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Baixar para ler offline
FANTINA
Livre-Adaptação Cinematográfica
da Obra Literária homônima
do abolicionista F.C. Duarte Badaró
1881
Roteiro de longa-metragem
Por Eduardo Benaim e Celio Dutra
2018
2	
Cena 1 – FAZENDA – CASA GRANDE / ARREDORES – INT / EXT / DIA
ARREDORES DA CASA GRANDE: Vacas e bezerros pastando; cachorro brinca
e bebe água na beira do rio; passarinhos voam entre o JARDIM DE
ERVAS, que se mistura com o mato alto.
Na VARANDA da CASA GRANDE, o ritmo bucólico da FAZENDA INGASEIRO é
reproduzido nos gestos de FANTINA [negra, bela, tímida, 19 anos] que
está de pé fazendo cafuné em D. LUZIA [branca, bonita, 40 anos,
trajando vestido preto que a cobre até seu pescoço rígido. Tem
temperamento enérgico e ansioso]. Sentada em uma cadeira espaçosa, a
Sinhá inquieta lê o jornal e balbucia algum comentário
incompreensível.
No cabeçalho do jornal está escrito: JORNAL DO COMMÉRCIO. ANO XLII,
junho de 1871. Ela deixa o periódico cair de lado no chão. Com as
mãos tensas, tira do dedo um anel. Finalmente encosta na cadeira e
relaxa, olhando o horizonte.
DONA LUZIA
Sabes o que significa ventre livre?
FANTINA
Sei não, Sinhá.
D. Luzia sorri, Fantina volta a seu habilidoso cafuné. Dona Luzia
vai reequilibrando a respiração.
DONA LUZIA
Não é para qualquer uma ter as minhas chaves, viste?
Sabes que é minha mucama preferida… porque eres de confiança, não
sabe?
FANTINA
Sei sim, Sinhá.
Dona Luzia ergue a mão segurando o anel à frente do rosto de
Fantina, que pára de lhe fazer cafuné.
DONA LUZIA
Então guarde isso… E não perca nunca esta chave.
Fantina pede licença e se retira, entrando na casa grande. Passa por
uma ampla sala e pelo corredor até o fundo, chegando ao quarto de
Dona Luzia. O quarto, espaçoso, tem uma grande cama de casal ao
centro, coberto com lençóis vistosos e um belo mosquiteiro bordado.
3	
Fantina vai até o móvel de cabeceira, tira da gaveta um estojo de
jóias, o coloca em frente e desamarra a chave que está presa a uma
argola em sua roupa, guardando delicadamente o anel.
VARANDA
Dona Luzia está de pé, apoiada no parapeito da varanda, olhando o
horizonte. Fantina chega, amarrando as chaves na argola da roupa.
Luzia fala, ainda de costas, sem olhar para Fantina.
D. LUZIA
Se vosmecê pudesse, se casaria, Fantina?
Instantes de silêncio. Luzia se vira, aproximando-se e contemplando
o rosto de Fantina.
DONA LUZIA
Vou lhe contar algo que não é pouca coisa.
(Ambas entreolham-se candidamente.)
És a negra mais linda que eu já vi, em toda a minha vida.
(Ambas sorriem.)
Falo sério… Em toda a minha vida! Sabia disso?
D. Luzia passa a mão no rosto de Fantina, que sorri tímida.
FLASH FORWARD (para possível montagem paralela)
Imagens (Seq. 89) de FANTINA entrando na casa da Fazenda, manca, com
manchas e hematomas, esfolamento na pele e inchaços. Tem sobre o
corpo apenas um mal amarrado pano imundo de terra e sangue. Ofegante
e trêmula, ela se movimenta apoiando na parede, tentando ficar em
pé, trançando as pernas.
Entra no quarto de Dona Luzia, comprime os punhos, senta no chão e
encara com olhos vivos a sua Sinhá.
DONA LUZIA está deitada em sua cama, vestindo camisola e touca. Sua
face está deformada pelo inchaço na garganta, manchas e feridas nas
mãos e no rosto, olhos inchados com profundas olheiras. A Sinhá
respira com dificuldade e lentamente abre as pálpebras cheias de
pus; vai reunindo suas forças, respirando mais profundo e, com muito
esforço, consegue levantar o tronco para sentar-se na cama. Trêmula,
ela alcança um pote de sua cabeceira e o ergue gritando de raiva e
de dor.
4	
DONA LUZIA
Fantina!!!
TELA PRETA
CARTELA:
TÍTULO: FANTINA
Cena 2 – RUAS DO RIO NOVO – CASA GRANDE / EXT / DIA
Agitação popular na cidade. Famílias passeiam animadas pelas ruas e
vielas, cavalos e charretes trotam no passeio. Uma negra bem
arrumada está sentada na porta de um sobrado ao lado de duas meninas
que lhe ajudam a bordar um estandarte com a imagem de um grande
pássaro dourado de asas abertas e, sobre ele, escrito “Divino
Espírito Santo” (e, menor, lavrado): “Conceição de Rio Novo saúda.
Jun.1871”.
Dois negros desprendem os grilhões que mantém outro negro
dependurado em um pedaço de pau. Um capitão do mato os observa,
coordenando a soltura.
Passam dois homens montados a cavalo. Zé DE DEUS, português de 47
anos e FREDERICO, bonito, forte e simpático, 29 anos. Os dois estão
descontraídos; observam a movimentação das ruas e cumprimentam
alguns transeuntes, sorrindo e sinalizando com seus chapéus. Eles
seguem numa pequena estrada vicinal.
CENA 03 – ESTRADA VICINAL / EXT / DIA
DANIEL - mulato forro, 23 anos, bonito e forte - sai de dentro do
mato carregando uma trouxa volumosa. Avista ao longe, vindo em sua
direção, os dois cavalos com Frederico e Zé de Deus. Daniel hesita,
olha para os lados mas segue em frente, a passos lentos. Até que
eles se encontram no meio da estrada.
ZÉ DE DEUS
Ora pois, se não é meu tropeiro Daniel! Vindo da onde, trazendo o
quê?
DANIEL
5	
Boa tarde Seu Zé de Deus. Comprei umas ferramentas do Seu Louzada,
levando pra casa mesmo, pra horta da Dona Josefa.
ZÉ DE DEUS
Tropeiro dos bons esses. Conheço desde menino, filho de branco.
Daniel se estica para apertar a mão de Frederico em cima do cavalo.
FREDERICO
Boa tarde.. Ah, então é forro! (jocoso) Não deixa o velho ficar te
chamando de “seu”, não. (dando risada) Fala pra ele “não sou tuas
nega não português, ora pois!”
Daniel sorri amarelo, pede licença e segue em frente.
DANIEL
Boa tarde senhores, com licença.
Caminhando, na direção oposta, Daniel ainda ouve o resto da conversa
dos dois. (diálogo em Fade)
ZÉ DE DEUS - OFF
Ora pá, o “meu” é modo dizer, tu não sabes? Poderia ser até sinal de
afeto. Na sua terra não se diz isso, não? Esse é moço trabalhador,
prezo por isso.
FREDERICO – OFF
Eu sei, eu sei Zé. Aqui vocês parecem sérios demais. Tô brincando, o
rapaz me entendeu e levou com respeito.
Daniel segue caminhando pela estrada, até avistar ao longe um
casebre.
CENA 04 – CASA DE JOSEFA/DANIEL – EXT - DIA
Fantina chega na porta da casa de Daniel. O avista chegando ao
longe. Faz um gesto discreto e entra.
DENTRO DA CASA:
Fantina entra no casebre escuro e logo vê Josefa (71 anos, gestos
lentos e olhar paralisado no vazio) misturando uma panela no fogão.
Vai direto abraçá-la delicadamente por trás, dando um beijo na
bochecha e falando baixinho ao seu ouvido.
TIA JOSEFA
Deixa que eu faço isso Tia. Eles já estão aí?
Josefa faz um carinho no braço de Fantina e aponta para trás, sem
virar o rosto. Fantina se vira e olha para a sala escura. Vê, se
6	
levantando do chão, três homens negros, um deles sem camisa e os
outros com roupas sujas e rasgadas. Eles se aproximam timidamente.
Fantina os cumprimenta com um aceno de cabeça. Vira-se para a panela
e serve a sopa em cuias rústicas.
Daniel chega, deixa a trouxa sobre uma mesa e dá um abraço apertado
em Fantina. Cumprimenta com aperto de mão cada um dos homens. Um
deles (Fujão 3) com olhar mais emotivo, o abraça forte. Daniel
retribui, como que lhe passando energia. Fantina entrega as cuias
com a sopa para eles. Daniel aponta para sua trouxa com ferramentas:
DANIEL
Tem uma pra cada um aí. Não sai logo que escurecer não, espera a
madrugada. E abre caminho pequeno, deixa o mato rasteiro.
FUJÃO 1
Pode deixar. Agradecido demais.
FUJÃO 02
A senhora é que é a Fantina?
FANTINA
Sou senhora não moço.
Fujão 2 tira um patuá do bolso e lhe entrega.
FUJÃO 2
Toma.
(Fantina hesita em pegar. Ele insiste)
Não sou eu quem tô te dando não. É a Maria, mucama da Santa Bárbara.
FANTINA
A gente não faz isso por vintém não moço.
FUJÃO 02
Ela disse que era amiga da Madalena. Sua mãe não é?
JOSEFA
Pega logo Fantina!
Fantina pega, abre o patuá, vê algumas pedras variadas e faz um
gesto de agradecimento afetuoso, com a mão no peito. Vai pra perto
da Josefa, faz um carinho e coloca a mão da Josefa sobre as pedras.
Sem olhá-las, Josefa passa a mão nas pedras, passa a mão no rosto de
Fantina e sorri.
JOSEFA
(sussurrando)
7	
Não tem que ter vergonha de retribuição não filha, vai ajuntando.
Logo mais ocê já tem o suficiente pra pagar sua carta.
Fantina sorri.
DANIEL
Encontrei Zé de Deus e um outro moço agorinha. O moço parece boa
gente...
FANTINA
Ixi, lembrei, preciso voltar. Sinhá recebe visita hoje. (saindo)
Licença, licença, boa sorte!
DANIEL
Uai, e eu nem recebo meu chamego?
Fantina já está longe, acena e ri.
JOSEFA
Mulher forte é assim filho, não perde tempo com chamego fora de
hora, vai se acostumando.
Daniel sorri e os Fujões, comendo sopa, também sorriem.
CENA 05 – CASA GRANDE / EXTERIOR / DIA
Zé de Deus e Frederico chegam à FAZENDA INGASEIRO, desmontando de
seus cavalos. Entregam as rédeas a dois escravos que os esperam na
porta e sobem as escadas de acesso à Casa Grande.
Na ampla sala da Casa Grande há uma pequena confraternização: Dona
Luzia, com vestido bege claro, que lhe revela parte dos ombros, está
sentada em um sofá conversando com um CASAL. Em uma poltrona próxima
está TEIXEIRA, fazendeiro gordo de 45 anos, com um copo na mão. Ao
fundo, JOAQUINA – 15 anos, linda e delicada como uma boneca de
porcelana – toca piano. Quando chegam Zé de Deus e Frederico, Dona
Luzia interrompe a conversa para saudá-los com alegria. Ao ouvir a
voz da mãe, Joaquina pára de tocar o piano para ver quem chegou.
DONA LUZIA
Ora, ora… Se não é meu compadre Zé de Deus e seu cordial amigo
bandeirante. Sejam bem vindos!
Os dois se acercam e todos se cumprimentam.
FREDERICO
(Galante e sorridente, beijando a mão de Dona Luzia)
8	
Frederico, ao seu dispor. A senhora me perdoe, mas sou modesto, não
tenho vísceras suficientes para um bandeirante.
DONA LUZIA
É só um chiste que fazemos sobre o espírito dos paulistas.
Tome como elogio.
ZÉ DE DEUS
Tens um senso de humor delicioso minha comadre. Frederico é um gajo
competente e de confiança, vai fazer um serviço que deixaria o
finado Silva muito orgulhoso de sua contratação.
DONA LUZIA
Assim eu gosto. Se está credenciado desta forma, posso esperar que
meu Jardim de Ervas volte a servir à saúde de todos.
(para Frederico)
O senhor começa o serviço quando?
FREDERICO
Semana que vem, logo após a festa do Divino. Basta terminar uma
contagem para Seu Zé de Deus e estou inteiramente ao seu dispor.
Os convidados se sentam. Dona Luzia, ainda de pé, olha para os lados
procurando alguém. Fantina surge apressada na porta que vem da
cozinha, com uma bandeja na mão. Séria, Luzia encara Fantina que
baixa a cabeça. A movimentação, mesmo que discreta, chama a atenção
de todos e os homens se mostram admirados com a rara beleza da
escrava, que adentra o salão com a bandeja. Teixeira, Zé de Deus e
Frederico buscam o olhar de Fantina sem sucesso: ela mantém-se
cabisbaixa, com as pálpebras quase fechadas, como se conseguisse
desconectar-se do resto.
ZÉ DE DEUS
Vejo que a senhora já está vestindo cores claras!
Me parece muito bom. Saudável, eu diria.
DONA LUZIA
Três anos é sofrimento suficiente, não acham?!
Estou ansiosa para festejar Nosso Divino Espírito Santo, agradecer
pela paz e harmonia de Ingaseiro. Prefiro orar para agradecer do que
para pedir… E os senhores?
ZÉ DE DEUS
9	
Sem dúvidas! Não perco um festejo tradicional de minha terra por
nada. A senhora sabe que a festa começou como uma promessa da Rainha
de Aragão…
Ao fundo, Joaquina volta a tocar o piano e Zé de Deus interrompe sua
fala para admirá-la. Todos os presentes na sala contemplam a menina
prodígio ao piano.
FREDERICO
(para Luzia)
Sua filha?
D. Luzia confirma com a cabeça e nota Teixeira olhando
obsessivamente para a menina. Dona Luzia fala alto, retomando a
atenção de todos!
DONA LUZIA
O compadre Zé de Deus estava contando algo interessante e foi
interrompido. Prossiga, meu amigo.
ZÉ DE DEUS
Nem me lembro mais do tema, comadre. O encanto do piano é muito
maior.
(Entra VOZ EM OFF de Josefa enquanto segue a ação.)
Frederico faz gesto de pedir licença à roda de conversa. Todos
continuam conversando animadamente enquanto ele se aproxima de
Joaquina ao piano. Olha para o canto da sala e vê JUCA (9 anos)
encolhido entre as paredes, quase escondido.
Próximo dele há uma viola encostada na mesa. Frederico acena para o
menino, que não lhe retribui a cordialidade. O homem pega a viola,
puxa a cadeira e senta-se ao lado de Joaquina, buscando acompanhar a
melodia que ressoa do piano. Após algumas tentativas, viola e piano
sincronizam no mesmo compasso. Frederico toca sorridente e relaxado
enquanto Joaquina segue plácida, mas compenetrada para não errar.
Sobre as imagens, a voz rouca de Josefa:
JOSEFA - OFF
(voz de preta velha)
Vosmecê não se apercebeu… mas foi na semana de preparação das
festividades que as coisas começaram a mudar. Tudo ia nos conformes
no Ingaseiro, na paz de Oxossi. Essa Festa do Divino sempre tem sua
10	
importância… E nesse ano, não foi diferente. Depois dela, Ingaseiro
virou todo do avesso.
Dona Luzia e os demais convidados se levantam e se aproximam para
assistir à performance musical com encantamento. Todos, de pé,
contemplam os músicos, com exceção de Teixeira, que permanece
sentado e sério, de braços cruzados.
Dona Luzia troca olhares com Frederico, que sorri para Joaquina (a
menina retribui com meiguice mas sem trocar olhares).
JOSEFA - OFF
Esse sinhôzinho Frederico, quem trouxe foi o português Zé de Deus,
que de Deus num tem nada. O moço veio lá de um povoado chamado
Sorocaba. Vem de muito longe. Parece que lá falam mais de liberdade
do que aqui.
Fantina se afasta do grupo, silenciosamente, e se dirige à varanda,
colocando-se ao canto.
VARANDA
Dois homens negros observam a Casa Grande desde a mata. Fantina
gesticula para eles passarem. Eles passam e ela entra novamente na
casa.
Frederico a observa entrar, com o canto do olho. Ela percebe que foi
observada.
CENA 6 – MATA / EXT / ENTARDECER-NOITE
Três homens negros (Fujão 1, Fujão 2 e Fujão 3, da seqüência 4)
caminham enérgicos pela mata, abrindo caminho com seus facões. Um
deles pára assustado, como se ouvindo algo. Interpela os outros com
os braços. Os três param e ficam imóveis e ofegantes por alguns
segundos. Até que surge da mata um quarto homem negro (Fujão 4) com
uma espingarda na mão. Ergue a arma e a engatilha, sorrindo e
apontando para o alto. Os outros três sorriem e, como numa descarga
energética, se soltam em largas risadas. O riso do Fujão 2 vira um
choro de alegria. Ele se ajoelha e é abraçado pelo Fujão 4.
Cena 7 – RUAS DO RIO NOVO / EXT-INT / DIA
11	
Nas ruas de paralelepípedo da cidade de Rio Novo, diversas pessoas -
casais e famílias, todos bem arrumados com roupas domingueiras –
seguem o PADRE em direção à Igreja. Tambores ditam o ritmo da
procissão. Um coroinha indígena carrega o estandarte ao lado do
padre. Logo atrás, Dona Luzia e suas mucamas. Atrás delas, todos os
outros. Zé de Deus e Frederico vem ao final.
Um homem negro (escravo fujão) observa, ao longe, a movimentação da
cidade.
Mesmo com grande distância, Fantina replica o olhar em cumplicidade.
Cena 8 – IGREJA / INT / DIA
Igreja lotada com pessoas da sociedade de Ingaseiro. Alguns negros –
escravos – acompanham seus senhores e param ao fundo da igreja
enquanto os senhores seguem aos bancos frontais ao altar. O espaço
está repleto de ornamentos decorativos da Festa do Divino. Dona
Luzia segue para a primeira fila (onde só há brancos) acompanhada de
suas três mucamas: Fantina, ROSA e RITA. Alguns brancos ficam
olhando, como que repreendendo a presença de negros à frente. Dona
Luzia encara as pessoas e sorri, altiva.
As quatro mulheres (Senhora e suas três escravas) se sentam
posicionando-se para orar.
Zé de Deus e Frederico estão nas fileiras de trás. De pé, ao fundo,
vários escravos. O português busca Dona Luzia com o olhar.
Frederico parece relaxado e disperso, olhando para os lados e
cumprimentando outras pessoas com sorrisos e acenos de cabeça. O
padre reza a missa solenemente:
PADRE
Gaudens gaudebo in Domino. Alegrando-me, alegrar-me-ei no Senhor. A
causa dessa imensa alegria espiritual é múltipla.
Nossa Senhora, concebida sem pecado, é a Estrela da manhã, nos diz a
Ladainha da Santíssima Virgem. A estrela da manhã é a mensageira
infalível da aurora, da vinda do sol que indica o fim da noite.
Quando a estrela da manhã se levanta no horizonte e sua luz brilha,
já sabemos que o dia se aproxima. É pelo ventre puro de Maria
Imaculada que chega a claridade que cura nossos corações pecadores.
12	
É por este áureo ventre divino que a alegria se faz na terra e
podemos nos libertar dos pecados deste mundo. Ventri liberi, liberi
ventri.
Cena 9 – IGREJA / INT / DIA
PROJEÇÃO ONÍRICA: Fantina está orando de olhos cerrados enquanto
ouve a voz do padre falando em latim repetidamente, como um mantra.
Ao seu lado, Dona Luzia reza de olhos fechados e punhos cerrados. As
duas mulheres, senhora e mucama, estão curvadas e de cabeças baixas,
em posições corporais muito parecidas.
Revela-se o amplo espaço da Igreja onde só estão as duas ajoelhadas
no genuflexório. Todos os outros bancos estão vazios. O altar também
vazio, sem padre. No entanto, sua voz é ouvida repetidamente.
PADRE - OFF
Vivat Spiritus Sancti, Vivat Spiritus Sancti. Gaudens gaudebo in
Domino. Ventri liberi, liberi ventri. Vivat Spiritus Sancti, Vivat
Spiritus Sancti. Gaudens gaudebo in Domino. Ventri liberi, liberi
ventri. Vivat Spiritus Sancti, Vivat Spiritus Sancti. Gaudens
gaudebo in Domino. Ventri liberi, liberi ventri. Vivat Spiritus
Sancti, Vivat Spiritus Sancti…
Cena 10 – PRAÇA CENTRAL DE RIO VERDE / EXT / NOITE
Frederico está de frente à uma barraca na praça de Rio Verde. Uma
mulher negra o serve de cachaça. Há outros homens em volta, todos
bebendo e sorridentes. A praça está repleta de homens e algumas
mulheres. O clima é de festejo e confraternização. Além da barraca
onde está Frederico, há outras que servem bebidas e comidas. A praça
está decorada com bandeirolas, adereços diversos e alguns
estandartes da “Festa do Divino Espírito Santo” (mesmo bordado da
Cena 3). Sorridente, Frederico se senta em um banco com uma viola na
mão. Começa a tirar alguns acordes. Dois violeiros se juntam a ele.
Outras pessoas se aproximam e formam uma roda para ouví-los.
FADE
Cena 11 – CAMINHO VICINAL DA FAZENDA DE INGASEIRO / EXT / DIA
13	
AMANHECER. Na estrada vicinal, de altitude mais elevada em relação à
FAZENDA INGASEIRO (que está situada num vale), Frederico cavalga se
aproximando da propriedade. Ele veste roupas muito mais limpas e
botas mais lustradas.
Frederico puxa as rédeas e desce do cavalo. Desamarra da sela uma
maleta preta e toma um gole d’água do cantil. Enxuga o suor da testa
e se encosta na anca do animal para contemplar Ingaseiro em sua
amplitude. Pela primeira vez, a Fazenda é vista em sua vasta
dimensão: a Casa Grande na área central e o entorno com os armazéns
e outras pequenas edificações, a granja, o curral dos porcos e os
pastos com gado.
Frederico é observado por um homem negro, desde a mata. Frederico se
vira, como se houvesse percebido que está sendo observado. Mas nada
vê. Monta no cavalo e, segurando sua maleta, toca o animal em
direção à Fazenda.
Cena 12 – PLANTAÇÃO DE ERVAS / EXT / DIA
Frederico está de pé, segurando sua maleta de couro e contemplando o
Jardim de Ervas, em estado bem deteriorado, com mato alto (como na
seqüência 1). Ele observa o lugar, como se pensando no que fazer.
De mansinho, chega ADÃO, negro forte, 20 anos, segurando um facão e
uma capanga de ferramentas.
ADÃO
Licença, sinhô…
Frederico toma um susto, mas rapidamente se recompõe.
FREDERICO
Boa tarde…
ADÃO
Venho a mando de Dona Luzia, pra ajudar o Sinhô no que precisar.
Frederico fica pensativo, olhando ao redor.
ADÃO
Já já ela tá vindo, mais a sinhazinha Joaquina.
FREDERICO
(se apurando)
Ah, é?! Tá certo, pode começar… cortando esse mato.
14	
Adão pausa o olhar em Frederico por um instante (olhar indiferente
emocionalmente). Ele coloca a capanga no chão e começa a cortar o
mato com o facão.
Frederico arregaça as mangas, se recosta numa árvore e toma um gole
de água.
Adão enxuga o suor da testa.
Cena 13 - CASA GRANDE (QUARTO DE HÓSPEDES) / INT / DIA
Amanhecer na Fazenda.
Bois e bezerros no pasto. Escravos ordenham vaca, carregam baldes de
leite e organizam o gado, dentre outros afazeres cotidianos.
Fantina percorre o corredor da Casa Grande segurando uma bandeja de
prata, equilibrando jarra e copo com água. Ela desce as escadas do
fundo e se dirige a um aposento externo (espécie de edícula) Logo
atrás vem ROSA – negra, 42 anos, levemente manca – que coloca a mão
no ombro de Fantina e sussurra em seu ouvido.
ROSA
Dona Luzia mudou de idéia, Fantina. Sinhá disse que sou eu quem vou
pajear o forasteiro.
Fantina se vira e entrega a bandeja a Rosa, sorrindo.
FANTINA
Todo seu.
ROSA
(sorrindo, amigável)
Se lambuza toda por ser a preferida né Fantina?
FANTINA
Quê isso Rosa, estamos juntas, não esquece. Segue firme que vamos
libertar tudo.
Fantina se despede, amigável. As duas trocam sorrisos.
Rosa entra na edícula.
CENA 14 – EDÍCULA – INT - DIA
No quarto de Frederico: Ele ainda está deitado de ceroulas. Rosa
coloca a bandeja sobre a mesa de cabeceira e abre a janela. Ainda
despertando, o homem fica olhando pra Rosa de costas. Ela olha de
canto e sorri.
15	
Cena 15 - CASA GRANDE–SALA-VARANDA / INT-EXT / DIA
Frederico, vestindo trajes de trabalho (camisa, calça, bota, chapéu,
coldre) segura uma espingarda enquanto passa pela sala da Casa
Grande e chega até a varanda.
Enverga-se para, demoradamente, beijar as mãos de Joaquina e de Dona
Luzia que estão sentadas tomando chá. Fantina está ao lado de Dona
Luzia. Juca, também vestido de camisa, botas e chapéu, tem o olhar
vago para a mata. Frederico faz um gesto para chamá-lo. Juca não
responde. Frederico acena novamente, agora estalando os dedos na
frente do rosto do garoto que, então, se levanta para seguir o
homem.
Os dois descem as escadas da Casa Grande, observados por Dona Luzia,
Joaquina e Fantina.
Juca chama seu cachorro (REI) que chega animado para segui-los.
Homem, menino e cão caminham mata adentro.
JOSEFA - OFF
Com esse servicinho no Jardim de Ervas, o moço foi virando hóspede
de Ingaseiro… Ganhou a confiança da Sinhá e logo já estava ensinando
o Juca a caçar. E ocê ainda iludida não é?
Cena 16 – MATA / EXT / DIA
Frederico empunha a espingarda, engatilha a arma e mira algo.
Juca e o cachorro caminham pela mata interagindo animadamente um com
o outro. Passam pela mira da espingarda de Frederico.
Frederico respira fundo e atira, mirando uma grande árvore frondosa.
Com o tiro, um macaquinho cai de um galho alto. Frederico sorri
satisfeito e quando vira-se para olhar Juca, vê o menino rolando no
chão com o cachorro.
FREDERICO
Ei, garoto, vamos continuar a caçada?
Juca pára de brincar com o cachorro e se levanta, como se reagindo
ao chamado do homem. Mas fica mirando reto no horizonte, não encara
o rosto de Frederico.
16	
O homem se agacha para ficar na mesma estatura e busca encarar o
menino, que segue com o olhar vago, como se fosse cego. Frederico
passa a mão na cabeça dele, carinhosamente. Logo após, se levanta.
FREDERICO
Vamos embora; continuar.
Os dois seguem caminhando pela mata, à procura de caça, acompanhados
pelo cachorro. Frederico tenta passar a mão na cabeça do menino mas
este desvia; parece só ter atenção para o seu cão. Homem, menino e
cachorro caminham mata adentro.
Cena 17 – INGASEIRO-CASA GRANDE / INT / DIA
Na Varanda, estão Dona Luzia e Joaquina - sentada em postura ereta,
quieta e observadora. Fantina está a postos, de pé junto à porta. As
três observam Frederico e Juca se aproximando com o cachorro.
Frederico chega cumprimentando e demonstrando animação:
FREDERICO
Linda tarde. Eu e Juca estávamos admirando a beleza de uma fazenda
comandada por mulheres, não é verdade pequeno?
Juca fica indiferente, olhando o horizonte. Dona Luzia olha
rapidamente para Fantina e Joaquina. Logo em seguida reage:
DONA LUZIA
Mulheres?
Frederico se recompõe.
FREDERICO
Disse mulheres? Quis dizer por uma mulher forte como a senhora Dona
Luzia. É uma situação excepcional que faz de Ingaseiro um lugar
ainda mais especial.
DONA LUZIA
Sim, esse mundo só tem futuro se amparado por mulheres. Já estamos
nos preparando para o fim do século, estamos entrando na Era de
Nossa Senhora! Podemos ser tão firmes quanto um homem e ainda somos
mais humanistas. Conduziremos o mundo com amor no coração.
FREDERICO
Sem dúvida, eres uma dama à frente de seu tempo.
DONA LUZIA
17	
Mas me diga, como foi a caçada?
FREDERICO
Simplesmente espetacular! O menino é novo, mas muito vivo, é
possível pressentir que será um excelente caçador.
(fazendo graça para Luzia)
A Sinhá pode mandar a senzala preparar a caldeirada… se depender
desse garoto, vai ter muita caça para Ingaseiro se fartar.
DONA LUZIA
Não gosto de comer caça, me dá náuseas. No fundo, acho que
tenho certa piedade dessas criaturas. Nasceram para desfrutar a vida
selvagem. Daí surge um ser humano e, pum… em um segundo,
acaba com a existência dos pobres... bichos
Dona Luzia pára e olha o garoto que continua alheio, de costas,
sentado na escada. Fala para Frederico e divide o olhar entre os
dois:
DONA LUZIA
Muito obrigado, Frederico. O Senhor é muito gentil.
FREDERICO
Eu fico é lisonjeado de poder lhe servir em variadas formas.
Gentileza, para uma dama tão nobre quanto a senhora, é algo que
brota naturalmente.
DONA LUZIA
Joaquina vai tocar piano para retribuir a gentileza de nosso
convidado não é, minha filha?
A menina sorri amarelo e obedece, se dirigindo à sala. Frederico
segue em direção à sala.
DONA LUZIA
(virando-se para Fantina)
Fantina, está dispensada. Pode descansar, passear. Volte antes do
sol se pôr…
Fantina esboça um sorriso. Frederico olha por instantes para
Fantina, que baixa a cabeça ao ser mirada e se retira, lentamente.
FANTINA
Sim, Sinhá. Agradecida.
Joaquina toca piano e todos assistem enquanto Fantina se retira com
discreto sorriso.
18	
Cena 18 – FAZENDA INGASEIRO – BEIRA-RIO - MATA / EXT / DIA
Na Beira do Rio, nas proximidades da Casa Grande, encontram-se
Fantina e Daniel. Os dois estão sentados com os pés na água.
Acariciam-se as mãos, e trocam olhares sem sensualidade. Ao lado de
Daniel repousa uma viola.
DANIEL
Não vou esperar essa lei não minha nega. Tô juntando vintém, vosmecê
vai ver, vou te desacorrentar. Vai ser sinhá… vamos viver longe
daqui.
FANTINA
Uai, tá doido homem, quero ser sinhá não, Daniel. Quero é ser
passarinho sem medo de chicote e ir libertando nosso povo, um por
um. Ocê tá certo, não temos que esperar nada. Mas ainda acredito na
lei.
DANIEL
E o branco forasteiro?
FANTINA
A Rosa disse que ele é a favor da lei.
DANIEL
Óia Fantina, não quero ocê dando confiança nisso não.
FANTINA
E eu dou confiança pra homem branco?! E não porque ocê quer ou deixa
de querer. Já ouvi muita história. Eu tô esperta.
Fantina sorri e deita na grama, olhando o céu.
FANTINA
O Adão falou que fugiram da Santa Bárbara cinco de uma só vez. E
disse que foi graças a nossa ajuda.
Daniel contempla o corpo dela e se aproxima, passa os dedos pelas
cordas da viola, antes de tocar os quadris de Fantina, que acompanha
o movimento, sorridente. Fantina começa a rir.
FANTINA
(sorrindo, charmosa)
Preciso ir neguinho
19	
Cena 19 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / DIA
Um senhor, PAI JOAQUIM – negro, caolho de 73 anos e nítida fraqueza
no corpo, trabalha lentamente na marcenaria da Fazenda; o velho
aparenta muita dificuldade para bater um prego.
Numa trilha, escravos jovens carregam sacos de grãos e passam pelo
galpão, onde na frente há um negro amarrado a um tronco vertical.
VARANDA da Casa Grande: Dona Luzia toma chá e joga damas com
Frederico. Trocam olhares sorridentes. Ao fundo, as mucamas Fantina,
Rosa e Rita costuram um grande lençol. Entreolham-se e tentam
disfarçar suas risadinhas. Fantina e Rita mantém a cumplicidade,
falseando as risadinhas.
DONA LUZIA
Rosa e Rita, podem terminar esse pano lá dentro... E deixem de molho
para ser lavado.
As três mucamas se levantam tensas e começam a dobrar o lençol para
melhor carregá-lo.
DONA LUZIA
Eu disse só Rosa e Rita. Fantina fica aqui.
Rosa e Rita saem apressadas, carregando o lençol. Fantina se levanta
e se coloca ao lado de Dona Luzia.
Frederico e Dona Luzia continuam o jogo de dama e a troca de olhares
sensualizados. Fantina observa-os por um instante e depois levanta o
pescoço, buscando olhar o horizonte e a mata à frente da casa. Olha
o mato se mexer sem ajuda do vento.
Cena 20 – FAZENDA INGASEIRO - CASA GRANDE / INT / NOITE
PROJEÇÃO ONÍRICA de Fantina: Cena começa realista e torna-se
progressivamente hiper-realista.
Sala da Casa Grande: Fantina, de camisola, caminha lentamente em
direção ao belo e imponente piano. Com gestos de dama, senta-se
20	
delicadamente no banco, abre a tampa e começa a dedilhar as teclas
do instrumento com suavidade, encontrando as notas musicais.
FUNDO NEGRO: Fantina está ao piano mas agora o cenário não é mais a
sala mas um FUNDO PRETO. Progressivamente as notas vão compondo a
melodia de uma FUGATTA, cada vez mais intensa. No fundo (antes
preto) são projetadas imagens de negros e negras jovens correndo
livres, alguns abrindo os braços. Quanto mais a fugatta se torna
mais frenética no piano, mais o sorriso de Fantina se alarga.
Cena 21 – ARREDORES DA FAZENDA / INT / DIA
ENTARDECER: Fantina atravessa um pequeno caminho entre plantas.
Segue em direção à Casa de Daniel, vista ao longe. No meio do
caminho vê um negro escondido no mato com um facão na mão. Ela toma
um susto. O negro (QUILOMBOLA 1) a encara, faca em punho. Ela
hesita, olha para ambos os lados.
DANIEL – OFF
(sussurrando, por trás)
É quilombola do Negro Ambrósio, veio falar com nós. Melhor na
proteção da mata, vamos.
Daniel põe a mão no ombro de Fantina. O negro vira as costas e some
na mata. Daniel dá a mão a Fantina e os dois se embrenham entre as
plantas, atrás do homem. Daniel, gracioso, rouba um beijo de
Fantina. Ela, brincando, lhe dá um tapa na cabeça. Seguem abrindo
caminho nas folhagens com as mãos
NO MEIO DA MATA
Daniel, Fantina e Quilombola 1 estão sentados no chão.
QUILOMBOLA 1
Matar ele pra prevenir.
DANIEL
(tentando disfarçar o susto)
Não.. Não carece não. Parece que é boa pessoa e é a favor da lei,
não é Fantina?
FANTINA
21	
Até agora não causou problema. Mas não é bobo não, fica com os olhos
de butuca. Não boto mão no fogo por homem nenhum.
DANIEL
Homem branco ocê quer dizer, né Fantina?
FANTINA
Homem. Foi o que Mãe Madalena me ensinou.
Daniel faz cara de contrariado e, emburrado, se afasta. Quilombola 1
dá risada. Fantina ri também.
FANTINA
Tá bom meu nego, tô de zombaria com ocê.
QUILOMBOLA 1
Ocês resolve isso depois. Nós quer saber do plano de invadir
Ingaseiro. Quanto menos homem branco tiver na Casa Grande, melhor.
Fantina se levanta, altiva.
FANTINA
Aqui não é lugar pra ser invadido não!
Daniel faz sinal pra Fantina sentar. Ela persiste firme, ereta.
Quilombola 1 se levanta devagar e encara Fantina. Daniel olha para
os lados, tenso.
QUILOMBOLA 1
Óia Fantina. O povo de Ambrósio é muito agradecido pela ajuda
docêis. Mas é o momento da luta ganhar força, do sangue correr,
aproveitar que quem tá na frente da fazenda é sinhá e não sinhô.
Daniel se coloca ao lado de Fantina.
FANTINA
Se tiver invasão não tem colaboração. Capaz de ocês não conseguirem
vencer a resistência. E depois disso, Ingaseiro não vai mais servir
como passagem. Quanto menos sangue correr, melhor a luta.
Daniel tenta disfarçar, mas não contém um sorriso orgulhoso.
21-B – FACHADA DA CASA GRANDE / EXT / NOITE
A calmaria da noite em Ingaseiro. SOM dos bichos noturnos.
Cena 22 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / NOITE
22	
QUARTO MUCAMAS:
Fantina dorme com outras duas escravas, em camas próximas. Ela se
mexe na cama, como se mobilizada por um sonho erótico.
Fantina acorda de súbito e se recompõe aos poucos. Lentamente se
levanta. Abre a janela devagar, cuidando para não despertar as
outras escravas. Senta-se na beira da cama e tira debaixo do colchão
um pano enrolado. Desenrola e tira um bordado e uma agulha.
CORREDOR
Frederico está de pé, junto à porta do quarto de hóspedes. Olha para
outras duas portas do extenso corredor. Caminha até uma delas e pára
na frente. Coloca a mão na maçaneta, mas desiste e retorna ao
quarto.
Dentro deste aposento, D. Luzia dorme em sua cama espaçosa.
QUARTO DE LUZIA
No quarto bem equipado em que Sinhá dorme profundo, há uma porta que
dá para um anexo. Este outro ambiente contíguo, é o Quarto das
Mucamas.
QUARTO DAS MUCAMAS
Fantina está bordando. Pára, deixa o bordado na cama e abre
totalmente a janela. Com o barulho, Rosa se mexe. Fantina fica
ouvindo os sons da madrugada e sentindo a brisa no rosto. Respira
fundo e mira com olhos vivos a paisagem que começa a alvorecer.
Cena 23 – FAZENDA INGASEIRO - CASA GRANDE / INT-EXT / DIA
Amanhecer na Fazenda Ingaseiro. Cenas do cotidiano:
Escravos trabalham na lida; quatro jovens escravos caminham
carregando sacos de feno e acompanhando o carro de boi com a caçamba
lotada de palha seca. Eles passam de frente a um galpão onde está um
homem negro ensangüentado, amarrado ao tronco vertical.
Na CASA GRANDE:
Rosa caminha segurando uma bandeja. Fantina caminha ao lado. As suas
cochicham, de bom humor
ROSA
Não tô falando que vai virar Sinhô? Já tá aqui dentro!
FANTINA
23	
Ocê não dá corda pro homem hein Rosa. Pela Sinhá, pela nossa luta,
pela nossa paz. Precisando de alguma coisa, fala.
ROSA
Pode deixar comigo Fantina.
Fantina segue para cozinha e Rosa pára diante de um quarto, agora
dentro da casa.
QUARTO DE HÓSPEDES
Frederico dorme sem camisa e de ceroulas no quarto de hóspedes da
Fazenda, agora mais amplo e equipado com móveis de qualidade.
SOM de duas batidas na porta. Frederico vai abrindo os olhos
devagar. Rosa entra com uma bandeja, colocando-a sobre a mesa de
cabeceira. Abre cortina e janela. Frederico acorda.
FREDERICO
(acordando, irônico e bem humorado)
Ora, ora, Tia Rosa me tirando da cama.
ROSA
Bom dia, Seu Frederico.
FREDERICO
Por quê acha que foste a escolhida para me servir, Rosa?
ROSA
Sei não, senhor. Só sei que Sinhá mandou avisar que é para o senhor
se apurar que ela já toma o café e te espera. Vão três mulatas
acompanhar o passeio… O senhor bem que podia falar pra Dona Luzia
me chamar na próxima.
Frederico se levanta, abre a gaveta, tira uma moeda e entrega na mão
de Rosa.
FREDERICO
Fique tranquila, sua vida ainda pode melhorar, acredite.
Cena 24 – FAZENDA- JARDIM DE ERVAS – EXT / DIA
Frederico, sorridente e orgulhoso - de chapéu e botas - caminha ao
lado de Dona Luzia – altiva e segura, trajando um vestido de cor
clara e empunhando uma sombrinha - em meio à plantação de ervas.
O Jardim está todo ornado com pequenas cercas brancas e o mato
aparado (um cenário bem mais bonito do que apresentado nas cenas 01
24	
e 12). Ele aponta as cercas novas como se fossem obras de arte.
Atrás deles, seguem as três jovens negras.
FREDERICO
Agora, sim, a plantação está mais em conformidade com sua beleza!
DONA LUZIA
Vejo que fizeste um bom trabalho…
FREDERICO
Foi uma grande honra para mim servir a senhora. És quem enche os
meus olhos…
Os dois caminham, acompanhados das três escravas adolescentes.
(Instantes de silêncio.)
Cena 25 - FAZENDA- ARREDORES / INT / DIA
Fantina sai da Casa Grande e caminha pela estrada vicinal como quem
procura algo. Daniel sai do meio do mato e dá um susto bem-humorado
nela, que imediatamente reage, empurrando e dando tapas sequenciais.
DANIEL
(de bom humor, se protegendo dos tapas)
Minha negra, eu não sabia que eras tão forte assim!
(rindo)
Pelo amor de deus, me perdoa!
FANTINA
Eu não sou sua! E você nunca mais me dá um susto desses.
Os dois vão transmutando a adrenalina do susto e dos tapas em
energia sexual. Vão se abraçando, se apalpando.
DANIEL
Infelizmente…
FANTINA
É, infelizmente…
Daniel a puxa para dentro do mato, mas Fantina resiste.
FANTINA
Não me tenta assim.
Os dois se envolvem em beijos e ficam entre a tensão de serem vistos
e o tesão de seus corpos. Ambos se entregam ao amor.
25	
Cena 26 - FAZENDA- JARDIM DE ERVAS / EXT / DIA
Frederico e Dona Luzia observam as plantas do jardim. As três
escravas adolescentes brincam, ao fundo.
FREDERICO
Fiquei muito curioso: todas essas plantas têm serventia para a
saúde?
DONA LUZIA
Na natureza tudo tem. Do ser humano à mais ínfima das sementes.
Absolutamente tudo tem alguma utilidade, para quem tem olhos
atentos.
FREDERICO
(fazendo graça)
Quanto ao ser humano, eu tenho minhas dúvidas. Muitas pessoas me
parecem de total inutilidade.
Dona Luzia para de caminhar e observa as escravas que ficaram logo
atrás, cheirando as ervas, colhendo sementes e brincando entre
risadas discretas e beliscões.
DONA LUZIA
(batendo palmas)
Meninas! Queridas! Não viemos por lazer. Vamos organizar isso:
Margarida, venha aqui. Vais na nossa frente, para se certificar se
não tem bicho que nos ameace. Ana e Benedita, quero que aproveitem a
caminhada para colher frutas para a Casa Grande.
(para Frederico)
Onde estávamos?
FREDERICO
A senhora me contava da serventia das ervas.
DONA LUZIA
Claro, aprendi muitos saberes com meu estimado falecido. Foi
primeiro com a botica que meu marido fez sua fortuna. Só depois veio
a Fazenda.
FREDERICO
Muito interessante.
Dona Luzia, orgulhosa, chama mais uma vez as escravas. Enquanto
caminha, profere uma aula sobre suas ervas (como um guia turístico
que aponta monumentos históricos).
26	
Frederico apenas acompanha, fazendo questão de mostrar-se admirado.
Chegam perto de uma árvore de médio porte. Frederico cheira suas
folhas.
DONA LUZIA
Esta é a bucuíba, boa para o tratamento de feridas e úlceras. Aquela
ali de ramos rasteiros é boa para infusões peitorais… Este aqui é o
imbirú, tem raízes tuberosas, pode ser empregada em banhos nas dores
reumáticas…
FREDERICO
Impressionante.
Os dois seguem caminhando. Entre uma explicação e outra, Dona Luzia
busca as três escravas adolescentes com o olhar. Dona Luzia colhe
uma fruta seca e um pedaço do galho. Agacha-se delicadamente e raspa
a casca do galho numa pedra no chão. Junta o farelo da raspagem na
palma da mão e mostra a Frederico.
DONA LUZIA
Sassafraz. Meu remédio para o estômago.
FREDERICO
Gostaria de ouvir a senhora falar mais sobre seus experimentos com
as ervas.
Enquanto continuam a caminhada com as escravas cada vez mais tensas
e carregadas de frutas.
DONA LUZIA
(orgulhosa)
Com prazer.
Cena 27 – FAZENDA- JARDIM DE ERVAS / EXT / DIA
FLASHBACK
Na Senzala escura, dois negros estão deitados sobre palhas finas,
suando muito e se contorcendo de dor. Dona Luzia entra na senzala
acompanhada de duas mucamas (Fantina e Rosa) que carregam suas
cestas. Toda vestida de preto, a Sinhá se aproxima lentamente dos
escravos enfermos segurando um pano sobre sua boca e nariz. Agacha-
se junto aos escravos doentes e com uma mão (enquanto a outra segura
o pano no rosto) começa a apalpá-los, analisando as feridas do corpo
27	
e a musculatura flácida. Com a ajuda do polegar e indicador, analisa
com curiosidade os olhos vermelhos e assustados dos dois escravos.
Com a proteção de um outro pano, enfia o dedo na boca deles e
analisa suas gengivas esbranquiçadas. Os escravos estão quase
desfalecidos. Ela estende a mão para que Rosa entregue uma jarra
cheia de sangue. Fantina fica ao lado, suportando o corpo do homem e
segurando a boca dele aberta. Dona Luzia despeja o sangue na boca
dele, que engasga e tosse. Pacientemente, ela espera que ele se
recomponha minimamente para voltar a entornar o sangue viscoso na
boca do escravo.
Cena 28 - FAZENDA- ARREDORES / INT / DIA
Fantina e Daniel estão deitados na relva.
DANIEL
Eu já lhe disse que mato e morro por ti, não disse, Fantina? Pois,
isso é cada vez mais sério. Não duvide.
FANTINA
Pare de falar besteira. Vamos sobreviver. Melhor, vamos vencer…
Fantina se levanta. Daniel a observa.
DANIEL
Eu te amo.
Fantina sorri. Daniel se levanta rapidamente. O casal se abraça.
FANTINA
A tardinha vai passar o Damião com mais dois da Santa Bárbara. Ocê
distrai o Felisberto aí que eu dou um jeito dos sinhozinhos não sair
pra varanda.
DANIEL
(mexendo no bolso)
Espera… tenho a carta do Zé de Deus. Pra entregar
pra Sinhá. Talvez, isso ajude a gente.
FANTINA
Nada que vem desse português cheira bem.
DANIEL
Melhor levar.
Daniel retira a carta de seu bolso e a entrega a Fantina.
28	
Cena 29 – FAZENDA-CASA GRANDE / INT / DIA
D. Luzia e Frederico estão relaxados na varanda da Casa Grande com
seus pés apoiados em uma banqueta de madeira.
Em silêncio, trocam olhares e sorrisos.
Frederico alterna sua mirada entre as mãos e os olhos de Luzia.
FANTINA - OFF
Licença, Sinhá.
Luzia toma um susto, olha para Fantina que está na beira da porta da
varanda. A reação ao susto é azeda.
DONA LUZIA
Quê isso, Fantina! Chegando assim sem anunciar! Me assustou, sabia?!
Esperava que estivesse aqui, quando eu chegasse do passeio.
FANTINA
Perdão, Sinhá. Não foi a intenção. Fui colher a carta que vieram
entregar para a Sinhá.
DONA LUZIA
Me dê, vamos!
FANTINA
Vou preparar o escritório para a senhora ler com mais conforto.
Antes de se retirar e entrar na casa segurando o envelope, ela olha
rapidamente para o pátio à frente: Vazio.
FANTINA
Licença, Sinhá.
Frederico nota o seu olhar e também se vira para o pátio, curioso.
DONA LUZIA
É cuidadosa e delicada minha mucama, não é? A melhor de Ingaseiro.
FREDERICO
Parece muito leal à senhora...
Fantina volta.
FANTINA
Escritório preparado Sinhá
Luzia passa por ela em direção ao escritório. Frederico olha
rapidamente para Fantina e também se retira.
FREDERICO
29	
(para Luzia)
Com licença, vou pro meu dormitório para deixá-la mais à vontade com
a correspondência.
Fantina fica parada junto à porta, olhando o mato à frente da
varanda.
CENA 30 – ESCRITÓRIO – FAZENDA – INT - DIA
Dona Luzia senta-se na cadeira diante da escrivaninha e lê a carta.
Pára de ler, respira fundo e grita:
DONA LUZIA
Fantina!
Fantina chega.
DONA LUZIA
Chame Frederico.
ELIPSE
Frederico está de pé, ao lado da janela, encarando Fantina que está
de pé junto à porta. Luiza continua a leitura. Em alguns momentos,
lê com os olhos agitados, em total silêncio. Noutros, balbucia
palavras incompreensíveis. Frederico enrola um cigarro e olha para
ela com o canto dos olhos, tentando disfarçar a curiosidade. Fantina
fica de pé, com olhar explicitamente curioso. Ela recebe uma
encarada de Frederico e o evita imediatamente, olhando pra baixo.
Luzia solta uma gargalhada nervosa e fala para Frederico:
DONA LUZIA
Já viu o que aquele compadre das dúzias fala do senhor?
FREDERICO
(tenso)
Quem?! Não… Quero dizer…
DONA LUZIA
Como quem? O seu sócio. Vou ler um trecho do que ele diz. Preparado?
(lendo com voz afetada, nervosa)
“… Na noite da festa do Divino, esse senhor pintou o sete e rebocou
o Simão! Esteve num cateretê à rua do Carvão com umas perdidas.”
30	
Cena 31 – PRAÇA DE RIO NOVO / EXT / NOITE
FLASHBACK
Imagens de Frederico na Festa do Divino. Ele passa entre as pessoas,
cumprimenta alguns, cheira o pescoço de algumas. Alegre e simpático,
começa a tocar a viola e cantarolar para várias pessoas, homens e
mulheres.
DONA LUZIA - OFF
(lendo afetadamente)
"… Tocou viola como um bêbado, deu muitas umbigadas e cantou coisas
porcas. O Chico Valamier saiu furioso, porque ele botou uns versos
sujos numa mulher casada de poucos dias. Sapateou na sala com muito
barulho, dando castanholas e berrando.”
Cena 32 – SALÃO DE FESTA / INT / NOITE
No salão da Festa do Divino, Frederico pára num canto e toca a viola
encostado na parede. Alguns homens e poucas mulheres param pra olhar
e cantar junto; outros continuam em diversões paralelas. Frederico
canta forte duas vezes a estrofe. Na segunda vez, alguns o
acompanham na cantoria, como que se faz com música conhecida
popularmente.
FREDERICO
Cachorrinho está latindo/Lá atrás do limoeiro/
Cala boca cachorrinho/Não sejas mexeriqueiro.
Cena 33 – ESCRITÓRIO- CASA GRANDE – INT / DIA
Dona Luzia fica instantes em silêncio, um pouco vermelha. Inspira
fundo e olha para Frederico.
DONA LUZIA
O que achou?
FREDERICO
(devagar, medindo as palavras)
Com todo respeito.. Dona Luzia desperta paixões por onde passa. E um
homem apaixonado tem sempre muita imaginação.
Dona Luzia não contém sorriso discreto de satisfação.
DONA LUZIA
31	
Pois… Mas era compadre do meu Silva e foi longe demais. Sabe do meu
apreço pelo sentido espiritual da Festa do Divino e criou uma
parábola do seu próprio desvario. É o que lhe parece, Frederico?
FREDERICO
Podes ter certeza, Dona Luzia. Fico feliz e ainda mais encantado,
pois que, com a senhora, os intrigantes não tiram palhinha.
DONA LUZIA
De certo, em se tratando de uma obra de ficção, ela é até que bem
contada. Deveras de mau gosto, mas diverte pelo risível. Podemos
continuar lendo e nos distraindo, o que acha?
FREDERICO
Como a senhora desejar. Aprecio ouvir qualquer história que venha da
boca da senhora.
Cena 34 – SALÃO DE FESTA / INT / NOITE
Imagens da Festa do Divino, agora bem mais vazia. As poucas pessoas
que sobram mostram-se mais bêbadas e cansadas. Frederico, também
mais alcoolizado, alternando entre goles e acordes musicais em sua
viola, continua cantando, mas agora chamando menos a atenção dos
outros. Uma aparente prostituta está ao lado. Os dois se olham. Ele
oferece a garrafa, ela dá um gole e se levanta, se retirando.
Frederico larga a viola de lado e só fica abraçado à garrafa. As
pessoas vão saindo do recinto, até que ele fica sozinho,
explicitamente bêbado. Ao lado dele fica sua viola encostada e uma
vela acesa. A prostituta volta para pegar o castiçal/vela e sair,
deixando-o no escuro e sozinho.
DONA LUZIA - OFF
(lendo nervosamente, forçando descontração)
“Deu bordoadas em muitos, escaramuçou o resto;
apagou as velas de sebo e ficou no escuro com as quatro marchadeiras
daquela rua. Um homem deste jaez não lhe serve, porque desmoralizou-
se em poucos dias…”
TELA NEGRA
32	
(Música) Som do toque de tambor de jongo.
Cena 35 - INGASEIRO (FAZENDA) / INT / DIA
SOM de tambor continua, quando surgem as imagens da Fazenda. SOM de
voz de lamento começa a acompanhar o tambor.
Imagens do ENTARDECER na Fazenda: a Casa Grande, a plantação de
ervas, arredores, senzala, curral, a capela, a marcenaria e outras
dependências.
Na varanda, Frederico e Dona Luzia chegam para sentar nas cadeiras.
Segue a bela descrição imagética de um “ambiente fantástico” no
entardecer da Fazenda.
Fogueiras são acesas na porta da senzala. Josefa está sentada diante
de uma dessas fogueiras.
SOM: o ritmo do tambor se implementa.
Na SALA: Joaquina vai ao piano e se posiciona. Ela tenta acompanhar
o compasso percussivo e não consegue. Aperta as teclas com raiva e
fecha o piano. Fantina está entre a sala e a varanda e tem os olhos
fechados, como se curtindo um transe silencioso.
Na VARANDA: Dona Luzia e Frederico seguem sentados com semblantes
tranqüilos, assistindo ao pôr do sol e apreciando os sons do
entardecer.
FREDERICO
A Senhora sabe que o Zé de Deus não permite que seus escravos façam
batuque? Tacou fogo em tudo quanto foi tipo de tambor, pois diz que
o tambor liberta demônios.
DONA LUZIA
Isso é mais uma grande bobagem do português. Eu prezo muito pela
harmonia entre as pessoas. Seja gente como a gente ou quem nos
serve. Deus quer que todos vivam dignamente e, pra mim, o tambor
traz harmonia… Sinta só o ritmo.
Os dois sorriem e movem sutilmente as mãos e os pescoços, como se
sentissem o pulsar do batuque.
33	
Cena 36 – ARREDORES DA FAZENDA / INT / NOITE
SOM do tambor continua.
Tratamento de imagem (cores e textura) alterada, remete a outra
época.
Nos ARREDORES da Fazenda, um menino pardo de 9 anos brinca com uma
menina negra de 6 anos.
JOSEFA - OFF
Pois é, mia fia… Quanto mais o tempo passa, mais a dor aumenta.
Vosmecê e Daniel vieram ao mundo pra ficar juntos… Branco nenhum
pode separar
FADE OUT
Um adolescente pardo (Daniel, com 15 anos) aprende a tocar viola:
dedilha alguns acordes. Uma menina negra (Fantina, com 12 anos) o
assiste sorridente.
JOSEFA - OFF
Fantina, menina boa, atenciosa. Mas, nessa vida que deus ou diabo
deu pra nós, às vezes não é bom ser tão boa. Mesmo se Daniel tivesse
vintém pra comprar Fantina, Luzia não ia deixar não. A Sinhá gosta
tanto que quer acorrentada do lado. O bem e o mal andam juntinhos.
Ocê me pergunta como é que pode isso tudo? Eu digo que a gente ainda
vai saber; mesmo que precisar morrer.
Cena 37 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / DIA
Sentada na mesa da Sala da Casa Grande, Dona Luzia escreve convites
de casamento em papéis bordados. Com uma pena e em letras finas e
miúdas, desenha a caligrafia cuidadosamente. No bordado está escrito
a data do casamento entre “Luzia Salustiana Silva do Vale Sampaio e
Frederico das Neves, 09 de julho de 1871”.
Fantina está ao fundo, costurando uma camisa de homem. Ao lado da
cadeira onde está sentada, uma pilha de outras camisas. Fantina está
apreensiva. Busca se concentrar na costura.
Há um clima de intimidade: Frederico equilibra um cigarro na boca,
enquanto observa as estantes da sala. Junto ao móvel de livros há
34	
outro um pouco menor e repleto de frascos de remédios e potes com
ervas em etiquetas manuscritas. Entre uma pitada e outra, Frederico
observa com curiosidade e se fixa na estante de livros. Retira
alguns livros, abre-os em uma página qualquer e volta a fechá-los.
Em outros, apenas observa a capa e retorna ao seu lugar na estante.
FREDERICO
(lendo alto e devagar como um semi-analfabeto)
“Direção para sossegar em suas dúvidas as almas timoratas, pelo
venerado Quadrupani.” ”A mulher como deveria sê-lo, por reverendo
Marshal”
Frederico se impacienta, vai até a janela fazendo ruídos e fumando.
Volta para a estante.
DONA LUZIA
O que te aflige, homem?
FREDERICO
Não acho um livro, são todos de irmã de caridade.
DONA LUZIA
(escrevendo, sem tirar os olhos dos papéis)
Pois, se não gostas destes, na última tábua há uns folhetos
curiosos.
Frederico sorri simpático, se estica para ver a última prateleira
mas desiste e se apóia no parapeito da janela. Sua vista dá para uma
nascente onde escravas batem e ensaboam roupas, com suas saias
levantadas até os joelhos. Frederico fuma e observa a sensualidade
das mulheres trabalhando com suas coxas à mostra.
DONA LUZIA
Não tens convites a fazer?
FREDERICO
Convidarei só alguns amigos daqui mesmo. Não convido os de minha
terra, pois não chegariam a tempo.
Fantina olha para a patroa, curiosa com sua reação.
Dona Luzia ri, sem disfarçar a satisfação com que vive o momento.
Joaquina entra na sala e observa os dois por instantes, expressando
cara de enfado. Fantina olha para Joaquina, com o canto de olho e a
cabeça baixa. Joaquina abotoa vagarosamente a frente do vestido,
35	
junto ao peito. Assim que Frederico e Dona Luzia olham para a
menina, ela se retira fazendo cara feia e fechando a porta.
Fantina sorri, discretamente.
DONA LUZIA
Não está satisfeita, a pobre. Arranjaremos o Antônio para ela… Mas
ele anda tão impostor quando vem da Corte, que nem dá fé… O Teixeira
não dá… é muito gordo e já está velho, coitado.
Luzia tira o Jornal do Commercio de uma gaveta e estende a mão
oferecendo a Frederico, que apanha, folheia e começa a ler.
DONA LUZIA
Toma, isso é leitura importante. Leia algo para nós.
FREDERICO
(tropeçando na leitura, como semi-analfabeto)
“Punham a chave no buraco da fechadura, quando um juiz apitou.
Ouviam-se batidos de tacões que avançavam para o lado onde o
assobio chamava. Um cão fila ladrou furiosam…
DONA LUZIA
(interrompendo)
Que diabo está lendo, homem?
FREDERICO
(batendo o jornal na perna)
Isso!
DONA LUZIA
Eu esperava que lesse notícias do Rio Branco, que é o que nos diz
respeito.
FREDERICO
Pois este rocambole não é o mesmo?
DONA LUZIA
(achando graça)
Ora, ora, senhor!
Em tom de brincadeira, Dona Luzia tira o jornal das mãos de
Frederico e começa a lê-lo. Começa balbuciando e depois comenta o
que leu.
DONA LUZIA
Não é possível! Já está para votação na câmara dos deputados esta
lei do traidor Rio Branco! Não pode ser!!!
36	
FREDERICO
Qual lei?
DONA LUZIA
Como qual lei?! Aquela feita por gente que não sabe o que é cuidar
com zelo e humanidade, durante uma vida inteira! Que finge ser
humanista para virar a casaca e jogar no tabuleiro político contra o
Império. Quer que eu leia para o senhor entender?
FREDERICO
Apenas se for trazer de volta a sua tranquilidade, meu amor.
DONA LUZIA
Perceba o absurdo… “Artigo Primeiro: Os filhos de mulher escrava que
nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de
condição livre.”
Fantina levanta o olhar em direção a Dona Luzia.
Cena 38 – FAZENDA / EXT / DIA
IMAGENS de trabalho na Fazenda Ingaseiro:
Carregados de toras de madeira nos ombros, escravos caminham ao lado
do carro de boi conduzido por um homem branco de chapéu e chicote.
Mulheres negras sentadas na porta da Senzala costuram palha com a
ajuda de crianças.
JOVEM RAPAZ negro empurra um carrinho lotado de ferramentas, passa
por um galpão onde na frente tem um homem ensangüentado, amarrado a
um tronco.
Segue até a senzala - passa pelas mulheres e crianças trabalhando –
deixa as ferramentas na porta e desce ofegante a escada. Dentro, o
rapaz tem de andar com o pescoço abaixado por causa do teto baixo.
Ele passa por dois negros doentes se contorcendo no chão e segue,
ainda ofegante. Vai até o canto mais escuro e se deita no chão de
terra, em posição fetal. De olhos bem abertos e corpo contraído, vai
acalmando a respiração.
DONA LUZIA - OFF
(continuando)
“Inciso Primeiro: Os ditos filhos menores ficarão em poder ou sob a
autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de
37	
criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o
filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de
receber do Estado a indenização de seiscentos mil réis, ou de
utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos.
No primeiro caso, o Governo Imperial receberá o menor e lhe dará
destino, em conformidade da presente lei.”
Cena 39 – SALA – CASA GRANDE / INT / DIA
Sala da Casa Grande:
Fantina fura o dedo, ao costurar a camisa. Ela chupa com vigor o
próprio sangue.
Dona Luzia e Frederico sentados frente à mesa. A Sinhá, de jornal em
riste, vocifera:
DONA LUZIA
Percebe como é uma forma do governo explorar aqueles
que produzem e geram riquezas a esta nação? Eles querem que nós
gastemos todos os recursos na criação e, quando as peças estiverem
em suas formas mais sadias, eles nos levam… Achas que esta é uma boa
indenização?!
FREDERICO
600 mil réis não é de se jogar fora.
DONA LUZIA
Meu jovem, belo e querido Frederico, com todo respeito, vejo que se
esquiva a fazer contas. Este valor não paga metade dos anos em que a
peça se alimenta e fica sob os cuidados dos proprietários! Já não
basta os altos impostos, é mais uma jeito de prejudicar quem tem
posses!
FREDERICO
A senhora tem razão, Dona Luzia. É um acinte. Mas pelo que disseste,
ainda não aprovaram a tal lei.
DONA LUZIA
E não irão aprovar! Conhece José de Alencar?
Silêncio. Frederico disfarça. Fantina, costurando de cabeça baixa
esboça um leve sorriso sobre o desconcerto de Frederico.
DONA LUZIA
38	
(continuando)
Pois bem, é um dos maiores intelectuais do Império, autor de livros
magníficos, romances humanistas. Escreve até sobre índios! Depositou
toda sua arte para escrever um tratado esplendoroso contra esta tal
abolição. Duvido que vão contrariar José de Alencar!
FREDERICO
Certamente, querida… não há com o que se preocupar.
DONA LUZIA
Por certo… Estou tranquila. O que não desce à goela é este Rio
Branco, que é do Partido Conservador e, ao mesmo tempo, posa de
reformista para os europeus. Neste país, não sabemos ao certo de que
lado jogam os políticos. Visconde traidor, só pensa em fazer-se
conhecido.
Fantina faz movimento de se levantar.
DONA LUZIA
Tudo bem, Fantina?
FANTINA
Tudo, Sinhá. Só furei o dedo… Mas isso não é nada.
DONA LUZIA
Pois vá limpar. E limpe demoradamente, para não infeccionar!
Cena 40 – FAZENDA INGASEIRO / EXT / DIA
Imagens do trabalho na Fazenda: alguns escravos arando; outros
caminham acompanhando a boiada enquanto dois homens pardos, de
chapéus, conduzem o trabalho montados em cavalos. Mulheres caminham
carregando cestos e potes, algumas equilibrando-os em suas cabeças.
Elas passam pelo galpão onde está um homem negro, jovem e magro
amarrado ao tronco vertical.
Cena 41 – FAZENDA – CASA GRANDE –INT / DIA
Na Sala da Casa Grande, Juca e Joaquina distraem-se num canto. Juca
está sentado no chão, quieto. Joaquina trança uma linha de algodão
que sai de um balaio feito de folhas secas.
39	
Na Cozinha: Josefa aquece suas mãos na boca do fogão à lenha. Ela
retira as mãos, as esfrega suavemente e sai da cozinha. Percorre a
Casa Grande, vagarosa e silenciosamente. A velha escrava de olhar
vazio (aparentemente cega) chega até a varanda e estende a mão para
sentir o vento. Os movimentos de Josefa são leves; seu andar a faz
(parecer) levitar.
Cena 42 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / DIA
Em seu QUARTO DE HÓSPEDES, Frederico pendura uma gaiola junto à
janela e se entretém com o belo passarinho cativo. O quarto está
mais equipado, com pertences pessoais de Frederico espalhados. Ele
brinca de abrir e fechar a porta da gaiola e colocar o dedo para ser
bicado. Ouve batidas na porta e vai atender. É Rosa, que traz um
enorme crucifixo de prata.
ROSA
Sinhá mandou entregar. Disse que era do Sinhô Silva.
FREDERICO
Obrigado, Rosa.
Frederico pega o pesado crucifixo das mãos da escrava, que fica
parada junto à porta.
FREDERICO
(sorrindo)
Queres vintém? Estás mal acostumada, Tia Rosa.
Rosa pede licença e se retira constrangida.
FREDERICO
Espere, Tia Rosa…
Rosa pára.
FREDERICO
Preste atenção, Sabes como sou sujeito cordial, que gosta de todos
os seres, não sabe? Pois, então, avise aos seus que, depois que eu
me tornar senhor de Ingaseiro, muita coisa vai mudar para melhor.
Avise sua amiga Fantina, que vou providenciar o casamento dela com o
mulato forro da quinta. Daniel, certo?!
Rosa se espanta.
FREDERICO
40	
(sorri diante do espanto de Rosa)
Pensa que eu não sei? E a vosmecê também, Tia Rosa;
pode apostar que, se estiveres do meu lado, terás tua alforria
muito antes do que imaginastes em teus sonhos.
Rosa sorri desconcertada, misto de desconfiança e esperança. Ela
pede licença e se retira.
Frederico suspira e levanta o crucifixo. Ele analisa a parede,
estudando um lugar apropriado para fixar o objeto. Testa-o na parede
junto à gaiola, com o passarinho ao lado.
FREDERICO
Canta meu rouxinol, canta.
Cena 43 – ESCRITÓRIO – CASA GRANDE / INT / DIA
Dona Luzia está lendo um livro em seu escritório. Fantina bate na
porta e entrega um envelope à sua Sinhá.
DONA LUZIA
Entre.
(abrindo o envelope e a carta)
Não pode ser?! Outra carta difamatória?
FANTINA
(se retirando)
Licença, Sinhá.
DONA LUZIA
Fantina, espere! Quem está lhe entregando estas cartas?
(instantes de silêncio, Fantina não responde)
Vá agora até o portador e o traga aqui. Quero falar com ele.
DONA LUZIA
(falando alto, quase gritando)
Frederico! Joaquina! Juca! Venham todos aqui.
Fantina, chame todos… Agora!
Fantina sai.
Dona Luzia abre a carta e busca distância para lê-la.
Cena 44 – FAZENDA – CASA GRANDE E ARREDORES / EXT-INT / DIA
41	
Fantina caminha tensa, esfregando os braços, saindo da Casa Grande
pela porta da cozinha.
Daniel está sentado em uma pedra, à sombra. Ele está apreensivo.
Fantina desce as escadas, apressadamente. Ela se aproxima de Daniel,
mantendo distância. Daniel se levanta. Fantina fala baixo.
FANTINA
Venha comigo. Sinhá tá chamando.
DANIEL
Uai…
FANTINA
Uai, nada. Sinhá tá chamando.
Fantina volta para a Casa Grande. Daniel segue atrás. Eles passam
pela cozinha, toda apagada, onde Josefa está sentada imóvel, numa
banqueta perto do fogão vazio. Andam tão apreensivos que nem a
percebem.
DANIEL
(sussurrando atrás de Fantina)
O que ela quer?!
FANTINA
(tensa)
Ela tá nervosa.
Os dois seguem pelas dependências da casa, passam por corredores e
pela grande sala até chegar à porta do escritório da Sinhá. Fantina
suspira, com medo em seu olhar. Ela e Daniel entram no escritório.
Cena 45 – ESCRITÓRIO – CASA GRANDE – INT / DIA
Na cadeira, diante da escrivaninha, está sentada Dona Luzia. Ao seu
lado, de pé, está Frederico. Juca e Joaquina estão sentados na
poltrona. Frederico se senta, observando Fantina e Daniel.
DONA LUZIA
Daniel, eu sabia que vosmecê fazia serviços de tropeiro para o
compadre Zé de Deus, mas não que também era o seu carteiro.
DANIEL
Boa tarde, madrinha. Eu vinha pra cá e ele me pediu pra trazer… Foi
só isso… Né serviço não, só um favor…
42	
DONA LUZIA
Um não, dois, não é verdade?… Escuta, vou lhe contar, talvez não
saiba dos modos que o português tem com seus escravos. Com sua pele
parda, eu não ponho minha mão no fogo que ele um dia se confunda de
tonalidade e te coloque para servi-lo...
(falando alto)
Fantina, preste atenção. Quero que preste muita atenção nisso.
É bom que todos aqui tenham ciência dos hábitos deste patusco.
Fantina está ao lado de Daniel. Os dois entreolham-se tensos.
DONA LUZIA
(olhando para todos no recinto, como se desse uma palestra)
Sabem como o português trata seus cativos? Trata pessoalmente.
Frederico se ajeita na cadeira.
Cena 46 – SENZALA DE ZÉ DE DEUS / INT / DIA
Cinco escravos (dois homens, duas mulheres e um menino de sete anos)
enfileirados com as mãos para trás. Zé de Deus olha, um a um, como
um general revisando sua tropa. Depois de ir e voltar, aproxima-se
para cheirar o rosto de cada escravo. Em mais uma passagem, agora o
português se aproxima ainda das faces negras e lambe os beiços de
cada um. Agacha-se para lamber o beiço do menino e nele se detém por
mais tempo do que com os outros.
Zé de Deus lambe seus próprios beiços; chupa seu próprio dedo e o
cheira. Faz uma expressão, como se tivesse encontrado algo. Levanta.
Olha bravo para a mulher que está ao lado do menino e ergue o braço
com o chicote na mão. A mulher dá um tapa no menino. Zé de Deus
ergue mais uma vez o chicote no ar, balançando-o.
A mulher profere mais dois tapas no menino. Diante do olhar furioso
do português, ela tira o menino dali puxando-o pela orelha enquanto
o patrão chicoteia seguidamente o ar, cada vez mais enérgico. A mãe
puxa a criança para fora até que os dois saiam pela porta e não
fiquem mais ao alcance da vista do senhor. Fora da senzala e longe
do olhar de Zé de Deus e dos outros, descansam as costas na parede.
A mulher olha para o menino com olhos umedecidos e o abraça forte,
beijando-o carinhosamente.
43	
Cena 47 – CASA GRANDE-ESCRITÓRIO / INT / DIA
Juca parece não perceber o relato e Joaquina está encolhida.
Daniel e Fantina, estáticos, tentam conter a tensão. Fantina fecha
os olhos enquanto Daniel olha para baixo.
Frederico fuma um cigarro e Dona Luzia passa o olhar sobre todos,
sorrindo para Frederico ao final.
DONA LUZIA
Então, me digam vocês dois…
Fantina abre os olhos. Daniel levanta a cabeça.
DONA LUZIA
Crueldade ou sem-vergonhice?
DANIEL
Sem-vergonhice.
FANTINA
(quase ao mesmo tempo que Daniel)
Crueldade.
DONA LUZIA
Então, vou contar outra que ele fazia, para que vosmecês se decidam.
(virando-se para Joaquina e Juca)
Crianças, saiam daqui, vou entrar em detalhes.
Juca e Joaquina se retiram.
Fantina e Daniel se entreolham, mais uma vez. Frederico testemunha a
troca de olhares, sorri e dá mais uma baforada no cigarro.
Cena 48 – ARREDORES DA CASA DE ZÉ DE DEUS / EXT / NOITE
Na frente da Casa de Zé de Deus há uma fogueira, um carro de boi e
alguns escravos. CAPITÃO DO MATO arranca as roupas de uma mulher
negra e a amarra de bruços no cabeçalho do carro de boi. As pernas
machucadas, com os tornozelos atados e os braços passados por baixo.
Alguns escravos assistem enfileirados. Zé de Deus se aproxima das
nádegas da escrava empunhando sabugos de milho secos. Uma MENINA
escrava, 14 anos, assiste sentada próxima da fogueira. SOM: de
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sabugada, berros e gemidos. A Menina desvia o olhar, enquanto se
encolhe mais e mais, na medida que os gritos da mulher aumentam.
A Menina, encolhida ao lado da fogueira, chora de cabeça baixa. Os
barulhos de grito e sabugada cessam. Ela levanta o olhar e arregala
os olhos ao ver Zé de Deus se aproximando. Grita:
MENINA
(aterrorizada!)
AAAAAAAAH!
Zé de Deus a puxa pela roupa para perto de si. A solta e a pega pelo
braço. Os dois param diante de um formigueiro. Ele se agacha e usa o
sabugo para cutucar o formigueiro e atiçar as formigas. Ainda de
cócoras, levanta a saia da menina e faz com que ela segure. Com
gestos, ordena que ela tire a calcinha (escrava usava calcinha?) e
se agache com pernas abertas sobre o formigueiro agitado. A menina
tira a calcinha – por dentro da saia – e se agacha.
Cena 49 – CASA GRANDE-ESCRITÓRIO / INT / DIA
Daniel e Fantina seguem lado a lado, de frente para a Sinhá.
Frederico se levanta, dirigindo-se para trás de Dona Luzia. Ele toca
os ombros de Luzia com as duas mãos.
FREDERICO
Deus do céu! Zé de Deus é um monstro!
DONA LUZIA
(Virando-se para Frederico)
Sim… é isso que dizia.
(Voltando o olhar para Fantina e Daniel)
Diga, Daniel… Vosmecê se sente bem trabalhando para um sujeito
assim?
DANIEL
Não, Sinhá. Eu faço serviço de tropa com ele. Pra ele e para muitos
outros… Daqui duas semanas, vou com a tropa do sinhô Louzada levar
leite e queijo pra Goiás; fico longe três meses.
Nesse momento Daniel não se contém e olha para Fantina que,
cabisbaixa, também o vê com o canto dos olhos.
45	
DANIEL
Não me falta trabalho, graças a Deus! Se a madrinha quiser, eu não
faço mais serviço algum para este português maldoso.
Dona Luzia tira da gaveta da escrivaninha um envelope.
DONA LUZIA
Vai encontrar com ele agora e lhe entregar isso, com toda
cordialidade. Essa é a minha resposta à sua carta: um convite do
nosso casamento. E vosmecê também está convidado Daniel. Será antes
da sua viagem; faço questão que venha. És praticamente de casa, não
preciso de formalidades, certo?
Daniel sorri, sem graça, pega o envelope, pede licença e se retira.
Antes de sair, ele troca olhares com Fantina, observado por
Frederico.
DANIEL
Com licença, Sinhá. Muito agradecido. Licença Seu Frederico.
Frederico dá uma piscadela satírica.
Cena 50 – VARANDA–CASA GRANDE / INT / DIA
Na varanda, D. Luzia toma um café fumegante e observa quatro
crianças negras que brincam de pega-pega no pátio em frente da Casa
Grande. Fantina chega.
FANTINA
Bom dia, Sinhá. Sinhá acordou cedo.
DONA LUZIA
Bom dia, Fantina. Pode se aproximar.
Fantina se aproxima e fica posada de pé, ao lado de Dona Luzia. A
Sinhá faz gestos para que ela se sente na cadeira ao lado. Fantina
hesita.
DONA LUZIA
Sente-se, estou lhe dizendo.
Fantina se senta. Ela e Dona Luzia ficam quietas por alguns
instantes, olhando as crianças.
DONA LUZIA
Sabe, Fantina, desde que Silva partiu, nunca fui tão feliz… Meu
ventre nunca foi tão feliz…
46	
(as duas trocam sorrisos de cumplicidade feminina)
Mas tem dois homens querendo roubar minha felicidade: Um é o pobre
do Zé de Deus. Desse, tenho piedade… O outro é o maldito Visconde
traidor. Desse Rio Branco, eu tenho raiva. Ouviste quando eu li
sobre aquela lei que ele quer aprovar, não foi?
FANTINA
Ouvi sim, senhora.
Instantes de silêncio; elas ficam observando as crianças que fazem
brincadeiras graciosas, rolando no chão. As duas mulheres sorriem
diante da cena.
FANTINA
Sinhá.. Já que a senhora me permitiu abertura, queria lhe pedir que
definisse o valor da minha alforria. E saber se tenho autorização
pra juntar vintém com algum outro trabalho, fora de Ingaseiro.
Dona Luzia engole fundo e quase engasga com o café. Fantina coloca
suavemente a mãos nas costas dela e fica a olhando, na espera de uma
resposta. Luzia não se vira, segue olhando as crianças. Instantes de
silêncio e expectativa.
DONA LUZIA
Pois… Quem cuida desses?
FANTINA
(sem jeito, contrariada)
Aqueles dois são filhos da Maria. O mais fortinho ali é da Alzira. E
o outro quem cuida é a Rosa.
DONA LUZIA
E a mãe?
FANTINA
(levemente impaciente)
Juliana. Morreu dois dias depois que chegou, a senhora não lembra?
DONA LUZIA
Estou com a memória fraca. Deve ser porque só penso no futuro.
Fantina olha tensa para o pátio.
Cena 51 – ESTÚDIO-ESTÁBULO / INT
47	
PROJEÇÃO ONÍRICA: CENA HIPER-REALISTA (e alegórica), tratamento
visual (foto, maquiagem) impressionista.
No Estábulo - com FUNDO PRETO,como na cena 9 - crianças miseráveis
comem como animais em tigelas no chão. Câmera descreve a péssima
condição de saúde delas (perebas, barriga de verme, pernas finas com
feridas etc..). D. Luzia, toda vestida de preto, entra no estábulo
segurando um balde cheio de ervas e uma garrafa de cachaça. Agacha-
se e faz gestos chamando as crianças, que vão se colocando ao seu
redor. Ela faz com que as crianças comam as folhas e segura a
garrafa de cachaça para que elas tomem, como se fora mamadeira.
Fantina entra em cena com Josefa e vão retirando as crianças, uma a
uma. Fantasmagórica, Dona Luzia não nota a presença delas nem a
retirada das crianças e continua a dar cachaça, sem olhar para os
lados. Até que todas as crianças são retiradas e ela fica sozinha no
estábulo. Vira a garrafa de cachaça.
JOSEFA - OFF
A Sinhá tinha raiva do tal Visconde. A maioria dos brancos que era
dono de alguém ou de alguma coisa, passaram a chamar toda criança
preta de “rio brancas”. Acho que, se aprovam essa tal lei, Dona
Luzia vai fazer suas experiências é com as crianças de Ingaseiro.
Cena 52 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / NOITE
Noite silenciosa na Fazenda. Espaços externos e internos vazios. Na
Casa Grande, Josefa sai da varanda e percorre, vagarosa e
silenciosamente, toda a extensão da sala vazia. Ela vai em direção à
cozinha.
Cena 53 – CAMINHO VICINAL–FAZENDA / EXT / DIA
Sol forte. Na estrada vicinal de acesso a Ingaseiro, Zé de Deus, com
ar embriagado, está no lombo de um jumento com uma garrafa na mão,
vestindo chapéu, terno, gravata e botas. Uma charrete passa por ele,
com uma família que, em trajes de festa, acena para cumprimentá-lo.
Ele retribui e coloca a garrafa na bolsa acoplada à sela do animal.
Ao guardar a garrafa, ajeita uma pistola que está presa no coldre da
sela. Segue conduzindo o bicho lentamente. À medida em que se
48	
aproxima da Fazenda, a Casa Grande pode ser vista ao longe e em
torno dela muita gente chegando, apeando seus cavalos,
cumprimentando-se. Zé de Deus olha novamente para a bolsa da sela
onde está a pistola e a garrafa. Tira a garrafa, bebe mais um pouco
e a acomoda ao lado da arma.
Cena 54 – FAZENDA–CASA GRANDE / EXT / DIA
Porta da Casa Grande toda decorada com bandeirolas e símbolos
cristãos. Pessoas bem vestidas, casais e famílias com crianças
conversam junto da escada.
Zé de Deus chega, desce do animal e fica parado, olhando a Casa
Grande. Muito trêmulo, limpa o suor na testa, decorrência do sol
forte. Daniel, que está ao longe montado num banco e ajudando a
amarrar os enfeites, percebe a presença do português e, apreensivo,
desce do banco interrompendo o que está fazendo. De frente à escada,
Zé de Deus fala alto, quase aos berros. Todos param de conversar
para ouvir com apreensão o sujeito alcoolizado.
ZÉ DE DEUS
Hoje é o grande dia! Quem vai se casar hoje é uma das personalidades
mais humanistas e solidárias da região… Dona Luzia Salustiana do
Vale Sampaio e Silva, viúva do meu compadre, Doutor Serafim
Salustiano Amorim e Silva, grande cientista que tantas doenças de
brancos e negros curou com sua alquimia medicinal. Agora, a nobre
dama poderá ser feliz mais uma vez! Mas quero aqui registrar, para
que todos saibam, que meu amor por ela é inigualável e que não tive
tempo de provar, pois a vida nos surpreende… De uma hora para outra,
pode aparecer alguém e colocar sua vida de ponta cabeça. Foi o que
aconteceu comigo, quando apareceu na minha vida um espírito maligno
que veio da província de São Paulo.
Frederico surge no alto, junto à porta da Casa Grande e encara Zé de
Deus que pára de falar e também o encara. Instantes de tensão; Zé de
Deus tem as pernas bambas. Faz movimento para pegar a arma na sela
de seu jumento. A arma está visível, na sela do animal. Ele se apoia
na sela, mas não consegue se segurar e desaba no chão. Frederico
49	
desce as escadas correndo para acudi-lo. Outras pessoas cercam o
homem desfalecido.
FREDERICO
(se aproximando e segurando a nuca do homem)
Meu compadre! Meu compadre, o que foi que aconteceu? Está
consciente? Responda algo!
(para os outros que estão em volta)
É muita emoção, bebeu demais. Doutor, tem algum doutor por aqui?!
DOUTOR JACQUES, senhor bem vestido de cinquenta e poucos anos e
sotaque francês, pede passagem.
DOUTOR JACQUES
Com licença… Doutor Jacques, a disposição. Com sua licença.
Doutor Jacques começa a examinar Zé de Deus. Ele gesticula
comandando alguns escravos próximos para ajudá-lo a erguer o corpo.
Os homens levam o português desfalecido, escada acima, para dentro
da Casa Grande.
Frederico e convidados entreolham-se. Frederico bate as mãos nas
calças; convida as pessoas ao redor para voltarem ao clima da festa.
Cena 55 – CASA GRANDE / INT / NOITE
Na Sala da Casa Grande, um bonito baile agita o ambiente com
alegria. Músicos bem vestidos tocam violino, viola e piano, enquanto
convidados dançam em pares. Dois negros, que destoam dos outros
músicos - também por suas vestimentas improvisadas - batem tímido
tambor, procurando acompanhar a música. Outros negros e negras,
dentre elas Fantina, servem os convidados em bandejas. Todos parecem
se divertir, exceto os negros.
O casal Frederico e Dona Luzia esbanjam entusiasmo como foco da
atenção de todos. Joaquina senta-se ao piano e inicia uma valsa.
Frederico convida Dona Luzia para bailar. Abre-se uma roda como
“palco”. Fantina os observa. Frederico e Dona Luzia começam a rodar
pelo centro da sala. Frederico busca Fantina com o olhar. Uma volta.
Duas voltas. Fantina desaparece do olhar.
Cena 56 – FAZENDA / EXT / NOITE
50	
Noite estrelada. Ouve-se o piano, ao fundo. Fantina sai da Casa
Grande, desce as escadas e pára no centro do pátio frontal. Está
tensa. Da lateral, surge Daniel. Os dois se abraçam demoradamente.
Ela segue rígida. Detalhes das mãos, dos olhos e dos ouvidos dos
dois, que pouco a pouco vão criando um ‘ambiente paralelo’ à festa.
O SOM do tambor, que antes estava secundário aos outros
instrumentos, agora ganha corpo nos ouvidos de Fantina e Daniel; vai
ganhando proeminência, até que os outros instrumentos fiquem
inaudíveis e o ritmo do tambor se torne onipresente.
Daniel sorri, apaixonado. Fantina chora, em descarga energética.
Cena 57 – QUARTO LUZIA - CASA GRANDE / INT / NOITE
Quarto de Dona Luzia. Vestindo uma camisola rendada e extremamente
branca, a viúva recém casada penteia os cabelos sentada na beira de
sua cama.
DONA LUZIA
(falando alto, quase gritando)
Fantina!
Instantes depois, Fantina entra no quarto.
FANTINA
Chamou, Sinhá?
DONA LUZIA
Como estou?
Fantina fica parada e séria, como se não entendesse a pergunta.
DONA LUZIA
Estou bonita?
FANTINA
(sem firmeza, com um pouco de desdém)
Sim, Sinhá.
DONA LUZIA
Pois então pode chamar meu marido no quarto dele.
FANTINA
Sim, Sinhá.
Fantina sai do quarto.
51	
Cena 58 – CASA GRANDE / INT / NOITE
Fantina caminha pelo corredor e chega à porta do quarto da Sinhá.
Frederico, logo atrás, pára em frente Fantina. Fantina volta para a
sala.
FREDERICO
(falando baixo)
Ei… Fantina…
Fantina se vira.
FREDERICO
Estou bem?
Fantina fica parada na ponta do corredor, olhando para Frederico,
sem responder. Sua face é bastante séria e defensiva.
FREDERICO
(sorrindo, sensual)
Não fique acanhada. Agora que sou teu senhor, as coisas vão melhorar
pro seu povo da Senzala, acredite.
Frederico entra no quarto de Dona Luzia. Fantina espera que ele
entre e segue para a varanda.
Cena 59 - VARANDA DA CASA GRANDE / INT-EXT / NOITE
Na varanda, Fantina se recosta sobre o para-peito. Ela avista Daniel
que, de pé no meio do jardim, contempla a lua e as estrelas.
Distante, ela fica um tempo olhando para ele que, longe e de costas,
não a percebe.
TELA PRETA
Cena 60 – FAZENDA–CASA GRANDE / INT / DIA
Momentos cotidianos da Fazenda:
Pai Joaquim (velho, aparentando dores no corpo) está ofegante,
debruçado sobre objetos da marcenaria. Deixa cair pregos e martelos.
52	
Escravos mais jovens puxam jumentos e bois por uma trilha. Passam de
frente ao galpão onde há um negro amarrado no tronco.
VARANDA
Dona Luzia e Frederico - agora com bigode - estão sentados diante de
um tabuleiro de jogo de dama (como na seqüência X). Um bule e duas
xícaras de chá repousam sobre a mesa. Agora o casal não se olha.
Frederico fuma um cigarro e dedica sua atenção à dança da fumaça ao
vento. D. Luzia segura uma encadernação com o título de “As Horas
Mariannas”. Seu olhar escapa do texto de orações para se alternar
entre o horizonte, a pose garbosa de Frederico fumando e também para
a outra ponta da varanda, onde estão Fantina, Rosa e Rita costurando
um cobertor, sérias e quietas.
DONA LUZIA
Fantina, venha cá.
Fantina se levanta e prontamente se aproxima da Sinhá.
DONA LUZIA
Preciso que me sirvas com um pouco da sua especialidade.
Fantina olha de lado para as colegas mucamas: Rosa olha de volta. Se
coloca atrás de Dona Luzia, fazendo cafuné na cabeça de sua Sinhá,
agora numa postura bem mais tensa do que na cena 01. Rita e Rosa
continuam compenetradas.
Frederico, fumando, caminha para outro canto da varanda onde tem uma
visão privilegiada das ancas de Fantina. O homem fica fumando e
admirando as formas corporais de Fantina de costas, enquanto ela
serve sua senhora com o cafuné. Rita e Rosa se entreolham, sérias.
Cena 61 – ESTÚDIO - FUNDO PRETO
PROJEÇÃO ONÍRICA de Fantina.
Daniel bate um prego em uma viga de madeira, uma das quatro que
formam uma estrutura de casa simples em construção. No meio deste
espaço há um piano. Fantina se aproxima e senta defronte ao piano.
Abre o teclado.
Daniel some. A estrutura de madeira some. Só resta Fantina e o piano
no fundo preto. Sua mão não chega a tocar nas teclas, mas inicia SOM
53	
de música tensa. Ela fecha o teclado, se levanta e sai de quadro. A
música grave segue soando.
Cena 62 – ESTRADA / EXT / NOITE
Estrada sinuosa cortando a serra. Uma grande fogueira com diversos
tropeiros em volta, se aquecendo, fumando e bebendo. Clima de
contação de histórias aquecido pelo fogo. Daniel, segurando sua
viola, termina de contar sua história aos colegas. TROPEIRO 1 - mais
velho e branco – rebate contando sua história.
DANIEL
...Mas, eu não perco as esperanças, não. Fujo com ela. Se precisar
matar, eu mato. Quando dois bichos estão apaixonados, ninguém
segura. O amor é milagroso, já dizia minha Tia Josefa.
TROPEIRO 1
Rapaz, meu rapaz… Eu já ouvi essa história uma boa porção de vezes,
com uma diferença aqui e outra acolá. Escuta essa: eu tinha um
compadre que se engraçou pela cativa do vizinho. Daquelas pretas de
rabo fogoso. Bastava o sinhozinho dela sair de viagem e os dois se
atracavam naquele fervor que só de falar já me dá calor. Ele queria,
assim como vosmecê disse, levar ela embora, fazer nova vida. Foi
quando a preta embuchou. E a barriga era por causa de quem?! Ninguém
sabe, porque num tinha homem da região que não tivesse deitado com
ela… Sabe o que ela fez? Difamou ele com o sinhozinho, disse que foi
tomada à força. O sinhozinho, que também gostava do rabo dela, foi
tirar satisfação… Mas ela se antecipou; matou o sujeito cravando
uma foice na testa dele! Com um rastelo pontiagudo, enganchou no
umbigo dele e rasgou toda a barriga do homem, até chegar na
garganta. Pensa que ficou satisfeita? Nada! Matou também o
sinhozinho. Embebedou ele de aguardente e enfiou o açoite goela
abaixo. E ainda tacou fogo, queimando as partes do homem todinhas
por dentro. Sabe o que aconteceu? A preta virou Sinhá, virou rainha
da região, botou no pau tudo que era branco.
(silêncio, todos parecem impressionados)
É verdade, aconteceu lá na Bahia.
54	
Após instantes de silêncio, um dos tropeiros solta uma forte
gargalhada. Em seguida praticamente todos os tropeiros se contagiam
pela risada - com exceção de Daniel e do Tropeiro 1.
TROPEIRO 2
(às gargalhadas)
Esse João é mentiroso como eu nunca vi igual. A preta virar Sinhá?!
Ocê devia era ser pescador pra contar umas história boa. Pelamor de
deus, fio, vai mentir assim lá em Ouro Preto.
TROPEIRO 1
(sério)
Ceis podem não acreditar, mas aconteceu… E eu não tô preocupado
se acreditam ou não. O que importa é o que eu tenho pra dizer presse
mulato, que ainda é menino, não sabe das coisas.
(virando-se para Daniel)
Não dá seu coração pra mulher preta não. São traidoras. Depois, não
vai dizer que eu não avisei.
Daniel se levanta nervoso. Coloca a mão na faca, hesita um pouco e
se retira.
Cena 63 – BANHEIRO DA CASA GRANDE / INT / NOITE
Dona Luzia toma banho de banheira. Pára de se ensaboar por alguns
instantes, como se tivesse escutado algo do lado de fora.
Cena 64 – QUARTO DE DONA LUZIA - CASA GRANDE / INT / NOITE
Fantina abre a porta do quarto da Sinhá, vindo da habitação anexa.
Ofegante, ela começa a arrumar as toalhas e lençóis em cima da cama
de Dona Luzia. Rosa vem atrás.
ROSA
(sussurrando)
Fantina, volta aqui!
FANTINA
(sussurrando)
Não quero esse tipo de prosa não, Rosa! Me deixa em paz!
Rosa se aproxima de Fantina e a puxa delicadamente, levando-a pelo
braço em direção ao quarto anexo.
55	
ROSA
Deixa de bobagem, mulher. Preste atenção, que eu ainda não acabei de
falar.
Cena 65 – CASA GRANDE - QUARTO ANEXO / INT / NOITE
As duas entram no quarto anexo - das mucamas.
ROSA
Cê não percebe que essa é a oportunidade de liberdade pra todos
nós!? Se a gente fizer o que esse Sinhôzinho quer, pode ser a
liberdade. Não só sua, mas de muita gente. Liberdade dentro da lei.
Ele é a favor da tal abolição.
FANTINA
Você num pode estar falando sério! (olhando firme nos olhos de
Rosa)Eu não acredito mais em lei não Rosa. Tô no meu limite. Lei
feita por branco é lei que só serve branco. Ocê é ingênua.
ROSA
Ingênua? Eu sou é esperta. Só que não tenho mais a sua idade nem sua
beleza. Se ele quisesse, eu me deitava. Aqui eles usam nosso corpo o
tempo todo, de tudo que é jeito. Seria só mais um jeito. Uma única
vez e pronto.
Fantina coloca as mãos nos ombros de Rosa, a conduzindo para se
sentar na cama.
FANTINA
(firme)
Rosa, ocê tá delirando. Senta aqui. Faz o que quiser com o seu
corpo, só não atrapalha o nosso trabalho. Comigo,
esse branco num tem nada.
Fantina sai e bate a porta com raiva.
Cena 66 – CASA GRANDE - QUARTO DE DONA LUZIA / INT / NOITE
Fantina, enérgica, volta a arrumar as toalhas e lençóis.
D. Luzia sai do banho, enrolada com toalhas e fica observando a
agitação de Fantina.
DONA LUZIA
O que foi Fantina, aconteceu alguma coisa? Eu ouvi barulhos..
56	
Fantina continua a arrumação com rapidez, sem olhar para Luzia.
FANTINA
Nada não Sinhá.
DONA LUZIA
Vosmecê está diferente, agitada. Pensa que eu não te noto, que não
te conheço? Vamos, diga que assunto lhe aflige... (espera uma reação
de Fantina, que continua arrumando) Olha Fantina, é por gostar muito
de você que não lhe ponho preço. Tome isso como mais um
privilégio...
Fantina pára o que está fazendo; fica quieta e cabisbaixa,
respirando mais fundo. Luzia se coloca diante dela, põe a mão
delicadamente no queixo de Fantina e o levanta um pouco, buscando
seus olhos.
DONA LUZIA
(firme e doce)
Vosmecê não precisa ficar o tempo todo de cabeça baixa. Há momentos
que é seu dever olhar para frente. E precisa aprender a responder,
quando lhe perguntam algo…
FANTINA
(tensa, entredentes)
Sim, Sinhá.
Fantina volta a baixar a cabeça, termina rapidamente de empilhar as
toalhas dobradas e vai saindo.
FANTINA
(saindo de cabeça baixa)
A senhora me desculpa, mas eu não estou atrás de privilégio nenhum.
DONA LUZIA
Ah, não? E carta de alforria é o quê?
FANTINA
Com sua licença Sinhá?
Dona Luzia não responde. Fantina, depois de aguardar por dois
segundos o consentimento, sai assim mesmo.
Cena 67 – CASA GRANDE / INT / NOITE
57	
Madrugada. Arredores da Casa Grande. Sons dos bichos noturnos.
Na Varanda da Casa Grande, Frederico – de pijamas – fuma um cigarro.
Apaga e caminha lentamente, de meias, pelo corredor. Abre a porta do
quarto, Dona Luzia dorme na cama. Pisando suavemente, ele passa pela
cama e abre a porta do QUARTO ANEXO, das mucamas. Observa as três
escravas que dormem em camas juntas.
Passa a mão nas pernas de todas e se demora mais na coxa de Fantina,
que está com o corpo duro e tenso, fingindo dormir. Subitamente, ela
se vira com força, fazendo ranger a cama. Frederico se assusta e
tira a mão.
Cena 68 – CASA GRANDE - QUARTO DE DONA LUZIA / INT / NOITE
D. Luzia está deitada de lado na cama, com os olhos abertos.
Frederico abre a porta do anexo das mucamas e entra no quarto.
Dona Luzia fecha os olhos.
Cena 69 – FAZENDA- CASA GRANDE / INT / DIA
Amanhece na Fazenda Ingaseiro.
Escravos passam com suas ferramentas de trabalho. Frederico, botas e
chapéu, sai com sua espingarda na mão. Quando passa pela sala, pára
em frente a Dona Luzia e olha sedutoramente no fundo dos seus olhos.
Passa a mão no rosto da esposa e beija-lhe os dois olhos.
Masculamente, desce as escadas da Casa Grande com a espingarda na
mão. Monta em seu cavalo e parte galopando.
Dona Luzia fica um tempo admirando Frederico partir. Levanta-se e
vai em direção ao seu quarto, chamando por Fantina.
DONA LUZIA
Fantina, venha já aqui!
Dona Luzia entra no quarto, deixando a porta aberta.
Instantes depois, Fantina e Rosa se aproximam e param ao lado da
porta do quarto. Rosa segura levemente na mão de Fantina que
retribui segurando firme, em sinal de amizade. Fantina faz um gesto
para Rosa se acalmar, como se dissesse: “deixa comigo”. Entra no
quarto da Sinhá. Rosa fica olhando Fantina entrar no quarto e fechar
a porta. Permanece olhando a porta fechada, apreensiva. Encosta a
58	
orelha na porta. SOM de vozes, incompreensível. Rosa sai para a
cozinha.
COZINHA
Rosa chega na cozinha. Lá estão Rita, varrendo e Josefa, quieta
fitando o vazio.
Cena 70 – CASA GRANDE - QUARTO DE LUZIA – INT / DIA
Dona Luzia está sentada numa poltrona ao lado da cama. Fantina está
de pé, cabisbaixa, com as mãos para trás. Luzia dá uma risada
nervosa.
DONA LUZIA
Vosmecê quer me fazer acreditar nisso? Que decepção Fantina, que
história mais estapafúrdia. Achas que uma criada negra como você
poderia suscitar interesse de benevolência em um homem branco? (ri,
nervosa) Nenhum homem branco e nem aquele mulato do Daniel seriam
capazes de te dar liberdade!
Fantina levanta a cabeça.
DONA LUZIA
Pensa que eu não sei de vocês dois? És muito ingênua menina. O
mulato está te enrolando também. Me diga, já se deitou com ele? É só
isso que ele quer Fantina. Depois te joga fora.
Fantina baixa a cabeça e fica respirando fundo e com as mãos tensas,
tentando se acalmar.
DONA LUZIA
Sabes quanto eu detesto alcoviteirices, não sabe? Estou farta disso!
Minha vontade era ensinar Zé de Deus a não cometer mais esse pecado.
Infelizmente, dele não posso tratar. Mas aqui dentro da minha
propriedade eu devo educar quem eu quiser, concorda?
Fantina segue cabisbaixa e ofegante, mãos pra trás e punhos
cerrados.
59	
Cena 71 – COZINHA-CASA GRANDE / INT / DIA
Josefa continua sentada, ao lado do fogão, fitando o vazio. Rita
está de pé, ao seu lado, descansando no apoio da vassoura. Rosa pica
legumes, freneticamente. Todas tomam um susto quando ouvem, ao
longe, a voz da Sinhá. Rita e Rosa entreolham-se apavoradas com o
grito de Dona Luzia.
DONA LUZIA - OFF
Felisberto!!! Alguém chame o Felisberto!!! Imediatamente!
FANTINA
(falando alto, quase gritando)
Mas a culpa é dele Sinhá! É dele!
DONA LUZIA
Saia já daqui!
Cena 72 - FAZENDA - PAIOL / INT / DIA
PAIOL DA FAZENDA: FELISBERTO - 32 anos, negro, sério e compenetrado,
vestido de chapéu, botas e roupas sujas de trabalho – amarra as
cordas que penduram Rosa, de ponta cabeça, em uma escada. Ao
terminar, o homem olha para trás onde está Dona Luzia, estática
junto à porta.
A Sinhá vira-se para um menino negro que a observa.
DONA LUZIA
Chame todos os que não estão em serviços indispensáveis. Quero todos
aqui. Quero principalmente a Fantina como testemunha.
Os olhos de Rosa, de ponta-cabeça, encaram os olhos de Luzia.
Instantes depois chegam Fantina e outros escravos.
Dona Luzia confere a chegada das testemunhas e faz um gesto com a
mão espalmada para Felisberto, que aplica cinco chibatadas e, em
seguida, olha mais uma vez para sua patroa. Dona Luzia faz novamente
o gesto de erguer o braço com a mão espalmada.
DONA LUZIA
Cinqüenta, Felisberto, cinqüenta!
Enquanto Felisberto profere cadenciada e mecanicamente as
chibatadas, vão chegando outros escravos, entre homens e mulheres, e
se posicionam atrás de Dona Luzia. A Sinhá confere a chegada deles
60	
fazendo sinal para que se aproximem mais, até que sete escravos
ocupam os fundos do Paiol, ao SOM das chibatadas e dos gemidos
crescentes de Rosa.
DONA LUZIA
(olhando para o lado de fora)
Fantina, aproxime-se! Trata-se de uma sessão educativa.
Dona Luzia se aproxima de Rosa e Felisberto. Quando o homem termina
mais uma série de cinco açoites, a Sinhá enverga o corpo para
posicionar seu rosto próximo ao de Rosa, de ponta cabeça.
DONA LUZIA
Que tal, senhora alcoviteira?
Rosa, mesmo debilitada, range os dentes e abre os olhos com
expressão de ódio. Dona Luzia começa a falar para Fantina, mas sem
virar o rosto. Segue olhando para Rosa e Felisberto, de costas para
Fantina e os outros escravos que olham, alguns nervosos, outros
congelados.
DONA LUZIA
Fantina, minha preferida, escute isso... E os demais também: Sabes
que, nos dias de hoje, somos muito mais complacentes. Demasiadamente
complacentes. Minha avó Antônia contou-me como resolvia os problemas
de ânimo da Senzala: Com muito mais firmeza que eu… Fui criada por
minha mãe com muito amor. Muito. Talvez, por isso, nós mulheres,
vamos ficando mais permissivas, de geração em geração.
Vó Antônia, certa vez, deu uma lição em uma preta rebelde. Eu era
menina, quase mocinha. Essa preta, de nome Madalena, tinha uma filha
recém nascida com nome diferente, um nome incomum para escravos,
parece até francês… Um bebê lindo.
Dona Luzia, pela primeira vez, se vira para olhar Fantina.
DONA LUZIA
Isso mexe com a sua memória ancestral?
Fantina arregala os olhos e fica ofegante. Não desgruda seus olhos
injetados em Luzia. A Sinhá continua falando, olhando também para os
outros escravos, enfileirados na horizontal.
DONA LUZIA
Como eu disse, isso é educação. Mas quem aprendeu não foi Madalena e
sim quem assistiu a aula. Os cativos ficaram pacíficos e tementes a
61	
Deus depois disso. Da escrava Madalena não sobrou uma parte do seu
couro escuro para contar a história. Minha avó dizia que o
aprendizado é algo que não se absorve pela fala, apenas pelo
exemplo. É a imagem que fica na retina, o que mais nos educa.
Os olhos arregalados de Fantina ficam olhando Luzia se virar e
continuar assistindo à sessão de chibatadas.
TELA PRETA
Cena 73 – FAZENDA INGASEIRO - ARREDORES / INT / DIA
Fantina caminha enérgica pelas dependências da fazenda até chegar na
marcenaria, ambiente pouco iluminado.
MARCENARIA
FANTINA
Pai Joaquim! Pai Joaquim!
Instantes depois, Pai Joaquim surge, saindo da sombra. Ele fica
olhando para ela, como que a medindo dos pés à cabeça.
PAI JOAQUIM
Quer o quê?
FANTINA
Com a sua licença, o senhor se lembra que falou do dia que a peste
ia vingar o nosso povo devagarinho, um por um, até acabar com toda
maldade do mundo? Pois, pode ter certeza Pai, vai começar. E a
mensageira da peste é mulher.
Pai Joaquim olha nos olhos injetados de Fantina por um tempo e se
vira de costas, sumindo na escuridão do galpão da marcenaria.
PAI JOAQUIM
(de costas)
Chegou nada, fia. Esse dia não é nós que determina. E não vai ser
sua dor que vai fazer coisa dessas. Do que eu disse, é da
dor de todos.
FANTINA
(com raiva)
Ei! O senhor não quer fazer serviço? Estou te oferecendo um
serviço!… Quanto o senhor quer? Tenho pedras valiosas.
62	
Instantes depois, Pai Joaquim surge novamente na frente de Fantina e
a encara. Os dois se olham demoradamente, como se comunicando em
silêncio. Pai Joaquim vai saindo da marcenaria e caminhando, trôpego
e com dificuldades. Fantina o segue, a passos firmes.
PAI JOAQUIM
Ocê é a filha da Madalena não é?.. Mulher guerreira.
Os dois seguem por uma trilha, no mato.
VOZ EM OFF - JOSEFA
O povo dizia que só o olhar desse velho já fazia cair o cabelo
e apodrecer as unhas. Isso eu não sei, o povo fala demais…
Pai Joaquim é caboclo tão sofrido quanto forte e sabido. Tá em
Ingaseiro desde o dia que Sinhô Silva trouxe ele, ainda moço.
Virou conselheiro do sinhozinho, inventava os remédios
com tudo que é mistura de planta. Num sei se esse diabo velho
tem essa magia que o povo fala, mas sei que poderia muito bem ser
doutor, porque entendia todas as medidas que faz remédio virar
veneno. Dizia que cada causo é um causo, que o veneno de um pode ser
o remédio do outro.
SUMÁRIO (cenas curtas):
Quarto: Frederico procura camisas no armário, escolhe uma e veste.
Jardim: Juca brinca com o cachorro. Pai Joaquim é visto ao longe,
adentrando a mata na frente da Casa Grande.
Marcenaria: Rosa está sentada na marcenaria, ainda cheia de
hematomas, pitando um cachimbo, derreada.
Jardim: Juca e o cachorro estão quietos, deitados na grama.
Pai Joaquim é visto voltando da mata, carregando um cesto com ervas.
Cozinha: mãos negras e velhas (enrugadas) maceram as ervas numa
tigela.
Sala: Mãos negras jovens (finas) decoram a mesa da sala de jantar da
Casa Grande, ajeitando travessas, copos e talheres.
Sala:Joaquina toca piano.
Sala: Dona Luzia lê um livro.
Mãos negras velhas separam o conteúdo da panela fumegante em dois
recipientes. Em um deles, salpica as ervas e mexe.
JOSEFA - OFF
63	
Quando era mais moço, Pai Joaquim dizia que ia acontecer uma
revolução, que a natureza ia invadir o homem, o preto ia virar
branco, o branco virar preto, o mundo ia se ajeitar de ponta cabeça
e só quem tinha dignidade ia sobrar. Muita gente ia sofrer e depois
ia ter paz... Mas, com o tempo, ele foi ficando mais diabo velho e
agora só fala em troca de presente. Quer mais é se proteger do frio,
tomar aguardente e pitar seu cachimbo, enquanto a morte não chega.
TELA PRETA
Cena 74 – FAZENDA INGASEIRO – ENTORNO DA CASA GRANDE / INT / DIA
Imagens do cotidiano dos trabalhadores escravos da Fazenda. Carro de
boi passa acompanhado de escravos, caminhando ao lado e carregando
feno. Pai Joaquim fuma cachimbo, sozinho na Marcenaria. Mulheres
escravas carregando cestos com roupas, passam de frente ao galpão
onde há um homem amarrado ao tronco vertical.
Cena 75 – CASA GRANDE – QUARTO DE DONA LUZIA / INT / DIA
D. Luzia, de camisola e touca, tosse bastante. Levanta-se da cama
cansada, com respiração pesada.
DONA LUZIA
(voz fraca)
Fantina!
Ao perceber que a voz está saindo fraca, busca na gaveta da
cabeceira um sino de bronze e o chacoalha soando um timbre forte.
Instantes depois, Fantina aparece na porta do quarto.
FANTINA
Pois não, Sinhá.
DONA LUZIA
Prepare um vestido escuro e diga ao Felisberto para aprontar o
coche. Essas porcarias de plantas já não adiantam.
FANTINA
E a senhora está em condições Sinhá?
DONA LUZIA
64	
O que vosmecê entende disso menina? Vou me consultar com Doutor
Jacques. É conhecido pela medicina pesada e pela precisão no
diagnóstico. Vou enlouquecer se não entender que bichos se apossaram
do meu corpo.
FANTINA
Com licença, vou chamá-lo.
DONA LUZIA
Também vou à Missa, falar com Deus. Sem Deus, não tem medicina que
resolva…
FANTINA
Amém.
DONA LUZIA
Vá Fantina, vá… Ah, não se esqueça de separar aqueles brincos negros
e o colar de prata. Coisa simples.
Imediatamente, Fantina coloca a mão na cintura onde está presa a
argola e sente que falta as chaves do estojo (Cena 1) que deveriam
estar atadas à argola.
FANTINA
Sim, Sinhá. Já vou.
Fantina se retira, tentando disfarçar o susto de não haver
encontrado as chaves.
Cena 76 – CASA GRANDE–QUARTO ANEXO / INT / DIA
No Quarto Anexo, os lençóis das três camas estão revirados, as
gavetas dos criados mudos estão abertas. Fantina está agachada,
vasculhando os cantos debaixo da cama. Seu desespero é crescente.
Frederico abre a porta devagarinho e fica observando. Assobia para
chamar a atenção de Fantina. De tão afoita, ela nem percebe,
continua vasculhando o quarto. Ele, então, entra de mansinho e se
posiciona atrás dela.
FREDERICO
(sussurrando)
Fantina… Ô, Fantina, pra quê tanto desespero?
Fantina se assusta e se afasta.
FANTINA
65	
As chaves da Sinhá! Cadê as chaves da Sinhá?
Frederico sorri e olha com desejo para o corpo de Fantina. Passa a
mão no bolso da calça, mostrando o relevo que tem o formato de uma
chave grande. Continua passando a mão na calça até chegar no relevo
do seu pinto.
FREDERICO
Você até que é bem rápida de raciocínio para uma negra… E que negra!
FANTINA
A Sinhá tá precisando das jóias! Devolva as chaves, Sinhô, por
favor…
Frederico vai se aproximando do rosto de Fantina e colocando a mão
em seu cabelo.
FREDERICO
Tá vendo, como eu posso ser um cavalheiro?! Te elogiar,
te tratar como uma dama. E ainda deixar você se casar com o seu
mulato?
FANTINA
(olhando para o bolso de Frederico)
O Sinhô me devolve ou eu conto para a Sinhá.
FREDERICO
Ei, eu estou do seu lado. Só quero o seu bem.
Por instantes, Fantina hesita em pegar as chaves, até que, de
súbito, dá o bote, mete a mão no bolso de Frederico e pega a chave.
No reflexo, ele também segura forte a mão de Fantina, apertando seu
pulso e empurrando a mão para se aproximar do seu pinto. Ela solta
chave. Ele tenta beijá-la. Fantina cospe nele. Ela se debate
fortemente e tenta empurrá-lo. Frederico a joga ao chão.
Fantina fica caída e ouve Frederico deixar o quarto e bater a porta.
Ainda no chão, ofegante e adrenalizada, Fantina abre os olhos e vê
que a chave foi deixada no chão, próxima a seu rosto.
Cena 77 – VARANDA - CASA GRANDE / INT / DIA
Na entrada da Casa Grande está estacionado um coche. Felisberto está
de pé ao lado do cavalo, aguardando seus senhores. Na Varanda, Dona
Luzia está toda arrumada, com vestido escuro. Abatida, olha para
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Roteiro "Fantina"

  • 1. FANTINA Livre-Adaptação Cinematográfica da Obra Literária homônima do abolicionista F.C. Duarte Badaró 1881 Roteiro de longa-metragem Por Eduardo Benaim e Celio Dutra 2018
  • 2. 2 Cena 1 – FAZENDA – CASA GRANDE / ARREDORES – INT / EXT / DIA ARREDORES DA CASA GRANDE: Vacas e bezerros pastando; cachorro brinca e bebe água na beira do rio; passarinhos voam entre o JARDIM DE ERVAS, que se mistura com o mato alto. Na VARANDA da CASA GRANDE, o ritmo bucólico da FAZENDA INGASEIRO é reproduzido nos gestos de FANTINA [negra, bela, tímida, 19 anos] que está de pé fazendo cafuné em D. LUZIA [branca, bonita, 40 anos, trajando vestido preto que a cobre até seu pescoço rígido. Tem temperamento enérgico e ansioso]. Sentada em uma cadeira espaçosa, a Sinhá inquieta lê o jornal e balbucia algum comentário incompreensível. No cabeçalho do jornal está escrito: JORNAL DO COMMÉRCIO. ANO XLII, junho de 1871. Ela deixa o periódico cair de lado no chão. Com as mãos tensas, tira do dedo um anel. Finalmente encosta na cadeira e relaxa, olhando o horizonte. DONA LUZIA Sabes o que significa ventre livre? FANTINA Sei não, Sinhá. D. Luzia sorri, Fantina volta a seu habilidoso cafuné. Dona Luzia vai reequilibrando a respiração. DONA LUZIA Não é para qualquer uma ter as minhas chaves, viste? Sabes que é minha mucama preferida… porque eres de confiança, não sabe? FANTINA Sei sim, Sinhá. Dona Luzia ergue a mão segurando o anel à frente do rosto de Fantina, que pára de lhe fazer cafuné. DONA LUZIA Então guarde isso… E não perca nunca esta chave. Fantina pede licença e se retira, entrando na casa grande. Passa por uma ampla sala e pelo corredor até o fundo, chegando ao quarto de Dona Luzia. O quarto, espaçoso, tem uma grande cama de casal ao centro, coberto com lençóis vistosos e um belo mosquiteiro bordado.
  • 3. 3 Fantina vai até o móvel de cabeceira, tira da gaveta um estojo de jóias, o coloca em frente e desamarra a chave que está presa a uma argola em sua roupa, guardando delicadamente o anel. VARANDA Dona Luzia está de pé, apoiada no parapeito da varanda, olhando o horizonte. Fantina chega, amarrando as chaves na argola da roupa. Luzia fala, ainda de costas, sem olhar para Fantina. D. LUZIA Se vosmecê pudesse, se casaria, Fantina? Instantes de silêncio. Luzia se vira, aproximando-se e contemplando o rosto de Fantina. DONA LUZIA Vou lhe contar algo que não é pouca coisa. (Ambas entreolham-se candidamente.) És a negra mais linda que eu já vi, em toda a minha vida. (Ambas sorriem.) Falo sério… Em toda a minha vida! Sabia disso? D. Luzia passa a mão no rosto de Fantina, que sorri tímida. FLASH FORWARD (para possível montagem paralela) Imagens (Seq. 89) de FANTINA entrando na casa da Fazenda, manca, com manchas e hematomas, esfolamento na pele e inchaços. Tem sobre o corpo apenas um mal amarrado pano imundo de terra e sangue. Ofegante e trêmula, ela se movimenta apoiando na parede, tentando ficar em pé, trançando as pernas. Entra no quarto de Dona Luzia, comprime os punhos, senta no chão e encara com olhos vivos a sua Sinhá. DONA LUZIA está deitada em sua cama, vestindo camisola e touca. Sua face está deformada pelo inchaço na garganta, manchas e feridas nas mãos e no rosto, olhos inchados com profundas olheiras. A Sinhá respira com dificuldade e lentamente abre as pálpebras cheias de pus; vai reunindo suas forças, respirando mais profundo e, com muito esforço, consegue levantar o tronco para sentar-se na cama. Trêmula, ela alcança um pote de sua cabeceira e o ergue gritando de raiva e de dor.
  • 4. 4 DONA LUZIA Fantina!!! TELA PRETA CARTELA: TÍTULO: FANTINA Cena 2 – RUAS DO RIO NOVO – CASA GRANDE / EXT / DIA Agitação popular na cidade. Famílias passeiam animadas pelas ruas e vielas, cavalos e charretes trotam no passeio. Uma negra bem arrumada está sentada na porta de um sobrado ao lado de duas meninas que lhe ajudam a bordar um estandarte com a imagem de um grande pássaro dourado de asas abertas e, sobre ele, escrito “Divino Espírito Santo” (e, menor, lavrado): “Conceição de Rio Novo saúda. Jun.1871”. Dois negros desprendem os grilhões que mantém outro negro dependurado em um pedaço de pau. Um capitão do mato os observa, coordenando a soltura. Passam dois homens montados a cavalo. Zé DE DEUS, português de 47 anos e FREDERICO, bonito, forte e simpático, 29 anos. Os dois estão descontraídos; observam a movimentação das ruas e cumprimentam alguns transeuntes, sorrindo e sinalizando com seus chapéus. Eles seguem numa pequena estrada vicinal. CENA 03 – ESTRADA VICINAL / EXT / DIA DANIEL - mulato forro, 23 anos, bonito e forte - sai de dentro do mato carregando uma trouxa volumosa. Avista ao longe, vindo em sua direção, os dois cavalos com Frederico e Zé de Deus. Daniel hesita, olha para os lados mas segue em frente, a passos lentos. Até que eles se encontram no meio da estrada. ZÉ DE DEUS Ora pois, se não é meu tropeiro Daniel! Vindo da onde, trazendo o quê? DANIEL
  • 5. 5 Boa tarde Seu Zé de Deus. Comprei umas ferramentas do Seu Louzada, levando pra casa mesmo, pra horta da Dona Josefa. ZÉ DE DEUS Tropeiro dos bons esses. Conheço desde menino, filho de branco. Daniel se estica para apertar a mão de Frederico em cima do cavalo. FREDERICO Boa tarde.. Ah, então é forro! (jocoso) Não deixa o velho ficar te chamando de “seu”, não. (dando risada) Fala pra ele “não sou tuas nega não português, ora pois!” Daniel sorri amarelo, pede licença e segue em frente. DANIEL Boa tarde senhores, com licença. Caminhando, na direção oposta, Daniel ainda ouve o resto da conversa dos dois. (diálogo em Fade) ZÉ DE DEUS - OFF Ora pá, o “meu” é modo dizer, tu não sabes? Poderia ser até sinal de afeto. Na sua terra não se diz isso, não? Esse é moço trabalhador, prezo por isso. FREDERICO – OFF Eu sei, eu sei Zé. Aqui vocês parecem sérios demais. Tô brincando, o rapaz me entendeu e levou com respeito. Daniel segue caminhando pela estrada, até avistar ao longe um casebre. CENA 04 – CASA DE JOSEFA/DANIEL – EXT - DIA Fantina chega na porta da casa de Daniel. O avista chegando ao longe. Faz um gesto discreto e entra. DENTRO DA CASA: Fantina entra no casebre escuro e logo vê Josefa (71 anos, gestos lentos e olhar paralisado no vazio) misturando uma panela no fogão. Vai direto abraçá-la delicadamente por trás, dando um beijo na bochecha e falando baixinho ao seu ouvido. TIA JOSEFA Deixa que eu faço isso Tia. Eles já estão aí? Josefa faz um carinho no braço de Fantina e aponta para trás, sem virar o rosto. Fantina se vira e olha para a sala escura. Vê, se
  • 6. 6 levantando do chão, três homens negros, um deles sem camisa e os outros com roupas sujas e rasgadas. Eles se aproximam timidamente. Fantina os cumprimenta com um aceno de cabeça. Vira-se para a panela e serve a sopa em cuias rústicas. Daniel chega, deixa a trouxa sobre uma mesa e dá um abraço apertado em Fantina. Cumprimenta com aperto de mão cada um dos homens. Um deles (Fujão 3) com olhar mais emotivo, o abraça forte. Daniel retribui, como que lhe passando energia. Fantina entrega as cuias com a sopa para eles. Daniel aponta para sua trouxa com ferramentas: DANIEL Tem uma pra cada um aí. Não sai logo que escurecer não, espera a madrugada. E abre caminho pequeno, deixa o mato rasteiro. FUJÃO 1 Pode deixar. Agradecido demais. FUJÃO 02 A senhora é que é a Fantina? FANTINA Sou senhora não moço. Fujão 2 tira um patuá do bolso e lhe entrega. FUJÃO 2 Toma. (Fantina hesita em pegar. Ele insiste) Não sou eu quem tô te dando não. É a Maria, mucama da Santa Bárbara. FANTINA A gente não faz isso por vintém não moço. FUJÃO 02 Ela disse que era amiga da Madalena. Sua mãe não é? JOSEFA Pega logo Fantina! Fantina pega, abre o patuá, vê algumas pedras variadas e faz um gesto de agradecimento afetuoso, com a mão no peito. Vai pra perto da Josefa, faz um carinho e coloca a mão da Josefa sobre as pedras. Sem olhá-las, Josefa passa a mão nas pedras, passa a mão no rosto de Fantina e sorri. JOSEFA (sussurrando)
  • 7. 7 Não tem que ter vergonha de retribuição não filha, vai ajuntando. Logo mais ocê já tem o suficiente pra pagar sua carta. Fantina sorri. DANIEL Encontrei Zé de Deus e um outro moço agorinha. O moço parece boa gente... FANTINA Ixi, lembrei, preciso voltar. Sinhá recebe visita hoje. (saindo) Licença, licença, boa sorte! DANIEL Uai, e eu nem recebo meu chamego? Fantina já está longe, acena e ri. JOSEFA Mulher forte é assim filho, não perde tempo com chamego fora de hora, vai se acostumando. Daniel sorri e os Fujões, comendo sopa, também sorriem. CENA 05 – CASA GRANDE / EXTERIOR / DIA Zé de Deus e Frederico chegam à FAZENDA INGASEIRO, desmontando de seus cavalos. Entregam as rédeas a dois escravos que os esperam na porta e sobem as escadas de acesso à Casa Grande. Na ampla sala da Casa Grande há uma pequena confraternização: Dona Luzia, com vestido bege claro, que lhe revela parte dos ombros, está sentada em um sofá conversando com um CASAL. Em uma poltrona próxima está TEIXEIRA, fazendeiro gordo de 45 anos, com um copo na mão. Ao fundo, JOAQUINA – 15 anos, linda e delicada como uma boneca de porcelana – toca piano. Quando chegam Zé de Deus e Frederico, Dona Luzia interrompe a conversa para saudá-los com alegria. Ao ouvir a voz da mãe, Joaquina pára de tocar o piano para ver quem chegou. DONA LUZIA Ora, ora… Se não é meu compadre Zé de Deus e seu cordial amigo bandeirante. Sejam bem vindos! Os dois se acercam e todos se cumprimentam. FREDERICO (Galante e sorridente, beijando a mão de Dona Luzia)
  • 8. 8 Frederico, ao seu dispor. A senhora me perdoe, mas sou modesto, não tenho vísceras suficientes para um bandeirante. DONA LUZIA É só um chiste que fazemos sobre o espírito dos paulistas. Tome como elogio. ZÉ DE DEUS Tens um senso de humor delicioso minha comadre. Frederico é um gajo competente e de confiança, vai fazer um serviço que deixaria o finado Silva muito orgulhoso de sua contratação. DONA LUZIA Assim eu gosto. Se está credenciado desta forma, posso esperar que meu Jardim de Ervas volte a servir à saúde de todos. (para Frederico) O senhor começa o serviço quando? FREDERICO Semana que vem, logo após a festa do Divino. Basta terminar uma contagem para Seu Zé de Deus e estou inteiramente ao seu dispor. Os convidados se sentam. Dona Luzia, ainda de pé, olha para os lados procurando alguém. Fantina surge apressada na porta que vem da cozinha, com uma bandeja na mão. Séria, Luzia encara Fantina que baixa a cabeça. A movimentação, mesmo que discreta, chama a atenção de todos e os homens se mostram admirados com a rara beleza da escrava, que adentra o salão com a bandeja. Teixeira, Zé de Deus e Frederico buscam o olhar de Fantina sem sucesso: ela mantém-se cabisbaixa, com as pálpebras quase fechadas, como se conseguisse desconectar-se do resto. ZÉ DE DEUS Vejo que a senhora já está vestindo cores claras! Me parece muito bom. Saudável, eu diria. DONA LUZIA Três anos é sofrimento suficiente, não acham?! Estou ansiosa para festejar Nosso Divino Espírito Santo, agradecer pela paz e harmonia de Ingaseiro. Prefiro orar para agradecer do que para pedir… E os senhores? ZÉ DE DEUS
  • 9. 9 Sem dúvidas! Não perco um festejo tradicional de minha terra por nada. A senhora sabe que a festa começou como uma promessa da Rainha de Aragão… Ao fundo, Joaquina volta a tocar o piano e Zé de Deus interrompe sua fala para admirá-la. Todos os presentes na sala contemplam a menina prodígio ao piano. FREDERICO (para Luzia) Sua filha? D. Luzia confirma com a cabeça e nota Teixeira olhando obsessivamente para a menina. Dona Luzia fala alto, retomando a atenção de todos! DONA LUZIA O compadre Zé de Deus estava contando algo interessante e foi interrompido. Prossiga, meu amigo. ZÉ DE DEUS Nem me lembro mais do tema, comadre. O encanto do piano é muito maior. (Entra VOZ EM OFF de Josefa enquanto segue a ação.) Frederico faz gesto de pedir licença à roda de conversa. Todos continuam conversando animadamente enquanto ele se aproxima de Joaquina ao piano. Olha para o canto da sala e vê JUCA (9 anos) encolhido entre as paredes, quase escondido. Próximo dele há uma viola encostada na mesa. Frederico acena para o menino, que não lhe retribui a cordialidade. O homem pega a viola, puxa a cadeira e senta-se ao lado de Joaquina, buscando acompanhar a melodia que ressoa do piano. Após algumas tentativas, viola e piano sincronizam no mesmo compasso. Frederico toca sorridente e relaxado enquanto Joaquina segue plácida, mas compenetrada para não errar. Sobre as imagens, a voz rouca de Josefa: JOSEFA - OFF (voz de preta velha) Vosmecê não se apercebeu… mas foi na semana de preparação das festividades que as coisas começaram a mudar. Tudo ia nos conformes no Ingaseiro, na paz de Oxossi. Essa Festa do Divino sempre tem sua
  • 10. 10 importância… E nesse ano, não foi diferente. Depois dela, Ingaseiro virou todo do avesso. Dona Luzia e os demais convidados se levantam e se aproximam para assistir à performance musical com encantamento. Todos, de pé, contemplam os músicos, com exceção de Teixeira, que permanece sentado e sério, de braços cruzados. Dona Luzia troca olhares com Frederico, que sorri para Joaquina (a menina retribui com meiguice mas sem trocar olhares). JOSEFA - OFF Esse sinhôzinho Frederico, quem trouxe foi o português Zé de Deus, que de Deus num tem nada. O moço veio lá de um povoado chamado Sorocaba. Vem de muito longe. Parece que lá falam mais de liberdade do que aqui. Fantina se afasta do grupo, silenciosamente, e se dirige à varanda, colocando-se ao canto. VARANDA Dois homens negros observam a Casa Grande desde a mata. Fantina gesticula para eles passarem. Eles passam e ela entra novamente na casa. Frederico a observa entrar, com o canto do olho. Ela percebe que foi observada. CENA 6 – MATA / EXT / ENTARDECER-NOITE Três homens negros (Fujão 1, Fujão 2 e Fujão 3, da seqüência 4) caminham enérgicos pela mata, abrindo caminho com seus facões. Um deles pára assustado, como se ouvindo algo. Interpela os outros com os braços. Os três param e ficam imóveis e ofegantes por alguns segundos. Até que surge da mata um quarto homem negro (Fujão 4) com uma espingarda na mão. Ergue a arma e a engatilha, sorrindo e apontando para o alto. Os outros três sorriem e, como numa descarga energética, se soltam em largas risadas. O riso do Fujão 2 vira um choro de alegria. Ele se ajoelha e é abraçado pelo Fujão 4. Cena 7 – RUAS DO RIO NOVO / EXT-INT / DIA
  • 11. 11 Nas ruas de paralelepípedo da cidade de Rio Novo, diversas pessoas - casais e famílias, todos bem arrumados com roupas domingueiras – seguem o PADRE em direção à Igreja. Tambores ditam o ritmo da procissão. Um coroinha indígena carrega o estandarte ao lado do padre. Logo atrás, Dona Luzia e suas mucamas. Atrás delas, todos os outros. Zé de Deus e Frederico vem ao final. Um homem negro (escravo fujão) observa, ao longe, a movimentação da cidade. Mesmo com grande distância, Fantina replica o olhar em cumplicidade. Cena 8 – IGREJA / INT / DIA Igreja lotada com pessoas da sociedade de Ingaseiro. Alguns negros – escravos – acompanham seus senhores e param ao fundo da igreja enquanto os senhores seguem aos bancos frontais ao altar. O espaço está repleto de ornamentos decorativos da Festa do Divino. Dona Luzia segue para a primeira fila (onde só há brancos) acompanhada de suas três mucamas: Fantina, ROSA e RITA. Alguns brancos ficam olhando, como que repreendendo a presença de negros à frente. Dona Luzia encara as pessoas e sorri, altiva. As quatro mulheres (Senhora e suas três escravas) se sentam posicionando-se para orar. Zé de Deus e Frederico estão nas fileiras de trás. De pé, ao fundo, vários escravos. O português busca Dona Luzia com o olhar. Frederico parece relaxado e disperso, olhando para os lados e cumprimentando outras pessoas com sorrisos e acenos de cabeça. O padre reza a missa solenemente: PADRE Gaudens gaudebo in Domino. Alegrando-me, alegrar-me-ei no Senhor. A causa dessa imensa alegria espiritual é múltipla. Nossa Senhora, concebida sem pecado, é a Estrela da manhã, nos diz a Ladainha da Santíssima Virgem. A estrela da manhã é a mensageira infalível da aurora, da vinda do sol que indica o fim da noite. Quando a estrela da manhã se levanta no horizonte e sua luz brilha, já sabemos que o dia se aproxima. É pelo ventre puro de Maria Imaculada que chega a claridade que cura nossos corações pecadores.
  • 12. 12 É por este áureo ventre divino que a alegria se faz na terra e podemos nos libertar dos pecados deste mundo. Ventri liberi, liberi ventri. Cena 9 – IGREJA / INT / DIA PROJEÇÃO ONÍRICA: Fantina está orando de olhos cerrados enquanto ouve a voz do padre falando em latim repetidamente, como um mantra. Ao seu lado, Dona Luzia reza de olhos fechados e punhos cerrados. As duas mulheres, senhora e mucama, estão curvadas e de cabeças baixas, em posições corporais muito parecidas. Revela-se o amplo espaço da Igreja onde só estão as duas ajoelhadas no genuflexório. Todos os outros bancos estão vazios. O altar também vazio, sem padre. No entanto, sua voz é ouvida repetidamente. PADRE - OFF Vivat Spiritus Sancti, Vivat Spiritus Sancti. Gaudens gaudebo in Domino. Ventri liberi, liberi ventri. Vivat Spiritus Sancti, Vivat Spiritus Sancti. Gaudens gaudebo in Domino. Ventri liberi, liberi ventri. Vivat Spiritus Sancti, Vivat Spiritus Sancti. Gaudens gaudebo in Domino. Ventri liberi, liberi ventri. Vivat Spiritus Sancti, Vivat Spiritus Sancti… Cena 10 – PRAÇA CENTRAL DE RIO VERDE / EXT / NOITE Frederico está de frente à uma barraca na praça de Rio Verde. Uma mulher negra o serve de cachaça. Há outros homens em volta, todos bebendo e sorridentes. A praça está repleta de homens e algumas mulheres. O clima é de festejo e confraternização. Além da barraca onde está Frederico, há outras que servem bebidas e comidas. A praça está decorada com bandeirolas, adereços diversos e alguns estandartes da “Festa do Divino Espírito Santo” (mesmo bordado da Cena 3). Sorridente, Frederico se senta em um banco com uma viola na mão. Começa a tirar alguns acordes. Dois violeiros se juntam a ele. Outras pessoas se aproximam e formam uma roda para ouví-los. FADE Cena 11 – CAMINHO VICINAL DA FAZENDA DE INGASEIRO / EXT / DIA
  • 13. 13 AMANHECER. Na estrada vicinal, de altitude mais elevada em relação à FAZENDA INGASEIRO (que está situada num vale), Frederico cavalga se aproximando da propriedade. Ele veste roupas muito mais limpas e botas mais lustradas. Frederico puxa as rédeas e desce do cavalo. Desamarra da sela uma maleta preta e toma um gole d’água do cantil. Enxuga o suor da testa e se encosta na anca do animal para contemplar Ingaseiro em sua amplitude. Pela primeira vez, a Fazenda é vista em sua vasta dimensão: a Casa Grande na área central e o entorno com os armazéns e outras pequenas edificações, a granja, o curral dos porcos e os pastos com gado. Frederico é observado por um homem negro, desde a mata. Frederico se vira, como se houvesse percebido que está sendo observado. Mas nada vê. Monta no cavalo e, segurando sua maleta, toca o animal em direção à Fazenda. Cena 12 – PLANTAÇÃO DE ERVAS / EXT / DIA Frederico está de pé, segurando sua maleta de couro e contemplando o Jardim de Ervas, em estado bem deteriorado, com mato alto (como na seqüência 1). Ele observa o lugar, como se pensando no que fazer. De mansinho, chega ADÃO, negro forte, 20 anos, segurando um facão e uma capanga de ferramentas. ADÃO Licença, sinhô… Frederico toma um susto, mas rapidamente se recompõe. FREDERICO Boa tarde… ADÃO Venho a mando de Dona Luzia, pra ajudar o Sinhô no que precisar. Frederico fica pensativo, olhando ao redor. ADÃO Já já ela tá vindo, mais a sinhazinha Joaquina. FREDERICO (se apurando) Ah, é?! Tá certo, pode começar… cortando esse mato.
  • 14. 14 Adão pausa o olhar em Frederico por um instante (olhar indiferente emocionalmente). Ele coloca a capanga no chão e começa a cortar o mato com o facão. Frederico arregaça as mangas, se recosta numa árvore e toma um gole de água. Adão enxuga o suor da testa. Cena 13 - CASA GRANDE (QUARTO DE HÓSPEDES) / INT / DIA Amanhecer na Fazenda. Bois e bezerros no pasto. Escravos ordenham vaca, carregam baldes de leite e organizam o gado, dentre outros afazeres cotidianos. Fantina percorre o corredor da Casa Grande segurando uma bandeja de prata, equilibrando jarra e copo com água. Ela desce as escadas do fundo e se dirige a um aposento externo (espécie de edícula) Logo atrás vem ROSA – negra, 42 anos, levemente manca – que coloca a mão no ombro de Fantina e sussurra em seu ouvido. ROSA Dona Luzia mudou de idéia, Fantina. Sinhá disse que sou eu quem vou pajear o forasteiro. Fantina se vira e entrega a bandeja a Rosa, sorrindo. FANTINA Todo seu. ROSA (sorrindo, amigável) Se lambuza toda por ser a preferida né Fantina? FANTINA Quê isso Rosa, estamos juntas, não esquece. Segue firme que vamos libertar tudo. Fantina se despede, amigável. As duas trocam sorrisos. Rosa entra na edícula. CENA 14 – EDÍCULA – INT - DIA No quarto de Frederico: Ele ainda está deitado de ceroulas. Rosa coloca a bandeja sobre a mesa de cabeceira e abre a janela. Ainda despertando, o homem fica olhando pra Rosa de costas. Ela olha de canto e sorri.
  • 15. 15 Cena 15 - CASA GRANDE–SALA-VARANDA / INT-EXT / DIA Frederico, vestindo trajes de trabalho (camisa, calça, bota, chapéu, coldre) segura uma espingarda enquanto passa pela sala da Casa Grande e chega até a varanda. Enverga-se para, demoradamente, beijar as mãos de Joaquina e de Dona Luzia que estão sentadas tomando chá. Fantina está ao lado de Dona Luzia. Juca, também vestido de camisa, botas e chapéu, tem o olhar vago para a mata. Frederico faz um gesto para chamá-lo. Juca não responde. Frederico acena novamente, agora estalando os dedos na frente do rosto do garoto que, então, se levanta para seguir o homem. Os dois descem as escadas da Casa Grande, observados por Dona Luzia, Joaquina e Fantina. Juca chama seu cachorro (REI) que chega animado para segui-los. Homem, menino e cão caminham mata adentro. JOSEFA - OFF Com esse servicinho no Jardim de Ervas, o moço foi virando hóspede de Ingaseiro… Ganhou a confiança da Sinhá e logo já estava ensinando o Juca a caçar. E ocê ainda iludida não é? Cena 16 – MATA / EXT / DIA Frederico empunha a espingarda, engatilha a arma e mira algo. Juca e o cachorro caminham pela mata interagindo animadamente um com o outro. Passam pela mira da espingarda de Frederico. Frederico respira fundo e atira, mirando uma grande árvore frondosa. Com o tiro, um macaquinho cai de um galho alto. Frederico sorri satisfeito e quando vira-se para olhar Juca, vê o menino rolando no chão com o cachorro. FREDERICO Ei, garoto, vamos continuar a caçada? Juca pára de brincar com o cachorro e se levanta, como se reagindo ao chamado do homem. Mas fica mirando reto no horizonte, não encara o rosto de Frederico.
  • 16. 16 O homem se agacha para ficar na mesma estatura e busca encarar o menino, que segue com o olhar vago, como se fosse cego. Frederico passa a mão na cabeça dele, carinhosamente. Logo após, se levanta. FREDERICO Vamos embora; continuar. Os dois seguem caminhando pela mata, à procura de caça, acompanhados pelo cachorro. Frederico tenta passar a mão na cabeça do menino mas este desvia; parece só ter atenção para o seu cão. Homem, menino e cachorro caminham mata adentro. Cena 17 – INGASEIRO-CASA GRANDE / INT / DIA Na Varanda, estão Dona Luzia e Joaquina - sentada em postura ereta, quieta e observadora. Fantina está a postos, de pé junto à porta. As três observam Frederico e Juca se aproximando com o cachorro. Frederico chega cumprimentando e demonstrando animação: FREDERICO Linda tarde. Eu e Juca estávamos admirando a beleza de uma fazenda comandada por mulheres, não é verdade pequeno? Juca fica indiferente, olhando o horizonte. Dona Luzia olha rapidamente para Fantina e Joaquina. Logo em seguida reage: DONA LUZIA Mulheres? Frederico se recompõe. FREDERICO Disse mulheres? Quis dizer por uma mulher forte como a senhora Dona Luzia. É uma situação excepcional que faz de Ingaseiro um lugar ainda mais especial. DONA LUZIA Sim, esse mundo só tem futuro se amparado por mulheres. Já estamos nos preparando para o fim do século, estamos entrando na Era de Nossa Senhora! Podemos ser tão firmes quanto um homem e ainda somos mais humanistas. Conduziremos o mundo com amor no coração. FREDERICO Sem dúvida, eres uma dama à frente de seu tempo. DONA LUZIA
  • 17. 17 Mas me diga, como foi a caçada? FREDERICO Simplesmente espetacular! O menino é novo, mas muito vivo, é possível pressentir que será um excelente caçador. (fazendo graça para Luzia) A Sinhá pode mandar a senzala preparar a caldeirada… se depender desse garoto, vai ter muita caça para Ingaseiro se fartar. DONA LUZIA Não gosto de comer caça, me dá náuseas. No fundo, acho que tenho certa piedade dessas criaturas. Nasceram para desfrutar a vida selvagem. Daí surge um ser humano e, pum… em um segundo, acaba com a existência dos pobres... bichos Dona Luzia pára e olha o garoto que continua alheio, de costas, sentado na escada. Fala para Frederico e divide o olhar entre os dois: DONA LUZIA Muito obrigado, Frederico. O Senhor é muito gentil. FREDERICO Eu fico é lisonjeado de poder lhe servir em variadas formas. Gentileza, para uma dama tão nobre quanto a senhora, é algo que brota naturalmente. DONA LUZIA Joaquina vai tocar piano para retribuir a gentileza de nosso convidado não é, minha filha? A menina sorri amarelo e obedece, se dirigindo à sala. Frederico segue em direção à sala. DONA LUZIA (virando-se para Fantina) Fantina, está dispensada. Pode descansar, passear. Volte antes do sol se pôr… Fantina esboça um sorriso. Frederico olha por instantes para Fantina, que baixa a cabeça ao ser mirada e se retira, lentamente. FANTINA Sim, Sinhá. Agradecida. Joaquina toca piano e todos assistem enquanto Fantina se retira com discreto sorriso.
  • 18. 18 Cena 18 – FAZENDA INGASEIRO – BEIRA-RIO - MATA / EXT / DIA Na Beira do Rio, nas proximidades da Casa Grande, encontram-se Fantina e Daniel. Os dois estão sentados com os pés na água. Acariciam-se as mãos, e trocam olhares sem sensualidade. Ao lado de Daniel repousa uma viola. DANIEL Não vou esperar essa lei não minha nega. Tô juntando vintém, vosmecê vai ver, vou te desacorrentar. Vai ser sinhá… vamos viver longe daqui. FANTINA Uai, tá doido homem, quero ser sinhá não, Daniel. Quero é ser passarinho sem medo de chicote e ir libertando nosso povo, um por um. Ocê tá certo, não temos que esperar nada. Mas ainda acredito na lei. DANIEL E o branco forasteiro? FANTINA A Rosa disse que ele é a favor da lei. DANIEL Óia Fantina, não quero ocê dando confiança nisso não. FANTINA E eu dou confiança pra homem branco?! E não porque ocê quer ou deixa de querer. Já ouvi muita história. Eu tô esperta. Fantina sorri e deita na grama, olhando o céu. FANTINA O Adão falou que fugiram da Santa Bárbara cinco de uma só vez. E disse que foi graças a nossa ajuda. Daniel contempla o corpo dela e se aproxima, passa os dedos pelas cordas da viola, antes de tocar os quadris de Fantina, que acompanha o movimento, sorridente. Fantina começa a rir. FANTINA (sorrindo, charmosa) Preciso ir neguinho
  • 19. 19 Cena 19 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / DIA Um senhor, PAI JOAQUIM – negro, caolho de 73 anos e nítida fraqueza no corpo, trabalha lentamente na marcenaria da Fazenda; o velho aparenta muita dificuldade para bater um prego. Numa trilha, escravos jovens carregam sacos de grãos e passam pelo galpão, onde na frente há um negro amarrado a um tronco vertical. VARANDA da Casa Grande: Dona Luzia toma chá e joga damas com Frederico. Trocam olhares sorridentes. Ao fundo, as mucamas Fantina, Rosa e Rita costuram um grande lençol. Entreolham-se e tentam disfarçar suas risadinhas. Fantina e Rita mantém a cumplicidade, falseando as risadinhas. DONA LUZIA Rosa e Rita, podem terminar esse pano lá dentro... E deixem de molho para ser lavado. As três mucamas se levantam tensas e começam a dobrar o lençol para melhor carregá-lo. DONA LUZIA Eu disse só Rosa e Rita. Fantina fica aqui. Rosa e Rita saem apressadas, carregando o lençol. Fantina se levanta e se coloca ao lado de Dona Luzia. Frederico e Dona Luzia continuam o jogo de dama e a troca de olhares sensualizados. Fantina observa-os por um instante e depois levanta o pescoço, buscando olhar o horizonte e a mata à frente da casa. Olha o mato se mexer sem ajuda do vento. Cena 20 – FAZENDA INGASEIRO - CASA GRANDE / INT / NOITE PROJEÇÃO ONÍRICA de Fantina: Cena começa realista e torna-se progressivamente hiper-realista. Sala da Casa Grande: Fantina, de camisola, caminha lentamente em direção ao belo e imponente piano. Com gestos de dama, senta-se
  • 20. 20 delicadamente no banco, abre a tampa e começa a dedilhar as teclas do instrumento com suavidade, encontrando as notas musicais. FUNDO NEGRO: Fantina está ao piano mas agora o cenário não é mais a sala mas um FUNDO PRETO. Progressivamente as notas vão compondo a melodia de uma FUGATTA, cada vez mais intensa. No fundo (antes preto) são projetadas imagens de negros e negras jovens correndo livres, alguns abrindo os braços. Quanto mais a fugatta se torna mais frenética no piano, mais o sorriso de Fantina se alarga. Cena 21 – ARREDORES DA FAZENDA / INT / DIA ENTARDECER: Fantina atravessa um pequeno caminho entre plantas. Segue em direção à Casa de Daniel, vista ao longe. No meio do caminho vê um negro escondido no mato com um facão na mão. Ela toma um susto. O negro (QUILOMBOLA 1) a encara, faca em punho. Ela hesita, olha para ambos os lados. DANIEL – OFF (sussurrando, por trás) É quilombola do Negro Ambrósio, veio falar com nós. Melhor na proteção da mata, vamos. Daniel põe a mão no ombro de Fantina. O negro vira as costas e some na mata. Daniel dá a mão a Fantina e os dois se embrenham entre as plantas, atrás do homem. Daniel, gracioso, rouba um beijo de Fantina. Ela, brincando, lhe dá um tapa na cabeça. Seguem abrindo caminho nas folhagens com as mãos NO MEIO DA MATA Daniel, Fantina e Quilombola 1 estão sentados no chão. QUILOMBOLA 1 Matar ele pra prevenir. DANIEL (tentando disfarçar o susto) Não.. Não carece não. Parece que é boa pessoa e é a favor da lei, não é Fantina? FANTINA
  • 21. 21 Até agora não causou problema. Mas não é bobo não, fica com os olhos de butuca. Não boto mão no fogo por homem nenhum. DANIEL Homem branco ocê quer dizer, né Fantina? FANTINA Homem. Foi o que Mãe Madalena me ensinou. Daniel faz cara de contrariado e, emburrado, se afasta. Quilombola 1 dá risada. Fantina ri também. FANTINA Tá bom meu nego, tô de zombaria com ocê. QUILOMBOLA 1 Ocês resolve isso depois. Nós quer saber do plano de invadir Ingaseiro. Quanto menos homem branco tiver na Casa Grande, melhor. Fantina se levanta, altiva. FANTINA Aqui não é lugar pra ser invadido não! Daniel faz sinal pra Fantina sentar. Ela persiste firme, ereta. Quilombola 1 se levanta devagar e encara Fantina. Daniel olha para os lados, tenso. QUILOMBOLA 1 Óia Fantina. O povo de Ambrósio é muito agradecido pela ajuda docêis. Mas é o momento da luta ganhar força, do sangue correr, aproveitar que quem tá na frente da fazenda é sinhá e não sinhô. Daniel se coloca ao lado de Fantina. FANTINA Se tiver invasão não tem colaboração. Capaz de ocês não conseguirem vencer a resistência. E depois disso, Ingaseiro não vai mais servir como passagem. Quanto menos sangue correr, melhor a luta. Daniel tenta disfarçar, mas não contém um sorriso orgulhoso. 21-B – FACHADA DA CASA GRANDE / EXT / NOITE A calmaria da noite em Ingaseiro. SOM dos bichos noturnos. Cena 22 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / NOITE
  • 22. 22 QUARTO MUCAMAS: Fantina dorme com outras duas escravas, em camas próximas. Ela se mexe na cama, como se mobilizada por um sonho erótico. Fantina acorda de súbito e se recompõe aos poucos. Lentamente se levanta. Abre a janela devagar, cuidando para não despertar as outras escravas. Senta-se na beira da cama e tira debaixo do colchão um pano enrolado. Desenrola e tira um bordado e uma agulha. CORREDOR Frederico está de pé, junto à porta do quarto de hóspedes. Olha para outras duas portas do extenso corredor. Caminha até uma delas e pára na frente. Coloca a mão na maçaneta, mas desiste e retorna ao quarto. Dentro deste aposento, D. Luzia dorme em sua cama espaçosa. QUARTO DE LUZIA No quarto bem equipado em que Sinhá dorme profundo, há uma porta que dá para um anexo. Este outro ambiente contíguo, é o Quarto das Mucamas. QUARTO DAS MUCAMAS Fantina está bordando. Pára, deixa o bordado na cama e abre totalmente a janela. Com o barulho, Rosa se mexe. Fantina fica ouvindo os sons da madrugada e sentindo a brisa no rosto. Respira fundo e mira com olhos vivos a paisagem que começa a alvorecer. Cena 23 – FAZENDA INGASEIRO - CASA GRANDE / INT-EXT / DIA Amanhecer na Fazenda Ingaseiro. Cenas do cotidiano: Escravos trabalham na lida; quatro jovens escravos caminham carregando sacos de feno e acompanhando o carro de boi com a caçamba lotada de palha seca. Eles passam de frente a um galpão onde está um homem negro ensangüentado, amarrado ao tronco vertical. Na CASA GRANDE: Rosa caminha segurando uma bandeja. Fantina caminha ao lado. As suas cochicham, de bom humor ROSA Não tô falando que vai virar Sinhô? Já tá aqui dentro! FANTINA
  • 23. 23 Ocê não dá corda pro homem hein Rosa. Pela Sinhá, pela nossa luta, pela nossa paz. Precisando de alguma coisa, fala. ROSA Pode deixar comigo Fantina. Fantina segue para cozinha e Rosa pára diante de um quarto, agora dentro da casa. QUARTO DE HÓSPEDES Frederico dorme sem camisa e de ceroulas no quarto de hóspedes da Fazenda, agora mais amplo e equipado com móveis de qualidade. SOM de duas batidas na porta. Frederico vai abrindo os olhos devagar. Rosa entra com uma bandeja, colocando-a sobre a mesa de cabeceira. Abre cortina e janela. Frederico acorda. FREDERICO (acordando, irônico e bem humorado) Ora, ora, Tia Rosa me tirando da cama. ROSA Bom dia, Seu Frederico. FREDERICO Por quê acha que foste a escolhida para me servir, Rosa? ROSA Sei não, senhor. Só sei que Sinhá mandou avisar que é para o senhor se apurar que ela já toma o café e te espera. Vão três mulatas acompanhar o passeio… O senhor bem que podia falar pra Dona Luzia me chamar na próxima. Frederico se levanta, abre a gaveta, tira uma moeda e entrega na mão de Rosa. FREDERICO Fique tranquila, sua vida ainda pode melhorar, acredite. Cena 24 – FAZENDA- JARDIM DE ERVAS – EXT / DIA Frederico, sorridente e orgulhoso - de chapéu e botas - caminha ao lado de Dona Luzia – altiva e segura, trajando um vestido de cor clara e empunhando uma sombrinha - em meio à plantação de ervas. O Jardim está todo ornado com pequenas cercas brancas e o mato aparado (um cenário bem mais bonito do que apresentado nas cenas 01
  • 24. 24 e 12). Ele aponta as cercas novas como se fossem obras de arte. Atrás deles, seguem as três jovens negras. FREDERICO Agora, sim, a plantação está mais em conformidade com sua beleza! DONA LUZIA Vejo que fizeste um bom trabalho… FREDERICO Foi uma grande honra para mim servir a senhora. És quem enche os meus olhos… Os dois caminham, acompanhados das três escravas adolescentes. (Instantes de silêncio.) Cena 25 - FAZENDA- ARREDORES / INT / DIA Fantina sai da Casa Grande e caminha pela estrada vicinal como quem procura algo. Daniel sai do meio do mato e dá um susto bem-humorado nela, que imediatamente reage, empurrando e dando tapas sequenciais. DANIEL (de bom humor, se protegendo dos tapas) Minha negra, eu não sabia que eras tão forte assim! (rindo) Pelo amor de deus, me perdoa! FANTINA Eu não sou sua! E você nunca mais me dá um susto desses. Os dois vão transmutando a adrenalina do susto e dos tapas em energia sexual. Vão se abraçando, se apalpando. DANIEL Infelizmente… FANTINA É, infelizmente… Daniel a puxa para dentro do mato, mas Fantina resiste. FANTINA Não me tenta assim. Os dois se envolvem em beijos e ficam entre a tensão de serem vistos e o tesão de seus corpos. Ambos se entregam ao amor.
  • 25. 25 Cena 26 - FAZENDA- JARDIM DE ERVAS / EXT / DIA Frederico e Dona Luzia observam as plantas do jardim. As três escravas adolescentes brincam, ao fundo. FREDERICO Fiquei muito curioso: todas essas plantas têm serventia para a saúde? DONA LUZIA Na natureza tudo tem. Do ser humano à mais ínfima das sementes. Absolutamente tudo tem alguma utilidade, para quem tem olhos atentos. FREDERICO (fazendo graça) Quanto ao ser humano, eu tenho minhas dúvidas. Muitas pessoas me parecem de total inutilidade. Dona Luzia para de caminhar e observa as escravas que ficaram logo atrás, cheirando as ervas, colhendo sementes e brincando entre risadas discretas e beliscões. DONA LUZIA (batendo palmas) Meninas! Queridas! Não viemos por lazer. Vamos organizar isso: Margarida, venha aqui. Vais na nossa frente, para se certificar se não tem bicho que nos ameace. Ana e Benedita, quero que aproveitem a caminhada para colher frutas para a Casa Grande. (para Frederico) Onde estávamos? FREDERICO A senhora me contava da serventia das ervas. DONA LUZIA Claro, aprendi muitos saberes com meu estimado falecido. Foi primeiro com a botica que meu marido fez sua fortuna. Só depois veio a Fazenda. FREDERICO Muito interessante. Dona Luzia, orgulhosa, chama mais uma vez as escravas. Enquanto caminha, profere uma aula sobre suas ervas (como um guia turístico que aponta monumentos históricos).
  • 26. 26 Frederico apenas acompanha, fazendo questão de mostrar-se admirado. Chegam perto de uma árvore de médio porte. Frederico cheira suas folhas. DONA LUZIA Esta é a bucuíba, boa para o tratamento de feridas e úlceras. Aquela ali de ramos rasteiros é boa para infusões peitorais… Este aqui é o imbirú, tem raízes tuberosas, pode ser empregada em banhos nas dores reumáticas… FREDERICO Impressionante. Os dois seguem caminhando. Entre uma explicação e outra, Dona Luzia busca as três escravas adolescentes com o olhar. Dona Luzia colhe uma fruta seca e um pedaço do galho. Agacha-se delicadamente e raspa a casca do galho numa pedra no chão. Junta o farelo da raspagem na palma da mão e mostra a Frederico. DONA LUZIA Sassafraz. Meu remédio para o estômago. FREDERICO Gostaria de ouvir a senhora falar mais sobre seus experimentos com as ervas. Enquanto continuam a caminhada com as escravas cada vez mais tensas e carregadas de frutas. DONA LUZIA (orgulhosa) Com prazer. Cena 27 – FAZENDA- JARDIM DE ERVAS / EXT / DIA FLASHBACK Na Senzala escura, dois negros estão deitados sobre palhas finas, suando muito e se contorcendo de dor. Dona Luzia entra na senzala acompanhada de duas mucamas (Fantina e Rosa) que carregam suas cestas. Toda vestida de preto, a Sinhá se aproxima lentamente dos escravos enfermos segurando um pano sobre sua boca e nariz. Agacha- se junto aos escravos doentes e com uma mão (enquanto a outra segura o pano no rosto) começa a apalpá-los, analisando as feridas do corpo
  • 27. 27 e a musculatura flácida. Com a ajuda do polegar e indicador, analisa com curiosidade os olhos vermelhos e assustados dos dois escravos. Com a proteção de um outro pano, enfia o dedo na boca deles e analisa suas gengivas esbranquiçadas. Os escravos estão quase desfalecidos. Ela estende a mão para que Rosa entregue uma jarra cheia de sangue. Fantina fica ao lado, suportando o corpo do homem e segurando a boca dele aberta. Dona Luzia despeja o sangue na boca dele, que engasga e tosse. Pacientemente, ela espera que ele se recomponha minimamente para voltar a entornar o sangue viscoso na boca do escravo. Cena 28 - FAZENDA- ARREDORES / INT / DIA Fantina e Daniel estão deitados na relva. DANIEL Eu já lhe disse que mato e morro por ti, não disse, Fantina? Pois, isso é cada vez mais sério. Não duvide. FANTINA Pare de falar besteira. Vamos sobreviver. Melhor, vamos vencer… Fantina se levanta. Daniel a observa. DANIEL Eu te amo. Fantina sorri. Daniel se levanta rapidamente. O casal se abraça. FANTINA A tardinha vai passar o Damião com mais dois da Santa Bárbara. Ocê distrai o Felisberto aí que eu dou um jeito dos sinhozinhos não sair pra varanda. DANIEL (mexendo no bolso) Espera… tenho a carta do Zé de Deus. Pra entregar pra Sinhá. Talvez, isso ajude a gente. FANTINA Nada que vem desse português cheira bem. DANIEL Melhor levar. Daniel retira a carta de seu bolso e a entrega a Fantina.
  • 28. 28 Cena 29 – FAZENDA-CASA GRANDE / INT / DIA D. Luzia e Frederico estão relaxados na varanda da Casa Grande com seus pés apoiados em uma banqueta de madeira. Em silêncio, trocam olhares e sorrisos. Frederico alterna sua mirada entre as mãos e os olhos de Luzia. FANTINA - OFF Licença, Sinhá. Luzia toma um susto, olha para Fantina que está na beira da porta da varanda. A reação ao susto é azeda. DONA LUZIA Quê isso, Fantina! Chegando assim sem anunciar! Me assustou, sabia?! Esperava que estivesse aqui, quando eu chegasse do passeio. FANTINA Perdão, Sinhá. Não foi a intenção. Fui colher a carta que vieram entregar para a Sinhá. DONA LUZIA Me dê, vamos! FANTINA Vou preparar o escritório para a senhora ler com mais conforto. Antes de se retirar e entrar na casa segurando o envelope, ela olha rapidamente para o pátio à frente: Vazio. FANTINA Licença, Sinhá. Frederico nota o seu olhar e também se vira para o pátio, curioso. DONA LUZIA É cuidadosa e delicada minha mucama, não é? A melhor de Ingaseiro. FREDERICO Parece muito leal à senhora... Fantina volta. FANTINA Escritório preparado Sinhá Luzia passa por ela em direção ao escritório. Frederico olha rapidamente para Fantina e também se retira. FREDERICO
  • 29. 29 (para Luzia) Com licença, vou pro meu dormitório para deixá-la mais à vontade com a correspondência. Fantina fica parada junto à porta, olhando o mato à frente da varanda. CENA 30 – ESCRITÓRIO – FAZENDA – INT - DIA Dona Luzia senta-se na cadeira diante da escrivaninha e lê a carta. Pára de ler, respira fundo e grita: DONA LUZIA Fantina! Fantina chega. DONA LUZIA Chame Frederico. ELIPSE Frederico está de pé, ao lado da janela, encarando Fantina que está de pé junto à porta. Luiza continua a leitura. Em alguns momentos, lê com os olhos agitados, em total silêncio. Noutros, balbucia palavras incompreensíveis. Frederico enrola um cigarro e olha para ela com o canto dos olhos, tentando disfarçar a curiosidade. Fantina fica de pé, com olhar explicitamente curioso. Ela recebe uma encarada de Frederico e o evita imediatamente, olhando pra baixo. Luzia solta uma gargalhada nervosa e fala para Frederico: DONA LUZIA Já viu o que aquele compadre das dúzias fala do senhor? FREDERICO (tenso) Quem?! Não… Quero dizer… DONA LUZIA Como quem? O seu sócio. Vou ler um trecho do que ele diz. Preparado? (lendo com voz afetada, nervosa) “… Na noite da festa do Divino, esse senhor pintou o sete e rebocou o Simão! Esteve num cateretê à rua do Carvão com umas perdidas.”
  • 30. 30 Cena 31 – PRAÇA DE RIO NOVO / EXT / NOITE FLASHBACK Imagens de Frederico na Festa do Divino. Ele passa entre as pessoas, cumprimenta alguns, cheira o pescoço de algumas. Alegre e simpático, começa a tocar a viola e cantarolar para várias pessoas, homens e mulheres. DONA LUZIA - OFF (lendo afetadamente) "… Tocou viola como um bêbado, deu muitas umbigadas e cantou coisas porcas. O Chico Valamier saiu furioso, porque ele botou uns versos sujos numa mulher casada de poucos dias. Sapateou na sala com muito barulho, dando castanholas e berrando.” Cena 32 – SALÃO DE FESTA / INT / NOITE No salão da Festa do Divino, Frederico pára num canto e toca a viola encostado na parede. Alguns homens e poucas mulheres param pra olhar e cantar junto; outros continuam em diversões paralelas. Frederico canta forte duas vezes a estrofe. Na segunda vez, alguns o acompanham na cantoria, como que se faz com música conhecida popularmente. FREDERICO Cachorrinho está latindo/Lá atrás do limoeiro/ Cala boca cachorrinho/Não sejas mexeriqueiro. Cena 33 – ESCRITÓRIO- CASA GRANDE – INT / DIA Dona Luzia fica instantes em silêncio, um pouco vermelha. Inspira fundo e olha para Frederico. DONA LUZIA O que achou? FREDERICO (devagar, medindo as palavras) Com todo respeito.. Dona Luzia desperta paixões por onde passa. E um homem apaixonado tem sempre muita imaginação. Dona Luzia não contém sorriso discreto de satisfação. DONA LUZIA
  • 31. 31 Pois… Mas era compadre do meu Silva e foi longe demais. Sabe do meu apreço pelo sentido espiritual da Festa do Divino e criou uma parábola do seu próprio desvario. É o que lhe parece, Frederico? FREDERICO Podes ter certeza, Dona Luzia. Fico feliz e ainda mais encantado, pois que, com a senhora, os intrigantes não tiram palhinha. DONA LUZIA De certo, em se tratando de uma obra de ficção, ela é até que bem contada. Deveras de mau gosto, mas diverte pelo risível. Podemos continuar lendo e nos distraindo, o que acha? FREDERICO Como a senhora desejar. Aprecio ouvir qualquer história que venha da boca da senhora. Cena 34 – SALÃO DE FESTA / INT / NOITE Imagens da Festa do Divino, agora bem mais vazia. As poucas pessoas que sobram mostram-se mais bêbadas e cansadas. Frederico, também mais alcoolizado, alternando entre goles e acordes musicais em sua viola, continua cantando, mas agora chamando menos a atenção dos outros. Uma aparente prostituta está ao lado. Os dois se olham. Ele oferece a garrafa, ela dá um gole e se levanta, se retirando. Frederico larga a viola de lado e só fica abraçado à garrafa. As pessoas vão saindo do recinto, até que ele fica sozinho, explicitamente bêbado. Ao lado dele fica sua viola encostada e uma vela acesa. A prostituta volta para pegar o castiçal/vela e sair, deixando-o no escuro e sozinho. DONA LUZIA - OFF (lendo nervosamente, forçando descontração) “Deu bordoadas em muitos, escaramuçou o resto; apagou as velas de sebo e ficou no escuro com as quatro marchadeiras daquela rua. Um homem deste jaez não lhe serve, porque desmoralizou- se em poucos dias…” TELA NEGRA
  • 32. 32 (Música) Som do toque de tambor de jongo. Cena 35 - INGASEIRO (FAZENDA) / INT / DIA SOM de tambor continua, quando surgem as imagens da Fazenda. SOM de voz de lamento começa a acompanhar o tambor. Imagens do ENTARDECER na Fazenda: a Casa Grande, a plantação de ervas, arredores, senzala, curral, a capela, a marcenaria e outras dependências. Na varanda, Frederico e Dona Luzia chegam para sentar nas cadeiras. Segue a bela descrição imagética de um “ambiente fantástico” no entardecer da Fazenda. Fogueiras são acesas na porta da senzala. Josefa está sentada diante de uma dessas fogueiras. SOM: o ritmo do tambor se implementa. Na SALA: Joaquina vai ao piano e se posiciona. Ela tenta acompanhar o compasso percussivo e não consegue. Aperta as teclas com raiva e fecha o piano. Fantina está entre a sala e a varanda e tem os olhos fechados, como se curtindo um transe silencioso. Na VARANDA: Dona Luzia e Frederico seguem sentados com semblantes tranqüilos, assistindo ao pôr do sol e apreciando os sons do entardecer. FREDERICO A Senhora sabe que o Zé de Deus não permite que seus escravos façam batuque? Tacou fogo em tudo quanto foi tipo de tambor, pois diz que o tambor liberta demônios. DONA LUZIA Isso é mais uma grande bobagem do português. Eu prezo muito pela harmonia entre as pessoas. Seja gente como a gente ou quem nos serve. Deus quer que todos vivam dignamente e, pra mim, o tambor traz harmonia… Sinta só o ritmo. Os dois sorriem e movem sutilmente as mãos e os pescoços, como se sentissem o pulsar do batuque.
  • 33. 33 Cena 36 – ARREDORES DA FAZENDA / INT / NOITE SOM do tambor continua. Tratamento de imagem (cores e textura) alterada, remete a outra época. Nos ARREDORES da Fazenda, um menino pardo de 9 anos brinca com uma menina negra de 6 anos. JOSEFA - OFF Pois é, mia fia… Quanto mais o tempo passa, mais a dor aumenta. Vosmecê e Daniel vieram ao mundo pra ficar juntos… Branco nenhum pode separar FADE OUT Um adolescente pardo (Daniel, com 15 anos) aprende a tocar viola: dedilha alguns acordes. Uma menina negra (Fantina, com 12 anos) o assiste sorridente. JOSEFA - OFF Fantina, menina boa, atenciosa. Mas, nessa vida que deus ou diabo deu pra nós, às vezes não é bom ser tão boa. Mesmo se Daniel tivesse vintém pra comprar Fantina, Luzia não ia deixar não. A Sinhá gosta tanto que quer acorrentada do lado. O bem e o mal andam juntinhos. Ocê me pergunta como é que pode isso tudo? Eu digo que a gente ainda vai saber; mesmo que precisar morrer. Cena 37 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / DIA Sentada na mesa da Sala da Casa Grande, Dona Luzia escreve convites de casamento em papéis bordados. Com uma pena e em letras finas e miúdas, desenha a caligrafia cuidadosamente. No bordado está escrito a data do casamento entre “Luzia Salustiana Silva do Vale Sampaio e Frederico das Neves, 09 de julho de 1871”. Fantina está ao fundo, costurando uma camisa de homem. Ao lado da cadeira onde está sentada, uma pilha de outras camisas. Fantina está apreensiva. Busca se concentrar na costura. Há um clima de intimidade: Frederico equilibra um cigarro na boca, enquanto observa as estantes da sala. Junto ao móvel de livros há
  • 34. 34 outro um pouco menor e repleto de frascos de remédios e potes com ervas em etiquetas manuscritas. Entre uma pitada e outra, Frederico observa com curiosidade e se fixa na estante de livros. Retira alguns livros, abre-os em uma página qualquer e volta a fechá-los. Em outros, apenas observa a capa e retorna ao seu lugar na estante. FREDERICO (lendo alto e devagar como um semi-analfabeto) “Direção para sossegar em suas dúvidas as almas timoratas, pelo venerado Quadrupani.” ”A mulher como deveria sê-lo, por reverendo Marshal” Frederico se impacienta, vai até a janela fazendo ruídos e fumando. Volta para a estante. DONA LUZIA O que te aflige, homem? FREDERICO Não acho um livro, são todos de irmã de caridade. DONA LUZIA (escrevendo, sem tirar os olhos dos papéis) Pois, se não gostas destes, na última tábua há uns folhetos curiosos. Frederico sorri simpático, se estica para ver a última prateleira mas desiste e se apóia no parapeito da janela. Sua vista dá para uma nascente onde escravas batem e ensaboam roupas, com suas saias levantadas até os joelhos. Frederico fuma e observa a sensualidade das mulheres trabalhando com suas coxas à mostra. DONA LUZIA Não tens convites a fazer? FREDERICO Convidarei só alguns amigos daqui mesmo. Não convido os de minha terra, pois não chegariam a tempo. Fantina olha para a patroa, curiosa com sua reação. Dona Luzia ri, sem disfarçar a satisfação com que vive o momento. Joaquina entra na sala e observa os dois por instantes, expressando cara de enfado. Fantina olha para Joaquina, com o canto de olho e a cabeça baixa. Joaquina abotoa vagarosamente a frente do vestido,
  • 35. 35 junto ao peito. Assim que Frederico e Dona Luzia olham para a menina, ela se retira fazendo cara feia e fechando a porta. Fantina sorri, discretamente. DONA LUZIA Não está satisfeita, a pobre. Arranjaremos o Antônio para ela… Mas ele anda tão impostor quando vem da Corte, que nem dá fé… O Teixeira não dá… é muito gordo e já está velho, coitado. Luzia tira o Jornal do Commercio de uma gaveta e estende a mão oferecendo a Frederico, que apanha, folheia e começa a ler. DONA LUZIA Toma, isso é leitura importante. Leia algo para nós. FREDERICO (tropeçando na leitura, como semi-analfabeto) “Punham a chave no buraco da fechadura, quando um juiz apitou. Ouviam-se batidos de tacões que avançavam para o lado onde o assobio chamava. Um cão fila ladrou furiosam… DONA LUZIA (interrompendo) Que diabo está lendo, homem? FREDERICO (batendo o jornal na perna) Isso! DONA LUZIA Eu esperava que lesse notícias do Rio Branco, que é o que nos diz respeito. FREDERICO Pois este rocambole não é o mesmo? DONA LUZIA (achando graça) Ora, ora, senhor! Em tom de brincadeira, Dona Luzia tira o jornal das mãos de Frederico e começa a lê-lo. Começa balbuciando e depois comenta o que leu. DONA LUZIA Não é possível! Já está para votação na câmara dos deputados esta lei do traidor Rio Branco! Não pode ser!!!
  • 36. 36 FREDERICO Qual lei? DONA LUZIA Como qual lei?! Aquela feita por gente que não sabe o que é cuidar com zelo e humanidade, durante uma vida inteira! Que finge ser humanista para virar a casaca e jogar no tabuleiro político contra o Império. Quer que eu leia para o senhor entender? FREDERICO Apenas se for trazer de volta a sua tranquilidade, meu amor. DONA LUZIA Perceba o absurdo… “Artigo Primeiro: Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre.” Fantina levanta o olhar em direção a Dona Luzia. Cena 38 – FAZENDA / EXT / DIA IMAGENS de trabalho na Fazenda Ingaseiro: Carregados de toras de madeira nos ombros, escravos caminham ao lado do carro de boi conduzido por um homem branco de chapéu e chicote. Mulheres negras sentadas na porta da Senzala costuram palha com a ajuda de crianças. JOVEM RAPAZ negro empurra um carrinho lotado de ferramentas, passa por um galpão onde na frente tem um homem ensangüentado, amarrado a um tronco. Segue até a senzala - passa pelas mulheres e crianças trabalhando – deixa as ferramentas na porta e desce ofegante a escada. Dentro, o rapaz tem de andar com o pescoço abaixado por causa do teto baixo. Ele passa por dois negros doentes se contorcendo no chão e segue, ainda ofegante. Vai até o canto mais escuro e se deita no chão de terra, em posição fetal. De olhos bem abertos e corpo contraído, vai acalmando a respiração. DONA LUZIA - OFF (continuando) “Inciso Primeiro: Os ditos filhos menores ficarão em poder ou sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de
  • 37. 37 criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de seiscentos mil réis, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo Imperial receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei.” Cena 39 – SALA – CASA GRANDE / INT / DIA Sala da Casa Grande: Fantina fura o dedo, ao costurar a camisa. Ela chupa com vigor o próprio sangue. Dona Luzia e Frederico sentados frente à mesa. A Sinhá, de jornal em riste, vocifera: DONA LUZIA Percebe como é uma forma do governo explorar aqueles que produzem e geram riquezas a esta nação? Eles querem que nós gastemos todos os recursos na criação e, quando as peças estiverem em suas formas mais sadias, eles nos levam… Achas que esta é uma boa indenização?! FREDERICO 600 mil réis não é de se jogar fora. DONA LUZIA Meu jovem, belo e querido Frederico, com todo respeito, vejo que se esquiva a fazer contas. Este valor não paga metade dos anos em que a peça se alimenta e fica sob os cuidados dos proprietários! Já não basta os altos impostos, é mais uma jeito de prejudicar quem tem posses! FREDERICO A senhora tem razão, Dona Luzia. É um acinte. Mas pelo que disseste, ainda não aprovaram a tal lei. DONA LUZIA E não irão aprovar! Conhece José de Alencar? Silêncio. Frederico disfarça. Fantina, costurando de cabeça baixa esboça um leve sorriso sobre o desconcerto de Frederico. DONA LUZIA
  • 38. 38 (continuando) Pois bem, é um dos maiores intelectuais do Império, autor de livros magníficos, romances humanistas. Escreve até sobre índios! Depositou toda sua arte para escrever um tratado esplendoroso contra esta tal abolição. Duvido que vão contrariar José de Alencar! FREDERICO Certamente, querida… não há com o que se preocupar. DONA LUZIA Por certo… Estou tranquila. O que não desce à goela é este Rio Branco, que é do Partido Conservador e, ao mesmo tempo, posa de reformista para os europeus. Neste país, não sabemos ao certo de que lado jogam os políticos. Visconde traidor, só pensa em fazer-se conhecido. Fantina faz movimento de se levantar. DONA LUZIA Tudo bem, Fantina? FANTINA Tudo, Sinhá. Só furei o dedo… Mas isso não é nada. DONA LUZIA Pois vá limpar. E limpe demoradamente, para não infeccionar! Cena 40 – FAZENDA INGASEIRO / EXT / DIA Imagens do trabalho na Fazenda: alguns escravos arando; outros caminham acompanhando a boiada enquanto dois homens pardos, de chapéus, conduzem o trabalho montados em cavalos. Mulheres caminham carregando cestos e potes, algumas equilibrando-os em suas cabeças. Elas passam pelo galpão onde está um homem negro, jovem e magro amarrado ao tronco vertical. Cena 41 – FAZENDA – CASA GRANDE –INT / DIA Na Sala da Casa Grande, Juca e Joaquina distraem-se num canto. Juca está sentado no chão, quieto. Joaquina trança uma linha de algodão que sai de um balaio feito de folhas secas.
  • 39. 39 Na Cozinha: Josefa aquece suas mãos na boca do fogão à lenha. Ela retira as mãos, as esfrega suavemente e sai da cozinha. Percorre a Casa Grande, vagarosa e silenciosamente. A velha escrava de olhar vazio (aparentemente cega) chega até a varanda e estende a mão para sentir o vento. Os movimentos de Josefa são leves; seu andar a faz (parecer) levitar. Cena 42 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / DIA Em seu QUARTO DE HÓSPEDES, Frederico pendura uma gaiola junto à janela e se entretém com o belo passarinho cativo. O quarto está mais equipado, com pertences pessoais de Frederico espalhados. Ele brinca de abrir e fechar a porta da gaiola e colocar o dedo para ser bicado. Ouve batidas na porta e vai atender. É Rosa, que traz um enorme crucifixo de prata. ROSA Sinhá mandou entregar. Disse que era do Sinhô Silva. FREDERICO Obrigado, Rosa. Frederico pega o pesado crucifixo das mãos da escrava, que fica parada junto à porta. FREDERICO (sorrindo) Queres vintém? Estás mal acostumada, Tia Rosa. Rosa pede licença e se retira constrangida. FREDERICO Espere, Tia Rosa… Rosa pára. FREDERICO Preste atenção, Sabes como sou sujeito cordial, que gosta de todos os seres, não sabe? Pois, então, avise aos seus que, depois que eu me tornar senhor de Ingaseiro, muita coisa vai mudar para melhor. Avise sua amiga Fantina, que vou providenciar o casamento dela com o mulato forro da quinta. Daniel, certo?! Rosa se espanta. FREDERICO
  • 40. 40 (sorri diante do espanto de Rosa) Pensa que eu não sei? E a vosmecê também, Tia Rosa; pode apostar que, se estiveres do meu lado, terás tua alforria muito antes do que imaginastes em teus sonhos. Rosa sorri desconcertada, misto de desconfiança e esperança. Ela pede licença e se retira. Frederico suspira e levanta o crucifixo. Ele analisa a parede, estudando um lugar apropriado para fixar o objeto. Testa-o na parede junto à gaiola, com o passarinho ao lado. FREDERICO Canta meu rouxinol, canta. Cena 43 – ESCRITÓRIO – CASA GRANDE / INT / DIA Dona Luzia está lendo um livro em seu escritório. Fantina bate na porta e entrega um envelope à sua Sinhá. DONA LUZIA Entre. (abrindo o envelope e a carta) Não pode ser?! Outra carta difamatória? FANTINA (se retirando) Licença, Sinhá. DONA LUZIA Fantina, espere! Quem está lhe entregando estas cartas? (instantes de silêncio, Fantina não responde) Vá agora até o portador e o traga aqui. Quero falar com ele. DONA LUZIA (falando alto, quase gritando) Frederico! Joaquina! Juca! Venham todos aqui. Fantina, chame todos… Agora! Fantina sai. Dona Luzia abre a carta e busca distância para lê-la. Cena 44 – FAZENDA – CASA GRANDE E ARREDORES / EXT-INT / DIA
  • 41. 41 Fantina caminha tensa, esfregando os braços, saindo da Casa Grande pela porta da cozinha. Daniel está sentado em uma pedra, à sombra. Ele está apreensivo. Fantina desce as escadas, apressadamente. Ela se aproxima de Daniel, mantendo distância. Daniel se levanta. Fantina fala baixo. FANTINA Venha comigo. Sinhá tá chamando. DANIEL Uai… FANTINA Uai, nada. Sinhá tá chamando. Fantina volta para a Casa Grande. Daniel segue atrás. Eles passam pela cozinha, toda apagada, onde Josefa está sentada imóvel, numa banqueta perto do fogão vazio. Andam tão apreensivos que nem a percebem. DANIEL (sussurrando atrás de Fantina) O que ela quer?! FANTINA (tensa) Ela tá nervosa. Os dois seguem pelas dependências da casa, passam por corredores e pela grande sala até chegar à porta do escritório da Sinhá. Fantina suspira, com medo em seu olhar. Ela e Daniel entram no escritório. Cena 45 – ESCRITÓRIO – CASA GRANDE – INT / DIA Na cadeira, diante da escrivaninha, está sentada Dona Luzia. Ao seu lado, de pé, está Frederico. Juca e Joaquina estão sentados na poltrona. Frederico se senta, observando Fantina e Daniel. DONA LUZIA Daniel, eu sabia que vosmecê fazia serviços de tropeiro para o compadre Zé de Deus, mas não que também era o seu carteiro. DANIEL Boa tarde, madrinha. Eu vinha pra cá e ele me pediu pra trazer… Foi só isso… Né serviço não, só um favor…
  • 42. 42 DONA LUZIA Um não, dois, não é verdade?… Escuta, vou lhe contar, talvez não saiba dos modos que o português tem com seus escravos. Com sua pele parda, eu não ponho minha mão no fogo que ele um dia se confunda de tonalidade e te coloque para servi-lo... (falando alto) Fantina, preste atenção. Quero que preste muita atenção nisso. É bom que todos aqui tenham ciência dos hábitos deste patusco. Fantina está ao lado de Daniel. Os dois entreolham-se tensos. DONA LUZIA (olhando para todos no recinto, como se desse uma palestra) Sabem como o português trata seus cativos? Trata pessoalmente. Frederico se ajeita na cadeira. Cena 46 – SENZALA DE ZÉ DE DEUS / INT / DIA Cinco escravos (dois homens, duas mulheres e um menino de sete anos) enfileirados com as mãos para trás. Zé de Deus olha, um a um, como um general revisando sua tropa. Depois de ir e voltar, aproxima-se para cheirar o rosto de cada escravo. Em mais uma passagem, agora o português se aproxima ainda das faces negras e lambe os beiços de cada um. Agacha-se para lamber o beiço do menino e nele se detém por mais tempo do que com os outros. Zé de Deus lambe seus próprios beiços; chupa seu próprio dedo e o cheira. Faz uma expressão, como se tivesse encontrado algo. Levanta. Olha bravo para a mulher que está ao lado do menino e ergue o braço com o chicote na mão. A mulher dá um tapa no menino. Zé de Deus ergue mais uma vez o chicote no ar, balançando-o. A mulher profere mais dois tapas no menino. Diante do olhar furioso do português, ela tira o menino dali puxando-o pela orelha enquanto o patrão chicoteia seguidamente o ar, cada vez mais enérgico. A mãe puxa a criança para fora até que os dois saiam pela porta e não fiquem mais ao alcance da vista do senhor. Fora da senzala e longe do olhar de Zé de Deus e dos outros, descansam as costas na parede. A mulher olha para o menino com olhos umedecidos e o abraça forte, beijando-o carinhosamente.
  • 43. 43 Cena 47 – CASA GRANDE-ESCRITÓRIO / INT / DIA Juca parece não perceber o relato e Joaquina está encolhida. Daniel e Fantina, estáticos, tentam conter a tensão. Fantina fecha os olhos enquanto Daniel olha para baixo. Frederico fuma um cigarro e Dona Luzia passa o olhar sobre todos, sorrindo para Frederico ao final. DONA LUZIA Então, me digam vocês dois… Fantina abre os olhos. Daniel levanta a cabeça. DONA LUZIA Crueldade ou sem-vergonhice? DANIEL Sem-vergonhice. FANTINA (quase ao mesmo tempo que Daniel) Crueldade. DONA LUZIA Então, vou contar outra que ele fazia, para que vosmecês se decidam. (virando-se para Joaquina e Juca) Crianças, saiam daqui, vou entrar em detalhes. Juca e Joaquina se retiram. Fantina e Daniel se entreolham, mais uma vez. Frederico testemunha a troca de olhares, sorri e dá mais uma baforada no cigarro. Cena 48 – ARREDORES DA CASA DE ZÉ DE DEUS / EXT / NOITE Na frente da Casa de Zé de Deus há uma fogueira, um carro de boi e alguns escravos. CAPITÃO DO MATO arranca as roupas de uma mulher negra e a amarra de bruços no cabeçalho do carro de boi. As pernas machucadas, com os tornozelos atados e os braços passados por baixo. Alguns escravos assistem enfileirados. Zé de Deus se aproxima das nádegas da escrava empunhando sabugos de milho secos. Uma MENINA escrava, 14 anos, assiste sentada próxima da fogueira. SOM: de
  • 44. 44 sabugada, berros e gemidos. A Menina desvia o olhar, enquanto se encolhe mais e mais, na medida que os gritos da mulher aumentam. A Menina, encolhida ao lado da fogueira, chora de cabeça baixa. Os barulhos de grito e sabugada cessam. Ela levanta o olhar e arregala os olhos ao ver Zé de Deus se aproximando. Grita: MENINA (aterrorizada!) AAAAAAAAH! Zé de Deus a puxa pela roupa para perto de si. A solta e a pega pelo braço. Os dois param diante de um formigueiro. Ele se agacha e usa o sabugo para cutucar o formigueiro e atiçar as formigas. Ainda de cócoras, levanta a saia da menina e faz com que ela segure. Com gestos, ordena que ela tire a calcinha (escrava usava calcinha?) e se agache com pernas abertas sobre o formigueiro agitado. A menina tira a calcinha – por dentro da saia – e se agacha. Cena 49 – CASA GRANDE-ESCRITÓRIO / INT / DIA Daniel e Fantina seguem lado a lado, de frente para a Sinhá. Frederico se levanta, dirigindo-se para trás de Dona Luzia. Ele toca os ombros de Luzia com as duas mãos. FREDERICO Deus do céu! Zé de Deus é um monstro! DONA LUZIA (Virando-se para Frederico) Sim… é isso que dizia. (Voltando o olhar para Fantina e Daniel) Diga, Daniel… Vosmecê se sente bem trabalhando para um sujeito assim? DANIEL Não, Sinhá. Eu faço serviço de tropa com ele. Pra ele e para muitos outros… Daqui duas semanas, vou com a tropa do sinhô Louzada levar leite e queijo pra Goiás; fico longe três meses. Nesse momento Daniel não se contém e olha para Fantina que, cabisbaixa, também o vê com o canto dos olhos.
  • 45. 45 DANIEL Não me falta trabalho, graças a Deus! Se a madrinha quiser, eu não faço mais serviço algum para este português maldoso. Dona Luzia tira da gaveta da escrivaninha um envelope. DONA LUZIA Vai encontrar com ele agora e lhe entregar isso, com toda cordialidade. Essa é a minha resposta à sua carta: um convite do nosso casamento. E vosmecê também está convidado Daniel. Será antes da sua viagem; faço questão que venha. És praticamente de casa, não preciso de formalidades, certo? Daniel sorri, sem graça, pega o envelope, pede licença e se retira. Antes de sair, ele troca olhares com Fantina, observado por Frederico. DANIEL Com licença, Sinhá. Muito agradecido. Licença Seu Frederico. Frederico dá uma piscadela satírica. Cena 50 – VARANDA–CASA GRANDE / INT / DIA Na varanda, D. Luzia toma um café fumegante e observa quatro crianças negras que brincam de pega-pega no pátio em frente da Casa Grande. Fantina chega. FANTINA Bom dia, Sinhá. Sinhá acordou cedo. DONA LUZIA Bom dia, Fantina. Pode se aproximar. Fantina se aproxima e fica posada de pé, ao lado de Dona Luzia. A Sinhá faz gestos para que ela se sente na cadeira ao lado. Fantina hesita. DONA LUZIA Sente-se, estou lhe dizendo. Fantina se senta. Ela e Dona Luzia ficam quietas por alguns instantes, olhando as crianças. DONA LUZIA Sabe, Fantina, desde que Silva partiu, nunca fui tão feliz… Meu ventre nunca foi tão feliz…
  • 46. 46 (as duas trocam sorrisos de cumplicidade feminina) Mas tem dois homens querendo roubar minha felicidade: Um é o pobre do Zé de Deus. Desse, tenho piedade… O outro é o maldito Visconde traidor. Desse Rio Branco, eu tenho raiva. Ouviste quando eu li sobre aquela lei que ele quer aprovar, não foi? FANTINA Ouvi sim, senhora. Instantes de silêncio; elas ficam observando as crianças que fazem brincadeiras graciosas, rolando no chão. As duas mulheres sorriem diante da cena. FANTINA Sinhá.. Já que a senhora me permitiu abertura, queria lhe pedir que definisse o valor da minha alforria. E saber se tenho autorização pra juntar vintém com algum outro trabalho, fora de Ingaseiro. Dona Luzia engole fundo e quase engasga com o café. Fantina coloca suavemente a mãos nas costas dela e fica a olhando, na espera de uma resposta. Luzia não se vira, segue olhando as crianças. Instantes de silêncio e expectativa. DONA LUZIA Pois… Quem cuida desses? FANTINA (sem jeito, contrariada) Aqueles dois são filhos da Maria. O mais fortinho ali é da Alzira. E o outro quem cuida é a Rosa. DONA LUZIA E a mãe? FANTINA (levemente impaciente) Juliana. Morreu dois dias depois que chegou, a senhora não lembra? DONA LUZIA Estou com a memória fraca. Deve ser porque só penso no futuro. Fantina olha tensa para o pátio. Cena 51 – ESTÚDIO-ESTÁBULO / INT
  • 47. 47 PROJEÇÃO ONÍRICA: CENA HIPER-REALISTA (e alegórica), tratamento visual (foto, maquiagem) impressionista. No Estábulo - com FUNDO PRETO,como na cena 9 - crianças miseráveis comem como animais em tigelas no chão. Câmera descreve a péssima condição de saúde delas (perebas, barriga de verme, pernas finas com feridas etc..). D. Luzia, toda vestida de preto, entra no estábulo segurando um balde cheio de ervas e uma garrafa de cachaça. Agacha- se e faz gestos chamando as crianças, que vão se colocando ao seu redor. Ela faz com que as crianças comam as folhas e segura a garrafa de cachaça para que elas tomem, como se fora mamadeira. Fantina entra em cena com Josefa e vão retirando as crianças, uma a uma. Fantasmagórica, Dona Luzia não nota a presença delas nem a retirada das crianças e continua a dar cachaça, sem olhar para os lados. Até que todas as crianças são retiradas e ela fica sozinha no estábulo. Vira a garrafa de cachaça. JOSEFA - OFF A Sinhá tinha raiva do tal Visconde. A maioria dos brancos que era dono de alguém ou de alguma coisa, passaram a chamar toda criança preta de “rio brancas”. Acho que, se aprovam essa tal lei, Dona Luzia vai fazer suas experiências é com as crianças de Ingaseiro. Cena 52 – FAZENDA – CASA GRANDE / INT / NOITE Noite silenciosa na Fazenda. Espaços externos e internos vazios. Na Casa Grande, Josefa sai da varanda e percorre, vagarosa e silenciosamente, toda a extensão da sala vazia. Ela vai em direção à cozinha. Cena 53 – CAMINHO VICINAL–FAZENDA / EXT / DIA Sol forte. Na estrada vicinal de acesso a Ingaseiro, Zé de Deus, com ar embriagado, está no lombo de um jumento com uma garrafa na mão, vestindo chapéu, terno, gravata e botas. Uma charrete passa por ele, com uma família que, em trajes de festa, acena para cumprimentá-lo. Ele retribui e coloca a garrafa na bolsa acoplada à sela do animal. Ao guardar a garrafa, ajeita uma pistola que está presa no coldre da sela. Segue conduzindo o bicho lentamente. À medida em que se
  • 48. 48 aproxima da Fazenda, a Casa Grande pode ser vista ao longe e em torno dela muita gente chegando, apeando seus cavalos, cumprimentando-se. Zé de Deus olha novamente para a bolsa da sela onde está a pistola e a garrafa. Tira a garrafa, bebe mais um pouco e a acomoda ao lado da arma. Cena 54 – FAZENDA–CASA GRANDE / EXT / DIA Porta da Casa Grande toda decorada com bandeirolas e símbolos cristãos. Pessoas bem vestidas, casais e famílias com crianças conversam junto da escada. Zé de Deus chega, desce do animal e fica parado, olhando a Casa Grande. Muito trêmulo, limpa o suor na testa, decorrência do sol forte. Daniel, que está ao longe montado num banco e ajudando a amarrar os enfeites, percebe a presença do português e, apreensivo, desce do banco interrompendo o que está fazendo. De frente à escada, Zé de Deus fala alto, quase aos berros. Todos param de conversar para ouvir com apreensão o sujeito alcoolizado. ZÉ DE DEUS Hoje é o grande dia! Quem vai se casar hoje é uma das personalidades mais humanistas e solidárias da região… Dona Luzia Salustiana do Vale Sampaio e Silva, viúva do meu compadre, Doutor Serafim Salustiano Amorim e Silva, grande cientista que tantas doenças de brancos e negros curou com sua alquimia medicinal. Agora, a nobre dama poderá ser feliz mais uma vez! Mas quero aqui registrar, para que todos saibam, que meu amor por ela é inigualável e que não tive tempo de provar, pois a vida nos surpreende… De uma hora para outra, pode aparecer alguém e colocar sua vida de ponta cabeça. Foi o que aconteceu comigo, quando apareceu na minha vida um espírito maligno que veio da província de São Paulo. Frederico surge no alto, junto à porta da Casa Grande e encara Zé de Deus que pára de falar e também o encara. Instantes de tensão; Zé de Deus tem as pernas bambas. Faz movimento para pegar a arma na sela de seu jumento. A arma está visível, na sela do animal. Ele se apoia na sela, mas não consegue se segurar e desaba no chão. Frederico
  • 49. 49 desce as escadas correndo para acudi-lo. Outras pessoas cercam o homem desfalecido. FREDERICO (se aproximando e segurando a nuca do homem) Meu compadre! Meu compadre, o que foi que aconteceu? Está consciente? Responda algo! (para os outros que estão em volta) É muita emoção, bebeu demais. Doutor, tem algum doutor por aqui?! DOUTOR JACQUES, senhor bem vestido de cinquenta e poucos anos e sotaque francês, pede passagem. DOUTOR JACQUES Com licença… Doutor Jacques, a disposição. Com sua licença. Doutor Jacques começa a examinar Zé de Deus. Ele gesticula comandando alguns escravos próximos para ajudá-lo a erguer o corpo. Os homens levam o português desfalecido, escada acima, para dentro da Casa Grande. Frederico e convidados entreolham-se. Frederico bate as mãos nas calças; convida as pessoas ao redor para voltarem ao clima da festa. Cena 55 – CASA GRANDE / INT / NOITE Na Sala da Casa Grande, um bonito baile agita o ambiente com alegria. Músicos bem vestidos tocam violino, viola e piano, enquanto convidados dançam em pares. Dois negros, que destoam dos outros músicos - também por suas vestimentas improvisadas - batem tímido tambor, procurando acompanhar a música. Outros negros e negras, dentre elas Fantina, servem os convidados em bandejas. Todos parecem se divertir, exceto os negros. O casal Frederico e Dona Luzia esbanjam entusiasmo como foco da atenção de todos. Joaquina senta-se ao piano e inicia uma valsa. Frederico convida Dona Luzia para bailar. Abre-se uma roda como “palco”. Fantina os observa. Frederico e Dona Luzia começam a rodar pelo centro da sala. Frederico busca Fantina com o olhar. Uma volta. Duas voltas. Fantina desaparece do olhar. Cena 56 – FAZENDA / EXT / NOITE
  • 50. 50 Noite estrelada. Ouve-se o piano, ao fundo. Fantina sai da Casa Grande, desce as escadas e pára no centro do pátio frontal. Está tensa. Da lateral, surge Daniel. Os dois se abraçam demoradamente. Ela segue rígida. Detalhes das mãos, dos olhos e dos ouvidos dos dois, que pouco a pouco vão criando um ‘ambiente paralelo’ à festa. O SOM do tambor, que antes estava secundário aos outros instrumentos, agora ganha corpo nos ouvidos de Fantina e Daniel; vai ganhando proeminência, até que os outros instrumentos fiquem inaudíveis e o ritmo do tambor se torne onipresente. Daniel sorri, apaixonado. Fantina chora, em descarga energética. Cena 57 – QUARTO LUZIA - CASA GRANDE / INT / NOITE Quarto de Dona Luzia. Vestindo uma camisola rendada e extremamente branca, a viúva recém casada penteia os cabelos sentada na beira de sua cama. DONA LUZIA (falando alto, quase gritando) Fantina! Instantes depois, Fantina entra no quarto. FANTINA Chamou, Sinhá? DONA LUZIA Como estou? Fantina fica parada e séria, como se não entendesse a pergunta. DONA LUZIA Estou bonita? FANTINA (sem firmeza, com um pouco de desdém) Sim, Sinhá. DONA LUZIA Pois então pode chamar meu marido no quarto dele. FANTINA Sim, Sinhá. Fantina sai do quarto.
  • 51. 51 Cena 58 – CASA GRANDE / INT / NOITE Fantina caminha pelo corredor e chega à porta do quarto da Sinhá. Frederico, logo atrás, pára em frente Fantina. Fantina volta para a sala. FREDERICO (falando baixo) Ei… Fantina… Fantina se vira. FREDERICO Estou bem? Fantina fica parada na ponta do corredor, olhando para Frederico, sem responder. Sua face é bastante séria e defensiva. FREDERICO (sorrindo, sensual) Não fique acanhada. Agora que sou teu senhor, as coisas vão melhorar pro seu povo da Senzala, acredite. Frederico entra no quarto de Dona Luzia. Fantina espera que ele entre e segue para a varanda. Cena 59 - VARANDA DA CASA GRANDE / INT-EXT / NOITE Na varanda, Fantina se recosta sobre o para-peito. Ela avista Daniel que, de pé no meio do jardim, contempla a lua e as estrelas. Distante, ela fica um tempo olhando para ele que, longe e de costas, não a percebe. TELA PRETA Cena 60 – FAZENDA–CASA GRANDE / INT / DIA Momentos cotidianos da Fazenda: Pai Joaquim (velho, aparentando dores no corpo) está ofegante, debruçado sobre objetos da marcenaria. Deixa cair pregos e martelos.
  • 52. 52 Escravos mais jovens puxam jumentos e bois por uma trilha. Passam de frente ao galpão onde há um negro amarrado no tronco. VARANDA Dona Luzia e Frederico - agora com bigode - estão sentados diante de um tabuleiro de jogo de dama (como na seqüência X). Um bule e duas xícaras de chá repousam sobre a mesa. Agora o casal não se olha. Frederico fuma um cigarro e dedica sua atenção à dança da fumaça ao vento. D. Luzia segura uma encadernação com o título de “As Horas Mariannas”. Seu olhar escapa do texto de orações para se alternar entre o horizonte, a pose garbosa de Frederico fumando e também para a outra ponta da varanda, onde estão Fantina, Rosa e Rita costurando um cobertor, sérias e quietas. DONA LUZIA Fantina, venha cá. Fantina se levanta e prontamente se aproxima da Sinhá. DONA LUZIA Preciso que me sirvas com um pouco da sua especialidade. Fantina olha de lado para as colegas mucamas: Rosa olha de volta. Se coloca atrás de Dona Luzia, fazendo cafuné na cabeça de sua Sinhá, agora numa postura bem mais tensa do que na cena 01. Rita e Rosa continuam compenetradas. Frederico, fumando, caminha para outro canto da varanda onde tem uma visão privilegiada das ancas de Fantina. O homem fica fumando e admirando as formas corporais de Fantina de costas, enquanto ela serve sua senhora com o cafuné. Rita e Rosa se entreolham, sérias. Cena 61 – ESTÚDIO - FUNDO PRETO PROJEÇÃO ONÍRICA de Fantina. Daniel bate um prego em uma viga de madeira, uma das quatro que formam uma estrutura de casa simples em construção. No meio deste espaço há um piano. Fantina se aproxima e senta defronte ao piano. Abre o teclado. Daniel some. A estrutura de madeira some. Só resta Fantina e o piano no fundo preto. Sua mão não chega a tocar nas teclas, mas inicia SOM
  • 53. 53 de música tensa. Ela fecha o teclado, se levanta e sai de quadro. A música grave segue soando. Cena 62 – ESTRADA / EXT / NOITE Estrada sinuosa cortando a serra. Uma grande fogueira com diversos tropeiros em volta, se aquecendo, fumando e bebendo. Clima de contação de histórias aquecido pelo fogo. Daniel, segurando sua viola, termina de contar sua história aos colegas. TROPEIRO 1 - mais velho e branco – rebate contando sua história. DANIEL ...Mas, eu não perco as esperanças, não. Fujo com ela. Se precisar matar, eu mato. Quando dois bichos estão apaixonados, ninguém segura. O amor é milagroso, já dizia minha Tia Josefa. TROPEIRO 1 Rapaz, meu rapaz… Eu já ouvi essa história uma boa porção de vezes, com uma diferença aqui e outra acolá. Escuta essa: eu tinha um compadre que se engraçou pela cativa do vizinho. Daquelas pretas de rabo fogoso. Bastava o sinhozinho dela sair de viagem e os dois se atracavam naquele fervor que só de falar já me dá calor. Ele queria, assim como vosmecê disse, levar ela embora, fazer nova vida. Foi quando a preta embuchou. E a barriga era por causa de quem?! Ninguém sabe, porque num tinha homem da região que não tivesse deitado com ela… Sabe o que ela fez? Difamou ele com o sinhozinho, disse que foi tomada à força. O sinhozinho, que também gostava do rabo dela, foi tirar satisfação… Mas ela se antecipou; matou o sujeito cravando uma foice na testa dele! Com um rastelo pontiagudo, enganchou no umbigo dele e rasgou toda a barriga do homem, até chegar na garganta. Pensa que ficou satisfeita? Nada! Matou também o sinhozinho. Embebedou ele de aguardente e enfiou o açoite goela abaixo. E ainda tacou fogo, queimando as partes do homem todinhas por dentro. Sabe o que aconteceu? A preta virou Sinhá, virou rainha da região, botou no pau tudo que era branco. (silêncio, todos parecem impressionados) É verdade, aconteceu lá na Bahia.
  • 54. 54 Após instantes de silêncio, um dos tropeiros solta uma forte gargalhada. Em seguida praticamente todos os tropeiros se contagiam pela risada - com exceção de Daniel e do Tropeiro 1. TROPEIRO 2 (às gargalhadas) Esse João é mentiroso como eu nunca vi igual. A preta virar Sinhá?! Ocê devia era ser pescador pra contar umas história boa. Pelamor de deus, fio, vai mentir assim lá em Ouro Preto. TROPEIRO 1 (sério) Ceis podem não acreditar, mas aconteceu… E eu não tô preocupado se acreditam ou não. O que importa é o que eu tenho pra dizer presse mulato, que ainda é menino, não sabe das coisas. (virando-se para Daniel) Não dá seu coração pra mulher preta não. São traidoras. Depois, não vai dizer que eu não avisei. Daniel se levanta nervoso. Coloca a mão na faca, hesita um pouco e se retira. Cena 63 – BANHEIRO DA CASA GRANDE / INT / NOITE Dona Luzia toma banho de banheira. Pára de se ensaboar por alguns instantes, como se tivesse escutado algo do lado de fora. Cena 64 – QUARTO DE DONA LUZIA - CASA GRANDE / INT / NOITE Fantina abre a porta do quarto da Sinhá, vindo da habitação anexa. Ofegante, ela começa a arrumar as toalhas e lençóis em cima da cama de Dona Luzia. Rosa vem atrás. ROSA (sussurrando) Fantina, volta aqui! FANTINA (sussurrando) Não quero esse tipo de prosa não, Rosa! Me deixa em paz! Rosa se aproxima de Fantina e a puxa delicadamente, levando-a pelo braço em direção ao quarto anexo.
  • 55. 55 ROSA Deixa de bobagem, mulher. Preste atenção, que eu ainda não acabei de falar. Cena 65 – CASA GRANDE - QUARTO ANEXO / INT / NOITE As duas entram no quarto anexo - das mucamas. ROSA Cê não percebe que essa é a oportunidade de liberdade pra todos nós!? Se a gente fizer o que esse Sinhôzinho quer, pode ser a liberdade. Não só sua, mas de muita gente. Liberdade dentro da lei. Ele é a favor da tal abolição. FANTINA Você num pode estar falando sério! (olhando firme nos olhos de Rosa)Eu não acredito mais em lei não Rosa. Tô no meu limite. Lei feita por branco é lei que só serve branco. Ocê é ingênua. ROSA Ingênua? Eu sou é esperta. Só que não tenho mais a sua idade nem sua beleza. Se ele quisesse, eu me deitava. Aqui eles usam nosso corpo o tempo todo, de tudo que é jeito. Seria só mais um jeito. Uma única vez e pronto. Fantina coloca as mãos nos ombros de Rosa, a conduzindo para se sentar na cama. FANTINA (firme) Rosa, ocê tá delirando. Senta aqui. Faz o que quiser com o seu corpo, só não atrapalha o nosso trabalho. Comigo, esse branco num tem nada. Fantina sai e bate a porta com raiva. Cena 66 – CASA GRANDE - QUARTO DE DONA LUZIA / INT / NOITE Fantina, enérgica, volta a arrumar as toalhas e lençóis. D. Luzia sai do banho, enrolada com toalhas e fica observando a agitação de Fantina. DONA LUZIA O que foi Fantina, aconteceu alguma coisa? Eu ouvi barulhos..
  • 56. 56 Fantina continua a arrumação com rapidez, sem olhar para Luzia. FANTINA Nada não Sinhá. DONA LUZIA Vosmecê está diferente, agitada. Pensa que eu não te noto, que não te conheço? Vamos, diga que assunto lhe aflige... (espera uma reação de Fantina, que continua arrumando) Olha Fantina, é por gostar muito de você que não lhe ponho preço. Tome isso como mais um privilégio... Fantina pára o que está fazendo; fica quieta e cabisbaixa, respirando mais fundo. Luzia se coloca diante dela, põe a mão delicadamente no queixo de Fantina e o levanta um pouco, buscando seus olhos. DONA LUZIA (firme e doce) Vosmecê não precisa ficar o tempo todo de cabeça baixa. Há momentos que é seu dever olhar para frente. E precisa aprender a responder, quando lhe perguntam algo… FANTINA (tensa, entredentes) Sim, Sinhá. Fantina volta a baixar a cabeça, termina rapidamente de empilhar as toalhas dobradas e vai saindo. FANTINA (saindo de cabeça baixa) A senhora me desculpa, mas eu não estou atrás de privilégio nenhum. DONA LUZIA Ah, não? E carta de alforria é o quê? FANTINA Com sua licença Sinhá? Dona Luzia não responde. Fantina, depois de aguardar por dois segundos o consentimento, sai assim mesmo. Cena 67 – CASA GRANDE / INT / NOITE
  • 57. 57 Madrugada. Arredores da Casa Grande. Sons dos bichos noturnos. Na Varanda da Casa Grande, Frederico – de pijamas – fuma um cigarro. Apaga e caminha lentamente, de meias, pelo corredor. Abre a porta do quarto, Dona Luzia dorme na cama. Pisando suavemente, ele passa pela cama e abre a porta do QUARTO ANEXO, das mucamas. Observa as três escravas que dormem em camas juntas. Passa a mão nas pernas de todas e se demora mais na coxa de Fantina, que está com o corpo duro e tenso, fingindo dormir. Subitamente, ela se vira com força, fazendo ranger a cama. Frederico se assusta e tira a mão. Cena 68 – CASA GRANDE - QUARTO DE DONA LUZIA / INT / NOITE D. Luzia está deitada de lado na cama, com os olhos abertos. Frederico abre a porta do anexo das mucamas e entra no quarto. Dona Luzia fecha os olhos. Cena 69 – FAZENDA- CASA GRANDE / INT / DIA Amanhece na Fazenda Ingaseiro. Escravos passam com suas ferramentas de trabalho. Frederico, botas e chapéu, sai com sua espingarda na mão. Quando passa pela sala, pára em frente a Dona Luzia e olha sedutoramente no fundo dos seus olhos. Passa a mão no rosto da esposa e beija-lhe os dois olhos. Masculamente, desce as escadas da Casa Grande com a espingarda na mão. Monta em seu cavalo e parte galopando. Dona Luzia fica um tempo admirando Frederico partir. Levanta-se e vai em direção ao seu quarto, chamando por Fantina. DONA LUZIA Fantina, venha já aqui! Dona Luzia entra no quarto, deixando a porta aberta. Instantes depois, Fantina e Rosa se aproximam e param ao lado da porta do quarto. Rosa segura levemente na mão de Fantina que retribui segurando firme, em sinal de amizade. Fantina faz um gesto para Rosa se acalmar, como se dissesse: “deixa comigo”. Entra no quarto da Sinhá. Rosa fica olhando Fantina entrar no quarto e fechar a porta. Permanece olhando a porta fechada, apreensiva. Encosta a
  • 58. 58 orelha na porta. SOM de vozes, incompreensível. Rosa sai para a cozinha. COZINHA Rosa chega na cozinha. Lá estão Rita, varrendo e Josefa, quieta fitando o vazio. Cena 70 – CASA GRANDE - QUARTO DE LUZIA – INT / DIA Dona Luzia está sentada numa poltrona ao lado da cama. Fantina está de pé, cabisbaixa, com as mãos para trás. Luzia dá uma risada nervosa. DONA LUZIA Vosmecê quer me fazer acreditar nisso? Que decepção Fantina, que história mais estapafúrdia. Achas que uma criada negra como você poderia suscitar interesse de benevolência em um homem branco? (ri, nervosa) Nenhum homem branco e nem aquele mulato do Daniel seriam capazes de te dar liberdade! Fantina levanta a cabeça. DONA LUZIA Pensa que eu não sei de vocês dois? És muito ingênua menina. O mulato está te enrolando também. Me diga, já se deitou com ele? É só isso que ele quer Fantina. Depois te joga fora. Fantina baixa a cabeça e fica respirando fundo e com as mãos tensas, tentando se acalmar. DONA LUZIA Sabes quanto eu detesto alcoviteirices, não sabe? Estou farta disso! Minha vontade era ensinar Zé de Deus a não cometer mais esse pecado. Infelizmente, dele não posso tratar. Mas aqui dentro da minha propriedade eu devo educar quem eu quiser, concorda? Fantina segue cabisbaixa e ofegante, mãos pra trás e punhos cerrados.
  • 59. 59 Cena 71 – COZINHA-CASA GRANDE / INT / DIA Josefa continua sentada, ao lado do fogão, fitando o vazio. Rita está de pé, ao seu lado, descansando no apoio da vassoura. Rosa pica legumes, freneticamente. Todas tomam um susto quando ouvem, ao longe, a voz da Sinhá. Rita e Rosa entreolham-se apavoradas com o grito de Dona Luzia. DONA LUZIA - OFF Felisberto!!! Alguém chame o Felisberto!!! Imediatamente! FANTINA (falando alto, quase gritando) Mas a culpa é dele Sinhá! É dele! DONA LUZIA Saia já daqui! Cena 72 - FAZENDA - PAIOL / INT / DIA PAIOL DA FAZENDA: FELISBERTO - 32 anos, negro, sério e compenetrado, vestido de chapéu, botas e roupas sujas de trabalho – amarra as cordas que penduram Rosa, de ponta cabeça, em uma escada. Ao terminar, o homem olha para trás onde está Dona Luzia, estática junto à porta. A Sinhá vira-se para um menino negro que a observa. DONA LUZIA Chame todos os que não estão em serviços indispensáveis. Quero todos aqui. Quero principalmente a Fantina como testemunha. Os olhos de Rosa, de ponta-cabeça, encaram os olhos de Luzia. Instantes depois chegam Fantina e outros escravos. Dona Luzia confere a chegada das testemunhas e faz um gesto com a mão espalmada para Felisberto, que aplica cinco chibatadas e, em seguida, olha mais uma vez para sua patroa. Dona Luzia faz novamente o gesto de erguer o braço com a mão espalmada. DONA LUZIA Cinqüenta, Felisberto, cinqüenta! Enquanto Felisberto profere cadenciada e mecanicamente as chibatadas, vão chegando outros escravos, entre homens e mulheres, e se posicionam atrás de Dona Luzia. A Sinhá confere a chegada deles
  • 60. 60 fazendo sinal para que se aproximem mais, até que sete escravos ocupam os fundos do Paiol, ao SOM das chibatadas e dos gemidos crescentes de Rosa. DONA LUZIA (olhando para o lado de fora) Fantina, aproxime-se! Trata-se de uma sessão educativa. Dona Luzia se aproxima de Rosa e Felisberto. Quando o homem termina mais uma série de cinco açoites, a Sinhá enverga o corpo para posicionar seu rosto próximo ao de Rosa, de ponta cabeça. DONA LUZIA Que tal, senhora alcoviteira? Rosa, mesmo debilitada, range os dentes e abre os olhos com expressão de ódio. Dona Luzia começa a falar para Fantina, mas sem virar o rosto. Segue olhando para Rosa e Felisberto, de costas para Fantina e os outros escravos que olham, alguns nervosos, outros congelados. DONA LUZIA Fantina, minha preferida, escute isso... E os demais também: Sabes que, nos dias de hoje, somos muito mais complacentes. Demasiadamente complacentes. Minha avó Antônia contou-me como resolvia os problemas de ânimo da Senzala: Com muito mais firmeza que eu… Fui criada por minha mãe com muito amor. Muito. Talvez, por isso, nós mulheres, vamos ficando mais permissivas, de geração em geração. Vó Antônia, certa vez, deu uma lição em uma preta rebelde. Eu era menina, quase mocinha. Essa preta, de nome Madalena, tinha uma filha recém nascida com nome diferente, um nome incomum para escravos, parece até francês… Um bebê lindo. Dona Luzia, pela primeira vez, se vira para olhar Fantina. DONA LUZIA Isso mexe com a sua memória ancestral? Fantina arregala os olhos e fica ofegante. Não desgruda seus olhos injetados em Luzia. A Sinhá continua falando, olhando também para os outros escravos, enfileirados na horizontal. DONA LUZIA Como eu disse, isso é educação. Mas quem aprendeu não foi Madalena e sim quem assistiu a aula. Os cativos ficaram pacíficos e tementes a
  • 61. 61 Deus depois disso. Da escrava Madalena não sobrou uma parte do seu couro escuro para contar a história. Minha avó dizia que o aprendizado é algo que não se absorve pela fala, apenas pelo exemplo. É a imagem que fica na retina, o que mais nos educa. Os olhos arregalados de Fantina ficam olhando Luzia se virar e continuar assistindo à sessão de chibatadas. TELA PRETA Cena 73 – FAZENDA INGASEIRO - ARREDORES / INT / DIA Fantina caminha enérgica pelas dependências da fazenda até chegar na marcenaria, ambiente pouco iluminado. MARCENARIA FANTINA Pai Joaquim! Pai Joaquim! Instantes depois, Pai Joaquim surge, saindo da sombra. Ele fica olhando para ela, como que a medindo dos pés à cabeça. PAI JOAQUIM Quer o quê? FANTINA Com a sua licença, o senhor se lembra que falou do dia que a peste ia vingar o nosso povo devagarinho, um por um, até acabar com toda maldade do mundo? Pois, pode ter certeza Pai, vai começar. E a mensageira da peste é mulher. Pai Joaquim olha nos olhos injetados de Fantina por um tempo e se vira de costas, sumindo na escuridão do galpão da marcenaria. PAI JOAQUIM (de costas) Chegou nada, fia. Esse dia não é nós que determina. E não vai ser sua dor que vai fazer coisa dessas. Do que eu disse, é da dor de todos. FANTINA (com raiva) Ei! O senhor não quer fazer serviço? Estou te oferecendo um serviço!… Quanto o senhor quer? Tenho pedras valiosas.
  • 62. 62 Instantes depois, Pai Joaquim surge novamente na frente de Fantina e a encara. Os dois se olham demoradamente, como se comunicando em silêncio. Pai Joaquim vai saindo da marcenaria e caminhando, trôpego e com dificuldades. Fantina o segue, a passos firmes. PAI JOAQUIM Ocê é a filha da Madalena não é?.. Mulher guerreira. Os dois seguem por uma trilha, no mato. VOZ EM OFF - JOSEFA O povo dizia que só o olhar desse velho já fazia cair o cabelo e apodrecer as unhas. Isso eu não sei, o povo fala demais… Pai Joaquim é caboclo tão sofrido quanto forte e sabido. Tá em Ingaseiro desde o dia que Sinhô Silva trouxe ele, ainda moço. Virou conselheiro do sinhozinho, inventava os remédios com tudo que é mistura de planta. Num sei se esse diabo velho tem essa magia que o povo fala, mas sei que poderia muito bem ser doutor, porque entendia todas as medidas que faz remédio virar veneno. Dizia que cada causo é um causo, que o veneno de um pode ser o remédio do outro. SUMÁRIO (cenas curtas): Quarto: Frederico procura camisas no armário, escolhe uma e veste. Jardim: Juca brinca com o cachorro. Pai Joaquim é visto ao longe, adentrando a mata na frente da Casa Grande. Marcenaria: Rosa está sentada na marcenaria, ainda cheia de hematomas, pitando um cachimbo, derreada. Jardim: Juca e o cachorro estão quietos, deitados na grama. Pai Joaquim é visto voltando da mata, carregando um cesto com ervas. Cozinha: mãos negras e velhas (enrugadas) maceram as ervas numa tigela. Sala: Mãos negras jovens (finas) decoram a mesa da sala de jantar da Casa Grande, ajeitando travessas, copos e talheres. Sala:Joaquina toca piano. Sala: Dona Luzia lê um livro. Mãos negras velhas separam o conteúdo da panela fumegante em dois recipientes. Em um deles, salpica as ervas e mexe. JOSEFA - OFF
  • 63. 63 Quando era mais moço, Pai Joaquim dizia que ia acontecer uma revolução, que a natureza ia invadir o homem, o preto ia virar branco, o branco virar preto, o mundo ia se ajeitar de ponta cabeça e só quem tinha dignidade ia sobrar. Muita gente ia sofrer e depois ia ter paz... Mas, com o tempo, ele foi ficando mais diabo velho e agora só fala em troca de presente. Quer mais é se proteger do frio, tomar aguardente e pitar seu cachimbo, enquanto a morte não chega. TELA PRETA Cena 74 – FAZENDA INGASEIRO – ENTORNO DA CASA GRANDE / INT / DIA Imagens do cotidiano dos trabalhadores escravos da Fazenda. Carro de boi passa acompanhado de escravos, caminhando ao lado e carregando feno. Pai Joaquim fuma cachimbo, sozinho na Marcenaria. Mulheres escravas carregando cestos com roupas, passam de frente ao galpão onde há um homem amarrado ao tronco vertical. Cena 75 – CASA GRANDE – QUARTO DE DONA LUZIA / INT / DIA D. Luzia, de camisola e touca, tosse bastante. Levanta-se da cama cansada, com respiração pesada. DONA LUZIA (voz fraca) Fantina! Ao perceber que a voz está saindo fraca, busca na gaveta da cabeceira um sino de bronze e o chacoalha soando um timbre forte. Instantes depois, Fantina aparece na porta do quarto. FANTINA Pois não, Sinhá. DONA LUZIA Prepare um vestido escuro e diga ao Felisberto para aprontar o coche. Essas porcarias de plantas já não adiantam. FANTINA E a senhora está em condições Sinhá? DONA LUZIA
  • 64. 64 O que vosmecê entende disso menina? Vou me consultar com Doutor Jacques. É conhecido pela medicina pesada e pela precisão no diagnóstico. Vou enlouquecer se não entender que bichos se apossaram do meu corpo. FANTINA Com licença, vou chamá-lo. DONA LUZIA Também vou à Missa, falar com Deus. Sem Deus, não tem medicina que resolva… FANTINA Amém. DONA LUZIA Vá Fantina, vá… Ah, não se esqueça de separar aqueles brincos negros e o colar de prata. Coisa simples. Imediatamente, Fantina coloca a mão na cintura onde está presa a argola e sente que falta as chaves do estojo (Cena 1) que deveriam estar atadas à argola. FANTINA Sim, Sinhá. Já vou. Fantina se retira, tentando disfarçar o susto de não haver encontrado as chaves. Cena 76 – CASA GRANDE–QUARTO ANEXO / INT / DIA No Quarto Anexo, os lençóis das três camas estão revirados, as gavetas dos criados mudos estão abertas. Fantina está agachada, vasculhando os cantos debaixo da cama. Seu desespero é crescente. Frederico abre a porta devagarinho e fica observando. Assobia para chamar a atenção de Fantina. De tão afoita, ela nem percebe, continua vasculhando o quarto. Ele, então, entra de mansinho e se posiciona atrás dela. FREDERICO (sussurrando) Fantina… Ô, Fantina, pra quê tanto desespero? Fantina se assusta e se afasta. FANTINA
  • 65. 65 As chaves da Sinhá! Cadê as chaves da Sinhá? Frederico sorri e olha com desejo para o corpo de Fantina. Passa a mão no bolso da calça, mostrando o relevo que tem o formato de uma chave grande. Continua passando a mão na calça até chegar no relevo do seu pinto. FREDERICO Você até que é bem rápida de raciocínio para uma negra… E que negra! FANTINA A Sinhá tá precisando das jóias! Devolva as chaves, Sinhô, por favor… Frederico vai se aproximando do rosto de Fantina e colocando a mão em seu cabelo. FREDERICO Tá vendo, como eu posso ser um cavalheiro?! Te elogiar, te tratar como uma dama. E ainda deixar você se casar com o seu mulato? FANTINA (olhando para o bolso de Frederico) O Sinhô me devolve ou eu conto para a Sinhá. FREDERICO Ei, eu estou do seu lado. Só quero o seu bem. Por instantes, Fantina hesita em pegar as chaves, até que, de súbito, dá o bote, mete a mão no bolso de Frederico e pega a chave. No reflexo, ele também segura forte a mão de Fantina, apertando seu pulso e empurrando a mão para se aproximar do seu pinto. Ela solta chave. Ele tenta beijá-la. Fantina cospe nele. Ela se debate fortemente e tenta empurrá-lo. Frederico a joga ao chão. Fantina fica caída e ouve Frederico deixar o quarto e bater a porta. Ainda no chão, ofegante e adrenalizada, Fantina abre os olhos e vê que a chave foi deixada no chão, próxima a seu rosto. Cena 77 – VARANDA - CASA GRANDE / INT / DIA Na entrada da Casa Grande está estacionado um coche. Felisberto está de pé ao lado do cavalo, aguardando seus senhores. Na Varanda, Dona Luzia está toda arrumada, com vestido escuro. Abatida, olha para