1. 12. Construções com·a régua de duas bordas paralelas 208
13. O "potencial" da régua de duas bordas paralelas 210
14. Pontos coordenados construtíveis com a régua de duas bordas
paralelas 212
AN EXO D Esboço da teoria das situações didáticas . 213 X
QUARTA PARTE
A ESTRUTURA DO PROCESSODE ESTUDO: A MATEMÁTICA "AO VIVO"
CAPíTULO 16 EPISÓDIO 229
Na aula de prática 229
CAPíTU LO 17 DIÁLOGOS 235
__ I~Técnicas, tecnologias e teorias matemáticas 235
Criação e domínio de técnicas matemáticas 241
O didático é inseparável do matemático 252
Os momentos de estudo 261
CAPíTU LO 18 SíNTESE . 275
CAPíTULO 19 COMENTÁRIOS EAPROFUNDAMENTOS ..:.............................. 277
Aula de problemas, aula de prática 277
Aula de teoria e obstáculos epistemológicos 280
A necessidade de novos dispositivos didáticos 284
Os perigos da atomização do ensino 285
A função integradora do trabalho da técnica 287
O paradoxo da criatividade 289
CAPíTULO 20 PEQUENOS ESTUDOS MATEMÁTICOS 293
15. Racionalizar expressões com radicais 293
16. Quando duas frações irredutíveis são iguais? 295
17. Funções e valores aproximados 296
18. Como determinar se J5 + J7 é irracional? 297
EPílOGO . 299
AJUDA PARA OS PEQUENOS ESTUDOS MATEMÁTICOS 303
íNDICE 333
2. Capítulo 17
DIÁLOGOS
TÉCNICAS, TECNOLOGIAS E TEORIAS MATEMÁTICAS
E.: Bom dia, Professora.
R: Bom dia. Vejo que você está bem!
E.: Sim. Você deu uma olhada no episódio? É o da aula de Luis, o da raciona-
lização de expressões com radicais. Acho que será muito bom para contrastarmos
nossas análises sobre a aula de Marta.
R: Realmente, são episódios bem diferentes ...
E.: Muito diferentes! Eu gostei muito da aula de Marta. Mas essa do Luis já é
outra coisa ... Tantos exercícios e tão parecidos! Não sei ...
R: Ah. Você não se entusiasma com o que Luis faz. E olha que agora você já
deveria dispor de algum outro elemento para poder analisar e entender o que ele
faz.
E.: Talvez sim, mas ...
R: Vejamos. Vamos começar eliminando a primeira dificuldade. Uma coisa
que você não gosta, pelo que disse antes, é que Luis tenha distribuído para seus
alunos uma lista com muitos exercícios. Não é isso?
E.: Sim. Muitos e iguais. Porque, apesar de tudo que você me ensinou, conti-
nuo sem entender para que serve propor tantos exercícios tão parecidos.
R: Não são tão parecidos como você acha: há expressões com um só radical e
expressões com dois radicais.
E.: Sim, claro. A intenção é que os alunos se deparem com um novo tipo de
problema: racionalizar uma expressão com dois radicais. E, antes, são dados mui-
tos exercícios com um só radical para que,.a partir da técnica de que dispõem,
criem uma técnica para as expressões com dois radicais. É isso, não?
R: Eu diria que, em primeiro lugar, o que Luis quer é que seus alunos domi-
nem a técnica de racionalização de expressões com um só radical no denomina-
dor.
3. 236 CHEVALLARD, BOSCH & GASC
E.: Então, por que incluiu na lista expressões com dois radicais?
P: Não conheço exatamente as razões de Luis. Mas posso imaginar muitos e
bons motivos para isso. Por exemplo, porque quer que seus alunos coloquem à
prova a técnica da qual dispõem.
E.: A de multiplicar pela expressão conjugada.
P: Sim, isso mesmo. Se os alunos já dominam essa técnica e a colocaram 2-
prova com um número importante de exercícios, então não é necessário que fa-
çam os outros da lista. Cada um deve julgar o que é útil e necessário para sei:
estudo.
E.: Entendo. Se alguém acha que já domina bem a técnica, então pode dar
uma olhada rápida na lista, fazer alguns exercícios para' garantir que não se enga-
na e se centrar naqueles que parecem um pouco mais difíceis para, assim, poder
enfrentar as novas dificuldades.
R: Isso mesmo.
E.: Mas continuo sem entender porque Luis misturou em uma mesma lista
exercícios de dois tipos diferentes: com um radical e com dois.
R: Claro que há um motivo, ou mais de um. Em primeiro lugar, como você já
disse muito bem, essa "mistura" dá forma à idéia de elaborar uma técnica pare.
expressões com dois radicais a partir da técnica para expressões com um radical
E.: Sim, claro, mas ...
R: Há algo mais. Porque isso, no fundo, é uma criação técnica por continuida-
de. Ao mesmo tempo, também há uma ruptura que se situa exatamente no plan
da própria técnica.
E.: Espere ... Já não estou conseguindo acompanhá-Ia.
R: Claro que o episódio termina bem na hora em que se vai produzir o que e
penso. Talvez tenha acontecido na aula seguinte.
E.: O que você quer dizer? Onde há uma ruptura?
R: No tipo de resultado encontrado em cada caso. Nisso é que se diferenciare
as expressões com um radical e com dois.
E.: Ah, já sei ao que você está se referindo! Pensei isso quando li o episódio,
,22 ,
Quando os alunos calculam a expressão ~ r: ,obtem um resultado co
,,5-,,3+1
três radicais: além de .J5 e J3 também há J15, não? Em compensação, ao racio-
nalizar expressões com um só radical, sempre são encontradas expressões com
mesmo radical.
R: Isso é que é fundamentalmente novo. Portanto, a novidade não é só E
maneira de proceder, a técnicaíO n~ é a forma do resultado obtido.
E.: Portanto, nem tudo se rediízà técnica. Há mais alguma coisa. Mas, o que.
Você pode me explicar?
R: Claro que sim. Veja, imagine um dos alunos de Luis quando chega em case.
e se põe a resolver o exercício que ele indicou. Vai desenvolver o produto ... (Olhe:
a última folha do episódio e escreve no quadro.)
4. ESTUDAR MATEMÁTICAS 23
E.: Certo.
R: Encontrará ... (Faz o cálculo rapidamente.) 14- 6J3 - 2J5 + 4M. Esse alu-
no sabe que, no dia seguinte, Luis vai pedir que ele vá até o quadro para apresen-
tar sua solução. E terá de afirmar, diante do professor e de toda a classe, que:
Mas, claro, como pode estar certo de que essa é a resposta que Luis espera?
E.: Veja, porque obteve uma expressão sem radicais no denominador! Nesse
caso, nem há denominador!
R: É verdade. Mas talvez o aluno pense que tem de apresentar a solução em
sua forma mais simples, em sua forma canônica, padrão. E não sabe se ainda deve
simplificar mais a expressão ou se já chegou ao final.
E.: Se chegasse a uma expressão do tipo a + bJ3 + cJ5 seria diferente. É isso?
R:' Sim. No resultado de antes, pode ser que o aluno quisesse eliminar a J15 .
E como não sabe como fazê-lo, pensa que não sabe resolver o problema, que há
alguma manipulação que lhe escapa. Na verdade, não está seguro de ter realizado
o exercício corretamente.
E.: Podemos dizer, então, que a técnica que ele manipula ainda não está no
ponto, que não a domina de todo?
R: Se você quer assim. Na verdade, o que falta é umcritério de parada.
E.: Como em um algoritmo, em informática.
R: Exato. E isso não faz parte da ,técnica, mas, por assim dizer, de um saber
relativo à técnica. Faz parte da tecnologia da técnica.
E.: A tecnologia? O que você está querendo dizer?
R: Veja, tecnologia significa, literalmente, um discurso fundamentado (logo)
sobre um objeto que é uma téchne, uma técnica.
E.: E o que seria, aqui, esse discurso fundamentado sobre a técnica?
R: Seria algo assim como: "uma expressão do tipo considerado que pode ser
escrita de maneira única como a + bJ3 + cJ5 + dM".
E.: Então, quando o aluno encontra 14- 6J3 - 2J5 + 4M e não se enga-
nou, pode estar seguro de que essa é a solução esperada por Luis, visto que só
existe uma.
R: Isso mesmo.
E.: Então, o que você chamou de tecnologia é algum assim como um teorema.
R: Aqui sim, é um teorema. Embora esse teorema seja somente uma parte da
tecnologia.
5. 238 CHEVALLARD, BOSCH & E-==
E.: O que mais haveria?
P.: Em geral, uma tecnologia é um discurso matemático que justifica e perz;
entender determinada técnica. O teorema que citei cumpre essas condições
nos garantir que, se fizermos os cálculos apropriados para tirar os radicais
denominador, então, encontremos a forma canônica desejada.
E.: Entendo. Na aula de Luis começaram a tirar a 13 do denominado::. ..:::
teorema diz que, se começarmos tirando a J5, chega-se ao mesmo resultad
visto que é único.
P.: Sim, isso mesmo. Poderíamos pensar que, se começarmos tirando a
talvez nos deparemos com algo que bloqueia o cálculo, que não nos permite
tinuar. Mas isso não pode acontecer, porque uma vez tirada a J5 somente
uma 13 que, segundo a tecnologia que rege a técnica para expressões co
radical, sempre poderemos eliminar.
E.: Puxa! Que complicado! O que você quer dizer é que, na tecnologia -
técnica de dois radicais, devemos incluir a de um radical. É isso?
.P.: Sim, realmente ... !
E.: Mas, tem mais uma coisa. O teorema que você citou diz que uma _
chegando à expressão 14- 613 - 2J5 + 4J15 já não podemos simplificar
Mas não diz porque, não diz porque com um radical obtemos algo do tipo a +' -
e com dois radicais algo do tipo a + b13 + cJ5 + dJ15. A tecnologia não explica --
onde sai o termo Jl5.
P.: Você é muito exigente! Por que é assim? Isso teria de explicar a tecnolog
da tecnologia.
E.: Um discurso que explicaria por que o teorema afirma o que afirma?
P.: Sim, e que justifique porque é assim.
E.: E onde está essa tecnologia da tecnologia?
P.: Em primeiro lugar, é necessário dizer que a tecnologia da tecnologia ::
chamamos de uma teoria, a teoria da técnica.
E.: É verdade que tudo isso se torna cada vez mais teórico!
P.: E vou acrescentar mais uma coisa: pode acontecer que uma tecnol
justifique sem propiciar o entendimento.
E.: Antes você disse que fazia as duas coisas ao mesmo tempo.
P.: Não, disse que uma tecnologia tinha a priori essas duas funções.
muitas vezes, em matemática, demonstramos que algo é como é sem explicar
porque é desse jeito. Por exemplo, você pode tentar demonstrar o teorema ante::
oroAgora, explicar o fenômeno que descreve esse teorema, isso é outra coisa, coz;
uma dificuldade muito maior! Para começar, você poderia se perguntar em q ::
consistiria essa explicação. A resposta não é simples. Mas é dessa maneira que :=
progride em matemática.
E.: Certo, já pensarei nisso. Mas ainda há outra coisa. Você acha que os alunos
irão tão longe? Eu tenho a impressão de que, na prática, tudo é muito mais sirz-
ples: o aluno mostrará seu resultado para o professor, ele dirá se está certo ou nã .
6. ESTUDAR MATEMÁTICAS 239
no máximo fará com que o aluno note que existem três radicais em vez de dois, e
alguma coisa mais. Isso não basta? Contanto que os alunos "racionalizem" bem!
P: Basta e não basta. Para qualquer matemático, e para os matemáticos em
geral em um determinada época, sempre existem questões obscuras, que dirão
que não entendem.
E.: Essa é a tarefa dos pesquisadores: propagar a luz do saber para diminuir a
escuridão.
P: Sim. Mas acho que para responder melhor sua pergunta, começarei pro-
pondo uma para você.
E.: Estou escutando.
P.: Imagine uma aula na qual os alunos têm de fazer somas de frações. Um
19
aluno mostra o resultado para o professor: encontrou 28. O professor diz que ele
se enganou, que o resultado correto não é esse. O que permite que ele dê essa
resposta?
E.: Bem, suponho que o professor tenha feito os cálculos e dado outra coisa.
19 20
Talvez o resultado exato não seja 28' mas 28 ou, melhor dizendo, simplificando,
5
7. Isso é o que o professor dirá ao aluno.
P.: Em outras palavras, o resultado correto só pode ser aquele encontrado pelo
professor!
E.: Sim. Exceto, claro, quando o professor tenha se enganado. Mas acho que a
probabilidade de erro do professor é menor do que a dos alunos.
P.: Bem, agora suponha que os alunos têm de fazer um cálculo algébrico, e
que um aluno encontrou (x - 1)2 + 1. Em compensação, o professor encontrou x2
- 2x + 2.
E.: É a mesma coisa!
19 5
P.: Sim. Mas, então, por que 28 não seria também o mesmo que 7?
E. Porque são frações diferentes ... e irredutíveis ...
P.: Sim. Quando duas frações são escritas em sua forma irredutível, para se-
rem iguais têm de ser idênticas, isto é, devem ter o mesmo numerador e o mesmo
denominador. Claro que, se uma das duas frações não estiver reduzida, o critério
não funciona.
20 5
E.: Como com 28 e 7. Mas, espere um momento. O que você está me dizen-
do é que, em geral, tenta-se escrever os objetos matemáticos em uma forma que
tenha a propriedade de ser única.
7. 240 CHEVALLARD, BOSCH & GASG::
P.: Isso mesmo. Procura-se que os objetos do mesmo tipo possam ser escrit s
da mesma forma. É o que se chama de forma canônica.
E.: Já sei: as frações se simplificam, os polinômios são escritos ordenan -
termos por graus decrescentes ... e as expressões como as de antes com um ."'- '- ...........•
são escritas da forma a + bfn .
P.: Muito bem. Uma pessoa passa muito tempo aprendendo a colocar
expressão dada em sua forma canônica, simplificando frações, por exemplo. _
agora, quero que voltemos a minha pergunta.
E.: Se já não a respondemos!
P.: Matematicamente, sim. O professor pode dizer a seu aluno que se engs
porque seu resultado, em forma canônica, é diferente daquele encontrado por =>
E também porque o professor sabe que a expressão do resultado em forma '-'-~..:-
ca é única.
E.: Sei, percebo por onde você está indo. Porque o teorema de uni cidade --
foi demonstrado em classe. E é precisamente o que justifica a resposta do p -
soro
P.: É muito pior! Não é que o teorerna não tenha sido demonstrado, é _
sequer foi enunciado! Sequer foi apresentada a questão. É dado como certo,
se fosse evidente que a resposta é única.
E.: Isso deve ser porque na escola sempre se trabalha com expressões
forma canônica, para as quais há unicidade.
P.: Com toda certeza. Mas, depois, veja o que acontece. Os alunos p
muito tempo aprendendo a escrever certas expressões matemáticas em sua fo-
canônica (simplificando frações, desenvolvendo e organizando os termos de
polinômio, etc.) e, ao mesmo tempo, esconde-se deles a razão de todo esse traza
lho e o porquê de tanto esforço.
E.: Isso é uma crítica ao Luis?
P.: Não, não, absolutamente. De fato não sabemos o que aconteceu depois
aula do episódio.
E.: Certo, de acordo. Mas ainda tenho outra pergunta.
P.: Pois diga.
E.: Entendo que isso de colocar uma expressão em uma forma canônica
poder identificar esse ou aquele objeto seja importante. Por exemplo, é necessL -
poder saber se tal fração é ou não igual a outra, ou se tal.polinôrnio é igual a OUL
etc.
P.: Isso mesmo.
E.: Mas, o que eu não entendo é que, com tudo isso sobre os radicais e so' _-
a racionalização dos denominadores de certas expressões ... todo esse trabalho.;
no fundo, é uma obra matemática, não?
P.: Sim.
E.: E se é uma obra matemática, responde a alguma questão.
P.: Sim, claro, justifica-se pelo fato de que, em matemática, às vezes, é neces-
sário manipular expressões com radicais.
8. ESTUDAR MATEMÁTICAS 241
E.: Isso seria o mais natural. Mas não ficou muito claro para mim ... O que faz
com que tenhamos de manipular expressões com radicais? É certo que os alunos
da ESO terão de estudar situações matemáticas nas quais aparecerão expressões
com radicais? Veja o que estou dizendo: se a resposta for não, então me parece
uma estupidez e até mesmo pouco ético, fazê-los estudar uma obra matemática
que, para eles, não responde a nenhuma questão, que não satisfaz nenhuma ne-
cessidade. Acho que teria que se criar, ao mesmo tempo, a necessidade e a manei-
ra de satisfazê-Ia. Você não acha?
P.: A questão que você apresenta, realmente, é essencial. E se sua hipótese
estiver certa, então acho que deveríamos concluir que, no currículo do ensino
fundamental, essa obra matemática é uma obra morta. Está lá, estuda-se, mas
ninguém sabe por que está lá nem por que deve estudá-Ia.
E.: Tem certeza de que não é o que acontece com a questão dos radicais?
P.: Bem, depende ... lembre-se de que estam os nos referindo a um currículo
aberto.
E.: E o que tem isso?
P.: Pode acontecer que os alunos se deparem com problemas que os levem a
manipular expressões com radicais ou não, dependendo do instituto. E, claro, no
Instituto Juan de Mairena, as expressões com radicais não seriam estudadas, se
não respondessem a uma necessidade matemática concreta.
E.: É isso que eu queria saber. A qual necessidade respondem?
P.: Ah! Belo problema! Você poderia tentar resolvê-Io sozinho. Pense um pou-
co ... Como podem aparecer expressões com radicais na matemática elementar?
Ou, melhor dizendo, onde?
E.: Vamos ver ... talvez em geometria? Devido ao teorema de Pitágoras. É isso?
P.: Exatamente.
E.: Mas, continuo sem ver concretamente em que tipo de problemas apare-
cem expressões como as anteriores.
P.: Veja, como já é hora de terminar, deixaremos isso para o próximo dia.
Assim você terá tempo - e eu também, claro - para buscar um exemplo. Vamos
ver o que acontece.
E.: Por mim, tudo bem. Vou procurar nos manuais que tenho em casa, para
ver se encontro algo. Obrigado, Professora.
CRIAÇÃO E DOMíNIO DE TÉCNICAS MATEMÁTICAS
P.: Oi, Estudante! O que você pensou sobre aquela questão dos radicais? En-
controu algum exemplo geométrico?
E.: Eu procurei, mas sem sucesso. Não encontrei nada nos manuais. Claro que
não olhei em todos ... somente nos que tenho em casa. E não tive tempo de pensar
em um exemplo meu.
9. 242 CHEVALLARD, BOSCH & GASC::
P.: Bom, então eu vou propor um exemplo simples.
E.: Você tem? Muito bem, então me diga.
P.: Vamos ver ... Considere esta figura (vai até o quadro e desenha o seguint
Há dois círculos que delimitam um objeto e, no círculo pequeno, há um que-
drado inscrito. Poderia se tratar, por exemplo, de um motivo de um quadro abs _
to.
E.: Certo.
P.: Agora suponha que temos uma foto desse objeto e que queremos conh
suas dimensões exatas. Por exemplo: quanto mede, em centímetros, o raio r
círculo exterior. Certo?
E.: Sim. Mas tal como você o apresenta, o objeto pode ser de qualquer tarzz-
nho, não?
P.: Se não tivermos mais nenhum dado, sim. Mas imagine que, além disso, -
lado do quadrado divide o raio do círculo maior pela metade. Algo como:
B OA = AB
r = OB
E.: Certo, mas continua acontecendo o mesmo. A figura real pode ser murz
grande ou muito pequena, não temos como saber.
P.: Concordo, concordo. Mas suponha que conheçamos alguma medida '=
figura real. Por exemplo, a largura da coroa, ou seja, a diferença entre os raios d -
dois círculos. Vamos supor que seja de uns 45 em. Podemos determinar, agora, -
tamanho real da figura? Podemos encontrar o raio r do círculo exterior?
E.: Vamos ver ... Suponho que a figura deva ser bem grande. Embora, na ver-
dade, não sei ...
P.: O que você faria?
10. ESTUDAR MATEMÁTICAS 243
.>
E.: Para encontrar o r? Bem ... (Vai até o quadro e escreve.) Sabemos queiste"
r
(aponta o segmento OA) vale 2. Bom. Então, isto (aponta o raio OC) vale OAJ2,
isto é, ~J2. Por outro lado, OC também vale r - 45. Então temos (escreve):
OA=AB
B
r = OB
!...J2 = r-45
2
P.: Bom. E agora só falta resolver essa equação. Eu sei que disso nós sabemos
um pouco!
E.: Senão, vamos perguntar para Marta! (Risos). Veja. Se multiplico os dois
membros por 2, dá (escreve):
rJ2 = 2r - 90
Onde ... (escreve) 90
r=---
2-J2·
P.: Muito bem. Mas suponha que alguém tenha resolvido a equação da seguin-
r t: r
te maneira. Como 2,,2 é igual a .fi' multiplico os dois membros por J2 e obte-
nho (escreve):
r = J2r-45J2
Logo, o r é ... (escreve)
r---
45J2
- J2-(
E.: Sei. Dessa maneira dá duas expressões para uma mesma solução.
11. CHEVALLARD, BOSCH &
R: Isso mesmo. E também pudemos resolver a equação elevando os dois-
bros ao quadrado e, lembrando que o r deve ser maior que 45, chegaríamos =
r2
- x 2 = (r - 45)2
4
r2 = 2(r _ 45)2
r2 - 290r + 2 x 452 =O
(r-2x45)2 -2x452 = O
r = 2 x 45 + 45J2 = 45(2 + J2)
E.: Epa! Isso já é muito mais complicado!
R: Sim, mas, em compensação, obtemos diretamente a expressão canôníza
r. E assim chegamos a três resultados formalmente diferentes:
Qual é o melhor? É aqui que entra em jogo todo o trabalho matemático ~
as expressões com radicais. Porque é importante poder demonstrar que -
expressões representam, na realidade, um mesmo número: o raio r da figura
E.: Muito bem. Já temos o que procurávamos. Para resolver esse problez;
necessário perceber que as três soluções são iguais e, para isso, é necessário
manipular expressões com um radical. Muito bem. Mas acho que o exemplo--
tão bom como parece.
R: Ah, não?
E.: Não. Porque o que nós queríamos no início era encontrar o tamazzc
objeto. Portanto, o que nos interessa não é a expressão com radicais, mas s _
numérico. E com a calculadora temos, imediatamente, uma aproximação ,-'=,~_
de r. (Pega a calculadora e digita por alguns instantes) O círculo maior mede..
ximadamente, 154 em de raio. Vamos colocar um metro e meio. Era íssc
queríamos saber, não?
R: Não era bem isso ...
E.: Eu já esperava!
R: Seu comentário me parece correto: a priori queremos um valor ap:
do do tamanho do objeto. Queremos saber se r mede 80 em, ou 2m, ou 1
Desse ponto de vista, as três expressões servem da mesma maneira, sem; _-
tenhamos uma calculadora a mão, claro! Mas só se antes de calcularmos
numérico do r, quiséssemos controlar nossa solução. E uma boa maneira ':::
provar que o resultado é correto, consiste em ir por um caminho diferente e
12. ESTUDAR MATEMÁTICAS 245
chegamos ao mesmo resultado. No final, temos de garantir que as três expressões
são iguais. E, como vimos, podem ser formalmente muito diferentes.
E.: Sei. E para ver que são a mesma, o melhor é escrevê-Ias em sua forma
canônica a + bJ2.
P.: É isso. Você também pode tentar passar de uma para a outra, mas para isso
já deve ser um pouco mais "perito" (escreve no quadro):
90 2x45 (J2)2 x45 45J2
2-J2 = 2-J2 = (J2)2 -J2 = J2-1'
E.: Certo, eu concordo. Mas se uma pessoa supõe que não se enganou, não
serve para nada reduzir à forma canônica para chegar a um valor aproximado do
r.
P.:Você tem certa razão ... Mas não toda razão. O que você diz não está total-
mente certo.
E.: Por que não?
P.: Preste bem atenção. Vamos supor que você queira um valor aproximado do
r com um erro máximo de alguns centímetros. Digamos que, como o r vale uns
150 em, você se contentaria com um valor aproximado entre 150 e 160 em.
E.: Certo.
P.: Vamos supor, também, que você não tenha calculadora. Tentará fazer o
cálculo à mão e simplificará um pouco as coisas. Por exemplo, em vez de J2 você
90
vai pegar 1,5. Se fizer isso com a expressão 2 _ J2 ' a qual resultado você chega?
E.: Bem, 90 dividido por 2, menos 1,5, isto é, 90 por 0,5, que é o mesmo que
90 multiplicado por 2, ou seja, 180.
P.: Você já está fora da área 150 - 160!
E.: Sim, porque eu peguei um valor de J2 pouco aproximado. J2 é 1,414 e
mais alguma coisa.
P.: Bom, mas você não pode negar que 1,5 é uma aproximação muito prática
para fazer cálculos mentais. Por exemplo, tente agora com a segunda expressão:
45J2
J2 -1'
E.: Vai dar no mesmo!
P.: Faça, por favor!
E.: Está bem. 45 por 1,5 e dividido por 0,5, ou seja, 45 por 3, ... 135. É verda-
de, não dá a mesma coisa.
13. 246 CHEVALLARD, BOSCH & <0.--_
R: Não. E também não dá a mesma com a expressão canônica. Veja: ti'nt~==
45( 2 + Ji), isto é, com a aproximação, 45 por 3,5. 45 por 3 dá 135, e se somazzz;
a ele a metade de 45, isto é, 22,5, chegamos a 157,5.
E.: Isso! E é essa aproximação que entra na faixa 150 - 160! Que curioso.; -
que encontramos coisas tão diferentes? Não entendo isso ...
R: Não entende? Então é porque você está em um tipo de situação da ~
falamos: necessita de uma tecnologia matemática que faça com que ente -::o
E.: O que você quer dizer?
R: Bem, simplesmente que você se encontra diante de um!~~n~ô~m~e::n~o~~~:-.
~que não entende, a saber: por que a expressão 45(2+ Ji) dá um valor - ~
mado melhor que as outras duas.
E.: Muito bem. Mas, nesse caso, o que seria uma tecnologia matemática
priada?
R: É algo que permite que você entenda o fenômeno. Aqui, por exemplop
consistir em um modelo matemático.
E.: Um modelo matemático de um fenômeno matemático? Isso me par -
pouco estranho ...
R: Não é estranho. Sempre acontece algo parecido: para entender urc f
meno matemático, temos de construir um modelo matemático. A matemáti
gride dessa maneira. Para entender um fenômeno matemático que não se c..-~"'--~
a primeira coisa que se precisa é de mais matemática.
E.: Certo, certo. E o que se precisa aqui?
R: Veja, podemos modelar a situação da seguinte maneira. Temos três - ~
sões numéricas (escreve):
90
45(2 + Ji)
2-Ji
A cada uma faremos corresponder uma função, substituindo Ji pela'
90
x. Para a primeira, teremos a função f(x) = -2-'
-x
E.: Sei. Para a segunda, será g(x) =
45x
--1 e para a terceira h (x) = 45' _ -
x-
R: Sim, o h(x)
= 90 + 45x.
Muito bem. Agora considere a função E h.
função afim crescente.
E.: Sim, e o que nos interessa é h( Ji).
R: Isso mesmo. Se pegarmos 1,5 como valor aproximado de terezi Ji,
calcular h(1,5).E como 1,5 é maior que Ji,
encontraremos um valor de :..
maior que o valor procurado h( Ji).
14. ESTUDAR MATEMÁTICAS 247
E.: É verdade. Tínhamos h( J2) = 154 e h(1,5) = 157,5.
R: E com as outras funções?
E.: Vamos ver. A função J(x) =~ é uma função hiperbólica ... Quando x
2-x
cresce sendo menor que 2, o denominador 2 - x decresce e, portanto, a função
cresce.
P.: Portanto?
E.: Portanto, o valor aproximadof(1,5) será maior quef(J2). Acho que era
180, não?
P.: Sim. E agora falta a função g(x) = 45x . Ela é crescente ou decrescente?
x-I
E.: Deixa eu ver ... (Pensa uns instantes.) Assim, rápido, não sei.
P.: Não sabe? Mas você se lembra do resultado numérico, não?
E.: Sim. Era g(1,5) = 135, ou seja, menor que g( J2). Então, suponho que a
função será decrescente. Bom, isso é o que acho. Mas teria de ver isso melhor,
calculando a derivada e tudo isso.
P.: Ah! Não precisa complicar tanto! Veja isso (escreve no quadro):
g(x) = 45x = 45(x-l)+45 =45+~.
x-I x-I x-I
E.: Claro! Que esperta! Agora podemos ver que quando x cresce e é maior que
45x .
1, --1 decresce. Portanto, a função g(x) também decresce. Era isso que dizíamos
x-
antes.
P.: Bom. Eu imagino que vocêjá entendeu por que, quando pegamos 1,5 como
aproximação de J2, a primeira e a terceira expressões nos dão valores maiores
daquele que procuramos, e a segunda nos dá menor.
E.: Sim, perfeitamente.
P.: Pois a tecnologia matemática que permite que você entenda tem origem no
fato de ter modelado às expressões numéricas por meio de funções. A partir daqui,
podemos utilizar as propriedades mais elementares das funções, como seu cresci-
mento ou decrescimento, por exemplo. Coisa que não podíamos fazer com as ex-
pressões numéricas que são valores constantes: não crescem, nem decrescem.
E.: Certo. Concordo com isso. Mas ainda não terminamos. O que queríamos
saber era por que a terceira dá uma melhor aproximação por excesso.
R: O que você acha?
E.: Não está muito claro para mim ...
R: Deixarei que você procure por si mesmo.
E.: Certo, como você quiser. Já farei isso. Mas, então ... poderíamos voltar a
falar sobre o Luis?
15. 248 CHEVALLARD, BOSCH &
P.: Claro que sim.
E.: Continuo me perguntando por que ele dá a seus alunos uma
grande de exercícios.
P.: Vejamos. Suponho que os alunos de Luis terão trabalhado, durante as-
anteriores à do episódio, um novo tipo de problema matemático: dada
pressão numérica com um radical Fn, como escrevê-Ia sem que haja radi -
denominador. Também vimos, há pouco, o que poderia justificar o estudo -
tipo de problema.
E.: Sim.
P.: Portanto, durante as aulas anteriores, deve ter surgido, pelas mãos -
alunos, uma determinada técnica que permita abordar esse tipo de tarefa --
mática.
E.: A técnica da expressão conjugada.
P.: Isso mesmo. No início, as tarefas matemáticas desse tipo eram, sem .
da, totalmente problemáticas para os alunos. O que Luis deve conseguir é _
depois de certo trabalho, essas tarefas se tornem quase que rotineiras para ""
Ou que, se você quiser, quando estiverem diante de uma expressão do tipo _
dissemos, por exemplo ... (escreve no quadro)
5-J3
2+J3
a utilização da técnica de multiplicar pelo conjugado seja algo quase auto rnáé
Que façam isso uma rotina.
E.: Se você me permite um comentário, Professora.
P.: vá em frente.
E.: Por que querer que os alunos cheguem a dominar essa técnica até -=-
ponto que se transforme em algo natural? São alunos, não profissionais! Nâo zz
para imaginar que tenham de passar a vida racionalizando esse tipo de expressá;
P.: Ou seja, você preferiria que esse tipo de tarefa se mantivesse sempre --
pouco problemática para eles. É isso? Você tem um gosto muito refinado!
E.: Não estou dizendo isso. Estou dizendo, simplesmente, que talvez seja
exigência didática um tanto excessiva ... Além disso, de qualquer maneira,
domínio da técnica somente durará um tempo limitado. Três meses depois já te 2
esquecido isso, e o tipo de tarefa voltará a ser problemática.
P.: Com toda certeza. É verdade. Agora sim você percebeu o verdadeiro p _-
blema. Por que querer que esse tipo de tarefa T se torne rotineira para os alun :-
Existe uma resposta muito simples. Vamos pegar outro tipo de tarefa T', que cor-
tenha as tarefas anteriores.
16. ESTUDAR MATEMÁTICAS 249
E.: Por exemplo, seu problema de geometria. Chegamos a uma expressão com
um radical e queremos escrevê-Ia como a + bFn.
P.: Muito bem. Quando os alunos se depararem pela primeira vez com tarefas
do tipo T', terá de surgir uma determinada técnica. Se supormos que para utilizar
essa técnica é necessário poder realizar as tarefas do tipo T, e se essas tarefas são
rotineiras, então, será ainda mais difícil que surja uma técnica para resolver as
tarefas do tipo T'. Em compensação, se alguns automatismos relativos às tarefas
do tipo T foram criados previamente, o esforço para aprender a realizar T' será
menor. Você percebe o que quero dizer?
E.: É necessário transformar em rotina aquilo que se criou, para poder conti-
nuar criando. É isso, não?
P.: Sim, isso mesmo.
E.: Mas você não respondeu totalmente a minha objeção. Se os alunos vão se
deparar com T' três meses depois de terem estudado as tarefas do tipo T, já pão
saberão como realizá-Ias. Talvez não serão tão problemáticas como no início, mas
já não serão rotineiras.
P.: Você está no caminho certo. Trata-se de um fenômeno que todo mundo
conhece. Quando você aprendeu a fazer algo bem, mas que, com o tempo deixou
um pouco de lado, geralmente é muito mais fácil voltar a encontrar o domínio que
teve um dia. Você volta a viver o processo de aprendizagem, mas de uma maneira
muito mais acelerada. Como era? Como se fazia? Isso é o que se pergunta aquele
que soube fazê-lo um dia. E voltará, rapidamente, a encontrar os caminhos bási-
cos, isto é, a técnica que dominava, e em pouco tempo ela se transformará outra
vez em uma maneira de fazer quase automática.
E.: Certo, estou entendendo.
P.: Claro que, fora isso, existe outra razão que explica o que faz Luis. Não se
trata somente de que os alunos dominem a técnica, trata-se, também, de que
disponham de uma boa técnica.
E.: O que você quer dizer?
P.: Isso: quando você acha que tem um princípio de técnica, quando tentou
utilizar essa maneira de fazer com um, dois ou três exemplos, não é muito certo
que a técnica de que dispõe funcione com um quarto exemplo. Você tem de colocá-
Ia à prova com outros exem los, para ver se ela resiste. Em g~ral, você perceberá'>
q~ técnica inicial era muit;~udimentar-;q;:;(rnecessário complicá-Ia um
pouco para aumentar sua abrangência, para que seja realmente eficaz.
E.: Por exemplo, os alunos começaram trabalhando com expressões que con-
tém um só radical e, no episódio que vimos, têm de abordar o caso de expressões
com dois radicais. Aqui, é necessário complicar um pouco a técnica inicial para
que funcione.
P.: Sim. Mas não é necessário ir tão longe. O fenômeno também é produzido
quando uma pessoa se limita às expressões com um só radical. Veja, considere a
17. 250 CHEVALLARD, BOSCH & G-':::
expressão anterior ... (Vai até o quadro.) Mas, agora, com um quadrado no d~===--
nador:
Se os alunos não viram, até o momento, expressões com um expoente a
cerá, aqui, uma pequena ruptura técnica: terão de passar para outro níve, .. _
melhor dizendo, a técnica que utilizam deverá absorver essa nova dificulda =.
E.: Multiplicando duas vezes pelo conjugado?
P.: Multiplicando duas vezes, você diz ... ou seja, se multiplico uma vez e-
(escreve):
(5 - J3)( 2 - J3)
(2 + J3) 2 - J3)
2(
E, se agora volto a multiplicar, será:
13-7J3 = (13-3J3)(2-J3) = 47-27J3
2+J3 1
E.: Isso mesmo!
P.: Sim. Mas talvez seja melhor que os alunos descubram uma variante
2
cálculo, que consiste em multiplicar primeiro por (2 - J3) . No denominador -
rá (2 + J3)2( 2 - J3)2, isto é, (4 - 3)2, ou seja, 1. Somente terá de calcular o ::
rador: (5 - J3)( 2 _ J3)2.
2
E.: E para isso é necessário desenvolver o fator (2 _ J3) •••
P.: Bom. Acho que estamos nos entendendo. De qualquer maneira, vOCÉ:
cebe que não se trata somente de dominar uma técnica, mas de criá-la. E para
é necessário aplicá-Ia em muitos problemas diferentes, para se assegurar de _
será operacional quando realmente a coloquemos em prática.
E.: Ou seja, que aquilo que os alunos de Luis fazem é colocar "no ponto-
técnica relacionada ao tipo de tarefa T.
18. ESTUDAR MATEMÁTICAS 251
P.: Sim. Além disso, acho que se trata do "acerto" final. Pelo menos no que diz
respeito às expressões com um radical.
E.: Também há o início de um trabalho novo, para fazer com que a técnica
evolua e se adapte às expressões com dois radicais.
P.: Isso mesmo. Trabalhar a técnica para evitar que sua aplicação se reduza a
* j um tipo restrito de problemas, para poder utilizá-Ia de maneira flexível, adaptan-
do-a a novos problemas. É isso que significa tomar rotineiro.
E.: Mas, Professora, em matemática não existem somente técnicas!
P.: Você tem toda razão. Também existe tecnologias e teorias. Mas já falamos
disso outro dia, não?
E.: Sim. De qualquer maneira, eu tenho a impressão que, para Luis, a única
coisa importante é a técnica.
P.: Você fala sem conhecimento de causa. O episódio que analisamos é somen-
te uma parte do trabalho. E haverá, em aula, muitos outros momentos dedicados
a outras partes da organização matemática, que Luis quer construir com seus alu-
nos. Nós também falamos disso outro dia, acho.
E.: Sim.
P.: No entanto, resta alguma coisa para esclarecer. Eu tenho a impressão de
que, para você, existem no trabalho matemático momentos nobres e momentos
menos nobres. Quando você vê os alunos descobrirem, de repente, uma técnica,
embora seja um estado nascente, você percebe que ficam excitados e muito inte-
ressados. Em compensação, quando você vê o aluno trabalhar com paciência uma
técnica para deixá-Ia "no ponto" e, ao mesmo tempo, conseguir dominá-Ia, você
percebe que estão chateados, sem interesse. Não é assim?
E.: Talvez seja.
P.: Deixe-me dizer algo. Na atividade matemát~, como em qualquer outra
atividade, existem 9uas_ earte.§, que não podem viver uma sem a outra. De um
lado, estão as tarefas e as técnicas e, de outro, as tecnologias e as teorias. A primei-
ra parte é o que podemos chamar de "p'rática" ou, em grego, apráxis. A segunda é
composta de elementos que permitem justificar e entender o que é feito, é o âmbi-
to do discurso fundamentado - implícito ou explícito - sobre a prática, que os
gregos chamaram de lagos. O que você tem de lembrar é que não há práxis sem
lagos, mas que também não há logos sem práxis. As duas estão unidas como os dois
lados de uma folha de papel. Quando juntamos as palavras gregas práxis e lagos,
dá a palavra praxeologia. Uma organização matemática, como a que Luis tenta
fazer viver em sua aula, é uma p-raxeo/,QgLa matemática. Ela deve permitir que os
alunos atuem com eficácia para resolver problem..iis e, ao mesmo tempo, ~
QSll!.~fazem de maneira racional. Reflita um pouco sobre tudo isso. Voltaremos a
falar disso no próximo encontro. Mas agora temos de "pôr o pé na estrada" como
dizem por aí.
E.: Está bem. Até outro dia. Obrigado.
19. 252 CHEVALLARD, BOSCH & c:.:=:=
o DIDÁTICO É INSEPARÁVEL DO MATEMÁTICO
E.: Bom dia, Professora.
R: Oi, como vai? Você pensou no que dissemos a última vez?
E.: Claro que sim. Além disso tem algo que me incomoda um pouco, que --
entendo muito bem.
R: E o que é?
E.: É algo referente à praxeologia.
R: Vejamos, o que você não entende?
E.: Pensei no que dissemos, há algum tempo já, sobre as obras. Sobre as o' _
matemáticas, claro. Dissemos, por exemplo, que as expressões com um radica: -
uma obra matemática. Ou uma pequena obra, como você quiser. É algo que __
ponde a uma questão: ~~screver UlTIaex~~~
a + bFn ? Também vimos em quais tipos de situações surgia à necessidade de _
~~-
ponder a essa questão. Portanto, é uma obra.
R: Até aqui, estou plenamente de acordo.
E.: Mas, da última vez, você já não falava de obra, mas de praxeologia. A...-
disso, também falou em algum momento de organização matemática. Obra, _=-
xeologia, organização matemática, não são muitas palavras? Esses termos são re-
almente necessários?
R: Sim, são muitas palavras. É que, às vezes, em nome do rigor e da precisãc
são necessárias muitas palavras. Como você veio hoje, a pé?
E.: Não, de carro.
R: De carro ou de automóvel?
E.: Como você quiser, é a mesma coisa.
R: Alegro-me que diga isso. Também poderia ter vindo de trem, não é?
E.: Sim, percebo: de trem ou de comboio ferroviário.
R: Muito bem, que progresso!
E.: Ah, Professora! Então uma praxeologia e uma obra são a mesma coisa:
R: ~, a mesma. Ou quase. O que nós dissemos é que uma obra surge co--
resposta a uma questão ou a um conjunto de questões.
E.: Sim.
R: Dizer que surge como resposta a uma questão é uma maneira de falar. U:=....
maneira um pouco metafórica. O que devemos nos perguntar é: em que consiste
essa resposta? E da última vez dissemos ~_~~Qo~!.ª ..q~~ <!.á,a obra,,~
questão que a motiva não é nada mais do gye uma determinada ...
·E.7Praxeoloiia~ -- - - " ----' . ---. ----
R: Isso mesmo. Portanto, ao passar da palavra "obra" para a palavra "prax --
logia", tivemos algum ganho. Nossa descrição inicial, em termos de questões =
respostas, ficava um pouco na superfície das coisas. Com a noção de praxeologiz
podemos entrar um pouco mais no "ceme" da obra. De que se compõe uma ob c..-
De certa praxeologia. Ou, melhor dizendo, de um sistema de raxeologias, de ,-
conjunto estruturado de raxeolo ias.
----.-
20. ESTUDAR MATEMÁTICAS 253
E.: Entendo, entendo. E esse conjunto estruturado terá algo a ver com a ex-
pressão "organização matemática", que você também empregou? Estou engana-
do?
R: Note que a expressão "organização matemática" é um pouco fraca, é um
termo neutro. Uma obra matemática é um conjunto organizado de objetos, é uma
~ organização de objetos ligados entre si por diversas inter-refações. Aexpressão
~'- -~- -, - -_.- ... _----" ~-.- ---,.' ------- .-----~ - - .
....
não diz muita coisa por si mesma, mas, às vezes, é útil porque permite indicar que
esse ou aquele objeto pertence ou não a essa ou aquela organização matemática.
E.: Como a questão dos dois radicais do outro dia, que no início não faziam
parte da organização?
R: Sim. Podemos dizer que o trabalho que Luis realiza com seus alunos consis-
te em reorganizar determinada obra matemática para que possa integrar as ex-
pressões com dois radicais. Depois que tiver realizado esse trabalho, o que obterá
'*'{ é uma nova organização matemática que inclui a anterior - a das expressões com
um só radical.
E.: E nessa nova organização também haverá técnicas, tipos de problemas e
tudo isso?
R: Sim, claro. Para construir a nova organização, terá de elaborar uma nova
~ia, com um tipo de problema determinado, uma ou várias técnicas, sua
tecnologia e sua teoria correspondente. Organizar é criar uma raxeo19~. Uma
praxeologia nova ou renovada. Na realidade, teria que se falar de org~~ção
praxeçlógica.
E.: Mais uma expressão!
R: Veja, não precisa vir com críticas. Inclusive, seria necessário falar de orga-
nizações praxeológicas matemáticas, para depois abreviar para "organização ma-
temática" ou, como dizia antes, para "praxeologia matemática". É o mesmo. Tudo
depende do que você quer colocar em evidência.
E.: Eu gostei de "obra", podia ver bem o caráter objetivo da coisa.
R: Estou entendendo. Porque você deve ser sensível à idéia ...
E.: De algo que se constrói, que os homens constróem como resposta para
certas necessidades.
( R: Para certas necessidades praxeológicas. Isto é, a necessidade de poder atu-
~ lar mais e melhor, e também de maneira mais justificada e inteligível.
E.: É verdade. Tudo depende do que se quer colocar em evidência. Também
acho que a questão da organização tem um caráter mais dinâmico: algo que se
organiza e reorganiza em função das necessidades, como faz Luis, e que pode
mudar ... De qualquer maneira, agora tenho outra pergunta.
R: Diga.
E.: Veja, vamos supor que queremos construir uma organização matemática.
R: Certo.
E.: Para fazer esse trabalho, para realizar essa tarefa, são necessárias técnicas
e, portanto, tecnologia e teorias. Portanto ... necessitamos de algo ... uma praxeolo-
gia, não? Para construir uma organização matemática é necessária outra praxeo-
21. 254 CHEVALLARD, BOSCH & ~:.::_
logia. Mas essa nova praxeologia, que serve para construir outra, não é uma =-__
xeologia matemática. Ou é?
P.: Você acaba de tocar num ponto muito delicado. Vamos ver. Elabora:- _
reconstruir certa.§..-º~~ções m..e~a.' !~s, isso faz tanto os professores
seus alunos como os pes uisadores em matemática. Quando um matemático =--
trói uma nova organização matemática, f~o com det~rminadas técnicas, jls::-
l!kadas de ~m3 qtl~lJl1i!lªº"ªjn~a, ou seja, r~c<2!!.~_I2do alguma raxeol~
a
Certo?
E.: Sim.
P.: Faz um trabalho matemático, um trabalho regulado por determinada _
xeologia. E você diria que o trabalho de um matemático não é matemático?
E.: Bem, a verdade ...
P.: Claro, isso é muito delicado. A praxeologia do matemático é o que pe
que ele faça matemática. Fazer matemática, isto é, produzir matemática, praxer-
logias matemáticas. Você está me acompanhando?
E.: Acho que sim.
I P.: Bom, vamos continuar, embora seja um pouco difícil. A praxeologia IDE-
) mática que o matemático quer construir é o objetivo de seu trabalho, o prod
que ele quer obter. Em compensação, sua praxeologia de matemático é o que -:o
t proporciona os meios para realizar esse trabalho.
E.: Professora, posso interrompê-Ia um minuto? Ao analisar o episódio
Marta e seus alunos, você falou de técnica didática. Marta queria que seus alue
construíssem determinada praxeologia matemática - relacionada à álgebra ~
mentar - e, para isso, recorria a determinada técnica didática.
P.: Sim, didática no sentido de relativa ao estudo.
E.: Exatamente. Se "didático" quer dizer "relativo ao estudo", então ... -(=
geralmente, quando o matemático quer construir uma praxeologia matemática ::
porque quer resolver um determinado tipo de problema. E aqui também dizem -
em linguagem corrente, que o matemático estuda. os PE<?!?lem~que ~le mes::::;.:
pr2R9.e.
P.: Claro. O biólogo estuda problemas de biologia, o químico problemas
química, etc.
E.: Então, se estuda problemas, também podemos dizer que a técnica _
utiliza para estudar problemas é uma técnica didática. E a praxeologia que --==
permite atuar será, pelo menos, uma praxeologia didática.
P.: Conclusão?
E.: Que para elaborar uma praxeologia matemática, o matemático neces .•
de uma praxeologia didática. É isso?
P.: Isso mesmo. Claro que aqui voltaremos a encontrar uma dificuldade. u-~
dificuldade inevitável, que faz parte da própria natureza das coisas.
E.: O que você quer dizer?
P.: Bem, que a fronteira entre o didático e o matemático não está estabeleci' =
de maneira definitiva. Não podem ser separados facilmente. "Fazer matemática"
22. ESTUDAR MATEMÁTICAS 255
na linguagem corrente, quer dizer ao mesmo tempo, operar, atuar, de acordo com
~ certa praxeologia matemática - como quando resolvo uma equação de segundo
grau - e também quer dizer produzir uma praxeologia matemática nova ou par-
cialmente nova. A dificuldade da qual estou falando aparece muito claramente
nessa dupla vertente do verbo fazer: fazer no sentido de produzir e fazer no senti-
do de agir.
E.: Espere. Para agir, será necessário recorrer a uma praxeologia matemática
e, para produzir, será necessária uma praxeologia didática? Não está muito claro
para mim. Você também disse que a fronteira entre ambos não está completamen-
te estabelecida. O que isso significa exatamente?
P: Essa também é uma questão difícil. Veja, a história da matemática mostra
que muitas técnicas utilizadas para produzir matemJtica acabaram se integrando,
no fim das contas, em ~~s_õe~_!E~!emátiqls. Ou, se você preferir, que certas
"coisas didáticas", que servem para estudar problemas e criar nova matemática se
transformam, progressivamente, em "coisas matemáticas" e acabam se "materna-
tizando". Que, historicamente, é produzida uma certa "maternatização" do didáti-
co.
E.: Não entendo isso. Não está me parecendo nada claro.
P: O que você acha que não está claro?
E.: Vamos pegar um exemplo. Eu, quando tenho de estudar um tipo de pro-
blema de matemática, costumo começar examinando alguns problemas simples,
os mais simples que se possa imaginar. Isso é uma técnica didática?
P: Sim, claro que é. 1
E.: E você acha que essa Jécnica didática, no fim das contas, será matematiza-
da e passará a fazer parte de uma organização matemática?
P: A pergunta tem fundamento. Mas, antes, é necessário fazer algumas obser-
vações gerais. Primeiro direi que o processo de matematização do qual eu fal~ __
geralmente afeta todo tipo de objeto, e não somente os ob·etos didáticos:-Ê -um
fenômeno muito mais amplo. Por exemplo: a partir da idéia comum de retilíneo
de nossa noção de linha reta, o processo de matematização produzirá a reta mate-
mática, com sua equação cartesiana, e tudo mais. Claro que o inverso, o processo
de "matematização", deixa de lado muitos objetos, e somente poderemos nos apo-
derar de alguns deles, sejam ou não didáticos.
E.: Portanto, a matematização das coisas é um fenômeno pouco freqüente.
P: Sim, podemos dizer isso, embora seja mais freqüente do que pareça, sem-
pre que levarmos em consideração que a matematização de um objeto é algo par-
cial, que somente se traduz, matematicamente, algumas propriedades do objeto
matematizado. Como, por exemplo, na técnica matemática que você descreveu ...
E.: Sim, e daí?
P: Bem, podemos imaginar que, da utilização dessa técnica, surja a idéia de
que, quando estudamos determinado tipo de problema, é útil examinar um bom
número de modelos, para destacar as propriedades realmente interessantes que
aparecem em cada problema do tipo em questão. Em certos contextos do trabalho
23. 256 CHEVALLARD, BOSCH & G':===
matemático, essa idéia leva à noção de axiomáticas: o tipo de problema será te: -
mulado considerando unicamente aqueles casos em que são cumpridas det
nadas propriedades propostas a priori - os axiomas. Daí, então, são estudadas
propriedades dos "~temas matemáticos" que cumprem essas propriedades.
*
í E.: Certo, mas construir uma axiomática no sentido de explicitar certas
sições prévias, isso continua sendo uma técnica de estudo, uma técnica didázi
P.: Exatamente. Claro que, a partir daqui, é produzida uma evolução histd
.-
muito importante, na qual se matematizará a técnica de axiomatização que,
você disse, a princípio é uma técnica didática. A partir do século XIX e sobre; -
no início do XX, os matemáticos elaboraram toda uma teoria matemática das
omáticas com o objetivo de entender melhor - e também controlar melhor -
ferramenta axiomática, que é um ,instrumentQ..deJ:ra.b.allill para o matemáti _
E.: Mas, então, novamente teremos um ,!Qgrumento didático, visto que
ferramenta servirá para estudar melhor novos tipos de problemas!
P.: Isso mesmo. No princípio, há uma maneira de fazer, uma técnica ~
estudar certos tipos de problemas. Essa técnica será matematizada parcialme
dando lugar a novos conhecimentos matemáticos, que permitirão melhorá-Ia,.
~ cisá-ia, dar-lhe maior eficácia. Esse é o interesse de toda matematização, e nã
da rr.atematização de coisas didáticas. Por isso, eu dizia que não podiam ser
radas,
E.: Estou começando a entender... Embora preferisse um exemplo mais =c -
mentar.
P.: Você sempre pedindo mais! Nunca se dá por satisfeito! Vejamos, um ex=-
plo mais elementar ... Então veja, será um exemplo meio artificial, mas em
caso mais concreto.
E.: Certo.
P.: Vamos imaginar um aluno muito interessado pela matemática e que dís; -
de uma técnica de estudo um tanto quanto particular: consiste em supor que
te um número que cumpre certas propriedades, embora não saiba se o nlL:::.=::
existe ou não, ou até saiba que esse número realmente não existe.
E.: Por que você não explica melhor?
P.: Veja, pegue o seguinte caso. Considere uma obra matemática que existe
todos os currículos do ensino fundamental e cujo objetivo é responder à ques -
como resolver uma equação quadrática?
E.: Certo. A resolução de equações de segundo grau.
P.: Nosso aluno quer reconstruir, à sua maneira, a organização mate --
que estudou em classe, sob a coordenação de seu professor.
E.: Ou seja, que conhece essa organização matemática.
P.: Sim, é o que suporei. Sabe, por exemplo, que a equação ax2 + bx +
tem duas soluções diferentes se e somente se b2 - 4ac > 0, uma solução se b2 --
°
= e nenhuma solução se b? - 4ac < O.
E.: Certo. b2 - 4ac é o discriminante da equação. É o primeiro que se apr
ao estudar as equações de segundo grau.
24. ESTUDAR MATEMÁTICAS 257
P.: Sim. Mas essa organização matemática não lhe agrada.
E.: Por quê?
P.: Porque não entende o resultado anterior. Não entende porque o discrimi-
nante desempenha um papel tão importante, por que aparece precisamente a ex-
pressão b2 - 4ac. Você poderia dar-lhe a resposta?
E.: Não sei... Por que decisivo é o sinal do discriminante, e não outra coisa?
Não sei. É o que obtemos ao resolver a equação.
P.: Veja, vamos imaginar nosso aluno trabalhando sobre a questão proposta. A
primeira coisa que fará será utilizar sua técnica de estudo habitual para ver o que
acontece nesse caso.
E.: Em que consiste essa técnica concretamente?
P.: Em supor que a equação tem uma solução Xo da equação ...
E.: Mas, no início, ele não sabe se a equação tem ou não solução.
P.: Exatamente. Essa é sua técnica: supor que existe um número Xo que é a
solução da equação axo2 + bxo + c = O. E então o subtrai da equação inicial, assim
(vai até o quadro e escreve):
ax2 + bx + c = O
2
axo + bxo + c = O
2
axo + bx., + c = O
a( x2
- Xo 2) + b(x - xo) = O
<=> a(x-xo)(x+xo)+(x-xo)=O
E.: Muito bem. E agora?
P.: Agora chega à seguinteconclusão: simplificando por a(x - xo) aparece
outra solução da equação que satisfaz a(x + xo) + b = O. Portanto, se Xo é uma
so l-I - ,
uçao, a outra so uçao e Xl = b
-Xo - -.
a
E.: E, então?
P.: Bem, acaba de perceber que se a equação tem uma solução, então tem
duas.
E.: A não ser que seja a mesma.
P.: Sim, claro. Na realidade, o que acaba de demonstrar - ou quase - é que
uma equação de segundo grau tem, no máximo, duas raízes, algo que o professor
não havia feito em classe.
E.: Certo, certo. Mas, e o discriminante?
P.: Vou falar sobre isso agora. Sua técnica consiste em supor que sempre exis-
tem os números que procura, isto é, nesse caso, as soluções da equação. Supõe que
haja uma e demonstra então que tem de existir a outra, embora possa ser igual à
anterior. Mas o que ele quer ver é o que se esconde atrás da equação, ir, de certa
maneira, olhar o outro lado do espelho.
25. 258 CHEVALLARD, BOSCH & GASC
E.: O que você está querendo dizer?
E: Que aqui o que fará será expressar os coeficientes a, b, c em função das
soluções e substitui-los na equação inicial. Já sabe, porque foi visto em classe, que
a soma e o produto das soluções de uma equação de segundo grau são dados po _
-b c
Xo + Xl =- e Xo' Xl = -.
a a
E.: Isso mesmo. Supondo que a equação tenha duas soluções, claro.
E: Sei, mas essa é precisamente sua técnica de estudo. Supõe que haja duas
soluções, embora não existam. Vou continuar. Porque agora perceberá que esse
resultados vistos em classe são facilmente decorridos do que ele já tinha.
b
E.: Sim. Ele havia obtido Xl = - Xo - Para a soma é evidente que
a
-b
Xl + Xo = -.
a
E: E para o produto também. Vou fazer, veja (escreve):
b 2 b -1 2 -1 c
xo' XI = XoC-Xo- -) = -xo - -Xo = -Caxo + bxo) = -C-c) =-.
a a a a a
E.: Muito bem. Mas ainda não chegamos ao discriminante.
E: Paciência! Já estamos quase lá. Das duas expressões anteriores, concha
que -b = a(xI + xo) e que c = axl' xo. E, então, chega a:
E.: Ah! Estou entendendo. Se há duas soluções, então o discriminante b2 - c:
que vale a2 (xo - xIF é necessariamente positivo e é igual a 0, quando as soluções
são iguais. Se for negativo, não pode haver soluções porque, se houvessem, serz
positivo!., I
E: Perfeito. Mas ainda não terminamos. Nosso aluno aprendeu em aula lJ-·
fórmula que também não entende, que lhe parece meio misteriosa: aquela que -
a expressão das soluções. Vou recordá-Ia (escreve):
-b ± Jb2 - 4ac
x=------
2a
26. ESTUDAR MATEMÁTICAS 259
Se aplicar aqui as mesmas substituições que antes, chegará a:
A fórmula anterior se transforma, então, em:
Com o sinal de + se obtém Xo e com o sinal de -, Xl.
E.: Está certo. Acho que estou entendendo o que você quer dizer. Mas tenho
algo a objetar.
E: Vejamos, qual é sua objeção?
E.: Veja bem, a técnica de estudo utilizada pelo nosso aluno, na realidade, é
urna jécnica, superclássica. Consiste em estudar as conseqüências apresentada,
pela existência de um objeto que não se conhece: se o objeto existe, então deve
acontecer isso ou aquilo. Talvez, o aluno tenha descoberto isso por ele mesmo, e
isso já tem muito mérito, mas a técnica utilizada continua sendo uma técnica de
estudo, uma técnica didática. Não vejo em que se matematizou. Além disso, há
um erro em sua argumentação: você demonstrou que se o discriminante for nega-
tivo, então, não há soluções; mas não demonstrou que, se for positivo, há, efetiva-
mente, duas soluções.
E: Você tem razão. Embora seu erro não seja muito grave, porque já haviam
visto isso em aula.
E.: E minha objeção?
E: Calma, já falo sobre isso. Em certo sentido, você tem razão novamente.
Mas o que eu supunha é que o estudante imaginava um universo de números mais
amplo do que o que ele conhece, números fictícios, se você quiser assim. São
números que ainda não existem para ele, mas que existem para o matemático.
E.: Você está se referindo aos números complexos?
E: Exatamente. De fato, a técnica utilizada hoje em dia está totalmente mate-
matizada: consiste em nos situarmos no plano complexo. Ou, se ainda lhe resta
alguma lembrança da teoria de corpos, que você estudou na licenciatura, em nos
situarmos no corpo da decomposição do polinômio ax2 + bx + c = 0..-
,
E.: Bom, tem algo que não entendo muito bem. Se digo "suponho que" exista
uma solução etc.", estou utilizando uma técnica didática. Em compensação, se
digo "me situo no corpo dos números complexos etc", é que recorro a uma técnica
matemática. Nos dois casos, tratam-se de técnicas utilizadas pelo matemático. Por
que a primeira seria didática, e a segunda, matemática?
27. 260 CHEVALLARD, BOSCH & GASCÓ
R: Você tem razão, A diferença é muito sutil. Por isso antes eu dizia que a
fronteira entre o matemático e o didático é muito nebulosa. De qualquer maneira.
há uma pequena diferença.
E.: Qual?
R: Vamos nos colocar no nível da justificativa da técnica, no nível tecnológico.
No primeiro caso, quando suponho que exista uma solução e examino as conseq --
ências, o que faço se justifica no âmbito da lógica. Inclusive, na maioria dos caso
estaríamos no âmbito da lógica natural, que ainda não foi matematizada pel
lógico ou pelo matemático. Em compensação, no segundo caso, quando conside
as soluções complexas, o que justifica minha técnica é certa organização tnatemé-
tica que os matemáticos elaboraram em torno da noção de número complexo.
Posso supor isso porque, por exemplo, há um teorema que diz que todo polinôrní
de grau n tem n raízes complexas.
E.: Sei. No primeiro caso, temos uma organização que não tem porque ser
matemática (embora possa ser matematizada) e, no segundo caso, trata- se ce
uma organização indubitavelmente matemática.
R: Isso mesmo. Além disso, a distinção que acabo de fazer não é, em absolu o.
"metafísica". Ela, de fato, provoca na sala de aula dificuldades muito concretas -
difíceis de administrar. Quando os instrumentos do trabalho matemático não tez;
o status de objetos matemáticos, por exemplo, quando fazem parte de nossa "pra-
xeologia natural", à qual se supõe que todos temos de maneira espontânea, enrãr
o professor não pode pegá-Ias como objetos de estudo oficiais.
E.: Porque se não forem objetos matemáticos, não posso considerá-Ias?
R: É algo mais. É como se tivesse de supor que os alunos os conhecem ==
dominam, que dispõem deles de maneira natural, espontânea. É o que acontece,
por exemplo, com a lógica natural, que permite fazer os primeiros raciocíni -
tomar as primeiras decisões, tirar as primeiras conclusões no trabalho matemárí-
co.
E.: Acho que começo a entender isso, mas me parece tudo muito confusc
Posso fazer outra pergunta?
R: Bom, mas será a última de hoje. Pense que as coisas não podem ser ent
didas sempre na primeira vez.
E.: Veja. No início, quando examinamos o episódio de Marta, você me fal _
de técnicas didáticas. Há pouco, nós falávamos das técnicas utilizadas pelo mate-
mático, e agora você acaba de descrever uma técnica didática utilizada pelo a.:_
no. Em todos os casos falamos de técnica didática.
R: Sim. Ou, mais em geral, de praxeologia didática.
E.: E é sempre a mesma coisa, nos três casos?
R: Sim, essencialmente sim. Embora, claro, o matemático, o professor e -
aluno não se deparem sempre com os mesmos problemas didáticos. Mas, nos
casos, o que fazem é colocar em prática - às vezes criar - uma técnica de esnzi;
da matemática. Sim, uma técnica didática.
28. ESTUDAR MATEMÁTICAS 261
E.: Então, o matemático é, ao mesmo tempo, aluno e professor, é seu próprio
professor.
R: Sim.
E.: Portanto, um grande matemático será, ao mesmo tempo, o melhor aluno e
o melhor professor. Será o melhor didata!
R: Sim e não. É o melhor aluno no contexto no qual trabalha. Certamente que
há melhores alunos do que ele em outros contextos. E, sobretudo, como professor,
somente é um bom professor em relação a um só aluno: ele mesmo. Sua ciência
didática tem um alcance muito limitado: no princípio é eficaz, até extremamente
eficaz, mas em somente um caso.
E.: Quando ele é o professor e também o aluno.
R: Você deve entender que a ciência didática que tentamos elaborar não pode
se basear nesse tipo de proeza, a não ser que pretenda ter um alcance muito maior,
ser válida para a maioria dos professores e dos alunos. Acontece o mesmo com a
ciência médica: não se desenvolve para as pessoas que gozam de boa saúde. Mas
agora teremos de parar por aqui. Guarde as perguntas que ficaram para o próximo
encontro e revise bem o que dissemos hoje.
E.: Vou fazer isso. Obrigado, Professora.
OS MOMENTOS DE ESTUDO
E.: Oi, Professora.
R: ai. Preparou algumas perguntas para hoje?
E.: Sim, claro. Eu tenho a impressão de que cada vez tenho mais.
R: Então, vá em frente.
E.: Veja, é outra coisa sobre Marta e Luis. Você disse que os dois conduziam o
estudo de um tipo de problema e que os dois episódios eram diferentes, em pri-
meiro lugar, porque não apresentam o mesmo momento do processo de estudo.
Não é isso?
R: Sim, isso mesmo.
E.: Portanto, há momentos diferentes.
R: Sim.
E.: Você poderia explicá-los para mim? Quero dizer, poderia me contar quais
são os diferentes momentos possíveis? Essa é a pergunta que trouxe hoje.
R: É uma grande pergunta. E espero que não traga muitas mais como essa!
Bom. Vamos começar pelo início, quero dizer, pelo que vimos até agora.
E.: Sobre Marta e Luis.
R: Isso mesmo. No caso de Marta, vimos o momento em que os alunos se
deparam pela primeira vez com um novo tipo de problema. É o que se chama de o
momento do primeiro eE1:contro:tom o tipo de problema.
29. 262 CHEVALLARD. BOSCH & GASCÕ
E.: Certo. Mas isso também acontece na aula de Luis: os alunos se deparara
pela primeira vez com expressões com dois radicais.
P.: Você tem razão. Mas você também se lembrará que não era isso que mais
incomodava.
E.: É verdade.
P.: O que o incomodava era, de fato, outro momento do processo de estudo.
Quando Luis pede a seus alunos que resolvam um grande número de exercícios
sobre expressões com um radical, está claro que já não se trata do momento C
primeiro encontro com esse tipo de problema. Já nem sequer se fala de problemas.
mas de exercícios: os alunos se exercitam na resolução de exercícios desse tipo. Jc.
dispõem de uma técnica, e o que estão fazendo é melhorar seu domínio des
técnica. Inclusive, no final, eles se contentam em comprovar que sabem utilizá- -
E.: E isso é um momento do processo de estudo?
P.: Sim, é~momento do trabal~~_~c:~técnicg. Já falamos disso, você não se
lembra? .-
E.: É verdade. Mas, então ...
P.: O que foi?
E.: Você disse que, no episódio da aula de Luis, há o momento do primei:
encontro com um novo tipo de problema - as expressões com dois radicais - =-
agora você acaba de dizer que há o momento do trabalho da técnica.
P.: Sim.
E.: Então, há dois momentos ao mesmo tempo!
P.: É necessário precisar mais esse ponto. É verdade que, nesse episódio c=
aula, os alunos e o professor vivem dois momentos diferentes ao mesmo tempo.
ou, pelo menos, durante o mesmo período de tempo.
E.: Sim, é o que eu dizia.
P.: E aqui surge uma pequena dificuldade, pois a noção de "momento" que
utilizei não é uma noção estritamente cronológica.
E.: O que você está querendo dizer?
P.: Veja, quando dizemos que os alunos de Luis vivem o momento do prime' _
encontro com um novo tipo de problema, o mais provável é que Luis tenha dísrrí-
buído para eles a folha de exercícios no início da aula, ou até antes. Em qualquer
caso, os alunos estiveram trabalhando, durante a aula, com essa folha de exercí .-
os. Portanto, cada um pode ter se encontrado com o novo tipo de problema indíví-
dualmente. E não ao mesmo tempo, claro.
E.: E que conclusão devemos tirar. disso?
P.: Que, para esses alunos, o mo~ento do primeiro encontro acontecerá er;
dois momentos diferentes. Em primeiro lugar, há um encontro em que estão sozi-
nhos com a folha de exercício. Depois, há o encontro em que o professor os guia,
Geralmente, os momentos não são vividos ao mesmo tempo. Existem de maneira
dispersa. São vividos várias vezes. Por exemplo, é bem provável que alguns alun =
tenham perdido esses dois instantes da aula de Luis, como quando você cruza cor;
alguém pela rua, e não o vê. Então pode acontecer que o primeiro encontro se:::.
30. ESTUDAR MATEMÁTICAS 263
produzido mais tarde, quando, em casa, tenham de fazer o trabalho que Luis
mandou.
E.: Percebo. E o mesmo acontecerá com o momento do trabalho da técnica,
não? Porque suponho que uma técnica não deve ser trabalhada de uma só vez.
E: Claro que não. Além disso, quando um aluno se põe a fazer os deveres de
casa, a retomar o que foi feito em classe ...
E.: Voltará a viver os diferentes momentos: o do primeiro encontro, o da téc-
nica ...
E: Isso mesmo.
E.: Ou seja, que um momento não é somente algo que se vive em classe, com
o professor.
E: Exatamente. Inclusive, se não houvesse professor, se o aluno tivesse de
estudar sozinho porque, por exemplo, faltou à aula, também teria de passar pelos
~~CQmp_õ_eI!l 2..Jlroces~<L.deestggo: são as grandes tarefas
didáticas que não pode deixar de realizar. Dito isso, quando dispomos de um pro-
fessor para coordenar o estudo, essas tarefas didáticas são tarefas cooperativas,
nas quais participam alunos e professor: o aluno conta com o professor, para que o
ajude a viver esses diferentes momentos, e o professor conta com a energia de seus
alunos e com seu envolvimento no processo de estudo (que inclui, como você bem
sabe, a lição de casa), para que sua ajuda seja eficaz.
E.: Certo. Mas só há esses dois momentos? Você está querendo dizer que o
processo de estudo se reduz a deparar-se com um tipo de problema e deixar "no
ponto" uma técnica que permita resolvê-los?
E: O que você acha?
E.: Bem ... por exemplo, dissemos que toda técnica devia ser justificada. Por-
tanto, necessariamente haverá um momento ... Ah, claro! Agora já sei o que você
chama de momentos! É simplesmente no sentido de que "há um momento no
qua I... "E'· ?
ISSO.
E: Sim, muito bem. É exatamente isso. Mas continue com o que estava dizen-
do.
E.: Eu dizia que há um momento em que terá de justificar a técnica. Deve ser
o momento da justificativa, ou algo assim, não é?
E: Poderíamos dizer que é isso. É o~!l:~o tec~ológico-teó!!<3 Parece mais
sensato, mas também tem a vantagem de dar ênfase aos-dois níveis de justificati-
va: a tecnologia da técnica, que se mantém mais próximo da técnica, e a teoria,
um pouco mais distante.
E.: Certo, certo. Portanto, há três momentos do estudo.
E: Não vá tão rápido. É mais complicado do que você pensa. Talvez seja me-
lhor dedicarmos um pouco de tempo para criarmos uma pequena organização
matemática em torno de um tipo de problema que você não deve conhecer muito
bem. O que você acha? Assim poderemos deixar mais claros os diferentes momen-
tos.
E.: Como você quiser, Professora.
31. r---~
264 CHEVALLARD, BOSCH & GASC
E: Muito bem. Proponho que estudemos o seguinte problema: determinar
um número dado é racional ou irracional.
E.: Como J2, por exemplo?
E: Isso. J2 é um número irracional. Isso você já sabe.
E.: Sim, claro.
E: E o que você sabe mais sobre isso?
E.: Não muita coisa. J3 também é irracional, e J5, etc.
E: E JC, no geral?
E.: Quando c é um número natural? Acho que sim, a não ser que seja uz;
quadrado perfeito, como 4 ou 9.
E: Você saberia demonstrar isso?
E.: Que é um número irracional? Conheço uma demonstração para J2, ê.
clássica.
E: E para o caso geral?
E.: Suponho que seria mais ou menos igual.
E: Bom. Agora proponho o seguinte: não vamos demonstrar logo que JC '"
irracional, mas tentaremos çgnstruir...U1lliltécnica para determinar se um núme:
dado é ou não irracional. Se conseguirmos, e se ,a justificativa dessa técnica exi ai:-
a demonstração desse resultado, então o faremos. Mas primeiro é necessário _'"
concentrar na construção da técnica.
E.: Certo. Portanto, vamos diferenciar o momento tecnológico-teórico, o da
demonstração e justificativa da técnica. Pois já sabemos que um momento pode
ser vivido várias vezes.
E: Exatamente. Na realidade, trata-se de algo muito banal na atividade mate-
mática. Somente em alguns livros ou em alguns cursos se começa alinhando todos
os resultados necessários, sem que o leitor ou o participante do curso possa perce-
ber sua necessidade. É uma maneira de proceder muito econômica, mas tambér;
artificial. Então, mãos à obra.
E.: O quê? Desculpe-me?
E: É necessário estudar o problema. Por onde você começa?
E.: Não tenho idéia.
E: Você está caindo em um vício muito escolar: espera que o professor diga
que deve fazer. Vou dizer para você, senão, não terminaremos nunca.
E.: Não, não. Já sei por onde começar: pegando um caso específico. Por exerr-
pio, 2J2.
E: E daí?
E.: É irracional.
E: Por quê?
E.: Porque se fosse racional, então sua metade também o seria. Mas sua meta-
de é J2 que é irracional. Estamos utilizando o teorema, Professora!
E: É verdade. Mas ainda não é suficiente para que o demonstremos. Vamos
continuar. Qual outro caso?
32. ESTUDAR MATEMÁTICAS 265
E.: Vamos pegar ... 7 + J2. Aqui também é fácil. Se fosse racional, então
7 + J2 - 7 também seria. E isso é falso.
. , 3+.Js
P: Sim, E se pegassemos ---?
4
E.:
.
Sena . f . 1 - 3+.Js
a mesma coisa: se osse raciona , entao 4 vezes --- = 3+" 5
~
4
também seria, e o mesmo com 3 + .Js - 3 = .Js . Portanto, se sabemos que .Js não
, . 1 - 3+.Js bé - r
e raciona , entao --- tam em nao sera.
4
P: Bom. Então agora já temos uma pequena técnica de curto alcance e essen-
cialmente discursiva: o que você estava fazendo agora, em cada momento, era
repetir um pequeno discurso.
E.: Sim.
P: E o que podemos fazer é tentar abreviar essa técnica, para que não tenha
de repetir a mesma coisa a todo momento.
0E.: O que você está-querendo dizer?
P: Podemos recorrer a uma estratégia didática muito simples: enriquecermos
o entorno tecnológico da técnica para tomar sua utilização mais ágil.
E.: Não entendo.
P: Eu vou mostrar para você. Vou incluir na tecnologia o seguinte teorema: se
a e b são números racionais, com b diferente de 0, e se a é um número irracional,
então a + ba também é irracional.
E.: Concordo. É muito fácil de demonstrar: se a + ba for racional, então
a + ba - a = ba também seria, e o mesmo com ba/b = a. E isso é falso.
P: Exatamente. Você acaba de repetir mais um vez o pequeno discurso, mas
'S d
agora o f ez de uma vez so. e voce quisesse emonstrar que
A· 11- 3J8 e,.irraciona
. 1
,
7
poderia escrever (vai até o quadro e escreve):
J8 irracional =>
11- 3J8 11 3 t: . .
= - - -" 8 irracional.
777
E.: Certo. Mas aqui também necessitamos saber que J8 , .Js, etc. são irracio-
nais.
P: Sim. E isso faz com que o teorema sobre Fc
seja ainda mais interessante.
Mas vamos nos deter no que acabamos de escrever. Pode ser aplicado a qualquer
número do tipo a + bFc, mas também a qualquer número que se possa escrever da
mesma maneira. Entende o que quero dizer?
33. 266 CHEVALLARD, BOSCH & GASC
3-.Js
E.: Claro! Se pegarmos um número como --r=::
2 + ,,5
P.: Voltamos aos nossos números preferidos! Esse é o alcance da técnica. -=-
quando chegamos nesse ponto, nossa organização matemática comporta, de' :::
diato, um teorema demonstrado e um teorema conjeturado, que espera ser c:::-
monstrado.
E.: E a técnica do discurso, e a da manipulação de expressão com radicais, ::
tudo isso, não?
P.: Claro, claro. Mas eu queria assinalar o seguinte: o pequeno discurso _..:.=
você fazia antes já não faz parte da técnica que consideramos. Poderá continua;
nos servindo durante a construção da organização matemática que realizam -
mas se tornou tecnicamente inútil.
E.: Não entendo. <i:»:
P.: Veja. Até agora, diante de um número como 3 -.fi, você dizia: "Se 3-
fosse racional, então ..." Agora você dirá: "Como .fi é irracional, 3 -.fi tarnbérr é
irracional". Não é o mesmo discurso, já não se utiliza a mesma técnica. Em -':C
aula, por exemplo, os alunos poderão ter começado fazendo os pequenos disczr-
sos que você fazia, mas terá de chegar o momento em que o professor dirá: "Bez;
agora vocês já não precisam fazer mais assim. Isso era no início. Agora é necesss-
rio ir mais rápido, fazer diretamente".
E.: Mas sempre haverá alunos que se manterão na questão do início.
P.: Sim, alunos de alguma maneira reacionários, que terão dificuldade de -=.
desprenderem da primeira técnica. É normal. Mas o professor indica a eles q =-
nessa~~ que é sua aula, terão de fazê-lo dessa ou daquela maneira. Ine=»
tavelmente, em algum momento, deverá precisar qual será a "boa técnica".
E.: Você diz que, inevitavelmente, há um momento em que ... É um novo -
mento? Quero dizer, em relação àqueles que já vimos?
P.: Sim. É o momento da institucionalização.>,
E.: E todos os professores têm dê precisar esse tipo de coisà? Por que -;=-
deixar que cada aluno utilize a técnica que melhor lhe convenha? Desde que s _-
justificada, claro.
P.: Boa pergunta! Em primeiro lugar, você deve considerar que a instituciozz-
lização não diz respeito somente à técnica. Diz respeito à organização matemá -_
em seu conjunto e em toda sua complexidade, à praxeologia matemática. Tambéc;
são institucionalizados elementos tecnológicos e teóricos, os subtipos de pro: ==-
mas, etc, Além disso, pense que a institucionalização não é coisa de professo
Ela sempre é produzida, até mesmo no caso de um matemático que estude som--
te um tipo de problema.
E.: E como ele pode institucionalizar algo sozinho? Uma pessoa sozinha ja ::
uma instituição?
P.: Claro que sim. É um caso limite de instituição. O importante é perceber ç: -"
o fenômeno é o mesmo: se o matemático não quer se perder no que está fazenda
34. ESTUDAR MATEMÁTICAS 26
então, com certa regularidade, terá de institucionalizar o produto de seu trabalho:
precisar qual técnica utiliza, quais elementos fazem parte do entorno tecnológico-
teórico - e quais não -, a quais subtipos de problemas se pode aplicar a técnica
e a quais não, etc. Se não, sua própria atividade se tomaria ilegível.
E.: Estou entendendo. E ainda será mais importante se, em vez de um mate-
mático, for um grupo de matemáticos ou de alunos.
E: Exato. É muito mais difícil garantir a legibilidade de uma atividade coope-
rativa, colocar-se de acordo para saber o que cada um faz, etc.
E.: Agora, retrospectivamente, vimos um momento tecnológico-teórico, um
momento de institucionalização e... e o momento do primeiro contato ou, melhor
dizendo, do primeiro reencontro, porque a questão da irracionalidade não é nova
para mim.
E: Não totalmente nova, mas quase.
E.: Concordo. Mas, e fora isso? Por exemplo, de tudo que fizemos até agora,
houve mais momentos?
E: Sim. Preste atenção que estamos tentando fazer com que surja uma técnica
para poder resolver o problema que estudamos.
E.: E isso é um momento?
E: É o momento exploratório, durante o qual se explora o tipo de problema
tentando construir uma técnica.
E.: A propósito, eu tinha pensado algo antes, sobre a técnica que tentamos
construir.
E: Sim?
E.: Vamos pegar J3 + J5 . Aqui posso dizer: se fosse racional, seu quadrado
J5
seria racional e, então, 3 + seria racional, o que é falso. E, da mesma maneira,
também poderia ter pegado V3 J5 ,
+ ou qualquer outra raiz.
E: Muito bem. O que você fez foi encontrar um subtipo de problema, ao qual
se pode estender a técnica.
E.: E isso faz parte do momento do primeiro encontro?
E: Como você quiser. Tudo depende do que pegar como ponto de referência.
Durante a exploração do tipo de problema de partida é comum se deparar com
subtipos de problemas específicos e, ao encontrar um novo subtipo, o processo
recomeça: explora-se o subtipo, tenta-se adaptar a técnica, justificar ou explicar a
adaptação, etc.
E.: E, portanto, voltamos a institucionalizar.
E: Sim, claro.
E.: Mas, em relação ao entorno tecnológico-teórico, com a variação que intro-
duzi não é necessário mudar nada.
E: Como não? Você deve olhar as coisas com mais cuidado. Preste atenção
que, na técnica que você acaba de utilizar, o primeiro ato consiste em elevar ao
quadrado.
E.: Sim. É óbvio, o primeiro que qualquer pessoa pensa em fazer.