porém, de chamá-los de magistrados, mas ma- gistrados ilegítimos. Sendo, portanto, o cidadão caracte- rizado pelo atributo do poder (pois é pela participação no poder público que o definimos), nada impede de contar entre os cidadãos as criaturas de Clístenes. A questão de sua cidadania depende também do ou- tro problema anunciado acima, se devemos ou não im- putar ao Estado a sua admissão, o que não é fácil de de- cidir quando o Estado passa da oligarquia ou da tirania para a democracia. Pois então o novo Estado não quer nem pagar as dívidas contraídas anteriormente, conside- rando-as como feitas não pela Cidade, mas pelo tirano que recebeu o dinheiro, nem quer manter os outros com- promissos, pretendendo que certos Estados só subsistem por violência e não pelo interesse comumtPortanto, se O mesmo vício ocorrer na democracia, será preciso dizer de seus atos o que se diz dos da oligarquia e da monar- quia absoluta ou tirânica. As Diversas Espécies de Cidadãos Resta ainda uma dúvida sobre o título de cidadão. Apenas são os verdadeiros cidadãos os que são admiti- dos nas funções públicas, ou esta qualidade pode convir aos operários? Se os contarmos entre OS cidadãos, sem lhes conferirmos os cargos, esta prerrogativa não será 45
  • 12. A Política mais o caráter distintivo do cidadão; se não os contar- mos, em que classe os colocaremos? Não são nem estran- geiros, nem naturalizados. Classifica-los-emos da mesma forma? Não haveria inconvenientes. É assim que excluí- mos os escravos e os libertos do número dos cidadãos. Pois não se deve julgar que sejam cidadãos todos aqueles de que a Cidade não pode prescindir. Quanto a esta denominação, distinguiremos até entre as crianças e os homens adultos: estes são cidadãos pura e simples- mente, aqueles não o são senão em esperança ou imper- feitamente. Antigamente, entre alguns povos, o artesão e O operá- rio estavam no mesmo pé que o escravo e o estrangeiro. Ainda acontece o mesmo atualmente em muitos lugares, e jamais um Estado bem constituído fará de um artesão um cidadão. Caso isso ocorra, pelo menos não devemos espe- rar dele o civismo de que falaremos: esta virtude não se encontra em toda parte; ela supõe um homem não apenas livre, mas cuja existência não o faça precisar dedicar-se aos trabalhos servis. Ora, que diferença há entre os artesãos ou outros mercenários e os escravos, a não ser que estes per- tencem a um particular e aqueles ao público? Por pouco que prestemos atenção a ela, esta verdade se manifestará; o desenvolvimento só pode torná-la mais evidente. Já dissemos que há várias espécies de constituição é de governo; há, certamente, portanto, vários tipos de ci- dadãos, sobretudo entre os que chamamos de súditos. Existem constituições pelas quais os operários e os mer- cenários devem ser cidadãos, mas existem outras pelas quais isto é impossível, por exemplo, na aristocracia, se é que ela existe, assim como em qualquer outro Estado em que se honrem o mérito e a virtude. As obras da vir- 46 tude são impraticáveis para quem quer que leve uma vida mecânica e mercenária. [ Na oligarquia, em que o bem conhecido como rique- za abre as portas para os melhores cargos, O povo miú- do não é admitido na classe dos cidadãos. Mas os arte- sãos não estão incluídos. Eles podem enriquecer-se € s€ tornar cidadãos uma vez que tiverem feito fortuna. Em Tebas, o próprio comércio dificulta o acesso à cidadania. Havia uma lei que exigia que se tivesse fechado a loja e deixado de vender há dez anos para ser admitido. Existem, em compensação, outros Estados em que à lei atrai os estrangeiros pela perspectiva do direito de ci- dadania, pelo menos para seus filhos. Em certas demo- cracias, por exemplo, basta para ser um cidadão ter nas- cido de uma mãe do lugar. Em outros lugares, por falta de cidadãos legítimos, os bastardos são admitidos como tais. A falta de homens força-os a usar desse recurso. Mas, quando a população chega à sua justa quantidade, pou- co a pouco se despedem, primeiro às crianças nascidas de mãe ou de pai escravos, depois os que só se ligam à pátria pela mãe, e então só se reconhecem como cida- dãos os que foram gerados por dois compatriotas. Resulta de tudo isso que há várias espécies de cida-' dãos, mas os verdadeiros são apenas os que participam dos cargos. Quando Homero fala de um fugitivo ou de um vagabundo, é pela exclusão dos cargos públicos que o caracteriza. Tratado sem nenhum respeito, excluído da Cidade. Quem quer que não participe dela, com efeito, é co- mo um estrangeiro que acaba de chegar. Se em algum lugar escondem esta distinção, fechando os olhos sobre os domiciliados que usurpam à qualidade de cidadão, é para iludi-los e disfarçar sua malignidade. 47
  • 13. A Política As Virtudes que Fazem o Cidadão e o Homem de Bem Os objetos que acabamos de tratar levam-nos agora a examinar se as mesmas virtudes fazem o homem de bem e o bom cidadão. E, já que esta questão vale a pe- na, tentemos de início traçar um ligeiro esboço das virtu- des cívicas. Podemos comparar os cidadãos aos marinheiros: am- bos são membros de uma comunidade. Ora, embora os marinheiros tenham funções muito diferentes, um em- purrando o remo, outro segurando o leme, um terceiro vigiando a proa ou desempenhando alguma outra fun- ção que também tem seu nome, é claro que as tarefas de cada um têm sua virtude própria, mas sempre há uma que é comum a todos, dado que todos têm por objetivo a segurança da navegação, à qual aspiram e concorrem, cada um à sua maneira. De igual modo, embora as fun- ções dos cidadãos sejam dessemelhantes, todos trabalham para a conservação de sua comunidade, ou seja, para a salvação do Estado. Por conseguinte, é a este interese co- mum que deve relacionar-se a virtude do cidadão. Portanto, se há várias espécies de governo, é impos- sível que as virtudes cívicas e o civismo perfeito sejam os mesmos em toda parte, ou que eles se confundam com a virtude absoluta, pela qual distinguimos as pessoas nobres, É evidente que se pode ser bom cidadão sem pos- suir virtudes tão eminentes. | Porém, para melhor discutir esta questão, convém si- tuarmo-nos no melhor governo possível. Veremos, por um lado, que é impossível que o Estado seja composto inteira- mente de homens perfeitos, e, por outro, que é preciso 48 que cada um execute o melhor possível suas funções. Uma vez que parece impossível que todos os cidadãos se asse- melhem, não pode o mesmo gênero de virtude fazer O bom cidadão e o homem de bem. Mas todos devem ser bons cidadãos. É daí que provém a bondade intrínseca do Estado, sem que seja necessário que haja entre todos igual- dade de mérito. O mérito de um homem de bem e o de um bom cidadão são, portanto, coisas distintas. O Estado, aliás, é um composto de partes desseme- lhantes, aproximadamente como O animal se compõe da alma e do corpo; a alma, de razão e de paixões; a famí- lia, do homem e da mulher; a casa, do senhor e do escra- vo. Abrangendo o Estado todas estas partes e muitas outras de espécie diferente, não pode haver, portanto, O mesmo gênero de virtudes para uns e para outros. As- sim, num grupo de dançarinos, é preciso mais talento para o papel de corifeu do que para O de corista. A desigual- dade de mérito é, pois, evidente. Mas não há nenhum lugar em que a virtude do bom cidadão seja a mesma que a do homem de bem? Quando falamos de um bom comandante, entendemos por isso um homem de juízo e de honra; exigimos sobretudo a pru- dência naquele que governa. Alguns exigem ainda outras qualidades no governante máximo. Vemo-lo pela educa- ção dos filhos de reis, que são criados no adestramento de cavalos e na disciplina militar: Que não me ostentem todos esses talentos vulgares, Que mostrem ao Estado as virtudes necessárias, o que supõe um treinamento particular para as pessoas desse nível. Se entre os altos funcionários o mesmo méri- to faz o homem de bem e o bom cidadão; se, ademais, a qualidade de súdito não exclui a de cidadão, a virtude cí- 49
  • 14. A Política vica não será, porém, a mesma coisa que o que chamamos pura e simplesmente de mérito. Haverá sinonímia ape- nas em alguns cidadãos, vale dizer, nos que estão no go- verno do Estado. Em qualquer outra classe, as qualidades serão distintas. Talvez tenha sido isso que fez Jasão dizer: Só conheço uma arte e só sei reinar. No entanto, é bom saber igualmente mandar e obe- decer, e um cidadão experimentado é aquele que é ca- paz de ambos os papéis. Suponhamos um homem de bem que só saiba comandar e um cidadão que saiba um e outro: eles não terão o mesmo valor; já que, desses dife- rentes papéis, é preciso que o homem destinado ao co- mando aprenda um e seus súditos outro, O cidadão que participa de ambos deve aprendê-los de igual modo e conhecer os diversos tipos de comando. Pois há inicialmente o comando do senhor, que se exerce sobre o que chamamos de empregados necessá- rios. Não é preciso que aquele que o exerce saiba fazer os trabalhos servis, basta que saiba utilizá-los; cabe a seus servidores saber a execução. Assim como há vários tipos de funções servis, há também vários tipos de escravos. Entre as pessoas que estão em servidão, é preciso contar os trabalhadores manuais que vivem, como indica seu nome, do trabalho de suas mãos e os artesãos que se ocupam dos ofícios sórdidos. Assim, em alguns lugares, antigamente, antes que o povo chegasse à extrema licen- ça, os cargos ou poderes públicos não eram conferidos a esse tipo de gente. Suas ocupações não convêm nem ao homem de bem, nem ao alto funcionário, nem ao bom cidadão, se não for para seu uso pessoal, caso em que ele é ao mesmo tempo senhor e servo. Mas há um outro tipo de comando que tem por súdi- A tos as pessoas livres e de mesma condição: é o que se 50 Biblioteca Cont Livro II chama o governo civil. Só se aprende começando por obe- decer. Assim, pelo próprio serviço sob as ordens do hi- parca, se aprende a comandar a cavalaria; servindo sob o general e os demais oficiais da infantaria, aprende-se a comandar os diversos graus militares. Existe até uma má- xima quanto a isto, que diz que não é possível bem co- mandar se antes não se tiver obedecido. Ora, estes são dois gêneros diferentes de mérito, e é preciso que um bom cidadão adquira ambos, saiba obedecer e esteja em con- dições de comandar. Ambos também convêm ao homem de bem, embo- ra de modo diferente, pois a temperança e a justiça dife- rem até entre pessoas livres, das quais uma é superior e a outra inferior, por exemplo, entre homem e mulher. A coragem de um homem se aproximaria da pusilanimida- de se fosse apenas igual à de uma mulher, e a mulher passaria por atrevida se não fosse mais reservada do que um homem em suas palavras. A administração domésti- ca, em ambos os casos, também deve apresentar alguma diferença, sendo um encarregado de comprar, outro de economizar e de conservar. O mérito especial do que comanda é a prudência. As outras virtudes lhe são comuns com os que obede- cem. Estes não precisam de prudência, mas sim de con- fiança e de docilidade; são como os instrumentos ou então como o fabricante de alaúdes, e o homem que comanda é como o executante que os toca. Sabemos, agora, se as qualidades do homem de bem e do bom cidadão são ou não as mesmas, como elas se assemelham e em que diferem. 51
  • 15. Hannah Arendt A coNDIÇÃo HUMANA Pusfácio de: CEI ,SO LAFER 10g edição POHENSE uvFRsIYARm
  • 16. 10' edição/6' reimpressão - 2007 oww; hmm unâmsízy «chicago Pim, chicagoA mama, osA o; 95x bmw unívmzly «chicago Au ngm; mma Ymduzxdo de. 771€ Human Condition Tradução Ramo Rama m arm muwwrmwme :múmia smmx dosmmdauma.:o Em Ami. uma. mos.ms mas Amam mmmmmmm. «11a mm me» ,osrmúzcam mu. um mzúuwuu mmomww um mmàz dz m «mn «nom :saum-ss :mass à :5mm :mms-2 › oeflmmmfl x 11mm 01mm run no m cm:a: mma» à wmawzowwi na ¡zm-zmqwiqucmmfi w porqualqucfzmmcima-1mmzw mwâmw, sempmmâu mesmo www no) mae m z 19m mwzdasomwwsâvpmpnsxzúz mm «mâapci» Eamon Fom- mvERsn'ÁmA nm aum-,01mm Rumo. com ru» 2mm noz Tea-.rzr-Kos-smx zsuv ms .ma raul" senawvzalo mam. Sijrzzmõ (um -cvvmooó em Tdsfñx 1m mos-31m 01% -smv-Wz well.zéunmafilwnsmmwnam mm br 1q WW ibmnwunwmunz em" w mim no mw m z.. 1;s sUMÁRIo Prólogo ..... capíwlo I _ A CONmÇÃo HUMANA l. A Vira Activa e a Condição Humana 2. A Expressão Vim Acliva 3. Eternidade versus lmonalldade Capítulo ll - AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA . O Homem: Animal Social ou Político . . A Poli;A e a Famflia U A Promoção Social A Esfera Pública: o Comum . A Esfera Privad a Propriedade . O Social e o Privado . A Localização das Ati idades Humanas owoosipv-à Íss Capítulo Ill - LABOR 11. «O Labor do Nosso Corpo e o Trabalho de Nossas Mãos» .. 90 12. 0 Caráter de «Objetm do Mundo ‹ . 104 13. Labor e Vida . 14. Labor e Fenilidade 15. A Privatividade da Propriedade e da Riqueza ló. Os Instrumentos do Trabalho e a Divisão do Labor . l7‹ A Sociedade de Consumidores 130 138
  • 17. de aspiração a imortalidade não se deveu ao pensamento filosófico. A queda do Imperio Romano demonstrou claramente que nenhuma obra de mãos mortais pode ser imortal` e foi acompanhada pela promoção do evangelho r `stão, que pregava uma vida individual ctema` posiçao de relig ao exclusiva da humanidade ocidental. Juntas` ambas tornavam fútil e desnecessária qualquer busca de imortalidade terrena; e conseguiram tão bem transformar a vira activa e o bios poliri/tm em servos da contemplação que nem mes‹ mo a ascendência do secular na era moderna e a concomitante in- versão da hierarquia tradicional entre ação e contemplação foram suficientes para fazer sair do oblivio a procura da imortalidade que, originalmente` fora a fonte e o centro da vim activa. 30 cAPiTULO ii As ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA _4_ O Homem: Animal Social ou Político A vim activa` ou seja` a vida humana na medida em que se em- penha ativamente em fazer algo, tem raízes permanentes num mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens` um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente. As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das ati- vidades humanas` que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, este ambiente` o mundo ao qual viemos` não existiria sem a atividade humana que o produziu` como no caso de coisas fabri‹ cadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou que o estabeleceu através da organização. como no caso do corpo politi- co. Nenhuma vida humana. nem mesmo a vida do eremita em meio 'a natureza selvagem, é possivel sem um mundo que. direta ou indi~ retamente. testemunho a presença de outros seres humanos. Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a ação è a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. A atividade do labor não requer a presença de outros` mas um ser que «labo- rasse» em completa solidão nao seria humano` e sim um anima! Ialwrans no sentido mais literal da expressão. Um homem que tra~ balhasse e fabricasse e construisse num murdo habitado somente por ele mesmo não deixaria de ser um fabricador` mas não seria um liomvfaber: teria perdido a sua qualidade especificamente humana e seria, antes, um deus _ certamente não o Criador` mas um d - miurgo divino como Platão o descreveu em um dos seus mitos. So a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus e capaz de ação.1 e só a ação depende inteiramente da cons- tante presença de outros. l. E notável a Circunstiincia de que os deuses homéricos so agem no tocante aos homens, governandoaos de longe ou interferindo com o que 3!
  • 18. Esta relação especial entre a ação e a vida em comum parece justificar plenamente a antiga tradução do zoim polirikon de Aristo- teles como animal serious. que já encontramos em Sêneca e que. até Tomas de Aquino. foi aceita como tradução consagrada: homo es! natura/iler politicas. id est. .mcialis <‹‹o homem é, por nature~ za, político, isto e. social»).2 Melhor que qualquer teoria complica- da. esta substituiçao inconsciente do social pelo político revela até que ponto a concepção original grega de politica havia sido esque- cida. Para tanto. e significativo. mas não conclusivo. que a palavra ‹‹social›› seja de origem romana. sem qualquer equivalente na lin- gua ou no pensamento grego. Não obstante. o uso latino da pala- via .rodelas tinha também originalmente uma acepção claramente politica. embora limitada: indicava certa aliança entre pessoas para um fim especifico, como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um cn'me.x É somente com o ul' terior conceito de uma .wrietus generis Immunl. uma «sociedade da se passa entre eles. Alem disso. os conflitos e as lutas entre os deuses parecem resultar principalmente de sua atuação nos negocios humanos ou de sua conflitante pamialidade em relação aos mortais. O resultado è uma historia na qual homens e deuses atuam em oonjunto` mas a trama è estahcle da pelos mortais` mesmo quando a decisão e tomada numa as- sembleia de deuses no Olimpo. Creio que a err' mvilrun te ¡Imm ie. de Homero (Odixsrliu. i. 338). indica essa «co-operação banio canta fei- tos de deuses e homens. não historias de deuses e historias de homens. Do mesmo modo. a nrmiu de Hesiodo trata não dos feitos dos deu- ses. mas da genese do mundo tl lá): narra. portanto. como as coisas pas- s ram a existir atraves da geração e da procriação (constantemente repe- tidas). 0 cantor. servo das Musas. canta «os feitos gloriosos dos homens antigos e os deuses bem~aventurados» l9? li). mas em parte alguma. ao que eu saiba. os feitos gloriosos dos deuses. 2. A citação e do Index Rerum da edição de Turim das obras de São Tomas de Aquino (1922). A palavra «polittcum não ocorre no texto. mas o index faz um resumo correto do que ele quer dizer. como se pode verificar pela Smumu ¡hm/“gnu i.96. 4: ii.2 109. 3. 3. .Sm wmv rcgf ii em Livio. .uniu rt-clcrit em Cornelio Nepos. Esse tipo de aliança podia tambem ser real ada para l'ins comerciais. e Tomas de Aquino ainda añrma que uma «verdadeira unir im» entre negociantes só existe «quando o proprio investidor compartilha do riscow. isto e'. quando a sociedade e realmente uma aliança lveja-se W. J. Ashley. Au Iull'mlntI/wl m English 1:1 rmmuii Hinor". um! 'lllmiry ll93l). p.4|9). 32 espécie humana». que o termo «soeiab começa a adquirir o sentido geral de condição humana fundamental. Não que Aristoteles ou Platão ignorasse ou não desse importancia ao fato de que o homem não pode viver fora da companhia dos homens implesmente não incluíam tal condição entre as caracteristicas especificamente hu~ manas. Pelo contrario. ela era algo que a vida humana tinha em co- mum com a vida animal- razão suiiciente para que não pudesse ser fundamentalmente humana. A companhia natural. meramente social. da especie humana era vista como limitação imposta pelas necessidades da vida biológica. necessidades estas que o as mes' mas para o animal humano e para outras formas de vida animal. Segundo o pensamento grego. a capacidade humana de organi- zação política não apenas difere mas e diretamente oposta a essa associação natural cujo centro e constituido pela casa (oikia) e pela família. O surgimento da cidade~estado significava que o homem recebem. «além de sua vida privada. uma especie de segunda vida. o seu bios polirikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e ha uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe e proprio (Mion): o que é comum (komo/1)»4 Não se tratava de mera opinião ou teoria de Aristoteles, mas de simples falo histori- co: precedera a fundação da polirI a destruição de todas as unidades organizadas É base do parentesco. tais como a phrulria e a ¡why/e.S 4. Werner laeger. Piudvia ([945). ill. Ill. 5. Embora a tese principal de Fustel de Coulariges. segundo a intro dução de Tlm Andam City (Anchor. 1956). consista em demonstrar que «a mesma religião» moldou a antiga organização da familia e a antiga ci- dade-estado. o autor faz. numerosas referencias que confirmam o fat.) de que o regime da gem. baseado na religião da familia. e o regime da cida- de «eram na verdade. duas formas antagonicas de governo. Ou a ci- dade desapareceria on. com o tempo. desagregaria a familia» lpfiíll. A contradição dessa grande obra deve-se aparentemente a tentativa de Coulanges de tratar. num mesmo conjunto. Roma e as cidades‹est dos gregas: em seus conceitos e demonstrações. o autor baseia~se princip - mente no sentimento i stitucional e politico de Roma. embora reconheça que o culto de Vesta «ja perdera o seu vigor na Grecia em tempos mui- to remotos mas nunca o perdeu em Roma» (além. Não so havia uma separa o muito maior entre a familia e a cidade na Grecia do que em Roma. mas somente na Grecia a religiao'olimpica. que era a religião de Homero e da cidade-estado. era separada da religião mais antiga da familia e do lar. e superior a esta. Enquanto Vesta. a deusa do lar. pas- 33
  • 19. De todas as atividades necessarias e presentes nas comunidades humanas, somente duas eram con deradas politicas e constituintes do que Aristóteles chamava de him polui/.u a ação (pmrix) e o discurso (lexix), dos quais sitrge a esfera dos negocios humanos (m Ion amhropon pragmata, como chamava Platão), que exclui cstr'i› tamente tudo o que seja apenas necessario ou iitil. Contudo, embora certamente so a fundação da cidadeestado tenha possibilitado aos homens passar toda a sua vida na esfera pú- blica, em ação e em discurso, a convicção de que estas duas capa- cidades hitmanas são afins uma da outra, além de serem as mais altas de todas, parece haver precedido a ¡io/is e ter estado presente no pensamento pre-socratico. A estatura do Aquiles homerico so pode ser compreendida quando se o ve como «o autor de grandes feitos e o pronunciador de grandes palavras».t` Diferentemente do conceito moderno, essas palavras não eram tidas como grandes por exprimirem grandes pensamentos; pelo contrário, como percebe~ mos pelas ultimas linhas de Antigonu, talvez seja a capacidade de emitir «grandes palavras» (megalm' Iugui) em resposta a rudes gol~ pes que nos ensine ã reflexão na velhice.7 O pensamento era secun- sou a ser u protetora de um «lar ciladinu» e tornou-.se parte do cullo ofi- cial e politico apos a uniñcnção e segunda fundação de Roma, sua equi- valente grega, Hêstiu,c' mencionada pela primeira vez em Hesiodo, o unico poeta grego que, em consciente oposição a Homero, louvo a vida do lar e da familia; na religião oficial da polia. Hèstia teve que ceder a Dionisio seu lugar na assembleia dos doze deuses olimpicos (veja-se Mommscn, Rvmisllze Gmchicliw (5a. ed.), Livro l, cap. 12, e Robert Graves, T/u' Greek Mylhi (l955), Z7.k). 6. A frase e' do discurso de Fênix, Ilíada ix. 443, e refere-se clara- mente `a educação para a guerra e para a fit/um. a assembleia publica, nas quais o homem pode sobressair~se dos dem A tradução literal é: «(teu pai) encarregou-me de ensinar~te tudo isto, para seres um dizedor de palavras e um fazedor de feitos» tmyrƒmn w mem mzmui prøliz'm m Mgmt). 7. A tradução literal das últimas linhas de Amigmm ¡USO-54) è a se- guinte: «Mas as grandes palavras, neutralizando (ou revidando) os gran- des golpes d ' soberbos, ensinam a compreensão na velhice». Para os modernos, o gniñcado de ' linhas e tão enigmático que raramente se encontra um tradutor que as traduza como são. Uma das exceções è a tradução dc Holderlin: «Grosse Elicke aberJGroSse Streichc der hohen SchulteracrgcltendJSie haben im Alter gelehrt, zu dcnkenn. A um ni- 34 dat-io no discurso; mas o discurso e a ação eram tidos com eoevt e coiguziis` da mesma categoria e da mesma espécie; e isto origi- nalmente Significava não apenas que quase todas as ações politicas, na medida em que permanecem fora da esfera da violência, são realmente realizadas por meio de palavras, porem, mais fundamen- talmente, que o ato de encontrar as palavras adequadas no momen- to certo, independentemente da informação ou comunicação que transmitem, constitui uma ação. Somente a pura violência é muda, e por este motivo a violência, por si so, jarrr `s pode ter grandeza. Mesmo quando, relativamente tarde na antiguidade, as artes da guerra e do discurso (rhemri'lte) emergiram como os dois principais tópicos da educaçao, tal evolução ainda se valia dessa experiência e dessa tradição anteriores, pré~p‹›lis, e a elas permaneceu sujeita. Na experiência da polis que, com alguma razão, tem sido con- siderada o mais loquaz dos corpos politicos, e mais ainda na filoso- fia política que dela surgiu, a ação e o discurso separaram-se e tor~ naram-se atividades cada vez mais independentes. A enfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persua` são não como forma especificamente humana de responderY repli- car e enfrentar o que acontece ou o que é feito.” 0 ser politico, o viver numa polls, significava que tudo era decidido mediante pala- vras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gre- vel bem menos elevado, uma historieta contada por Plutarco exemplifica a relação entre agir e falar. Certa vez, um homem aproximou-se de De- móstenes e disse ter sido violentamente espancado. «Mas», disse Demo - tenes, «não sofreste nada do que estàs me dizendo›. O outro levantou a voz e exclamou: «Eu não sofri nada?» «Agora›, disse lkmóstenes, «es- cuto a voz de quem foi ofendido e sofreu» (Vidux, «Demosthenes»). Um último vcstigio dessa antiga conexão entre a fala e o pensamento, ausen- te em nossa n ao oe exprimir o pensamento atraves de palavras, pode ser encontrado na popular frase de Cicero: ratio v! umu'o. 8. Tipieo dessa evolução e o fato de que todo político era chamado de «rhetow e que a retórica, a arte de falar em público, em oposição ã dialética, que era a arte do discurso filosófico, era definida por Aristote- les como a arte da persuasão (veja-se Rmirilu l354al2 ii., l355b26 fi). (A distinção, alias, vem de Platão, (Iorgias 448.) É neste sentido que de- vemos compreender a opinião grega acerca do declinio de Tebas, atri- buido ao fato de terem os tebanos `Abandonado a retórica a favor do exer- cicio militar (veja-se `lacob Burekhardt, Grifchiirhe Kulrurgøsrhk Im. ed. Kroener, ill, 190). 35
  • 20. gos, forçar alguém mediante violência, ordenar ao inves de persua- dir, eram modos pré-politico de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da pol caracteristicos do lar e da vida em fami qual o chefe da ca a imperava com poderes incontestes e despoti' cos, ou da vida nos impérios barbaros da Àsi , cujo despotismo era freqüentemente comparado a organização domestica A definição aristotelica do homem como won ¡mini/«m não era apenas alheia e até mesmo oposta a associação natural da vida no lar; para entende-la inteiramente precisamos acrescentar'lhe a sua segunda e famosa definição do homem como won logon «Ir/nm (‹‹um ser vivo dotado de fala»)4 A traduçao latina desta expressão como animal rationale resulta de uma falha de interpretação não menos fundamental que a da expressão «animal social»4 Aristoteles não pretendia definir o homem em geral nem indicar a mais alta ca- pacidade do homem - que, para ele, não era o logos, isto e, a pa' lavra ou a razão, mas nous, a capacidade de contemplação, cuja principal caracteristica é que o seu conteúdo não pode ser reduzido a palavrasi9 Em suas duas mais famosas definições Aristoteles ape- nas formulou a opinião corrente na pnlix acerca do homem e do modo de vida politico; e, segundo essa opinião, todos os que vi- viam fora da polis - escravos e bárbaros _' eram um'u Iogou, des› tituídos, naturalmente` não da faculdade de falar, mas de um modo de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e no qual a preocupação central de todos os cidadãos era discorrer uns com os outros O profundo en'o de interpretação contido na traduçao latina de ‹‹politico» como «sociah talvez não seja tao claro quanto numa dis- cussâo em que Tomas de Aquino compara a natureza da lei domés- tica com a lei política: o chefe da família, diz ele, tem certa seme- lhança com o chefe do reino; mas, acrescenta, o seu poder não e tão «perfeitm quanto o do reiil° De fato, não só na Grecia e na po- lix, mas em toda a antiguidade ocidental, teria sido evidente que ate mesmo o poder do tirano nao era não grande nem tão «perfeitm quanto o poder com que o paredàmilias, o dominar, reinava na ca- sa onde mantinha os seus escravos e seus familiares; e isto não porque o poder do dirigente da cidade fosse igualado e controlado pela combinação dos poderes dos chefes de família, mas porque o 94 Elim a Nicófmma |i42s25 e 117836 fr m Tomás de Aquino “pr m. nz. só. s. 36 dominio absoluto e inconteste e a esfera politica propriamente dim eram mutuamente exclusivas” _5_ A Polis e a Família mbora o erro de interpret ao e o equacionamento das esferas politica e social sejam não antigos quanto a traduçao latina de ex- pressões gregas e sua adaptação ao pensamento romanocristao, a confusão que deles decorre agravou'se no uso moderno e na mo- derna concepção da sociedade A distinção entre uma esfera de vi' da privada e uma esfera de vida pública corresponde a existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e se- paradas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estados` mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem publica no sentido restrito do termo. é um fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e que encontrou sua forma politica no estado nacional 0 que nos interessa neste contexto e a extraordinária dificul- dade que` devido a esse fato novo. experimentamos em compreen- der a divisão decisiva entre as esferas pública e privada entre a esfera da palis e a esfera da família, e finalmente entre as ativida' des pertinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes a manu- tenção da vida, divisão esta na qual se baseava todo o antigo pen- samento politico, que a via como axiomatica e evidente por si mes- ma4 Em nosso entendimento, a linha diviso a e inteiramente difu- sa, porque vemos o corpo de povos e comunidades politicas como uma familia cujos negocios d' 4os devem ser atendidos por uma administração domestica nacional e gigantesca O pensamento cientifico que corresponde a essa nova concepçao jã nao e a ciên- il. os termos i/mmmn e partiram/Im eram portanto sinónimos como m termos www e ¡tmn/www Dominum ¡mn-«w ¡ami/.mz «prum-«- run/IL wrrm [ami/turu (Senecee Epn'mlm 47. 12)4 A antiga liberdade do cidadão romano desapareceu quando os imperadores romanos adota. ram o titulo de .Minimo «ce nom, quiAuguste et que Tibère encore re- poussaient comme une male'diction et une injure» (H4 Wallon4 ¡lis/mny 41v [Wu/11mm' drum Iiinznquué “BMX lll, ZI)4 37
  • 21. cia politicar e sim a «economia nacional» ou a «economia social» ou, aind' a Vol/cut n'm'lmfn todas as quais indicam uma especie de «admin' 'tração doméstica eoletiva››:'-` o que chamamos de «so- ciedade» e' o conjunto de fami ias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac¬ mile de uma única famflia sobre-hu- mana. e sua i'orma politica de organi'I. çao e' denominada «naçât›».” Assim. é-nos dificil compreender que, segundo o pensamento dos antigos neste particular. o proprio termo «economia politica» teria sido, de certa formar contraditório: pois o que fosse «economico». relacionado com a vida do individuo e a sobrevivência da especie, nao era a unto politico. mas dome'stico por definição. “ Histoiicamente, e muito provavel que o surgimento da cidade- estado e da esfera pública tenha ocorrido as custas da esfera _pnva- da da familia e do lar." Contudo. a antiga santidade dolar, embora i'l. Segundo Gunnar Myrdal ('Ihe Pu/¡Iit'ol Ele/nen! ui the Deco/opV meu! o! 'z-tmmmt 'I'Iim <I953L pod), a idéia da «Economia Social ou administracao doméstica coletiva (Vol/mi¡rue/1011)» e' um dos «tre focos principais- em torno dos quais «se cristalizou a especuluçao politica que impregnou a economia desde o inicio.. 13. Nao pretendemos negar com isto que o estudo nacional e sua so- ciedade sumiram do reino medieval e do feudalismu. em cine estnitura a l'am' ' e a cusa tem importância jamais igualada na antiguidade classica. Mas há uma diferença marcante. Dentro da estrutura feudalr as familias e casas eram quase independentes entre si, de sorte que a casa realr re- pre. ntando uma determinada regiao territorial e governando os senhores i'cudais como ¡ii-4mm mm- ¡mr-mu nao pretendia como um governo abso- luto, ser o chefe de uma famili A «naçâow medieval era um conglome- rado de familias' seus membros não se consideravam como membros de uma unica íamil que englobasse toda a nação. lá. A distinção e' muito clara nos primeiros parágrafos da :comu/tio de Aristoteles nos quais ele opõe o governo despotico de um so homem (mon-unhiuL da organização familiar, a organização inteiramente dife- rente da ¡in/o, IS. Em Atenas» podemos Ver o ponto de transi ao na legislaç'ao de Solon. Corretamenter Coulanges ve na lei uteniense que tomou dever f'i- lizi sustentar os pais a pmvz da perda ao peâez paterno um. me pp. sis- ló). Contudo o poder paterno so era limitado quando entrava em confli- to com os intere 'ses da cidader e nunca em beneficio do membroda fa- milia como individuo` Assim, a pratica de vender crianças e enjeitar fi- 38 muito mais pronunciada na (jre' 'a cl ssiczi que na Roma untiga.3zt~ mais foi inteiramente esquecida. O que impediu que a ¡in/is viol e as vidas privadas dos seus cidadãos e a l'ez ver como 'agrados os li- mites que cereavam cada propriedade não foi o respeito pela pro- priedade privada tal como a concehemos. mas o fato de que em ser dono de sua casa, o homem não podia participar dos negocios do mundo porque nao tinha nele lugar algum que lhe pertencesse.” Ate' mesmo Platão. cujos planos politicos prevíram a abolição da propriedade privada e a expansão da esfera pública ao ponto de aniquilar completamente a vida privada ainda falava com grande reverencia de Zeus Herkeios. o protetor das fronteiras. e chamava de divinos os ¡io/oi. os limites entre os estados, sem nisso ver qual- quer contradição'7 O que distinguia a esfera familiar era que nela os homens vi- viam juntos por serem a isso eompelidos por suas necessidades e carências. A força compulsiva era a própria vida - os penates. os deuses do lar. eramr segundo Plutarco, «os deu. s que nos fazem viver e alimentar o nosso corpo»;'x e a vida. para sua manutençao Ihas pequenos foi exercida durante toda a antiguidade (veju e R. H. Barrow. Slavr'ry ¡ii the Roman Empire (I928L p.8: «Outros direitos da pulrl'u punir-mx se haviam tomado obsoletos: mas o direito de enjeitur só foi proibido no ano 374 de nossa um). lo. Quanto a estu distinção. e' interessante notar que havia cidades gregas onde os cidadãos eram obrigados por lei a dividir entre si .suas co- lheitas e eonsumi-las em comum. embora cada um deles tivesse a pro- priedade absoluta e ineoriteste do seu pedaço de terra. Veja e Coulan› ges (op. vii” pol). para quem esta lei em «uma singular eoniradição»: mas não se trata de contradiçaor porque no conceito dos antigos os dois tipos de propriedade eram completamente diferentes. ir. veja-se mi 842. 18. Em Coulanges. up. cn.. p.%-, a referencia a Plutarco e de Quan Ironm- Romonue SI. Parece~rios estranho que Coulanges com a sua 'enfa- se unilateral sobre as deidades da regiao dos mortos na religião grega e romana, tenha deixado pa 'ar despercebido o fato de que esses deuses não eram meros deuses dos mortos e o culto nao era um mero «culto de moi-te»Y e sim que essa amiga religião terrena servi-a a vida e à morte eo mo dois aspectos do mesmo processo. A vida surge da terra e a ela re- torna; o nascimento e a mone são apenas dois estágios diferenies da mesma vida biológica sobre a qual os deuses subterrâneos tem influeii- CIB. 39
  • 22. individual e sobrevivência como vida da especie. requer a compa- nhia de outros. O fato de que manutenção individual fosse a tare- fa do homem e a sobrevivência da especie fosse a tarefa da mu- lher era tido como obvio; e ambas estas funçoes naturais. o labor do homem no suprimento de alimentos e o labor da mulher no parO to. eram sujeitas a mes'ma premência da vida. PortantoY a comuniO dade natural do lar decorria da necessidade: era a necessidade que reinava sobre todas as atividades exercidas no lar. A esfera da polisY ao contrario. era a esfera da liberdade. e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida em familia constituía a condição natural para a liberdade na polls. A politica não podia. em circunstância al- guma. ser apenas um meio de proteger a sociedade -- uma socieda- de de fieis. como na ldade Media. ou uma sociedade de proprietaO riosY como em Locke. ou uma sociedade inexoravelmente empe- nhada num processo de aquisição. como em HobbesY ou uma so- ciedade de produtoresY como em Marx. ou uma sociedade de em' pregados. como em nossa propria sociedade. ou uma sociedade de operários. como nos paises socialistas e comunistas. Em todos es- tes casosY e a liberdade (e. em alguns casos. a pseudoliberdade) da sociedade que requer e justifica a limitação da autoridade política. A liberdade situa-se na esfera do social. e a força e a violência tor- nam-se monopólio do governo. O que todos os filósofos gregos tinham como certoY por mais que se opusessem a vida na polir. e que a liberdade situa-se exc'lu- sivamente na esfera politica; que a necessidade e primordialmente um fenômeno pré-politico. característico da organização do lar pri» vado'. e que a força e a violência sao justificadas nesta ultima esfera por serem Os unicos meios de vencer a necessidade -› por exem- ploY subjugando escravos - e alcançar a liberdade. Uma vez que todos os seres humanos são sujeitos a necessidade. têm o direito de empregar a violência contra os outros; a violencia é o ato pre› politico de libertar»se da necessidade da vida para conquistar a li- berdade no mundo. Esta liberdade e a condição essencial daquilo que os gregos chamavam de eudaimonia, «ventura» - estado obje› tivo dependente. em primeiro lugar. da riqueza e da saúde. Ser po- bre ou ter ma saúde significava estar sujeito a necessidade fisicaY e ser um escravo significava estar sujeitoY tambémY a violencia prati- cada pelo homem. Esta dupla «infelicidade» da escravidão e inteiO ramente independente do bemestar real e subjetivo do escravo. AssimY um homem livre e pobre preferia a insegurança de um mer- 40 cado de irabalho que mudasse diariamente a um traballio regular e garantido; este ultimo. por lhe restringir a liberdade de fazer o que desejasse a cada diaY ja era considerado servidão (douløiai)Y e até mesmo o trabalho árduo e penoso era preferivel a vida tranqüila de que gozavam muitos escravos domesticos.19 No entanto. o poder pre-politico com o qual o chefe da familia reinava sobre a familia e seus escravosY e que era tido como neces- sario porque o homem e um animal «sociab antes de ser animal «politicm` nada tem a ver com o caotico «estado natural» de cuja violência` segundo o pensamento politico do se'culo dezessete. os homens só poderiam escapar se estabelecessem um governo queY atrave's do monopolio do poder e da violenciaY abolisse a «guerra de todos contra todos» por «atemorizar a todos››.=“7 Pelo contrárioY iodo o conceito de dominio e de subm .. . de governo e de poder no sentido em que o concebemos. bem como a ordem regulamentaO da que os acompanha. eram tidos como pre-politicos. pertencentes 'a esfera privada. e não a esfera pública. A ¡ru/ii diferenciava›se da familia pelo fato de .somenie conhe- cer «iguais». ao passo que a familia era o centro da mais severa de' sigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não Comandar. Não significava dominio. como também não significava submissão.” Assim. dentro da esfera da familia. a liberdade não ll). A discussão entre Socrates e Eulerus na Memorabilia (ii.8y de Xenofonte e' bem interessante: Euterus é forçado pela necessidade a tra- balhar com o seu corpo` e esta seguro de não poder suportar esse tipo de vida durante muito tempo e de que tera uma velhice indigente. Ainda as- sim. acha que executar trabalho árduo é melhor que mendigar. Ao ouvir isto. Sócrates propõe que ele procure alguem «que esteja em melhores condiçoes e precise de um ajudanie». Euierus responde que não supona- ria a senz'idão (dou/mu). 20. Rei'erimo-nos aqui a Hobbes. Leninha/1. Pane l. cap. l3. 2l. A mais famosa e mais bela referencia a este assunto e' a discus- são das diferentes formas de governo em Heródoto (iii. 80-33). na qual Otanes. o defensor da igualdade grega (íwmmríc). declara nao «querer governar nem ser governado››. Mas é no mesmo espirito que Aristoteles diz que a vida do homem livre e' melhor que a do desputa, negando com a maior naturalidade que o despota fosse livre iPo/¡tir-u. l325a24). Se- gundo Coulanges. todas as palavras gregas e latinas que exprimem algum tipo de governo de um homem sobre os outros. como mr, parar. u/iui. 4l
  • 23. existia. pois o chefe da familia. seu dominante` só era considerado livre na medida em que tinha a l'aculdade de deixar o lar e ingressar na est'era politica` onde todos eram iguais` E verdade que esta igualdade na esfera politica muito pouco tem em comum com o nosso conceito de igualdade; significava viver entre pares e lidar somente eotn eles. e pressupunha a existência de «desiguais»: e e '- tes, de fato. eram sempre a maioria da populaçao na cidade-esta- dos'2 A igualdade. poflanto` longe de ser relacionada com _a Justiça. como nos tempos modernos. era a propria essencia da liberdade; ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de comandar. e mover-se numa esfera onde não existiam governo nem governados. Contudo. termina aqui a possibilidade de descrever, em termos perfeitamente definidos. a profunda diferença entre os Conceitos moderno e antigo de politica. No mundo modemo. as es- feras social e politica diferem muito menos entre si. 0 fato_de que a politica e' apenas uma função da sociedade - de que a acao. o dis- curso e o pensamento são. fundamenuilmento superestnituras assen› tadas no interesse social - não t'oi descoberto por Karl Marx; pelo contrario. foi uma das premissas axiom'átieas que Marx recebeu. sem discutir` dos economistas politicosI da era moderna. lista fun- cionalizaçi'io torna impossivel perceber qualquer grande abismo en- tre as duas esferas; e nao se trata de uma questão de teona ou de ideologia. pois. com a ascendência da sociedade. isto _e. a elevacao do lar doméstico (wikio) ou das atividades eeonomi as ao nivel público. a administração dome' ` a e todas as questoes antes perti- nentes a esfera privada da famflia transformaram-se em interesse «coletivmf1 No mundo moderno. as duas esferas constantemente Imtiluut, referiam-se originariamente a relações familiares e eram nomes que os escravos davam a seus senhores (tr/i. tu.. pp.89 if. 228›. 22. A proporção variava` e era certamente exagerada no relato de _Xe- nofonte obre Esparta. onde` entre quatro mil pe '_oa' na pi' publica. nâo havia mais que sessenta cidad' s` (Ilifllwut-ii i i. 23. Veja-se lrdal` up. ‹ ir.. «A noção de que a sociedade. como tim chefe de familia. administra a casa em favor dos seus membros. e pro- fundamente airaigada na terminologia economica .. Em alemão. a p' a- vra aítsiiii- tliii/ultflu't/ sugere que existe um sujeito coletivo da ai vidade economica com um fim comum e valores comuns l-.m ingles. . 'theory of wealth` ou `theory of welfzire' exprimem ideias semelhan- 42 i'ecacnt uma sobre a outra` como ondas no perene fluir do proprio processo da vida. O desaparecimento do abismo que os antigos tinham que transpor diariamente a fim de transcender a estreita esfera da fa- milia e «ascenders a esfera politica e fenomeno essencialmente mo- derno. Esse abismo entre o privado e o público ainda existia de certa forma na Idade Media. embora houvesse perdido muito da sua importância e mudado inteiramente de localização. Já se disse com aceno que` após a queda do lmperio Romano. foi a igreja Ca› tolica que ofereceu ao homem um substituto para a cidadania antes outorgada exclusivamente pelo governo municipal.-`A A tensão me- dieval entre a treva da vida diária e o grandioso esplendor de tudo o que em sagrado, com a concomitante elevação do secular para o plano religioso. corresponde em muitos aspectos a ascensão do pri- vado ao plano publico da antiguidade. . claro que a diferença e muito marcante; pois. por mais ‹«mundana›› que se tornasse a lgre- ja` o que mantinha coesa a comunidade de crentes era essencial- tnente uma preocupação extraterrena. Somente com alguma diñcul› dade é possivel equacionar o público com o religioso'` mas a esfera secular sob o feuda smo era. de fato, em sua inteireza` aquiloque a esfera pública havia sido na antiguidade. Sua principal caracteristi- ca foi a absorção de todas iis atividades para a esfera do Iar (onde a imponência dessas atividades era 'apenas privada) e. conseqüente- mente` a propria existência de uma esfera pública". tes» (p.l40›. «Que significa uma economia social cuja funçao e' a admi- nistração doméstica da sociedade? Em primeiro lugar. implica ou sugere uma analogia entre a sociedade e o individuo que governa a sua casa ou a da sua familia. Adam Smith e James Mill desenvolveram explicitamen- te esta analogia. Apos a critica de 1.5 Mill. e com o maior reconheci- inenio da diferença entre a economia política prática e a teórica` passou- se a dar menos destaque a essa analogia» (p.|43). O fato de Já não se usar a analogia pode dever-se ao fato de que a sociedade devorou a uni- dade familiar ate' tornar-se completo substituto para ela. 24. R. H. Bartow. 'l'lit' Rir/Hunt ll953). Q.l94. 25. As caracteristicas que F.. Levasseut (Him/w dm t!u.‹›.» ou- t/'lmw o! ill' ¡mt/wmv vii Í'I'ulu e mim! 1789 HW» atribui 'a organizav ção t'eudzil do trabalho aplicam-se as comunidades (eudais como um iodo: «Chacun vivait chez soi et vivait de . i-m'emefl Ie noble sur sa seig- riem-ie. Ie villairi stir sa culture. Ie citadin dans sa ville» (p.229). 43
  • 24. É tipico desta evolução da esfera privada - e, por sinal, da di- ferença entre o antigo chefe de familia e o senhor feudal - que es- te irltimo pudesse administrar justiça dentro dos limites do seu do- minio, ao passo que o antigo chefe de familia. embora pudesse exercer um dominio mais ameno ou mais severo, não conhecia leis nem justiça fora da esfera publica,26 A transferência de todas as ati› vidades humanas para a esfera privada e o ajustamento de todas as relações humanas segundo o molde familiar teve profundas re- percussões nas organizações profissionais especificamente medie› vais nas proprias cidades - nos _twi'lili, ton/«irrita e ‹‹1i›i¡iri_,¿iit›iit f e ate' mesmo nas primeiras companhias comercia , nas quais «o lar comum original parecia estar implicito na propria palavra *compas nhia' (compartir) (e) em expressões como *aqueles que comem do mesmo pao', `homcns que compartilham do mesmo pao e do mesmo vinho'››,71 O conceito medieval de «bem comum». longe de indicar a existencia de uma esfera politica, reconhecia apenas que os individuos privados tem interesses materiais e espirituais em cc» mum, e so podem conservar sua privatividade e cuidar de seus prt'y prios negocios quando um deles se encarrega de zelar por esses in- teresses comuns, 0 que distingue da realidade modema esta atitu- de essencialmente crista em relação a politica nâo e tanto o reco- nhecimento de um «bem comum» quanto a exclusividade da esfera privada e a ausência daquela esfera curiosamente hflm'da que cha- 26. O tratamento imparcial dos escravos. que Platão recomenda nas Lú. (777;, pouca tem ii vez com a justiça. z nâo é fecumendadti por uma questao de «consideração com os (escravos). mas mais por iima ques- tão de respeito por nos mesmos»y Quanto à coexistência de duas leis. a lei politica da justiça e a lei domestica de dominio. vc; e Wallon. «f/i. til., Il, 200: «La loi, pendant bien lnngtcmps, done abstenait de pé- netrer dans la famille, oii elle reconn t l`erripire d'une atitre loi». A jurisdição antiga, especialmente a romana. relativa a assuntos domésti- cos, tratamento de escravos, relaçoes familiares. etc destinava-sc es- sencialmente a restringir o poder do chefe de familia que. no mais, era ilimitado; era imperi tive! que pudesse haver uma norma de itistiça den- tro da sociedade inteiramente «‹privada» dos próprios' escravos que, por definicao, Se situavam fora do ambito da lei e sujeitos ao dominio dos respectivos senhore. Somente o senhor dos escravos, na medida em que era também um cidadão. ficava .sujeito as normas da lei que. vel por outra, erri beneficio da cidade, cerccava os seus poderes- na familia. 27. w. J. Ashley. .›,z. Hi.. Mis. 44 marnos de «sociedade››, na qual os interesses privados assumem importância publica. Nâo e surpreendente, portanto, que o pensamento medieval, preocupado exclusivamente com o secular, tenha permanecido ignorante do abismo entre a vida resguardada do lar e a impiedosa vulnerabilidade da vida na polir e, conseqüentemente, da virtude da coragem como uma das atitudes politicas mais elementaresy O que continua a ser surpreendente e que o unico teorista politico pós-classico - que, num extraordinario esforço de restaurar a anti- ga dignidade da politica, percebeu o abismo e compreendeu ate certo ponto a coragem necessaria para transpóslo v- tenha sido Ma› quiavcl, que o descreveu na evolução «do Condottiere de uma po- siçao humilde para um alto posto», da privatividade para o princiO pado, isto e'. das circunstâncias comuns a todos os homens para a glória resplandecente das grandes realizações.” Deixar a familia, originalmente para abraçar alguma empresa aventureir'ti e gloriosaY e mais tarde simplesmente para dedicar a vi- da aos negocios da cidade, exigia coragem. pois era só no lar que o homem se empenhava basicamente em defender a vida e a sobrevi- vência. Quem quer que ingressasse na esfera politica deveria. em primeiro lugar, estar disposto a amscar a própria vida; o excessivo amor a vida era um obstáculo a liberdade e sinal inconfundível de servilismo.” A coragem, portanto, tomou~se a virtude politica por 28, Esta sascensati» de uma esfera oii categoria mais baixa para ou‹ tra mais alia e um tema recorrente em Maquiaveri (veja-se especialmente (1 Print ipt', ap. 6, acerca tic Hiero de Siracusa, e cap. 7; e l)i‹iii.io., Livro ll. cap. lll. 29. «Já no tempo de Solon, a escravidão era considerada pior que a morte» (Robert Schlaifci. «Greek Theories of Slavery from Homer to Atistotle». [Iiiriiiril .Xlutlit'i iii ('Iii.iii‹'iil Piu/timer “936). XLVIl ), Des› de en o. a ¡›Ii¡1‹i¡›»‹/u‹i ‹«o amor a vidas) e a covardia pa, aram a ser identificad com a servilitlade. Assim. Platao acreditava ter demonstra- do a ,servilidade natural dos escravos pelo fato de este. não terem prefe- rido a morte a escravidão (Remi/rim: šlšoA), A resposta dc Seneca as queixas dos' escravos talvez ainda contenha um refleXO tardio dessa ati- tude: «Com a liberdade tao ao alcance de rio as mãos. existe ainda al- guc'm que seja escravo'R» (Ep. 77. N), e o iii mo se pode dizer de sua frase r-i/li ii imii-it'mli t-imm tihty , www «iii - «sem a virtude que sa- he como morrer. a vida e' servi ao» (77. Hi. Para qiie se compreenda a atitude dos antigos em rei' âo ii escravid v. convém lembrar que a maioria dos escravos eram inimigos derrotados e que geralmente .so uma 45
  • 25. excelência, e s aqueles que a possuíam podiam ser admitidos a uma associação dotada de conteúdo e finalidade politicos e que por isso mesmo transcendia o mero companheirismo imposto a todos - escravos, bárbaros e gregos _ pelas exigência da vida.” A vida «bowY como Aristoteles qualificava a vida do cidadão, era, portan- to, não apenas melhorY mas livre de cuidados ou mais nobre que a vida ordinária mas possuia qualidade inteiramente diferente. Era ‹‹boa›» exatamente porque, tendo dominado as necessidades do mero viver, tendo-se libertado do labor e do trabalhoY e tendo su- perado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas vivas, deixava de ser limitada ao proc o biológico da vida. Na raiz da consciencia politica grega encontramos uma clareza e uma eloqüência sem-par na deñnição dessa diferença. Nenhuma atividade que servi se a mera finalidade de garantir o sustento do individuo, de somente alimentar o processo vitalY era digna de adentrar a esfera politica - e isto ao grave risco de abandonarem- sc o comercio e a manufatura ao engenho de escravos e de estran- geirosY de sorte que Atenas se transformou realmente na «pensio- nópolis» com um «proletariado de consumidores» que Max Weber tão vividumentv. descreveu?I O verdadeiro carater dessa polir é pequena percentagem era constituida de escravos natas. E enquanto nas Repúblicas Romunas os escravos eram. de modo geral. trazidos de fora das fronteiras do dominio romano os escravos gregos eram geralmente da mesma nacionalidade que os seus senhore" haviam demonstrado sua natureza servil por não terem cometido suicidio e. como a coragem era a virtude politica mu- «nal/0m v. haviam demonstrado com isso sua indig- nidade «naturalm sua incapacidade de serem cidadãos. A atitude em re- laçao aos ' 'ravos mudou no império Romano nao só devido à influên- eia do estolcismm mas porque uma proporção muito maior da população escrava cra escrava de nascimento. Mas mesmo em Romar Virgilio con- siderava que Iii/rm era intimamente relacionado com a morte inglória ¡Awwo vi). 30. 0 fato de que a coragem diferencia o homem livre do escravo parece ter sido o (ema de um poema de autoria do poeta cretense Hi- bri s'. «Minha riqueza é a lança e a espada e o belo escudo. Mas aqueles que não nusam valer-se da lança e da espada e do belo escudo que protege o corpo. prostram- de joelhos assombradosr e me chamam de Senhor e Grande Rei» tcitado por Eduard MeyeL Die Sklaeewi im Mim-mu (l89SL pill 31. Max Weber. «Agrarverhaltnisse im Altertumm Guam/nella :iu/mim .'¡n' .Suriul ~- um! Wu'lir/m/¡wmz'lmfm' (WML p. M7. 46 ainda bastante evidente nas filosofias politi as de Platão e Aristote- les, mesmo que a linha divisória entre a familia e a ¡mlii ocasional- mente desapareça, especialmente em Platão que‹ provavelmente seguindo Sócrates. passou a colher os seus exemplos e ilustraçoes da polls nas experiencias cotidian ' da vida privada, mas também em Aristoteles, quando este. seguindo Platão, presumiu especulati- vamente que pelo menos a origem histórica da polir deveria estar ligada as necessidades da vida, e que somente o seu conteudo ou i'r- nalidade inerente (lo/m) transcende a vida na ‹‹boa›› vida. Estes aspectos dos ensinamentos da escola socratic , que logo se tornariam axiomaticos c banais, eram, na epoca, os mais novos e mais revolucionan'os; resultavam não da experiência real do indi- viduo na vida politi aY mas do seu desejo de libertar-se do ônus da vida politica. um desejo queY em seu proprio entendimentor os filó- sofos so podiam justificar mediante a demonstração de que até mesmo esse modo de vida, o mais livre de todos. estava ainda rela- cionado e subordinado à necessidade. Não obstante, o passado de verdadeira experiencia politica, pelo menos em Platão e Aristote- les, continuava tão forte que 'amais houve duvida quanto a distin- ção entre as esferas da familia e da vida política. Sem a vitoria sobre as necessidades da vida na familia, nem a vida nem n «boa vida é possivel; a politicaY porém, amais a a manutenção da vi- da. No que tange aos membros da polix. a vlda no lar existe em função da «bom vida na polir. __ 6 _ A Promoção do Social passagem da sociedade - a ascensão da administracao casei- ra, de suas atividades, seus problemas e recursos organiza- cionais - do sombrio interior do lar para a lu'1. da esfera publica não apenas diluiu a antiga divisão entre o privado e o politico, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importancia para a vida do individuo e do cidadão, ao ponto de torna-los quase irreconhecivei Hoje, nao apenas não concordan'amos com os gre- gos que uma vida vivida na privatividade do que e' proprio ao indivi- duo (idr'on), a parte do mundo comumr e «idiota›› por definição. mas tampouco concordariamos com os romanos para os quais a 47