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269e4c10-67af-4367-b303-ec0e11cae31e
O nosso sector bancário
continua entre os que mais
perdem perante estratégia de
fuga ao risco por parte dos
investidores. Dívida pública
também sob pressão p22
O objectivo é investir em
centros de saúde. Adalberto
Campos Fernandes quer
fazer mais e diferente com
praticamente o mesmo
orçamento. p10
Mercadosmundiais
emcrise,Portugal é
dosmaisafectados
MinistrodaSaúde
querreduzir
urgênciasem10%
1922-2016
MORREUNUNOTEOTÓNIOPEREIRA,
OARQUITECTOMILITANTE
Destaque,2a6
CARLOS LOPES
Análisea240fortunas
levoufiscoaacçõesde
controlosobre44casos
O exame da Autoridade Tributária incidiu sobre a situação fiscal
de contribuintes com património acima dos 25 milhões de euros.
Sigilo bancário continua a ser obstáculo Economia,20
A medida pode durar até 26
de Fevereiro e já há quem
tema o seu prolongamento.
A Liga dos Direitos do
Homem pediu a intervenção
do Conselho de Estado p24
Novo treinador, que será
hoje apresentado, assistiu
na bancada à derrota com
o Famalicão, que ditou a
eliminação dos “dragões”
da competição p40
O caso da devolução das
subvenções vitalícias dos
políticos “não é positivo”
para a campanha de Maria
de Belém, mas o seu porta-
-voz ataca o “populismo” p12
Legalidadedoestado
deemergênciaem
Françasobsuspeita
JoséPeseiroherda
umFCPortojáfora
daTaçadaLiga
Belémnaberlinda
depoisdecasodos
subsídiosapolíticos
QUI21JAN2016EDIÇÃOLISBOA
CINEMA
CERIMÓNIADOS
ÓSCARESEMRISCO
DESERBOICOTADA
Cultura,28/29
AnoXXVI|n.º9410|1,20€|Directora:BárbaraReis|Adjuntos:NunoPacheco,PedroSousaCarvalho,ÁureaSampaio|DirectoraInternacionaledeParcerias:SimoneDuarte|DirectoraCriativa:SóniaMatos
ISNN:0872-1548
HOJEAlmanaquePortuguês9.ºvol.Lácio(1939)
+CrónicaCinematográfica(1930) Por+6,90€
urururaaa,222228/8/8/292929929
2 | DESTAQUE | PÚBLICO,QUI21JAN2016
NUNOTEOTÓNIOPEREIRA
(1922-2016)
N
uno Teotónio Pereira
morreu ontem em casa,
aos 93 anos — completaria
os 94 no próximo dia 30.
Com uma carreira de
seis décadas, foi uma das
mais destacadas personalidades
da arquitectura em Portugal —
e, possivelmente, o último dos
arquitectos modernos. Pelo seu
atelier da Rua da Alegria, em
Lisboa, que deixou de frequentar
definitivamente depois de cegar,
passaram sucessivas gerações
de arquitectos portugueses, de
Gonçalo Byrne a Nuno Portas.
E passou também um país: da
Igreja de Águas (1949-57), em
Penamacor, o seu primeiro
projecto, construído quando
tinha 27 anos, à Moradia Barata
dos Santos (1959-63), em Vila
Viçosa, já em parceria com Nuno
Portas, passando pelos projectos
de habitação social que projectou
para Braga, Castelo Branco,
Barcelos ou Póvoa de Santa Iria.
É em Lisboa, porém, que está
o seu mais significativo conjunto
de obras: o Bloco das Águas
Livres (1953-56), assinado com
Bartolomeu Costa Cabral; as
torres do bairro de Olivais Norte
(1957-67), projecto em co-autoria
com Nuno Portas e Pinto de
Freitas que ainda hoje é festejado
como uma das melhores histórias
da habitação social em Portugal;
o icónico Edifício Franjinhas
(1965-69), com João Braula Reis;
e a Igreja do Sagrado Coração de
Jesus, em Lisboa, novamente com
Nuno Portas — os três últimos
vencedores do prémio Valmor.
Será justamente na Igreja do
Sagrado Coração de Jesus, onde
repetiu a proposta de assembleia
em leque já experimentada em
Penamacor, que o seu velório
terá hoje lugar, a partir das 17h.
O funeral realiza-se amanhã, às
13h30, no Cemitério do Lumiar.
Nascido em 1922 e formado na
Escola Superior de Belas-Artes
de Lisboa, em 1949, Teotónio
Pereira começou por estagiar com
Carlos Ramos (1897-1969), um
impulsionador da arquitectura
moderna em Portugal — mas
seria, mais do que um arquitecto,
um cidadão exemplar. Com
outros católicos progressistas,
manteve uma militância
política extraordinariamente
activa, sobretudo durante o
regime de Salazar, a que se
opôs frontalmente apesar
de ter crescido numa família
conservadora e afecta ao regime
(e de, adolescente, ter desfilado
entusiasticamente com a farda da
Mocidade Portuguesa). Histórico
defensor dos direitos cívicos e
políticos durante os anos mais
duros do Estado Novo (dinamizou
o boletim clandestino Direito
à Informação criado em 1963
para fazer a denúncia da Guerra
Colonial, integrou a Comissão
Nacional de Socorro aos Presos
Políticos constituída em finais
de 1969), foi um dos mentores
da famosa vigília da Capela do
Rato de 30 de Dezembro de 1972,
uma greve de fome de 48 horas
destinada a promover a reflexão
sobre a Guerra Colonial que
a polícia acabaria por interromper
fazendo várias detenções. Ele
próprio seria várias vezes preso (e
duramente torturado) pela PIDE.
Quando finalmente se deu o 25
de Abril de 1974, estava, aliás, há
vários meses na prisão de Caxias,
de onde seria libertado um dia
depois da revolução.
Já em democracia, prosseguiu a
sua militância, tendo sido um dos
fundadores (com Jorge Sampaio
e Ferro Rodrigues, entre outros)
do Movimento de Esquerda
Socialista, extinto em 1981.
Na mensagem de condolências
que enviou à família de Nuno
Teotónio Pereira, Cavaco Silva
recordou-o não só como “um dos
maiores arquitectos portugueses
do século XX”, mas também
como um “militante empenhado
na defesa da liberdade, antes
e depois do 25 de Abril”.
O Presidente da República
sublinhou a sua “carreira notável”
ao longo da qual projectou
“edifícios emblemáticos que
nos fascinam pela rigorosa
beleza do seu traço”, e a acção
como “católico oposicionista”
e, mais tarde”, “defensor da
independência dos povos
africanos”: “Lutou toda a vida,
com uma fé inabalável, contra
todas as formas de opressão”,
dando “o melhor de si ao seu país
e à causa dos direitos humanos”.
Também o ministro da Cultura,
João Soares, lembrou a “figura
maior e inovadora da arquitetura
portuguesa” e o “cidadão
especialmente corajoso que
sempre pugnou pelas liberdades
públicas e por uma sociedade mais
justa”.
Como católico, Nuno Teotónio
Pereira foi um dos grandes
impulsionadores do Movimento
da Renovação da Arte Religiosa,
uma comunidade católica de
artistas (José Escada, Cargaleiro,
Eduardo Nery...) criada em 1952
para “promover, em todos os
domínios da arte religiosa, o
encontro de uma verdadeira
criação artística com as exigências
do espírito cristão”. Com a sua
assembleia em leque, a Igreja
do Sagrado Coração de Jesus,
classificada como monumento
nacional, resulta precisamente do
esforço para traduzir as mudanças
do Concílio Vaticano II.
Nuno Portas, um dos
arquitectos com quem Nuno
Teotónio Pereira mais trabalhou
no seu atelier, sobretudo entre
1957 e 1971 — e aquele com quem
mais gostou de trabalhar —,
destaca sobretudo “a força
excepcional” com que Teotónio
Pereira reorganizou a arquitectura
portuguesa (muitas vezes nos
bastidores, como convinha
ao seu feitio inveteradamente
discreto). “Nunca aparecia em
público a dizer ‘eu fiz’, ‘eu sei’,
tínhamos de ser nós a lembrá-lo.
E a verdade é que ele esteve em
tudo o que foi preciso reorientar:
nas igrejas, primeiro, e depois na
habitação social, que considero
o seu legado mais importante e
que nos marcou a todos. Ficámos
todos com essa ‘doença’”, disse
ao PÚBLICO o arquitecto, que,
enquanto secretário de Estado
da Habitação e do Urbanismo
dos primeiros três Governos
provisórios, lançou as operações
do Serviço de Apoio Ambulatório
Local (SAAL).
Além da dívida pessoal, Nuno
Portas sublinha a dívida que a
classe tem em relação a Teotónio
Pereira, e à sua acção decisiva na
organização e na regulação da
Oúltimo
dosmodernos
Foi uma das mais destacadas personalidades da arquitectura
portuguesa, com uma obra que reequacionou vários modelos,
incluindo os da habitação social. Mas foi também uma
referência da luta contra o Estado Novo. Um cidadão exemplar
Obituário
CláudiaLimaCarvalho
eInêsNadais
PÚBLICO,QUI21JAN2016 | DESTAQUE | 3
TeotónioPereira
foimuitoactivo
napromoção
daarquitectura
edosarquitectos
NUNO FERREIRA SANTOS
profissão, primeiro no Sindicato
Nacional dos Arquitectos e,
já depois do 25 de Abril, na
Associação dos Arquitectos
Portugueses, que em 1998
daria lugar à actual Ordem dos
Arquitectos. “Tinha muita força
naquilo que ele próprio desenhava
mas também no que organizava
com os outros e para os outros.
Nunca quis ser só o arquitecto que
faz projectos, tal como nunca quis
ser só o militante político.”
É essa dupla condição de
“cidadão e arquitecto exemplar”
que Manuel Graça Dias considera
melhor definir o percurso de
Nuno Teotónio Pereira. “Durante
a sua longa vida, nunca deixou
de lutar pela causa da liberdade
e, como católico, pela renovação
da relação da Igreja com a
sociedade, que pessoalmente
abordou em projectos como a
Igreja do Sagrado Coração de
Jesus. De resto, o facto de ter
sido muito activo como católico
e como antifascista não diminuiu
minimamente a sua paixão pela
arquitectura — manteve sempre
um escritório em Lisboa pelo qual
passaram imensos arquitectos
com quem estabeleceu relações
de amizade e de cumplicidade”,
e 1972, o trabalho no atelier da
Rua da Alegria com as funções de
consultor da Federação das Caixas
de Previdência para o programa
de casas de renda económica, no
âmbito do qual foram projectados
(e acompanhados por arquitectos
como Fernando Távora, Nuno
Portas e Bartolomeu Costa
Cabral) conjuntos habitacionais
para vários pontos do território
nacional.
Essa luta para “encontrar uma
linguagem para a arquitectura
portuguesa” ajustada à nova
realidade de materiais como
o cimento e o betão armado
e da construção em altura foi
outro dos seus legados, frisa
Manuel Graça Dias. E isto “no
clima muito retrógrado” do
pós-guerra, dominado pela
visão “anedótica” que o Estado
Novo tinha do que seria uma
suposta “arquitectura tradicional
portuguesa”. Nesse aspecto,
“o Inquérito à Arquitectura Popular
Portuguesa foi uma bofetada
de luva branca no regime, que
subsidia as equipas enviadas pelo
país fora para um levantamento
rigoroso da arquitectura do país
profundo” — como se suspeitava,
“não havia ‘uma’ arquitectura
popular portuguesa”, apesar de
todos os desejos em contrário do
discurso oficial.
O Estado reconheceu a sua
acção como arquitecto e como
cidadão em 1995, concedendo-
lhe a Grã-Cruz da Ordem da
Liberdade. Mais tarde, em 2004,
foi também condecorado com a
Grã-Cruz da Ordem do Infante,
e em Abril de 2010 a Câmara de
Lisboa atribuiu-lhe a Medalha
de Mérito Municipal. Recebeu o
Prémio Nacional de Arquitectura
da Fundação Calouste Gulbenkian,
em 1961, o Prémio da Associação
Internacional dos Críticos de Arte,
em 1985, e o Prémio do Instituto
Nacional da Habitação, em 1992.
Nos últimos anos, de resto,
não lhe faltaram homenagens.
Quando, em 2010, somou 60
anos de carreira, a Ordem dos
Arquitectos celebrou a sua vida
e a sua obra. “Mostra que tive
alguma importância na sociedade
portuguesa ao longo de mais de
meio século no plano profissional
e noutros planos”, reagiu então
Teotónio Pereira. “Quando me
formei, havia poucos arquitectos
e tinham pouca importância
social. Eram os engenheiros que
dominavam a construção, e os
arquitectos eram subalternos.
Hoje são socialmente muito
reconhecidos”, disse então à Lusa.
Dois anos depois, foi a Igreja que
lhe reconheceu o trabalho: “Num
momento nacional dramático para
a arquitectura, profissão que tem
sido duramente flagelada pela
crise económica, pensamos que a
estatura ética e criativa de Nuno
Teotónio Pereira representam
uma lição de humanidade para
todos nós e uma luz oportuníssima
para pensar o lugar e o modo da
arquitectura reinscrever-se no
presente e no futuro.”
O Prémio Árvore da Vida/
Padre Manuel Antunes, que lhe
foi atribuído pela Igreja Católica,
foi pretexto para uma entrevista
ao PÚBLICO, na qual defendia
que a arquitectura devia assentar
em três pilares: a funcionalidade,
a resistência ou solidez e a
beleza. “A arquitectura tem que
se adequar às necessidades das
pessoas que habitam as casas ou
dos empregados que trabalham
numa firma ou dos operários
de uma fábrica.” E dava como
exemplo o seu Edifício Franjinhas,
declarado imóvel de interesse
municipal: “Preocupei-me muito
com as pessoas que passavam
ali a maior parte do dia sentadas
às secretárias, a trabalhar. As
secretárias mais perto da janela
recebem a mesma luz das que
estão ao fundo da sala, por causa
dos efeitos do tecto e das faixas de
betão penduradas nas janelas.”
No caso de Teotónio Pereira,
reforça Graça Dias, “essa noção de
uma arquitectura pensada para as
pessoas que a vão utilizar é muito
importante e muito verdadeira”:
“Há histórias interessantíssimas
que se contam desse projecto —
como a de às tantas ele perguntar
como é que que aquelas janelas se
iam limpar por fora. Atestam como
a sua arquitectura estava de facto
ligada ao real, ao dia-a-dia, e não
se limitava à retórica do desenho.”
nota o arquitecto e crítico de
arquitectura.
“O rigor que tinha em relação
às autorias”, acrescenta, também
era invulgar: “Não queria para ele
os louros das obras que produzia
com outros arquitectos e fazia
questão de partilhar a assinatura
com todos os colaboradores de
um projecto. Prova disso é a lápide
da Igreja do Sagrado Coração de
Jesus, em que o nome de Nuno
Portas precede o do próprio Nuno
Teotónio Pereira.
Da sua obra de seis décadas,
Manuel Graça Dias destaca o
“brilhantemente executado”
Bloco das Águas Livres, “um
óptimo exemplar da arquitectura
moderna feita na Lisboa dos anos
50, com uma complexidade não
muito habitual para um edifício
de habitação, e que até hoje
permanece muito disputado”.
Mas também elogia o à época
“injustamente maltratado” Edifício
Franjinhas, a que os jornais então
chamaram “mamarracho”: “É
um edifício muito inteligente,
com a sua pele que protege o
interior tanto do ponto de vista
da temperatura como do excesso
de luz. Essas peças brise-soleil são
resultado de um desenho bastante
trabalhado que curiosamente
foi sendo aperfeiçoado na
incomodidade da prisão e enviado
de Caxias para o atelier.”
Foi, defende, “o último dos
arquitectos modernos, no sentido
do grande profissional que faz
escola e deixa uma herança tanto
na obra construída como nas
pessoas que ajudou a formar” —
“o equivalente em Lisboa ao que
o Fernando Távora foi no Porto,
liderando sem se impor e fazendo
nascer à sua volta, mesmo nunca
tendo sido professor, o gosto
pela arquitectura numa série de
discípulos”.
Apesar do seu “entusiasmo
inicial” por Le Corbusier, cuja
Unité d’Habitation influenciaria
assumidamente projectos como
o Bloco das Águas Livres, tinha
também uma admiração declarada
pela arquitectura vernácula,
que, aliás, ajudaria a inventariar
como impulsionador do
lendário Inquérito à Arquitectura
Popular Portuguesa (1955-60)
lançado pelo Sindicato Nacional
dos Arquitectos. A atenção ao
problema da habitação, outro eixo
fundamental (e profundamente
moderno) da sua obra construída,
levou-o a acumular, entre 1948
RICARDO CAMPOS
Quandosurge,oEdifícioFranjinhasévistocomoum“mamarracho”
“Asuaarquitectura
estavadefacto
ligadaaoreal,ao
dia-a-dia,enãose
limitavaàretóricado
desenho”,sublinha
ManuelGraçaDias
4 | DESTAQUE | PÚBLICO,QUI21JAN2016
NUNOTEOTÓNIOPEREIRA(1922-2016)
A
morte de Nuno Teotónio
Pereira, ontem, aos 93
anos, encerra uma das
fases mais heróicas da
arquitectura portuguesa.
Militante antifascista,
cristão progressista, moderno
convicto, cultor da arquitectura
popular, Teotónio Pereira foi a face
mais visível de uma profissão que se
empenhou socialmente e de forma
revolucionária, sem necessitar de
abdicar de “ser arquitecto”, isto é,
recorrendo ao desenho, ao projecto
e à construção.
Teotónio Pereira conhecia igual-
mente bem o valor da palavra, ten-
do escrito e publicado importantes
artigos, acompanhados de discursos
possantes onde a arquitectura servia
a luta social e política em que se foi
envolvendo. Era sua a convicção de
que a arquitectura era provavelmen-
te o sinónimo mais óbvio de política.
O período em que viveu os primei-
ros anos da sua carreira deram-lhe
razão. Mas nem o 25 de Abril de 1974
serenou os debates que foi abarcan-
do, entre a radicalização do período
pós-revolucionário e os discursos
mais conciliadores, pronunciados
recentemente.
Nascido em 1922, em Lisboa, for-
mou-se em Arquitectura na Escola
de Belas-Artes de Lisboa, em 1949,
ano em que abriu o seu primeiro
atelier. Com Teotónio alinharam
então outros arquitectos como Raul
Chorão Ramalho e Manuel Alzina
de Menezes, ou os engenheiros
Goulart de Medeiros, José de Luce-
na e Ernesto Borges. Um processo
de trabalho baseado em parcerias
estava já na génese deste primeiro
grupo. Depois da Segunda Guerra
Mundial tudo estava a mudar e a
arquitectura não era excepção.
OicónicoEdifícioFranjinhas,deLisboa,co-autoriacomBraulaReis,foiPrémioValmorem1971
RICARDO CAMPOS
AnaVazMilheiro
A morte
de um militante
arquitecto
Nuno Teotónio Pereira viveu o exercício da profissão
como um militante. A sua morte encerra uma das fases
mais heróicas da arquitectura portuguesa
PÚBLICO,QUI21JAN2016 | DESTAQUE | 5
Uma das suas primeiras inter-
venções, a Igreja das Águas, em
Penamacor, realizada ainda antes
de atingir os 30 anos, mostra como
pretendeu acertar a cultura portu-
guesa com a cultura do tempo. A
pesquisa para o desenho deste edi-
fício é um pretexto para escrever
uma carta a Óscar Niemeyer, cuja
obra revolucionária dá então mos-
tras de admirar. O arquitecto bra-
sileiro não terá recebido a carta, o
que não impediu que esta se tornas-
se um dos factos mais reveladores
das transformações que a disciplina
estava a tomar em Portugal.
No elogio que traçava, Teotónio
fazia já uma declaração de princípio
pela “nova” arquitectura portugue-
sa: “A vossa obra é um estímulo po-
deroso para a nossa própria luta em
prol de uma arquitectura nacional
e genuína.” Escrita em 1947, Teotó-
nio assume-se já um combatente por
uma arquitectura livre dos figurinos
nacionalistas e historicistas do re-
gime. A sua importância enquanto
definidor da cultura arquitectónica
que será percorrida a seguir mede-
se pelo modo como a própria histó-
ria da arquitectura portuguesa se foi
escrevendo. De um lado, o conserva-
dorismo do Estado Novo; do outro,
os jovens arquitectos militantes por
uma arquitectura do tempo, cons-
trutiva e esteticamente falando.
O ano seguinte, 1948, é o momen-
to do 1.º Congresso Nacional dos
Arquitectos. Impulsionado pelo Es-
tado, que pressiona o Sindicato Na-
cional dos Arquitectos a realizá-lo
depois de algumas tentativas frus-
tradas, o congresso é apontado co-
mo reflexo dessa geração moderna
e corbusiana que se manifesta por
uma integração clara nos modelos
europeus e internacionais. É tam-
bém, de forma velada, um repto
pela liberdade que o regime não
admitia e que reprimia o futuro.
Jovem, Teotónio defende no con-
gresso, com Costa Martins, uma ha-
bitação económica em prol de um
reajustamento social. Aí recorda que
“uma enorme parte da população
está alojada em condições que não
satisfazem as mais fundamentais
exigências psicofisiológicas do Ho-
mem”. A comunicação era obvia-
mente uma crítica à incapacidade
do Estado Novo em resolver um dos
maiores problemas com que Portu-
gal se debatia à época e que passava
por manter percentagens significa-
tivas da população portuguesa em
alojamentos precários e insalubres.
A análise, contudo, estendia-se à
própria cidade, exigindo-se planifi-
cação e uma “autêntica reforma”.
A solução passava sempre — no
caso de sugestões vindas de Teo-
tónio Pereira — por propostas ob-
jectivas. Assim defendia-se que a
classe média fosse alojada em al-
tura e que às classes proletárias
fossem reservadas “unidades de
carácter menos duradouro e sem
grande aglomeração de fogos.” À
data, Teotónio Pereira acumulava já
alguma experiência como arquitec-
to na Federação de Caixas de Pre-
vidência, realizando precisamente
projectos de habitação económica.
A actividade enquanto funcioná-
rio público acabaria por marcar a
sua prática. O compromisso com o
ideal colectivo cumpria-se também
através do exercício da profissão
nos organismos oficiais do Estado,
onde, apesar de tudo, era possível
através do desenho dar corpo a
algumas pequenas “revoluções”.
Neste contexto desenharia para
territórios suburbanos ou rurais,
como Póvoa de Santa Iria, Trancoso
ou Vila do Conde.
O Bloco das Águas Livres, que
conta com a co-autoria de Bartolo-
meu Costa Cabral, revela provavel-
mente como se propõe alojar uma
classe média urbana, em unités
d’habitation, formalmente inspi-
radas nas teses de Le Corbusier e,
todavia, ajustadas à realidade por-
tuguesa, encastrando o edifício na
topografia e fazendo desaparecer
os pilotis. Propõe espaços confortá-
veis e distantes de qualquer poética
da máquina de habitar. Obras de
arte, disseminadas pelos espaços
colectivos do edifício, reforçam a
generalização do acesso à cultura
por parte de uma classe emergen-
te. Nos conjuntos residenciais para
os Olivais Norte, desenhados com
António Pinto Freitas e Nuno Por-
tas, entre 1957 e 1968, iria propor
também a sua inclusão, agora em
processo de proletarização desse
mesmo acesso (e provavelmente
ao arrepio de Portas, que advogava
uma maior autonomia da arquitec-
tura da esfera das artes).
Os projectos residenciais acaba-
riam sempre por ter uma forte ex-
pressão no conjunto da sua obra,
sendo possível construir um per-
curso analítico do escritório que — a
partir de 1957 — se instala na famosa
Rua da Alegria, em Lisboa. Arranca-
va assim uma produção fortemente
marcada pelas personalidades dos
diversos profissionais que o atraves-
saram ao longo de cinco décadas.
Costa Cabral, Pinto Freitas, Portas,
já mencionados, Pedro Vieira de
Almeida, Miguel Aragão, Luís Mo-
reira, Gastão Cunha, João Braula
Reis, António Reis Cabrita, Duarte
Cabral de Melo, Romeu Pinto da Sil-
va, Gonçalo Byrne, João Paciência
ou Pedro Botelho são alguns dos
arquitectos que construíram a re-
putação do escritório.
O Movimento de Renovação da
Arte Religiosa que publicamente
se manifestou em exposição mon-
tada em 1953, na Igreja de São Ni-
colau, seria igualmente um dos
primeiros veículos para Teotónio
Pereira expor os seus ideais. Num
dos primeiros textos críticos que
assinou, ainda em 1947, e que mais
tarde descreveria como uma “críti-
ca de arquitectura escrita por um
arquitecto”, confirmava que “a
arquitectura portuguesa (estava)
divorciada do Povo, da Terra e da
Época”. A sua luta era por uma ar-
quitectura mais séria e mais genu-
ína, valores que procuraria incutir
aos programas religiosos que foi
concretizando, após o arranque
auspicioso que a Igreja das Águas
representou. Sobre esse edifício,
Ana Tostões haveria de escrever em
2004: “Este projecto antecipa quer
a revelação da arquitectura popular
com a tarefa do ‘inquérito’, quer, de
algum modo, os debates que irão
suceder no seio dos CIAM (Congres-
sos internacionais de Arquitectu-
ra Moderna).” Situava-se assim o
contributo pioneiro de Teotónio
Pereira na história da arquitectura
portuguesa.
A participação activa de Teotónio
Pereira no levantamento à arqui-
tectura popular que o Inquérito à
Arquitectura Regional Portuguesa
representou reforçaria a sua liga-
ção às populações rurais do país,
confirmando as difíceis condições
de sobrevivência da maioria. In-
tegrando a equipa que se ocupou
da Estremadura, com o colega de
atelier Pinto de Freitas e Francisco
da Silva Dias, Teotónio percorre-
ria uma região entre o Atlântico e
o interior, “uma paisagem” como
escreveram, reflexo de “uma luta
continuada e sem heróis vistosos”.
O livro Arquitectura Popular em
Portugal seria publicado em 1961,
transformando-se, quase imedia-
tamente, no depoimento de uma
geração, a que — como a vida de
Teotónio haveria de provar — iria
conseguir levar a arquitectura por-
tuguesa a encontrar o seu próprio
percurso no âmbito das diferentes
arquitecturas locais que começa-
ram a emergir a partir da revisão
do Movimento Moderno.
Durante o inquérito, os arquitec-
tos fotografaram as casas, os utensí-
lios de trabalho e os habitantes. Um
cunho quase neo-realista impregna-
va as narrativas e, de algum modo,
acabaria por transportar-se para a
arquitectura realizada durante e
logo imediatamente depois: “Do
construtor rural recebemos o lega-
do do seu engenho e da economia
das suas soluções, admiráveis pela
sinceridade formal, a coerência en-
tre a construção e o ambiente que a
rodeia, a natural compreensão dos
valores espaciais e a sua tradução
em situações variadas e de eleva-
do sentido estético.” A admiração
genuína e verdadeira repercutia-se
nas obras desenvolvidas no atelier
nos anos de 1950 e década seguinte.
O seu percurso ganhava agora um
sentido mais “pragmático”, acom-
panhando as evoluções internacio-
nais, mais do que propriamen-PrédioemOlivais-Norte,co-autoriacomPortasePintodeFreitas
BlocodasÁguasLivres,co-autoriacomBartolomeuCostaCabral
RICARDO CAMPOS
GUILHERME MARQUES
Em1948,ojovem
Teotóniodefende,
no1.ºCongresso
Nacionaldos
Arquitectos,
umahabitação
económica
emproldeum
reajustamento
social.Aírecorda
que“umaenorme
partedapopulação
estáalojadaem
condiçõesque
nãosatisfazemas
maisfundamentais
exigências”.Era
obviamenteuma
críticaaoEstado
Novo
c
6 | DESTAQUE | PÚBLICO,QUI21JAN2016
T
ive o privilégio de conviver
com o Nuno Teotónio
Pereira durante mais de
25 anos e de descobrir o
arquitecto que mudou a
arquitectura portuguesa.
Mas também de desvendar
o homem generoso, justo e
desassombrado que se bateu
pelas causas sociais. Construímos
uma amizade intensa, solidária,
feita de lealdade e admiração.
Em 2005, quando o Nuno me
convidou para ser madrinha do
seu doutoramento honoris causa,
lembro-me de ter começado o
discurso de homenagem dizendo
que o que mais impressiona, na
arquitectura e na vida, é a sua
honestidade e busca permanente
de verdade. Porque são os
conceitos e não as formas que
estão na base da sua reflexão e
prática arquitectónica. Ao rigor
e exigência disciplinar aliou
uma capacidade crítica, original
e polémica. A uma insaciável
curiosidade intelectual aliou a
vontade de intervenção, de quem
acredita na possibilidade de um
mundo melhor.
A contemporaneidade da
sua obra é prova da resistência
a modas e estilos. Nuno
Teotónio Pereira foi o militante
do moderno contra o estilo
“nacional” que, sem esquecer
as raízes, procurou a verdade
da construção. Acreditava na
possibilidade de uma terceira
via, pelo que foi capaz de manter
um olhar crítico em relação
ao dogmatismo do ideário
moderno, batendo-se pela ponte
com a arquitectura vernácula e
pela urgência da reconciliação
com a história e a memória. A
sua obra confunde-se com o
magistério do pedagogo porque,
à margem do academismo da
escola de Lisboa, o seu atelier
funcionou como uma escola de
inovação e discussão. Pioneiro
do trabalho de equipa, sempre
disponível para arriscar novas
soluções, o magistério sustentou-
se na pesquisa do arquitecto, na
disponibilidade do pensador, na
tolerância do homem; cidadão de
coragem, capaz de ser solidário
e interveniente, de partilhar
com os outros as suas grandes
inquietações.
Para entender o seu percurso
é preciso ter em conta o
empenhamento nas causas
sociais, a que acrescentou uma
dimensão, vital, a de intervenção
na sociedade. Com bom desenho e
coragem, bateu-se pela habitação
para o “maior número”. Hoje,
Um realismo sem precedentes
na arquitectura e na vida
Opinião
AnaTostões
mais do que nunca, é o lutador
inconformado que sabe que “a
cidade é coisa colectiva”.
Nuno Teotónio Pereira é para
nós um exemplo de coerência,
rigor e tenacidade. Por isso a
nossa responsabilidade é imensa
para podermos ser dignos da
exigência do seu magistério, do
desassombro da sua inteligência,
da generosidade da sua acção.
Nuno, obrigada pelos
ensinamentos de todos estes
anos, por nos ter ensinado a
disciplina do rigor e da exigência,
por ter partilhado connosco
a sua vontade de um mundo
melhor, por ter feito da sua vida
um modelo de solidariedade e
generosidade.
CARLOS LOPES
NUNOTEOTÓNIOPEREIRA(1922-2016)
te interessando-se em “inovar”. O
Portugal que Teotónio apreenderia
através do inquérito era um país on-
de se tornava urgente intervir.
Em 1957, também, Nuno Portas
era admitido no atelier da Rua da
Alegria, provocando naturalmente
novas tensões. Cinco anos depois,
a associação Teotónio-Portas era
uma realidade consolidada. O que
subsistia de “linguagem arquitec-
tónica” no desenho, ou seja, as
referências demasiado óbvias ao
modernismo corbusiano, viria
a esbater-se. O recurso à pintura
ou à escultura enquanto elemen-
tos de composição espacial seria
igualmente e progressivamente
suprimido. Logo em 1958, Portas
iria desenvolver no atelier uma das
suas obras-mestras: a Casa de Vila
Viçosa, apontando a direcção do
atelier para um expressionismo
scarpiano e de algum modo “não-
moderno”.
Passava-se a confiar mais na ca-
pacidade da matéria tectónica e da
massa na criação de espaços inten-
sos, despidos de “artificialidades
acessórias”, como passaram a ser
vistas as artes plásticas que Teotó-
nio tinha numa primeira fase aca-
lentado nas suas obras. Por outro
lado, os edifícios eram tendencial-
mente mais orgânicos, ganhando
presença urbana, repensando a ci-
dade tradicional e constituindo-se
focos regeneradores.
Na Igreja do Sagrado Coração de
Jesus, em Lisboa, projectada com
Portas, Pedro Vieira de Almeida (e
outros), a partir de 1962, o interior
do quarteirão tradicional da cidade
oitocentista tornava-se permeável.
Proclamava-se, nesta obra-prima
da arquitectura portuguesa, um
retorno à monumentalidade que
a arquitectura internacional recla-
mava desde os anos de 1940 e que
aqui se manifestava no elogio da ex-
pressividade dos materiais (explo-
rados em toda a sua potencialidade
plástica). A arquitectura passava a
funcionar como uma tribuna para o
seu próprio discurso, dispensando
terceiros, como as artes plásticas ou
mesmo os discursos mais sociais.
A arquitectura religiosa construí-
da em território nacional também
conhece aqui o seu apogeu — em
1975. Ter-se-ia de esperar por Marco
de Canaveses, de Álvaro Siza, já no
dobrar do milénio, para assistir a
uma realização tão intensa.
Outros edifícios iriam fortalecer
um dos períodos mais intensos do
atelier, caso do Edifício Franjinhas
(Teotónio-Braula Reis, Lisboa, 1966-
69), que na dureza da sua fachada-
cortina de placas de betão, e com as
calçadas desenhadas por Eduardo
Nery, funcionaria como pedra de
fecho deste período.
A passagem de Gonçalo Byrne pe-
lo atelier, no início da década de
70, produziria um novo sobressalto
na linguagem seguida. Uma nova
ruptura iria permitir o regresso das
figurações modernas que os edifí-
cios residenciais do plano do Alto
do Restelo colocariam em destaque
(Teotónio-Portas-Botelho-Paciên-
cia-Ribeiro Teles, Lisboa, 1971-85).
O período seria assinalado com o
endurecimento da luta política.
Em 1973, preso em Caxias pela
PIDE, Teotónio seria torturado. A
liberdade veio com a revolução de
Abril. No escritório, nesses mesmos
anos, Pedro Botelho surgiria nesta
constelação como pedra de fecho. A
parceria iria resultar em projectos
como a celebrada estação de metro
do Cais do Sodré (1992-2003), com
retorno à austeridade “tectónica”.
Integrados no Programa Polis, os
projectos urbanos para a Covilhã,
com o arquitecto paisagista Luís
Cabral, desenvolvidos no final do
milénio (1999-2003), revelariam o
raciocínio reformador de Teotó-
nio ao proporem uma nova utopia
moderna a partir da introdução de
elementos capazes de contrariar a
topografia acidentada da cidade e
contribuindo para uma mobilida-
de essencialmente pedonal. Sendo
provavelmente o mais bem-sucedi-
do dos planos Polis, o plano da Co-
vilhã revelava um velho mestre em
elevadíssima forma. Fiel aos seus
princípios, Teotónio continuou a
intervir politicamente, mesmo de-
pois de ter cegado.
Em 2004, o Centro Cultural de
Belém acolhia a primeira grande
exposição sobre a sua obra, comis-
sariada por Ana Tostões. Uma vez
mais, o protagonismo seria dado à
arquitectura e aos diversos colabo-
radores do atelier. Tostões daria à
mostra o nome Arquitectura e Cida-
dania, um belíssimo corolário para
um extraordinário percurso a favor
do interesse público. Nessa ocasião,
em entrevista ao PÚBLICO, haveria
de revelar a chave para uma boa ar-
quitectura: “Acho que a chave para
isso é os arquitectos colocarem-se
na posição dos utentes, pensar que
somos nós que vamos usar o espa-
ço, numa moradia, apartamento,
escritório, fábrica, escola. Imagi-
narmo-nos ali dentro a trabalhar,
a funcionar. A conformação do es-
paço nascer a partir disso...” IgrejadoSagradoCoraçãodeJesus,emLisboa
8 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016
PobrezanoParlamento:“demagogia”
ou“desempobrecimentonacional”?
O PS, que requerera o debate de
urgência no Parlamento sobre com-
bate à pobreza, não levou nenhuma
proposta nova. Antes descreveu o
que considera ter sido o impacto
das políticas do Governo anterior —
“Em cada mês de governação PSD/
CDS houve mais cinco mil pobres,
dois mil dos quais crianças e jovens”,
disse, logo a abrir, o deputado João
Galamba — e explicou por que é que
acha que o executivo de António Cos-
ta é o “Governo do desempobreci-
mento nacional”, expressão usada
por outro deputado socialista, Tiago
Barbosa Ribeiro. “É só demagogia!” —
gritou-se na bancada da oposição.
Foi, de resto, um debate bastante
aceso, o de ontem, no Parlamento.
Galamba falou de “selvajaria social na
austeridade” para descrever o que se
viveu nos últimos tempos, com uma
taxa de risco de pobreza a atingir os
19,5% em 2014. Os deputados do PSD
e do CDS não deixaram de reagir rui-
dosamente uma vez mais.
De seguida, o CDS-PP fez saber,
através do deputado Filipe Lobo D’
Ávila, que acabara de entregar uma
proposta de diploma à assembleia.
Quer que as pensões mínimas, so-
ciais e rurais sejam actualizadas anu-
almente, tendo como base o valor da
inflação prevista para o ano em que
entram em vigor e não o aumento da
inflação do ano anterior, como ago-
ra. É que o já anunciado aumento
de 0,4%, para 2016, das pensões até
628 euros, “dá três cêntimos por dia”
[no caso da pensão social]. Indigna-
ção ruidosa, de novo, desta vez nas
bancadas da esquerda.
José Soeiro, do BE, declarou: “80%
dos pensionistas que vão ver agora
as suas pensões aumentadas tiveram-
nas congeladas pelo seu Governo.”
E mais, disse Soeiro: “As poucas
pensões que o Governo [PSD/CDS]
aumentou foi uma aldrabice. Aumen-
taram as pensões, tiraram o Comple-
mento Solidário para Idosos [CSI].”
Quem recebia a pensão social e CSI,
por exemplo, perdeu rendimento, já
dissera Galamba.
O CSI, recorde-se, foi criado pelo
Executivo de José Sócrates para asse-
gurar que nenhum pensionista, que
não tivesse outros rendimentos, re-
cebia uma pensão abaixo do limiar
de pobreza (limiar que está actual-
mente nos 422 euros mensais). Mas
nos últimos anos, esta medida sofreu
alterações — o valor de referência dos
rendimentos, que determina quem
pode ter direito, baixou — e o univer-
so de beneficiários foi encolhendo.
Tanto Diana Ferreira, do PCP,
como José Luís Ferreira, do PEV
elogiaram as medidas já adoptadas
pelo Governo PS, de alargar o CSI e
descongelar as reformas inferiores
a 628 euros, mas mostraram-se in-
satisfeitos. Pediram “um aumento
real das pensões”.
Já Filipe Lobo D’ Ávila não deixou
de responder a Soeiro. Disse que o
BE chegou a apresentar uma pro-
posta para o Orçamento do Estado
de 2015, que previa “um aumento
de 25 euros por mês nas pensões, e
agora acaba por aceitar 3 cêntimos
por dia”. Rematou: “Deviam corar
de vergonha.”
“Os senhores actualizaram mais ou
menos 800 mil pensões”, respondeu
Cláudia Joaquim, a secretária de Es-
tado do Segurança Social. O Governo
socialista vai actualizar 2,5 milhões,
sublinhou ministro da Solidarieda-
de e Segurança Social, José Vieira da
Silva. Lembrando também que o Go-
verno anterior se limitou a aumentar
as pensões mínimas com carreiras
contributivas curtas, de até 15 anos,
o ministro acrescentou, não sem iro-
nia: “Todas as outras não tiveram um
cêntimo de aumento, mesmo as dos
pensionistas com carreiras contribu-
tivas de 15 a 20 anos, por exemplo,
que recebem 275 euros de pensão,
o que não é propriamente uma pen-
são milionária.” Ao mesmo tempo, o
CSI “foi duplamente desvalorizado”,
prosseguiu. O seu valor foi reduzido
e “deixou de ser alvo de divulgação”,
o que, lembrou, é importante numa
prestação que tem de ser requerida
pelos idosos.
No último dia de 2015, o seu Go-
verno decidiu repor o valor de refe-
rência do CSI que existia em 2013,
5022 euros/ano, o que deverá per-
VieiradaSilvadizqueaumentosnaspensõesemudançasnoCSItêmdeservistosde“formaintegrada”
Foi quente o debate no Parlamento. O
Complemento Solidário para Idosos e os
aumentos — deste e do anterior Governo
— das pensões tiveram um papel central
nas intervenções dos deputados
Parlamento
AndreiaSanches
EmDezembrohouvemenosidososcomcomplementosolidário
EstatísticasdaSegurançaSocialmostramfortebaixanoabonodefamília
O
número de idosos com
complemento solidário
(prestação social que pode
ser requerida por quem
tem pensões muito baixas)
continuou em quebra, em
Dezembro: o ano acabou com
166.174 beneficiários contra
170.529 contabilizados em
Dezembro de 2014 (chegaram
a ser mais de 236 mil em 2011).
O mesmo se passou com os
titulares de abono de família:
1.119.222, menos 498 mil
crianças abrangidas do que um
ano antes. Menor foi a redução
no Rendimento Social de
Inserção (RSI), que chegava no
fim de 2015 a 209.390 pessoas,
novas e menos novas, muito
perto das 209.734 registadas
um ano antes. As mais recentes
estatísticas mensais da
Segurança Social confirmam
ainda uma tendência para a
redução do universo dos que
são abrangidos por alguns
apoios sociais destinados
aos mais pobres — o RSI,
por exemplo, chegava em
Dezembro de 2011 a mais de 316
mil pessoas, um ano depois era
pago a menos de 281 mil e em
Dezembro de 2014 não chegava
aos 210 mil. Um corte de 34%
num período em que a taxa de
pobreza aumentou de 17,9%
para 19,5%. O montante médio
da prestação é hoje de 213 euros
por família abrangida.
Com as medidas
recentemente aprovadas pelo
Governo é previsível que estes
números voltem a subir. Por
exemplo, no último dia do ano,
o Governo decidiu repor o valor
de referência do Complemento
Solidário para Idosos que existia
em 2013, 5022 euros/ano, o
que deverá permitir que mais
pessoas possam ser abrangidas.
As estatísticas mostram
ainda que as prestações de
parentalidade sobem em geral,
num ano em que a natalidade
também subiu: mais de 38 mil
beneficiários em Dezembro
de 2015 contra 33.577 em
Dezembro de 2014 (números
que incluem os beneficiários de
subsídio parental inicial, subsídio
parental alargado e subsídio
social parental inicial).
PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 9
mitir que mais pessoas possam ser
abrangidas. Claudia Joaquim estimou
que 70 mil idosos possam voltar a
beneficiar desta medida.
Pedro Roque, do PSD, ainda fez
questão de sublinhar que todos na-
quelas bancadas estavam “a favor do
Estado Social”. O deputado defendeu
que o anterior Governo, mesmo num
momento difícil, “salvaguardou os
portugueses de menores rendimen-
to” e criou “o Programa de Emergên-
cia Social”. Já Cláudia Joaquim disse
que “o Programa de Emergência So-
cial resume-se às cantinas sociais”
que custaram mais de 40 milhões de
euros por ano. “E nem uma avaliação
encontrámos” sobre o seu impacto,
prosseguiu. Vai agora ser feita, pro-
meteu, explicando que, seja como
for, nos próximos seis meses as can-
tinas continuarão a funcionar.
Já Vieira da Silva respondeu ao PCP
e ao PEV, reconhecendo que os au-
mentos das pensões são baixos — “É
óbvio que há limitações” —, mas há o
aumento do CSI. “É preciso ver isto
de forma integrada.”
PAULO PIMENTA
Acabou no final de 2015 a Estratégia
Nacional de Integração das Pessoas
Sem-Abrigo. Os vários Núcleos de
Planeamento, Intervenção a Sem-
Abrigo (NPISA) aguardam orienta-
ção do Instituto de Segurança So-
cial. Ninguém sabe se a estratégia
termina mesmo, se se prolonga, se
dá lugar a uma nova. O Bloco de Es-
querda quer que o Governo a avalie,
a renove e lhe destine recursos.
Incitado por Bruxelas, Portugal
criou em 2007 um grupo de traba-
lho para desenvolver uma Estratégia
Nacional de Integração das Pessoas
Sem-Abrigo. O plano, com um eixo
sobre informação e outro sobre in-
tervenção, foi aprovado em Março
de 2009, mas nunca teve dotação
orçamental.
O Instituto de Segurança Social,
que coordena a estratégia, não res-
pondeu ainda às questões colocadas
pelo PÚBLICO, pelo que, para já, é
impossível dizer se há uma avaliação
interna, se há uma decisão, quantas
pessoas em situação de sem-abrigo
foram sinalizadas, quantas saíram
das ruas, quantas foram integradas,
quantas continuam a ser acompa-
nhadas, em que partes do país.
De acordo com o plano, sempre
que o número de sem-abrigo justi-
fica, deve constituir-se um NPISA e
delinear-se um conjunto de respos-
tas integradas. Em 2013, quando foi
feita a avaliação intercalar, havia 14
- Almada, Amadora, Aveiro, Braga,
Cascais, Coimbra, Faro, Figueira da
Foz, Lisboa, Oeiras, Porto, Seixal,
Setúbal e Vila Nova de Gaia. Pou-
cos iam além da articulação entre
técnicos. Nessa altura, 4420 pesso-
as sem-abrigo em todo o país eram
acompanhadas.
Muito ficou por fazer nesta estra-
tégia destinada a garantir que nin-
guém é obrigado a permanecer na
rua mais de 24 horas. Um exemplo:
não foi criado qualquer centro de
emergência (estruturas de resposta
imediata, das quais se sairia, com um
diagnóstico já feito, para alojamento
temporário ou permanente).
José Soeiro, eleito pelo círculo do
Porto, ouviu falar nas falhas - em
Julho do ano passado levou ao Par-
Bloco quer que Governo renove estratégia
de integração de sem-abrigo
lamento membros do movimento
Uma Vida Como a Arte, formado por
pessoas com experiência de rua -,
mas confere mérito à estratégia, que
juntou entidades públicas e privadas
de diversas áreas. A transversalida-
de da intervenção e a articulação de
técnicos, de entidades, parecem-lhe
características demasiado importan-
tes no combate à pobreza.
“Faltaram recursos”, resume o
deputado. “Há medidas concretas
que estavam previstas e que não fo-
ram desenvolvidas.”
Críticas e esquecimento
O NPISA-Porto foi o que mais se de-
senvolveu: criou uma plataforma de
intervenção, outra de voluntários,
outra de emprego, outra ainda de
expressão, a que chamou Vozes do
Silêncio. Em vez de um centro de
emergência, lançou um serviço de
triagem: um atendimento de pri-
meira linha, assegurado, à vez, por
técnicos de organizações que fazem
parte a rede coordenada pela Segu-
rança Social. E sobram críticas. O
número de técnicos disponibilizados
pelos parceiros foi diminuindo com
o tempo. A triagem não funciona ao
fim-de-semana. O albergue não che-
ga para as encomendas. Um quarto
de pensão pode ser mais aconselhá-
vel e não haver verba.
No início de 2015, a EAPN/Rede
Europeia Anti-Pobreza - Portugal
questionou o então ministro da Se-
gurança Social, Pedro Mota Soares.
Ainda houve uma reunião, mas já no
fim da legislatura, diz Sérgio Aires,
consultor daquela entidade e diri-
gente do Observatório de Luta Con-
tra a Pobreza na Cidade de Lisboa.
“Era suposto ter havido uma ava-
liação do impacto da estratégia,
executada por entidade externas”,
salienta José Soeiro. O balanço per-
mitiria perceber o que correu bem,
o que correu mal, delinear propos-
tas de reformulação da Estratégia
a partir de 2015. “É um tema sufi-
cientemente importante para não
se descurar “, diz. “A sensação que
temos é que caiu no esquecimento”.
O ano chegou ao fim sem que tivesse
sido divulgado qualquer relatório de
avaliação. E, diz ainda, “o anterior
Governo não fez nenhuma diligência
para lançar uma nova estratégia.”
Esta quinta-feira, o grupo parla-
mentar do Bloco de Esquerda en-
trega na Assembleia da República
um projecto de resolução a reco-
mendar “ao Governo que proceda
a uma avaliação participada e inte-
grada da estratégia, incluindo todas
as entidades parceiras e as próprias
pessoas sem-abrigo”, que a renove,
“garantindo a parceria entre os di-
ferentes sectores da política social,
as entidades envolvidas e as pessoas
sem-abrigo”, e que “destine recur-
sos” para a sua concretização.
O mais provável é que a propos-
ta baixe à Comissão do Trabalho,
da Solidariedade e da Segurança
Social.
AnaCristinaPereira
PAULO PIMENTA
Muitoficouporfazernaestratégiadeintegraçãodossem-abrigo
4420Em2013,quandofoifeitaa
avaliaçãointercalardaestratégia
queacabouem2015,eram
acompanhadas4420pessoas
sem-abrigoemtodoopaís
Melhorespensões
Aumentosnas
pensõesmínimas
A
ideia é simples: em vez
de fazer contas com o
passado, fazê-las para o
futuro. O CDS entregou
ontem no Parlamento uma
proposta para que as pensões
mínimas, sociais e rurais sejam
actualizadas anualmente pelo
menos consoante a inflação
do ano prevista para o ano em
que o aumento entra em vigor.
O PSD já prometeu entregar
idêntica proposta, sendo
ambas discutidas no dia 28
deste mês.
O líder parlamentar do CDS-
PP defendeu que a medida é
“da maior justiça social”, por
se tratar das “pensões mais
baixas das pensões baixas”,
e em “defesa de mais de um
milhão de pensionistas que
serão afectados pela medida
do Governo que provocará
uma perda real do seu poder
de compra”.
Se as pensões fossem
actualizadas este ano tendo
como referência a inflação
de 1,5% prevista no DEO -
Documento de Estratégia
Orçamental como propõe
o CDS, os beneficiários da
pensão social receberiam
mensalmente mais 3,02
euros, da pensão rural teriam
mais 3,63 euros, e a pensão
mínima aumentaria 3,93
euros. Mas com a proposta de
aumento de 0,4% do Governo
os pensionistas recebem,
respectivamente, mais 80
cêntimos mensais (pensão
social), 96 cêntimos (rural) e
1,05 euros (mínima).
O PSD apressou-se a vir
anunciar que vai entregar um
diploma com o mesmo teor.
O deputado Adão Silva disse
que o Governo “começou
muito mal” ao aumentar as
pensões de 1,1 milhões de
pensionistas mais pobres
em apenas 0,4% quando a
inflação prevista pelo próprio
PS é “muito maior”. A direita
quer aprovar estes diplomas
com o Orçamento do Estado
para 2016, com retroactivos a
Janeiro.
10 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016
Ministroquerreduzirurgênciasem
10%parainvestiremcentrosdesaúde
MARIA JOÃO GALA
FERNANDO VELUDO/NFACTOS
Reduçãodonúmerodeurgênciaspermitiriaumapoupançaanualde48milhõesdeeuros
Ministroestáaestudarnovosincentivosparaosmédicos
Fazer mais e diferente com pratica-
mente o mesmo orçamento. Esta foi
uma das ideias mais repetidas pelo
ministro da Saúde durante a audição
de ontem, em que se estreou na co-
missão parlamentar de Saúde. Co-
mo exemplo do que pode mudar e
poupar ao Serviço Nacional de Saúde
(SNS), Adalberto Campos Fernandes
avançou que quer reduzir em 10% as
urgências hospitalares — uma pou-
pança de 48 milhões de euros anuais,
necessários para investir nos cuida-
dos de saúde primários.
A primeira audição enquanto mi-
nistro foi requerida pelo PCP para
debater o caso da morte no Hospi-
tal de S. José de um doente com 29
anos e que, por ser fim-de-semana,
não tinha equipas de prevenção de
neurocirurgia e neurorradiologia. No
entanto, Campos Fernandes acabou
por falar mais das grandes linhas
orientadoras para a legislatura.
A propósito do exercício orça-
mental para este ano, o ministro
insistiu nas escolhas e exemplificou
com a área das urgências hospitala-
res. “Este dinheiro seria muito mais
bem utilizado na abertura de mais
Unidades de Saúde Familiar (USF)
e na contratação de mais médicos e
enfermeiros de família”, acrescen-
tou, dizendo que quer “fazer coisas
diferentes com o mesmo dinheiro”.
Sobre as taxas moderadoras, que
se tinha comprometido a baixar, o
governante anunciou que os uten-
tes que cheguem à urgência hospi-
talar referenciados pelos cuidados
de saúde primários não pagam taxa
moderadora e vão deixar de pagar as
análises que façam nesse atendimen-
to. “Vamos transformar as taxas, não
em co-pagamento, mas sim como
estão interpretadas na Constituição
da República”, disse. Outro exem-
plo apontado de mudanças a imple-
mentar, nomeadamente para fixar
os médicos em regiões carenciadas,
como o Algarve, passa por propor-
cionar uma progressão da carreira
mais rápida para os que optem por
ir para essas zonas.
Ainda a propósito das urgências,
já em declarações aos jornalistas, o
ministro explicou que estão a estudar
uma forma de os médicos com mais
de 55 anos continuarem a fazer ur-
fria”, mas reconheceu que o caso
deixa uma lição: “os cortes são peri-
gosos não tanto pela sua magnitude
mas pela sua falta de selectividade”.
O ministro reconheceu que com as
restrições orçamentais terá de fa-
zer “escolhas difíceis”. No entanto,
comprometeu-se a fazer uma “inter-
pretação política diferente e escolhas
diferentes”. “Queremos conjugar ri-
gor orçamental com justiça social”,
insistiu. Campos Fernandes insistiu
que os cortes não podem ser culpa-
dos de tudo, adiantando que “quan-
do expomos um país a um quadro
de empobrecimento e restrição do
rendimento criamos condições para
que a saúde piore”.
Do lado do PSD, o deputado Mi-
guel Santos levantou dúvidas sobre
várias nomeações, nomeadamente
de Ana Escoval para suceder a Teresa
Sustelo à frente do Centro Hospitalar
de Lisboa Central (CHLC, de que faz
parte o Hospital de S. José), depois de
a administradora ter pedido a demis-
são após o caso da morte do doente
de 29 anos. O ministro terminou com
críticas à intervenção de Miguel San-
tos sobre Ana Escoval, lamentando a
escolha da palavra “purga” com que
o deputado se referiu às mudanças.
“‘Purga’ é uma palavra deselegan-
te. As pessoas não são purgáveis,”
disse.
Ainda sobre nomeações, o minis-
tro confirmou que recebeu na terça-
feira o pedido de renúncia do presi-
dente da Administração Regional de
Saúde do Norte. O tema foi abordado
por Miguel Santos, quando questio-
nou algumas das escolhas da equipa,
insinuando a perseguição a alguns
dirigentes. O ministro negou também
que o cirurgião Eduardo Barroso o
tivesse pressionado na escolha de di-
rigentes hospitalares do CHLC.
Segundo algumas notícias, Edu-
ardo Barroso terá tentado interferir
nas nomeações, evitando a escolha
do actual presidente do Instituto Por-
tuguês de Oncologia de Lisboa, Fran-
cisco Ramos. O ministro revelou ter
convidado Francisco Ramos para o
CHLC e disse que este aceitou o con-
vite, mas teve alguns problemas na
formaçãodaequipa.Oadministrador
terá dito a Campos Fernandes que te-
ria tido dificuldade em “encontrar
uma equipa estável”, tendo por isso
retirado a sua disponibilidade para o
cargo, que entretanto ficou nas mãos
de Ana Escoval. com Lusa
Adalberto Campos Fernandes, na comissão de Saúde, prometeu “escolhas diferentes” com o mesmo
orçamento, admitindo que o caso do Hospital de S. José mostra a importância da “selectividade” dos cortes
Saúde
RomanaBorja-Santos
“É tão errado
culpar os cortes
por todos os
incidentes como
errado será dizer
que não têm
nenhum efeito”
gência Metropolitana de Lisboa, com
o respectivo modelo de pagamento
aos profissionais. “De três em três
meses, também prestaremos contas
daquilo que era suposto ser feito e
que nós fizemos ou não fomos capa-
zes de fazer por razões que teremos
naturalmente de justificar”, avançou,
dizendo que a 1 de Fevereiro será
apresentado um novo portal do SNS
com informação sobre a actividade
assistencial e financeira. A informa-
ção será “boa ou má”, prometendo
Campos Fernandes que não escon-
derá os défices ou os “portugueses
sem médico de família”.
No início da sessão, na primeira in-
tervenção, questionado pelo PCP so-
bre os efeitos dos cortes dos últimos
anos no SNS, o ministro contrapôs
que é preciso analisar o tema com
prudência. “É tão errado culpar os
cortes por todos os incidentes sisté-
micoscomoerradoserádizerquenão
têm nenhum efeito”, afirmou. O mi-
nistro da Saúde mostrou-se solidário
com a família de David Duarte, mas
criticou a “excessiva mediatização”
da morte do doente de 29 anos.
O ministro defendeu que é preciso
esperar por uma “investigação inde-
pendente, distanciada, objectiva e
gências, por considerar que estes são
uma garantia de segurança clínica
do SNS. Questionado sobre a forma
como a equipa ministerial vai con-
vencer estes profissionais, lembrou
que está em curso uma nova fase da
reorganização das urgências.
O titular da pasta da Saúde aprovei-
tou para avançar com outros compro-
missos. No dia 29 de Janeiro vai ser
apresentada a reforma global da Ur-
PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 11
Em parceria com a plataforma Miu-
dosSegurosNa.Net, o Facebook lança
hoje uma campanha de sensibiliza-
ção para os perigos da Internet, com
advertências e ferramentas para um
uso mais seguro da Web. “Pensa an-
tes de partilhar” baseou-se nos re-
sultados de um inquérito feito a mil
jovens, com idades entre os 14 e os 18
anos, e que permitiu definir os seus
comportamentos nas redes sociais
para melhor contornar as ameaças
à sua privacidade.
Levado a cabo pela empresa Net-
sonda no Verão, o estudo “Jovens
portugueses e o uso das plataformas
sociais na Internet” questionou os
jovens sobre o controlo que mantêm
das suas contas, como procederiam
em caso de ameaça e como encaram
a privacidade na rede e o problema
de cyberbulling. Antes de mais, os
resultados mostram que este jovens
entre os 14 e 18 anos têm em média
três contas em redes sociais.
Conclui-se que os adolescentes têm
consciência dos contornos e riscos da
exposição online. Um dos dados que
comprovam essa percepção é o facto
de 80% deles já terem bloqueado ou
rejeitado “amizades” na rede — e são
as raparigas as que mais bloqueiam,
sobretudo quando se trata de estra-
nhos. “Este estudo demonstra que
os jovens se preocupam cada vez
mais com a privacidade, mas tam-
bém prova que, às vezes, em certos
momentos ou sem dar conta, podem
partilhar conteúdos prejudiciais para
outras pessoas e gerar situações inde-
sejadas”, afirma em comunicado Na-
talia Basterrechea, relações públicas
do Facebook em Portugal.
Quase todos (94%) os jovens re-
conhecem que não é correcto a
publicação de fotografias negativas
ou embaraçosas de terceiros e 69%
consideram que não é correcto publi-
car fotos sem autorização, “mesmo
que boas”. Apenas metade afirma
que nunca revelaria a senha da sua
conta. O estudo indica que 5% dos in-
quiridos passaram este ano por situa-
ções incómodas nas redes socias, dos
quais apenas 1,5% consideram que os
casos foram graves. Texto editado
por Andrea Cunha Freitas
Internet: 80%
dos jovens já
bloquearam
alguém
Redessociais
InêsMoreiraCabral
Jovens portugueses têm
um controlo activo das
suas contas. Campanha de
prevenção do Facebook
arranca hoje
PAULO PIMENTA
PSdefendeasubstituiçãodoensinorecorrenteporoutroscursos
As condições de acesso ao ensino su-
perior dos alunos do ensino artístico
e profissional, que foram alteradas
por Nuno Crato, estão actualmente a
ser avaliadas pelo Ministério da Edu-
cação, segundo confirmou ao PÚBLI-
CO o gabinete de comunicação do
ME. Segundo o ME, “todas as modali-
dades de ensino secundário, que não
as dos cursos científico-humanísticos
[ensino regular], constituem neste
momento objecto de análise”, o que
também abrangerá o ensino recor-
rente. O ministério não especificou
quais os objectivos desta análise.
Na próxima semana, o Parlamento
vai apreciar um projecto de resolu-
ção apresentado pelo Bloco de Es-
querda (BE), que deverá contar com
o apoio do PS, onde se recomenda ao
Governo que reponha, para o ensino
artístico, o regime de avaliação exis-
tente antes das mudanças aprovadas
por Crato. Na anterior legislatura já
tinham sido apresentados três pro-
jectos de resolução no mesmo sen-
tido, propostos pelo PS, pelo PCP e
Bloco de Esquerda. Segundo o PS,
a revisão do regime de avaliação e
classificação para acesso ao superior
daqueles alunos justificava-se para
“garantir a igualdade de oportuni-
dades”.
A legislação ainda em vigor prevê
que, em 2016, os alunos do ensino
artístico terão de realizar os exames
nacionais de Português e Filosofia
e os dos cursos profissionais, para
além da prova de Português, deve-
rão fazer mais outros dois das dis-
ciplinas de formação específica que
compõem os planos de estudo dos
cursos científico-humanísticos do
secundário. O que significa que te-
rão de fazer exames a disciplinas que
não constam dos planos dos cursos
do ensino profissional. A aplicação
da totalidade destas alterações, que
deveria ter sido concretizada em
2013, foi já adiada por três vezes no
seguimento de protestos de alunos,
pais e professores do ensino artístico
e profissional.
No regime anterior, os alunos des-
tes cursos eram apenas obrigados a
realizar o exame nacional de Portu-
guês, a única disciplina comum a
Ministério está a avaliar acesso
ao superior do ensino artístico,
profissional e recorrente
uma petição promovida pelas asso-
ciações de pais das Escolas Secundá-
rias Soares dos Reis, no Porto, e Antó-
nio Arroio, em Lisboa, que recolheu
4715 assinaturas, reclamando a revi-
são das alterações introduzidas por
Crato por considerarem que, através
delas, os alunos do ensino artístico
especializado são “discriminados”
todas as modalidades do ensino se-
cundário, e as provas exigidas pelo
curso superior a que se pretendam
candidatar. Foi, aliás, esta modalida-
de que acabou também por vigorar
em 2013, 2014 e 2015.
No projecto que voltou a apresen-
tar agora, o BE lembra que em 2014
foi também dirigida ao Parlamento
Educação
ClaraViana
Regras foram mudadas
pelo anterior ministro
Nuno Crato. Parlamento
também vai avaliar
condições de acesso
em relação aos dos cursos científico-
humanísticos. Estes últimos têm de
realizar, no mínimo, quatro exames,
mas todos eles a disciplinas que cons-
tam dos seus planos de estudos.
Embora em sentido contrário,
os argumentos de Nuno Crato para
justificar as alterações nas condições
de acesso ao superior foram seme-
lhantes. Segundo o então ministro
da Educação, as novas regras decor-
riam em parte “da situação anterior
de privilégio claro dos alunos dos
cursos profissionais e artísticos es-
pecializados”.
O caso do recorrente
Foi também esta a argumentação
utilizada pelo anterior ministro da
Educação para alterar, em 2012, as
condições de acesso ao ensino supe-
rior dos alunos do ensino recorrente,
uma modalidade destinada a estu-
dantes a partir dos 18 anos. Logo com
efeitos em 2012, o ministério tornou
obrigatória a realização de exames
nacionais para os alunos do recor-
rente e que estes contassem 30% pa-
ra a nota final, como acontece com
os estudantes do ensino regular.
Até então, os alunos do recorrente
apenas eram obrigados a realizar os
exames que funcionam como provas
de ingresso dos cursos escolhidos,
sendo a média final do secundário
contabilizada com base apenas na
classificação interna.
Segundo o ministério, estava-se
assim a “corrigir uma flagrante e
reiterada injustiça” em relação aos
alunos do ensino regular, que se viam
ultrapassados no acesso aos cursos
mais disputados por estudantes que
usavam o recorrente apenas para su-
bir a sua nota de candidatura.
Cerca de 200 alunos que foram
apanhados pelas novas regras quan-
do já estavam a concluir o secundário
recorreram à justiça, tendo-lhe sido
dada razão pelos tribunais adminis-
trativos e pelo Ministério Público,
que defenderam que deveria ter si-
do acautelado um regime transitório.
Muitos deles acabaram por fazer os
exames nacionais mas entraram de
acordo com as regras antigas, com
médias mais elevadas.
Esta interpretação foi depois con-
testada pelo Tribunal Constitucional
e pelo Supremo Tribunal Adminis-
trativo quando muitos deles já esta-
vam no 2.º ano da faculdade, o que
levou ao seu afastamento do ensino
superior ou à recolocação em cursos
menos disputados. No programa do
Governo defende-se a substituição
do ensino recorrente por outros cur-
sos para adultos.
Quase100conservatóriosjáforampagos
FinanciamentofoiaprovadoemOutubro
O
Ministério da Educação
(ME) indicou, na terça-
feira, que falta ainda pagar
as verbas em falta a 17
das 115 escolas particulares do
ensino artístico especializado
que garantiram financiamento
para três anos no concurso
que foi realizado, pela primeira
vez, em 2015 e cujos resultados
foram conhecidos em Outubro.
Deste balanço não farão parte,
contudo, a maioria das 53
escolas que tiveram mais cortes
de fundos e cujo financiamento
foi reforçado por via de um
concurso extraordinário,
concluído no final de Novembro.
O ME não esclareceu em
que situação se encontram
actualmente, mas no final de
Dezembro referiu que os seus
processos ainda não tinham sido
instruídos pela Direcção-Geral
dos Estabelecimentos Escolares.
Em resposta ao PÚBLICO, o
gabinete de comunicação do ME
especificou que do lote das 115
cujos processos já avançaram,
os atrasos no financiamento a
17 delas se devem às seguintes
razões: há oito escolas cujos
contratos de patrocínio ainda
estão em análise no Tribunal de
Contas (TdC), no caso de outras
cinco os processos ainda não
foram remetidos para o TdC por
faltar documentação e há quatro
que não receberam as verbas
por ainda não terem pago os
emolumentos pedidos por
aquela instituição para a análise
dos processos de obtenção
de vistos, obrigatórios quando
o financiamento do Estado é
superior a 350 mil euros.
Através dos chamados
“contratos de patrocínio”,
o Estado atribui um
financiamento a conservatórios
privados para garantirem,
gratuitamente, aulas de música
e dança a alunos do ensino
público. Mas os atrasos na
transferência de verbas têm
sido uma constante, deixando
muitos professores com
salários em atraso e levaram já à
interrupção temporária destas
aulas em algumas instituições.
12 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016
CampanhadeBelémentreaperdade
umamigoeapolémicadassubvenções
MariadeBelémnocentrodofuracão;SampaiodaNóvoa“cheiodeânimo”
A devolução das subvenções vitalí-
cias dos políticos entrou na campa-
nha das presidenciais e Maria de Be-
lém ficou debaixo dos holofotes me-
diáticos por ter subscrito o pedido de
fiscalização da constitucionalidade à
norma do Orçamento do Estado para
2015, juntamente com mais 29 depu-
tados do PS e do PSD. Que efeito tem
a polémica na sua candidatura?
O porta-voz da candidatura de Ma-
ria de Belém, Vera Jardim, reconhece
que o caso “não é positivo” e critica
o “clima de populismo levado ao ex-
tremo” que diz marcar estas eleições.
Reprova as palavras de Sampaio da
Nóvoa no final do debate na RTP, em
que cá fora disse que, se for eleito,
pretende tirar as subvenções dos ex-
presidentes da República”. “Isto é
uma enormidade, até porque nem o
pode fazer”, atira, lamentando que
alguém que é apoiado por três ex-
presidentes se comporte assim.
A investigadora da área dos me-
dia e professora da Universidade do
Minho Felisbela Lopes diz que qual-
quer leitura política tem de ser feita
mediante a cobertura mediática. O
facto de o caso das subvenções ter
coincidido com a morte de Almeida
Santos “neutralizou o grande efeito
que essa ligação pudesse ter” na can-
didatura de Belém, considera. A cir-
cunstância da candidata não ter ido
ao debate com os outros candidatos
“contribuiu para diminuir o impac-
to”. Felisbela Lopes reconhece que,
se Almeida Santos não tivesse morri-
do e se a candidata tivesse participa-
do no debate, “haveria um confronto
brutal”, porque ela seria o “rosto das
subvenções vitalícias”.
António Costa Pinto analisa a
questão de outro ponto de vista,
chamando a atenção para o facto de
haver dois candidatos mais distantes
da classe política — Marcelo Rebelo
de Sousa, que apesar de ter sido líder
do PSD tem um percurso autónomo,
e o independente Sampaio da Nóvoa
—, o que “faz com que Maria de Be-
da. Sobretudo após o caso das sub-
venções vitalícias.
Nóvoa não quis cavalgar o assunto.
“Não gostaria muito de me pronun-
ciar sobre essa matéria.” Perante a
insistência dos jornalistas, ainda co-
meçou por dizer que os deputados
gozam de total liberdade nos seus
mandatos. Só no fim veio a crítica:
“Se eu fosse deputado, jamais toma-
ria essa iniciativa.” Nova pergunta:
“E é uma contradição pedir a fisca-
lização dessa norma e não a dos Or-
çamentos de Passos Coelho?” E aqui,
sim, Nóvoa repete a crítica: “Teria
sido bom que, enquanto deputada
e presidente do PS, tivesse tido uma
posição mais activa na defesa da
Constituição.”
Nóvoa parte para os últimos dias
de campanha “cheio de ânimo” e
com “uma convicção muito forte”
de que, no domingo, os eleitores de-
cidirão escolhê-lo para disputar uma
Vera Jardim, porta-voz da candidata, fala
de “clima de populismo” e desanca em
Nóvoa. Este diz que não teria subscrito
o pedido de inconstitucionalidade da
norma que retirou subvenções a políticos
Presidenciais
MargaridaGomes
ePauloPena
lém seja facilmente associada aos
defeitos da classe política”. E atira
outro dado para destacar o “impacto
negativo” da acumulação de cargos:
a candidata acumulou a presidência
da Comissão Parlamentar de Saúde
com o de consultora do Grupo Espí-
rito Santo Saúde.
Ana Belchior, professora de Ci-
ência Política do ISCTE, considera
que “esta iniciativa de fiscalização
só pode ser mal acolhida pelo cida-
dão comum”. “Trata-se de um pri-
vilégio, ainda mais inaceitável pelo
contexto social em que é reposto.
Do ponto de vista do pensamento
racional do eleitor, o impacto sobre
a campanha de Maria de Belém só
pode ser objectivamente negativo”,
afirma ao PÚBLICO.
Embora seja apoiante da ex-pre-
sidente do PS, o professor Adelino
Maltez não aplaude a decisão da can-
didata, afirmando mesmo que revela
um perfil que já lhe “causou dissa-
bores”, numa alusão à sua ligação
ao Grupo Espírito Santo Saúde. “É
preciso um choque moral e um novo
paradigma”, advoga, considerando
que este tipo de comportamentos po-
de dar votos a Paulo de Morais. “A
democracia exige ética e nem tudo
o que é lícito é honesto”, remata o
catedrático da Universidade Técnica
de Lisboa. André Freire, professor do
ISCTE que integra a comissão política
da candidatura de Sampaio da Nó-
voa, partilha da opinião de Felisbela
Lopes, afirmando que “os efeitos vão
depender do grau de mediatização”.
Fala de um tema que não é popular e
critica a “incoerência” da candidata.
“Quando foi o episódio de fiscaliza-
ção dos cortes de salários na função
pública e nas pensões, Maria de Be-
lém ficou quietinha. Desta vez, como
tinha a ver com as subvenções dos
políticos, subscreveu o pedido de
fiscalização”, aponta.
Nóvoa: “Eu jamais o faria”
A paragem forçada da campanha
terminou, de vez, com aquilo a que
Sampaio da Nóvoa chamou “ataques
fratricidas” entre as candidaturas de
esquerda. Agora, reina a convicção
de que Maria de Belém está em per-
segunda volta com Marcelo Rebelo
de Sousa. Em Guimarães, onde reto-
mou as acções de campanha depois
de ter interrompido a agenda duran-
te 24 horas, garantiu que a “dinâmi-
ca da campanha tem sido boa” e que
as coisas até “têm corrido acima das
expectativas”.
O candidato refere-se ao apoio nas
ruas, mas também à mobilização que
sente, nas bases da candidatura. Seja
nas bases “auto-organizadas”, que
ADRIANOMIRANDA
PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 13
A dias das eleições, Marcelo Rebe-
lo de Sousa prefere o optimismo do
que antecipar más notícias quanto
ao Orçamento do Estado (OE) para
2016. Fala em “esperança” de que
tudo corra bem e no “equilíbrio” que
o Governo terá de fazer entre as exi-
gências dos partidos que o apoiam e
as pressões de Bruxelas. O momento
parece ser o de desdramatizar.
Reconhecendo que o calendário
aponta para que já seja o próximo
Presidente a promulgar o OE, o can-
didato Marcelo não se compromete.
“Há um esforço grande do Governo
em ser sensível às apreciações de
Bruxelas e com o que se compro-
meteu a fazer em termos eleitorais.
Estou esperançado em que não haja
problemas com o OE”, disse aos jor-
nalistas depois de questionado sobre
a posição do BE perante as pressões
de Bruxelas. O candidato põe água
na fervura. “Tenho ouvido dizer da
parte dos partidos que o apoiam [o
Governo] que não querem provocar
crises”, disse, sublinhando que tem
de haver um “equilíbrio” em não se
afastar das metas orçamentais e as
posições dos partidos à esquerda. “É
um equilíbrio talentoso”, rematou.
As declarações foram contidas,
porventura à imagem do que o can-
didato deixará transparecer, se for
eleito Presidente da República, numa
final de futebol, entre o seu clube fa-
Marcelo “esperançado” em que
não haja problemas com o OE
vorito, o Braga, e o FC Porto. “Se for
golo do Porto, sorrio. Se for golo do
Braga, sorrio para dentro com mais
força”. Marcelo falava com um jovem
no Centro de Educação do Cidadão
com Deficiência, em Sintra, que visi-
tou nesta quarta-feira à tarde, antes
de partir para o Porto, de comboio.
Luís, atleta para-olímpico medalha-
do, tinha lançado a pergunta: “Se for
eleito, vai ao futebol?”. “Claro!”, res-
pondeu, contando a história do seu
clube ao mesmo tempo que elogiava
os conhecimentos que Luís tinha so-
bre futebol. “Tu acompanhas tudo”,
disse-lhe, ouvindo a inesperada res-
posta: “Sou como o Marcelo”.
Se o candidato presidencial, nos
seus tempos de comentador televi-
sivo, já entrou no mundo do futebol,
desta vez é a bola que se intromete na
política. O treinador José Mourinho
declarou apoio a Marcelo, num vídeo
divulgado pela candidatura. Foi mais
um apoio a somar a outro que se fez
notar à chegada ao centro: o social-
democrata Ângelo Correia estava à
espera do candidato, mas não foi à
primeira que Marcelo o cumprimen-
tou. O candidato garante que não viu
o ex-dirigente e antigo apoiante de
Passos Coelho e só mais tarde, já
durante a visita às instalações, lhe
deu um abraço, dizendo que “é uma
grande figura da democracia”. Coin-
cidência ou não, o centro que Marce-
lo visitou é onde trabalha a mulher
de Passos Coelho, Laura Ferreira,
que não estava presente.
SofiaRodrigues
MIGUEL MANSO
MarcelovisitouainstituiçãoondetrabalhaamulherdePassos
têm mantido um programa autóno-
mo desta “caravana” que percorre o
país com o candidato, seja nas estru-
turas locais, mais próximas do PS, e
que não lhe têm faltado com apoio.
Ainda esta quarta, na fábrica de cal-
çado Kyaia, em Penselo, Guimarães,
António Guimarães, o autarca socia-
lista, acompanhou Nóvoa na visita
em que foi anfitrião o empresário
Fortunato Frederico, dono da céle-
bre marca Fly London, o maior em-
presário português do sector, que é
também mandatário para a inovação
da candidatura.
Mas Nóvoa quer, nestes últimos
dias, regressar ao seu lugar de parti-
da: uma candidatura independente,
aberta a vários sectores. Por isso on-
tem, em Nogueira de Regedoura (Fei-
ra), o convidado foi Carvalho da Sil-
va, o homem que muitos apontavam
como “presidenciável” à esquerda, e
é um dos mandatários de Nóvoa.
“A democracia
exige ética e nem
tudo o que é lícito
é honesto”
AdelinoMaltez
Apoiante de Maria de Belém
“Quando foi da
fiscalização dos
cortes de salários,
ficou quietinha”
AndréFreire
Apoiante de Sampaio da Nóvoa
MARCODUARTE
O
presidente do Tribunal
Constitucional, Joaquim
de Sousa Ribeiro,
afirma que o que esteve
em causa na decisão das
subvenções vitalícias dos
políticos foi “a tutela de
confiança”, considerando
que este regime “não está
blindado”. “O que esteve aqui
em causa do ponto de vista
constitucional era uma questão
típica da tutela da confiança e a
tutela da confiança para ajuizar
este tipo de questões não pode
olhar só para o presente, temos
que olhar para o passado
e apreciar as implicações
condicionantes”, disse aos
jornalistas o presidente do
Tribunal Constitucional (TC).
Sousa Ribeiro adiantou que
este regime “não é intocável” e
“não está blindado”, não sendo
imune a alterações legislativas,
pelo que o Parlamento
pode alterar esta lei. “Este
regime que estava em vigor
anteriormente e que foi agora
modificado não é intocável,
isto é, não há uma base de
confiança na perpetuação
inalterada do regime
anteriormente em vigor, estou
a utilizar palavras exactas que
constam do acórdão. Quer isto
dizer que o regime anterior não
está blindado, não está imune a
alterações legislativas.”
O presidente do TC justificou
também a decisão com o facto
do rendimento do agregado
familiar dos ex-políticos não
poder ser prejudicado por uma
actividade pessoal prestada.
“A prestação de subvenção
a estes ex-titulares tem
como causa uma actividade
pessoal que eles prestaram
no exercício de uma função
pública e quando se remete
para o rendimento global de
um agregado familiar perde-se
este vínculo de personalidade,
esta conexão de sentido que
fundamenta e que é a razão de
ser desta prestação”. Joaquim
de Sousa Ribeiro sublinhou
igualmente que não esteve em
causa “uma apreciação factual
se os subsídios são justos e se
devem ser pagos”. Lusa
PresidentedoTC
faladesubvenções
14 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016
Elisabete Gonçalves, 44 anos,
costuma estar à porta do jardim
da Estrela, em Lisboa, com o
carrinho de castanhas. Mas
ontem havia mais movimento,
muitos carros que chegam e
partem, gente conhecida da
televisão, curiosos. Às 13h,
ouvem-se os sinos na Basílica,
pouco depois palmas, a urna está
a sair. Novamente mais aplausos
quando o carro funerário passa
pela Assembleia da República. A
cerimónia só acaba no cemitério
do Alto de São João. Foram
muitas as figuras da política
nacional e também simples
curiosos que marcaram presença
no funeral do histórico socialista
Almeida Santos.
No cemitério, onde o corpo
do antigo advogado — que não
quis uma cerimónia religiosa
— foi cremado, os jornalistas
ficam à porta, a família pede
compreensão. Os grandes
portões fecham-se, a Polícia de
Segurança Pública controla as
entradas e as saídas, e o trânsito.
Há carros de exteriores das
televisões, microfones. Quando
o ex-primeiro-ministro socialista
António Guterres entra no
carro, os fotógrafos colam-se ao
grande portão e disparam a uma
velocidade tal que o barulho
parece o de várias máquinas de
escrever juntas.
Entre a Basílica da Estrela e o
cemitério, ao longo da manhã e
do início da tarde, são muitas as
figuras da política nacional, de
diferentes partidos, que marcam
presença. Alguns exemplos:
Cavaco Silva, Passos Coelho,
Sampaio da Nóvoa, Cândido
Ferreira, Isabel Moreira, Alberto
Martins, João Cravinho, Ramalho
Eanes e Manuela Eanes, José
Sócrates...
Mais: Adriano Moreira, Jorge
Sampaio, Santana Lopes, Jorge
Coelho, Manuela Ferreira Leite,
Mota Amaral, José Ribeiro e
Castro, Carlos César, Carlos
Carvalhas, Ferro Rodrigues,
António Filipe, José Luís Ferreira,
Pedro Filipe Soares, Ana Catarina
Mendes, Teresa Caeiro.
Apesar de ser difícil conseguir
conversar com o ex-primeiro-
ministro José Sócrates, que
está sistematicamente a
ser interrompido por gente
conhecida e anónima que o quer
cumprimentar, o socialista lá
consegue expressar ao PÚBLICO
a amizade e admiração que sentia
por Almeida Santos.
“Era um homem raro e singular
e, por isso, há este sentimento”,
diz, destacando as qualidades
profissionais, políticas e humanas
do seu “camarada”. “Era, em
primeiro lugar, um grande jurista
e advogado, gostava de se ver
como jurista. Foi o grande jurista
da democracia, da liberdade, da
nossa Constituição. Por outro
lado, era também um homem da
política”, nota, acrescentando
que era ainda “um grande
homem da língua portuguesa,
da geração dos políticos que
escrevem bem”.
Fados na despedida
Também à porta da Basílica,
o ensaísta e filósofo Eduardo
Lourenço recorda ao PÚBLICO
que era da mesma geração
de Almeida Santos, ambos
estudantes em Coimbra: “Ele
estava mais adiantado do que
eu, era ele, o Salgado Zenha”,
lembra, falando muito baixinho.
Tantos “tornaram-se homens
de Estado, homens das letras”,
continua.
Nem só figuras conhecidas
marcaram presença na despedida
do socialista que morreu na
segunda-feira em casa, em
Oeiras, aos 89 anos, sentiu-se
mal depois do jantar. Maria
Olinda, 70 anos, doméstica, está
com a mão encostada à testa, a
tentar proteger os olhos do sol
para ver o carro fúnebre partir.
É natural de Seia, cidade onde
nasceu o antigo advogado. “É
Ocortejo
fúnebresaiu
daBasílica
daEstrela
emdirecção
aoAltode
SãoJoão,
passandopela
Assembleiada
República
Ferro
Rodrigues,
actual
presidenteda
Assembleiada
República,eo
ex-provedor
deJustiça
FariaCostano
funeral
Políticosecuriososdespediram-se
deAlmeidaSantosnumdiadesol
Figuras conhecidas de todos os partidos
marcaram presença no funeral do
histórico socialista. Mas também houve
cidadãos que se juntaram à última
homenagem ao antigo presidente da AR
Reportagem
MariaJoãoLopesTexto
AdrianoMirandaFotos
da minha terra, tenho uma
grande admiração por ele e sou
socialista.”
À porta do cemitério juntam-se
outros curiosos. Matilde Barros,
61 anos, quis ir ao funeral, “por
sentir muita admiração” por
Almeida Santos, que via como
alguém “simpático e bondoso”.
Porém, quando chega, vê os
portões fechados e acaba por
ficar do lado de fora a ver quem
entra e sai. E são muitos: Manuel
Alegre, Pinto Monteiro, Maria
de Belém, Marcelo Rebelo de
PÚBLICO,QUI21JAN2016 | 15
Sousa, Luís Fazenda. O primeiro-
ministro António Costa estava em
Cabo Verde, em visita oficial.
Na rua, em frente ao cemitério,
e na direcção da Avenida Afonso
III, consegue ver-se o rio Tejo
ao fundo. Está um dia de sol.
De dentro do cemitério, saem
também, de capas negras aos
ombros e instrumentos nas
mãos, os músicos que cantaram
e tocaram dois fados: Valsa para
um tempo que passou, de António
Portugal, pelo grupo Alma de
Coimbra, e Ré Menor, de Almeida
Santos, pela Associação dos
Antigos Estudantes de Coimbra.
Quem também marcou
presença no funeral ontem foi o
ex-secretário-geral do PS António
José Seguro.
Citado pela Lusa, recordou o
socialista Almeida Santos “como
um dos principais protagonistas
da construção da democracia
portuguesa, da sua consolidação
e da edificação do Estado
democrático de direito”.
Foram muitos, rasgados e eloquentes
os elogios que António de Almeida
Santos recebeu ontem de todos os
partidos na Assembleia da República,
numa evocação que trouxe alguma
emoção ao plenário e a que assistiu
nas galerias a família do presidente
honorário do PS. Ferro Rodrigues
fez questão de ler o voto de pesar
que redigiu e foi aprovado por unani-
midade, no qual considera Almeida
Santos “um dos grandes estadistas
da democracia portuguesa e um dos
seus mais destacados arquitectos”.
Depois do minuto de silêncio, Al-
meida Santos foi ovacionado de pé
durante largos momentos por todos
os deputados.
“Almeida Santos viveu até ao seu
último dia empenhado na causa da
sua vida: a causa da cidadania”, leu
Ferro Rodrigues, descrevendo-o
como um “lutador pela liberdade”
e “protagonista dos três D do 25 de
Abril: Democracia, Descolonização e
Desenvolvimento”. Além dos cargos
políticos que desempenhou — foi mi-
nistro oito vezes, deputado em nove
legislaturas, presidente do PS duran-
te 19 anos e presidente da Assembleia
da República por sete anos — os elo-
gios que se ouviram foram sobre a
sua forma de estar na vida e o modo
como transpôs o seu carácter para
a acção política. Recordou-se a sua
combatividade contra a ditadura, a
Parlamento homenageou
o “cavalheiro da política”
“grande competência política e o ine-
gável patriotismo”.
O voto do Parlamento descreve-
o como “humanista”, “advogado
e jurista reputado e culto, escritor
e intérprete do fado de Coimbra”,
“um grande legislador da demo-
cracia”, “democrata exemplar”,
“generoso, conciliador, presente e
solidário”. Prestigiou o Parlamen-
to como nenhum outro presidente
e modernizou a chamada “casa da
democracia”, mandando instalar o
acesso à Internet e lançar o canal te-
levisivo Parlamento, e desenvolver o
projecto do Parlamento dos Jovens.
Das bancadas parlamentares, da
esquerda à direita, vieram os mes-
mos e novos louvores sentidos. A in-
tervenção mais emocionada veio do
PSD: Luís Marques Guedes, que dele
disse ser um “homem de excepção”,
“jurista de excelência, democrata
indefectível, contundente mas res-
peitador dos seus adversários”, com
uma “insuperável” dimensão huma-
na. “Um cavalheiro da política.” “A
Assembleia da República perdeu um
dos seus grandes, muitos de nós per-
demos um amigo”, vincou Marques
Guedes.
A ideia de uma “figura maior” da
história da democracia portuguesa
foi também deixada pelo secretário
de Estado dos Assuntos Parlamenta-
res. “Figura maior, lutador da liber-
dade, arquitecto da democracia, um
coração gigante”, disse Pedro Nuno
Santos. Destacou o seu papel “cen-
tral na construção democrática”, na
descolonização, na afirmação do PS
na sociedade portuguesa, e o apoio
à actual solução de Governo. Depois
de o considerar “um dos maiores e
melhores socialistas portugueses”,
Pedro Nuno Santos despediu-se: “Até
sempre, presidente!”
Pelo PS, coube a Jorge Lacão a evo-
cação. “Não morrem as pessoas cuja
grandeza de vida as coloca acima e
para além do seu tempo”, disse o de-
putado lembrando o “patriota e uma
das maiores figuras da República de-
mocrática”, o “maior legislador do
regime democrático” que merece no
Parlamento um “lugar de panteão”.
Horas antes, deputados e funcioná-
rios da Assembleia juntaram-se na
escadaria para ver passar o cortejo
fúnebre e havia quem chorasse.
MariaLopes
AlmeidaSantospresidiuàAR
“Foi um dos
principais
protagonistas
da construção
da democracia”
António José Seguro
FERNANDO PULIDO VALENTE
1924-2016
A Fundação Professor Francisco Pulido Valente
participa o falecimento do seu fundador e antigo
presidente do Conselho de Administração, Fer-
nando Pulido Valente. Lembramos, nesta hora,
o seu papel decisivo na criação desta Fundação
e no desenvolvimento das várias iniciativas le-
vadas a cabo pela mesma, com particular des-
taque para a instituição dos Prémios Professor
Francisco Pulido Valente, nas áreas do Ensino e
da Ciência.
Todos aqueles que pretenderem prestar-lhe uma
última homenagem poderão fazê-lo no Centro
Paroquial de Miraflores, a partir das 17 horas de
dia 20 de Janeiro de 2016. O funeral seguirá no
dia 21 pelas 16:30h para o Crematório do Cemi-
tério dos Olivais.
Fundação Professor Francisco Pulido Valente
FERNANDO PULIDO VALENTE
1924-2016
A Família de Fernando Pulido Valente participa
o seu falecimento. Neste momento queremos
recordar as suas qualidades cívicas e huma-
nas, traduzidas numa vida de intensa partici-
pação civica, política e sindical, assim como
a competência profissional que sempre lhe
foi reconhecida. Foi uma pessoa íntegra que
pautou a sua vida pelos valores da família, da
liberdade, da honestidade, da solidariedade e
da justiça.
Todos aqueles que pretendam prestar-lhe uma
última homenagem poderão fazê-lo no Centro
Paroquial de Miraflores, a partir das 17 horas
de dia 20 de Janeiro de 2016. O funeral seguirá
no dia 21 pelas 16:30h para o Crematório do
Cemitério dos Olivais.
16 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016
Coutode
DornelasHá mais de 200 anos que a aldeia de Couto de Dornelas celebra São Sebastião
com a oferta de um almoço a quem por lá aparecer a 20 de Janeiro. A festa,
que poderá ter nascido nas invasões francesas, faz-se do prazer de dar, atrai
centenas de pessoas de todo o Norte e tornou-se um agregador de afectos
P
or volta das dez ho-
ras da manhã de on-
tem, os autocarros
começaram a apa-
recer entre o nevo-
eiro na descida das
serras do Barroso
em direcção a
Couto de Dornelas.
Os seus passageiros
enfrentam com risos o ar frio da
montanha, a chuva monótona e
persistente e a aparência de mesa
que se estendia pela rua principal
da aldeia ao longo de quase um
quilómetro. Dentro de um par de
horas, teria ali lugar uma das cele-
brações mais antigas e originais da
tradição rural do Norte do país, a
Mesinha de São Sebastião. Venha
quem vier, seja de Valongo, de
Barcelos, de Fafe, de Guimarães,
grande ou pequeno, português ou
galego, rico ou pobre, ninguém pa-
ga o almoço — o 20 de Janeiro, dia
do Mártir São Sebastião, é o dia em
que a aldeia manifesta a sua genero-
sidade ao mundo para cumprir uma
tradição e para garantir o empenho
do santo na sua protecção.
Em breve, Couto de Dornelas iria
transformar-se num gigantesco res-
taurante ao ar livre, onde a comida
se temperava com a crença nos mila-
gres do santo e com muitos gestos e
ritos que tornam irresistível o colori-
do das festas populares. Ao fundo da
rua, a confusão que se vivia na casa
do santo, onde a comida estava a ser
preparada, era enorme. “Deixem
passar”, dizia uma mulher atarefa-
da carregada de panelas. “Maldito
fumo”, queixava-se outra com as
lágrimas a correrem pela face. Há
muitas horas que na sala de entrada
da casa ardia uma gigantesca foguei-
ra onde se coziam mais de 300 qui-
los de carne de porco em dezenas
de potes de ferro fundido. O ar era
quase irrespirável.
Protegido na sala do pão, onde
umas mil broas se guardavam na
vertical em estantes, José Pereira
freguesia do Salto o dia de São Se-
bastião é celebrado com dádivas de
pão e vinho e nas aldeias de Godiães
e de Samão, no concelho de Ribeira
de Pena, oferece-se papas de sarra-
bulho e vinho. Mas em nenhuma ou-
tra terra a tradição se exerce com a
mesma paixão. Como se em causa
estivesse o cumprimento de um de-
ver colectivo. As lendas rezam que
a primeira mesinha se fez em 1809,
quando os moradores prometeram
ao santo fazer a festa se ele evitasse
a passagem das tropas napoleónicas
pela aldeia e os poupasse às pilha-
gens. Um nevão forçou os franceses
a desviar-se da rota e a tradição ficou
consagrada. “Mas um dia, há muito
tempo, a festa não se fez e nesse ano
deu uma epidemia ao gado que o
matou. E depois disso a festa fez-se
todos os anos”, diz Artur Dias, 72
anos, 30 dos quais passados nos Es-
tados Unidos. “Eu ouvi essa história
muito pequenino e, quem me a con-
tou, foram pessoas que a ouviram de
outros”, confirma José Ferreira.
Claro que a mesinha de hoje já
não é organizada pelas nove famílias
de lavradores abastados, que roda-
vam entre si na organização, como
outrora. Os ingredientes deixaram
há muito de ser integralmente pro-
duzidos na aldeia. É óbvio que hoje
já não são crianças de bata branca
a servir o arroz pelas mesas, como
Artur Dias fez na sua infância. Por-
ManuelCarvalho
Ferreira olhava para o burburinho
em volta da fogueira e justificava a
razão de tanto esforço colectivo e de
tanta despesa. “Isto é um orgulho.
Sempre foi e continuará a ser”, ex-
plicava. Fabricar mais de uma tone-
lada de pão, cozinhar mais de 300
quilos de carne e mais de 100 quilos
de arroz e distribuí-los gratuitamen-
te é uma operação difícil, que exige
tempo, logística, suor, dinheiro e,
muito mais importante, empenho e
dedicação. “Isto começa a ser feito
dois meses antes”, explica José Fer-
reira, que já foi presidente da junta
local e integra o grupo da Comissão
da Fábrica de São Sebastião. É preci-
so recolher esmolas junto da popu-
lação, é preciso negociar a ajuda da
Câmara de Boticas, é preciso com-
prar os ingredientes da festa e, mais
difícil ainda, é preciso cozinhá-los e
servi-los. “Só para cozermos o pão,
gastamos quatro ou cinco dias e cin-
co noites, sem parar”, acrescenta.
A distribuição de comida a quem
passar não é uma tradição exclusiva
de Couto de Dornelas — na vizinha
Umafestafeitacom
oorgulhodedarem
PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 17
que hoje, como no resto do Barroso,
a desertificação fez desaparecer as
crianças e as famílias poderosas e
globalização da agricultura arruinou
a produção de centeio e reduziu os
rebanhos que, outrora, “enchiam
a serra”. O que não mudou foi a
devoção de Dornelas ao seu santo
e o militante espírito comunitário
da aldeia — um feudo da CDU nu-
ma geografia política dominada há
décadas pelo PSD.
Veja-se o caso de António Pires,
que há anos é o responsável por
angariar esmolas entre os peregri-
nos. Ou o de Nestor Carneiro, que
é o dono do cargo de transporta-
dor do santo. Ou o de António San-
casa do santo para benzer o pão e
os potes, todos os elos da organiza-
ção entram num rodopio nervoso
e feliz, como se o momento mais
aguardado durante todo o ano es-
tivesse a chegar, como se todas as
noites sem dormir chegassem ao
momento de remissão.
A comida começa então a ser
servida. À frente, um membro da
comissão leva uma vara com talvez
um metro e meio que serve para
marcar as distâncias a que se vão
colocar os pães, as malgas de arroz e
os pratos de pau onde será colocada
a carne. De seguida, António Pires
abre o caminho e anima as hostes
impelindo-as a “dar uma esmola ao
santinho”. Chapéu enfiado a fundo,
pele tisnada pelo frio, António é o
animador da festa. “Ele tem jeito, já
faz isto há muitos anos”, ri-se Fran-
cisco Barreto, o cérebro de toda a
operação. “Não botem vinho para
a toalha, que é de linho”, diz a uma
mulher de Valongo refastelada nu-
ma cadeira de praia; “se não fosse o
São Sebastião já éramos todos espa-
nhóis”, continua; “é para ver se dá
para o arroz”, insiste. Logo atrás,
Nestor Carneiro empunha o san-
to de madeira, com meio metro,
dando-o a beijar aos presentes e
limpando-o com uma toalha de li-
nho após cada acto de devoção.
Enquanto espreitam a marcha
de progresso da carne e do arroz
ao longo da fila de tábuas, as pesso-
as brincam, riem, pedem “dois oi-
ros” ou “três ouros” emprestados
(a palavra “euro” não chegou ainda
a todo o Portugal) para a esmola.
Alguns improvisam versos. Outros
dedicam-se a fundo aos rituais mi-
nhotos, com acordeões, em canta-
res ao desafio. As piadas brejeiras
são muitas. Conforme a marcha da
carne progride e as garrafas e gar-
rafões se esvaziam, a chuva morri-
nhenta vai-se esquecendo, os risos
aumentam de tom, as brincadeiras
multiplicam-se e a festa entra então
na sua dimensão profana. Alguns
dançam ao som de uma coluna
portátil instalada em cima de um
tractor. Há por ali uma fuga delibe-
rada aos maus espíritos — exceptu-
ando um espanhol que se tentou
apropriar de um prato de madeira.
Por volta das duas da tarde, a
mesa começa a ficar deserta. Os
panos de linho estão a ser reco-
lhidos. As pessoas retiram em ma-
gotes. Muitas cantam e dançam,
levando por vezes na mão ou em
tupperwares o pão ou o arroz que
sobrou. “Ah, a comidinha que boa
que era”, regozijava-se Custódia
Novais, 81 anos, de Braga, logo an-
tes de esclarecer com solenidade:
“Olhe que eu não vim cá só para
comer.” Pois, veio também por
causa da fé, do santo e do conví-
vio. Ou ainda pela singularidade
daquele encontro no frio húmido
da rua, onde se sente o dever de
articular uma vénia a uma aldeia
que dá de comer a quem passa sem
pedir nada em troca — para lá da
protecção do santo.
A Mesinha de São Sebastião há-
de ser muito diferente da festa
que José Fonseca e Costa filmou
para a RTP nos anos de 1960. Mas
ainda atrai televisões estrangei-
ras, que estranham aquele ritu-
al meio sagrado, meio profano e
talvez ainda mais a natureza de
uma celebração construída pelo
prazer e pelo orgulho de dar e de
ser reconhecido apenas por isso.
Numa aldeia como tantas outras,
envelhecida, com o seu tecido eco-
nómico desarticulado pela políti-
ca agrícola europeia, esse “orgu-
lho” de poder dar que Francisco
Barreto, Artur Dias, José Ferreira,
António Sanches ou Nestor Carnei-
ro ostentam talvez seja um bom
ingrediente para resistir a todas
as ameaças. Muito mais do que a
comida, é essa manifestação de
ser pela generosidade que torna
aquela festa um acontecimento no-
tável desse velho mundo rural por-
tuguês sob a ameaça de extinção.
FOTOS: NELSON GARRIDO
ches, que todos os anos viaja desde
o Canadá “para estar cá e ajudar
no que for preciso”. A verdade é
que tanta tradição acumulada criou
na aldeia uma máquina eficaz de
fazer e distribuir comida ao longo
da mesa de quase mil metros. Mal o
padre acaba a celebração da missa,
por volta do meio-dia e passa pela
Venhaquem
vier,sejade
Valongo,de
Barcelos,
deFafe,de
Guimarães,
grandeou
pequeno,
português
ougalego,
ricooupobre,
ninguémpaga
oalmoço—o
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Sebastião
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  • 1. 269e4c10-67af-4367-b303-ec0e11cae31e O nosso sector bancário continua entre os que mais perdem perante estratégia de fuga ao risco por parte dos investidores. Dívida pública também sob pressão p22 O objectivo é investir em centros de saúde. Adalberto Campos Fernandes quer fazer mais e diferente com praticamente o mesmo orçamento. p10 Mercadosmundiais emcrise,Portugal é dosmaisafectados MinistrodaSaúde querreduzir urgênciasem10% 1922-2016 MORREUNUNOTEOTÓNIOPEREIRA, OARQUITECTOMILITANTE Destaque,2a6 CARLOS LOPES Análisea240fortunas levoufiscoaacçõesde controlosobre44casos O exame da Autoridade Tributária incidiu sobre a situação fiscal de contribuintes com património acima dos 25 milhões de euros. Sigilo bancário continua a ser obstáculo Economia,20 A medida pode durar até 26 de Fevereiro e já há quem tema o seu prolongamento. A Liga dos Direitos do Homem pediu a intervenção do Conselho de Estado p24 Novo treinador, que será hoje apresentado, assistiu na bancada à derrota com o Famalicão, que ditou a eliminação dos “dragões” da competição p40 O caso da devolução das subvenções vitalícias dos políticos “não é positivo” para a campanha de Maria de Belém, mas o seu porta- -voz ataca o “populismo” p12 Legalidadedoestado deemergênciaem Françasobsuspeita JoséPeseiroherda umFCPortojáfora daTaçadaLiga Belémnaberlinda depoisdecasodos subsídiosapolíticos QUI21JAN2016EDIÇÃOLISBOA CINEMA CERIMÓNIADOS ÓSCARESEMRISCO DESERBOICOTADA Cultura,28/29 AnoXXVI|n.º9410|1,20€|Directora:BárbaraReis|Adjuntos:NunoPacheco,PedroSousaCarvalho,ÁureaSampaio|DirectoraInternacionaledeParcerias:SimoneDuarte|DirectoraCriativa:SóniaMatos ISNN:0872-1548 HOJEAlmanaquePortuguês9.ºvol.Lácio(1939) +CrónicaCinematográfica(1930) Por+6,90€ urururaaa,222228/8/8/292929929
  • 2. 2 | DESTAQUE | PÚBLICO,QUI21JAN2016 NUNOTEOTÓNIOPEREIRA (1922-2016) N uno Teotónio Pereira morreu ontem em casa, aos 93 anos — completaria os 94 no próximo dia 30. Com uma carreira de seis décadas, foi uma das mais destacadas personalidades da arquitectura em Portugal — e, possivelmente, o último dos arquitectos modernos. Pelo seu atelier da Rua da Alegria, em Lisboa, que deixou de frequentar definitivamente depois de cegar, passaram sucessivas gerações de arquitectos portugueses, de Gonçalo Byrne a Nuno Portas. E passou também um país: da Igreja de Águas (1949-57), em Penamacor, o seu primeiro projecto, construído quando tinha 27 anos, à Moradia Barata dos Santos (1959-63), em Vila Viçosa, já em parceria com Nuno Portas, passando pelos projectos de habitação social que projectou para Braga, Castelo Branco, Barcelos ou Póvoa de Santa Iria. É em Lisboa, porém, que está o seu mais significativo conjunto de obras: o Bloco das Águas Livres (1953-56), assinado com Bartolomeu Costa Cabral; as torres do bairro de Olivais Norte (1957-67), projecto em co-autoria com Nuno Portas e Pinto de Freitas que ainda hoje é festejado como uma das melhores histórias da habitação social em Portugal; o icónico Edifício Franjinhas (1965-69), com João Braula Reis; e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, novamente com Nuno Portas — os três últimos vencedores do prémio Valmor. Será justamente na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde repetiu a proposta de assembleia em leque já experimentada em Penamacor, que o seu velório terá hoje lugar, a partir das 17h. O funeral realiza-se amanhã, às 13h30, no Cemitério do Lumiar. Nascido em 1922 e formado na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, em 1949, Teotónio Pereira começou por estagiar com Carlos Ramos (1897-1969), um impulsionador da arquitectura moderna em Portugal — mas seria, mais do que um arquitecto, um cidadão exemplar. Com outros católicos progressistas, manteve uma militância política extraordinariamente activa, sobretudo durante o regime de Salazar, a que se opôs frontalmente apesar de ter crescido numa família conservadora e afecta ao regime (e de, adolescente, ter desfilado entusiasticamente com a farda da Mocidade Portuguesa). Histórico defensor dos direitos cívicos e políticos durante os anos mais duros do Estado Novo (dinamizou o boletim clandestino Direito à Informação criado em 1963 para fazer a denúncia da Guerra Colonial, integrou a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos constituída em finais de 1969), foi um dos mentores da famosa vigília da Capela do Rato de 30 de Dezembro de 1972, uma greve de fome de 48 horas destinada a promover a reflexão sobre a Guerra Colonial que a polícia acabaria por interromper fazendo várias detenções. Ele próprio seria várias vezes preso (e duramente torturado) pela PIDE. Quando finalmente se deu o 25 de Abril de 1974, estava, aliás, há vários meses na prisão de Caxias, de onde seria libertado um dia depois da revolução. Já em democracia, prosseguiu a sua militância, tendo sido um dos fundadores (com Jorge Sampaio e Ferro Rodrigues, entre outros) do Movimento de Esquerda Socialista, extinto em 1981. Na mensagem de condolências que enviou à família de Nuno Teotónio Pereira, Cavaco Silva recordou-o não só como “um dos maiores arquitectos portugueses do século XX”, mas também como um “militante empenhado na defesa da liberdade, antes e depois do 25 de Abril”. O Presidente da República sublinhou a sua “carreira notável” ao longo da qual projectou “edifícios emblemáticos que nos fascinam pela rigorosa beleza do seu traço”, e a acção como “católico oposicionista” e, mais tarde”, “defensor da independência dos povos africanos”: “Lutou toda a vida, com uma fé inabalável, contra todas as formas de opressão”, dando “o melhor de si ao seu país e à causa dos direitos humanos”. Também o ministro da Cultura, João Soares, lembrou a “figura maior e inovadora da arquitetura portuguesa” e o “cidadão especialmente corajoso que sempre pugnou pelas liberdades públicas e por uma sociedade mais justa”. Como católico, Nuno Teotónio Pereira foi um dos grandes impulsionadores do Movimento da Renovação da Arte Religiosa, uma comunidade católica de artistas (José Escada, Cargaleiro, Eduardo Nery...) criada em 1952 para “promover, em todos os domínios da arte religiosa, o encontro de uma verdadeira criação artística com as exigências do espírito cristão”. Com a sua assembleia em leque, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, classificada como monumento nacional, resulta precisamente do esforço para traduzir as mudanças do Concílio Vaticano II. Nuno Portas, um dos arquitectos com quem Nuno Teotónio Pereira mais trabalhou no seu atelier, sobretudo entre 1957 e 1971 — e aquele com quem mais gostou de trabalhar —, destaca sobretudo “a força excepcional” com que Teotónio Pereira reorganizou a arquitectura portuguesa (muitas vezes nos bastidores, como convinha ao seu feitio inveteradamente discreto). “Nunca aparecia em público a dizer ‘eu fiz’, ‘eu sei’, tínhamos de ser nós a lembrá-lo. E a verdade é que ele esteve em tudo o que foi preciso reorientar: nas igrejas, primeiro, e depois na habitação social, que considero o seu legado mais importante e que nos marcou a todos. Ficámos todos com essa ‘doença’”, disse ao PÚBLICO o arquitecto, que, enquanto secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo dos primeiros três Governos provisórios, lançou as operações do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL). Além da dívida pessoal, Nuno Portas sublinha a dívida que a classe tem em relação a Teotónio Pereira, e à sua acção decisiva na organização e na regulação da Oúltimo dosmodernos Foi uma das mais destacadas personalidades da arquitectura portuguesa, com uma obra que reequacionou vários modelos, incluindo os da habitação social. Mas foi também uma referência da luta contra o Estado Novo. Um cidadão exemplar Obituário CláudiaLimaCarvalho eInêsNadais
  • 3. PÚBLICO,QUI21JAN2016 | DESTAQUE | 3 TeotónioPereira foimuitoactivo napromoção daarquitectura edosarquitectos NUNO FERREIRA SANTOS profissão, primeiro no Sindicato Nacional dos Arquitectos e, já depois do 25 de Abril, na Associação dos Arquitectos Portugueses, que em 1998 daria lugar à actual Ordem dos Arquitectos. “Tinha muita força naquilo que ele próprio desenhava mas também no que organizava com os outros e para os outros. Nunca quis ser só o arquitecto que faz projectos, tal como nunca quis ser só o militante político.” É essa dupla condição de “cidadão e arquitecto exemplar” que Manuel Graça Dias considera melhor definir o percurso de Nuno Teotónio Pereira. “Durante a sua longa vida, nunca deixou de lutar pela causa da liberdade e, como católico, pela renovação da relação da Igreja com a sociedade, que pessoalmente abordou em projectos como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. De resto, o facto de ter sido muito activo como católico e como antifascista não diminuiu minimamente a sua paixão pela arquitectura — manteve sempre um escritório em Lisboa pelo qual passaram imensos arquitectos com quem estabeleceu relações de amizade e de cumplicidade”, e 1972, o trabalho no atelier da Rua da Alegria com as funções de consultor da Federação das Caixas de Previdência para o programa de casas de renda económica, no âmbito do qual foram projectados (e acompanhados por arquitectos como Fernando Távora, Nuno Portas e Bartolomeu Costa Cabral) conjuntos habitacionais para vários pontos do território nacional. Essa luta para “encontrar uma linguagem para a arquitectura portuguesa” ajustada à nova realidade de materiais como o cimento e o betão armado e da construção em altura foi outro dos seus legados, frisa Manuel Graça Dias. E isto “no clima muito retrógrado” do pós-guerra, dominado pela visão “anedótica” que o Estado Novo tinha do que seria uma suposta “arquitectura tradicional portuguesa”. Nesse aspecto, “o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa foi uma bofetada de luva branca no regime, que subsidia as equipas enviadas pelo país fora para um levantamento rigoroso da arquitectura do país profundo” — como se suspeitava, “não havia ‘uma’ arquitectura popular portuguesa”, apesar de todos os desejos em contrário do discurso oficial. O Estado reconheceu a sua acção como arquitecto e como cidadão em 1995, concedendo- lhe a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Mais tarde, em 2004, foi também condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante, e em Abril de 2010 a Câmara de Lisboa atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Municipal. Recebeu o Prémio Nacional de Arquitectura da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1961, o Prémio da Associação Internacional dos Críticos de Arte, em 1985, e o Prémio do Instituto Nacional da Habitação, em 1992. Nos últimos anos, de resto, não lhe faltaram homenagens. Quando, em 2010, somou 60 anos de carreira, a Ordem dos Arquitectos celebrou a sua vida e a sua obra. “Mostra que tive alguma importância na sociedade portuguesa ao longo de mais de meio século no plano profissional e noutros planos”, reagiu então Teotónio Pereira. “Quando me formei, havia poucos arquitectos e tinham pouca importância social. Eram os engenheiros que dominavam a construção, e os arquitectos eram subalternos. Hoje são socialmente muito reconhecidos”, disse então à Lusa. Dois anos depois, foi a Igreja que lhe reconheceu o trabalho: “Num momento nacional dramático para a arquitectura, profissão que tem sido duramente flagelada pela crise económica, pensamos que a estatura ética e criativa de Nuno Teotónio Pereira representam uma lição de humanidade para todos nós e uma luz oportuníssima para pensar o lugar e o modo da arquitectura reinscrever-se no presente e no futuro.” O Prémio Árvore da Vida/ Padre Manuel Antunes, que lhe foi atribuído pela Igreja Católica, foi pretexto para uma entrevista ao PÚBLICO, na qual defendia que a arquitectura devia assentar em três pilares: a funcionalidade, a resistência ou solidez e a beleza. “A arquitectura tem que se adequar às necessidades das pessoas que habitam as casas ou dos empregados que trabalham numa firma ou dos operários de uma fábrica.” E dava como exemplo o seu Edifício Franjinhas, declarado imóvel de interesse municipal: “Preocupei-me muito com as pessoas que passavam ali a maior parte do dia sentadas às secretárias, a trabalhar. As secretárias mais perto da janela recebem a mesma luz das que estão ao fundo da sala, por causa dos efeitos do tecto e das faixas de betão penduradas nas janelas.” No caso de Teotónio Pereira, reforça Graça Dias, “essa noção de uma arquitectura pensada para as pessoas que a vão utilizar é muito importante e muito verdadeira”: “Há histórias interessantíssimas que se contam desse projecto — como a de às tantas ele perguntar como é que que aquelas janelas se iam limpar por fora. Atestam como a sua arquitectura estava de facto ligada ao real, ao dia-a-dia, e não se limitava à retórica do desenho.” nota o arquitecto e crítico de arquitectura. “O rigor que tinha em relação às autorias”, acrescenta, também era invulgar: “Não queria para ele os louros das obras que produzia com outros arquitectos e fazia questão de partilhar a assinatura com todos os colaboradores de um projecto. Prova disso é a lápide da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em que o nome de Nuno Portas precede o do próprio Nuno Teotónio Pereira. Da sua obra de seis décadas, Manuel Graça Dias destaca o “brilhantemente executado” Bloco das Águas Livres, “um óptimo exemplar da arquitectura moderna feita na Lisboa dos anos 50, com uma complexidade não muito habitual para um edifício de habitação, e que até hoje permanece muito disputado”. Mas também elogia o à época “injustamente maltratado” Edifício Franjinhas, a que os jornais então chamaram “mamarracho”: “É um edifício muito inteligente, com a sua pele que protege o interior tanto do ponto de vista da temperatura como do excesso de luz. Essas peças brise-soleil são resultado de um desenho bastante trabalhado que curiosamente foi sendo aperfeiçoado na incomodidade da prisão e enviado de Caxias para o atelier.” Foi, defende, “o último dos arquitectos modernos, no sentido do grande profissional que faz escola e deixa uma herança tanto na obra construída como nas pessoas que ajudou a formar” — “o equivalente em Lisboa ao que o Fernando Távora foi no Porto, liderando sem se impor e fazendo nascer à sua volta, mesmo nunca tendo sido professor, o gosto pela arquitectura numa série de discípulos”. Apesar do seu “entusiasmo inicial” por Le Corbusier, cuja Unité d’Habitation influenciaria assumidamente projectos como o Bloco das Águas Livres, tinha também uma admiração declarada pela arquitectura vernácula, que, aliás, ajudaria a inventariar como impulsionador do lendário Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa (1955-60) lançado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos. A atenção ao problema da habitação, outro eixo fundamental (e profundamente moderno) da sua obra construída, levou-o a acumular, entre 1948 RICARDO CAMPOS Quandosurge,oEdifícioFranjinhasévistocomoum“mamarracho” “Asuaarquitectura estavadefacto ligadaaoreal,ao dia-a-dia,enãose limitavaàretóricado desenho”,sublinha ManuelGraçaDias
  • 4. 4 | DESTAQUE | PÚBLICO,QUI21JAN2016 NUNOTEOTÓNIOPEREIRA(1922-2016) A morte de Nuno Teotónio Pereira, ontem, aos 93 anos, encerra uma das fases mais heróicas da arquitectura portuguesa. Militante antifascista, cristão progressista, moderno convicto, cultor da arquitectura popular, Teotónio Pereira foi a face mais visível de uma profissão que se empenhou socialmente e de forma revolucionária, sem necessitar de abdicar de “ser arquitecto”, isto é, recorrendo ao desenho, ao projecto e à construção. Teotónio Pereira conhecia igual- mente bem o valor da palavra, ten- do escrito e publicado importantes artigos, acompanhados de discursos possantes onde a arquitectura servia a luta social e política em que se foi envolvendo. Era sua a convicção de que a arquitectura era provavelmen- te o sinónimo mais óbvio de política. O período em que viveu os primei- ros anos da sua carreira deram-lhe razão. Mas nem o 25 de Abril de 1974 serenou os debates que foi abarcan- do, entre a radicalização do período pós-revolucionário e os discursos mais conciliadores, pronunciados recentemente. Nascido em 1922, em Lisboa, for- mou-se em Arquitectura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1949, ano em que abriu o seu primeiro atelier. Com Teotónio alinharam então outros arquitectos como Raul Chorão Ramalho e Manuel Alzina de Menezes, ou os engenheiros Goulart de Medeiros, José de Luce- na e Ernesto Borges. Um processo de trabalho baseado em parcerias estava já na génese deste primeiro grupo. Depois da Segunda Guerra Mundial tudo estava a mudar e a arquitectura não era excepção. OicónicoEdifícioFranjinhas,deLisboa,co-autoriacomBraulaReis,foiPrémioValmorem1971 RICARDO CAMPOS AnaVazMilheiro A morte de um militante arquitecto Nuno Teotónio Pereira viveu o exercício da profissão como um militante. A sua morte encerra uma das fases mais heróicas da arquitectura portuguesa
  • 5. PÚBLICO,QUI21JAN2016 | DESTAQUE | 5 Uma das suas primeiras inter- venções, a Igreja das Águas, em Penamacor, realizada ainda antes de atingir os 30 anos, mostra como pretendeu acertar a cultura portu- guesa com a cultura do tempo. A pesquisa para o desenho deste edi- fício é um pretexto para escrever uma carta a Óscar Niemeyer, cuja obra revolucionária dá então mos- tras de admirar. O arquitecto bra- sileiro não terá recebido a carta, o que não impediu que esta se tornas- se um dos factos mais reveladores das transformações que a disciplina estava a tomar em Portugal. No elogio que traçava, Teotónio fazia já uma declaração de princípio pela “nova” arquitectura portugue- sa: “A vossa obra é um estímulo po- deroso para a nossa própria luta em prol de uma arquitectura nacional e genuína.” Escrita em 1947, Teotó- nio assume-se já um combatente por uma arquitectura livre dos figurinos nacionalistas e historicistas do re- gime. A sua importância enquanto definidor da cultura arquitectónica que será percorrida a seguir mede- se pelo modo como a própria histó- ria da arquitectura portuguesa se foi escrevendo. De um lado, o conserva- dorismo do Estado Novo; do outro, os jovens arquitectos militantes por uma arquitectura do tempo, cons- trutiva e esteticamente falando. O ano seguinte, 1948, é o momen- to do 1.º Congresso Nacional dos Arquitectos. Impulsionado pelo Es- tado, que pressiona o Sindicato Na- cional dos Arquitectos a realizá-lo depois de algumas tentativas frus- tradas, o congresso é apontado co- mo reflexo dessa geração moderna e corbusiana que se manifesta por uma integração clara nos modelos europeus e internacionais. É tam- bém, de forma velada, um repto pela liberdade que o regime não admitia e que reprimia o futuro. Jovem, Teotónio defende no con- gresso, com Costa Martins, uma ha- bitação económica em prol de um reajustamento social. Aí recorda que “uma enorme parte da população está alojada em condições que não satisfazem as mais fundamentais exigências psicofisiológicas do Ho- mem”. A comunicação era obvia- mente uma crítica à incapacidade do Estado Novo em resolver um dos maiores problemas com que Portu- gal se debatia à época e que passava por manter percentagens significa- tivas da população portuguesa em alojamentos precários e insalubres. A análise, contudo, estendia-se à própria cidade, exigindo-se planifi- cação e uma “autêntica reforma”. A solução passava sempre — no caso de sugestões vindas de Teo- tónio Pereira — por propostas ob- jectivas. Assim defendia-se que a classe média fosse alojada em al- tura e que às classes proletárias fossem reservadas “unidades de carácter menos duradouro e sem grande aglomeração de fogos.” À data, Teotónio Pereira acumulava já alguma experiência como arquitec- to na Federação de Caixas de Pre- vidência, realizando precisamente projectos de habitação económica. A actividade enquanto funcioná- rio público acabaria por marcar a sua prática. O compromisso com o ideal colectivo cumpria-se também através do exercício da profissão nos organismos oficiais do Estado, onde, apesar de tudo, era possível através do desenho dar corpo a algumas pequenas “revoluções”. Neste contexto desenharia para territórios suburbanos ou rurais, como Póvoa de Santa Iria, Trancoso ou Vila do Conde. O Bloco das Águas Livres, que conta com a co-autoria de Bartolo- meu Costa Cabral, revela provavel- mente como se propõe alojar uma classe média urbana, em unités d’habitation, formalmente inspi- radas nas teses de Le Corbusier e, todavia, ajustadas à realidade por- tuguesa, encastrando o edifício na topografia e fazendo desaparecer os pilotis. Propõe espaços confortá- veis e distantes de qualquer poética da máquina de habitar. Obras de arte, disseminadas pelos espaços colectivos do edifício, reforçam a generalização do acesso à cultura por parte de uma classe emergen- te. Nos conjuntos residenciais para os Olivais Norte, desenhados com António Pinto Freitas e Nuno Por- tas, entre 1957 e 1968, iria propor também a sua inclusão, agora em processo de proletarização desse mesmo acesso (e provavelmente ao arrepio de Portas, que advogava uma maior autonomia da arquitec- tura da esfera das artes). Os projectos residenciais acaba- riam sempre por ter uma forte ex- pressão no conjunto da sua obra, sendo possível construir um per- curso analítico do escritório que — a partir de 1957 — se instala na famosa Rua da Alegria, em Lisboa. Arranca- va assim uma produção fortemente marcada pelas personalidades dos diversos profissionais que o atraves- saram ao longo de cinco décadas. Costa Cabral, Pinto Freitas, Portas, já mencionados, Pedro Vieira de Almeida, Miguel Aragão, Luís Mo- reira, Gastão Cunha, João Braula Reis, António Reis Cabrita, Duarte Cabral de Melo, Romeu Pinto da Sil- va, Gonçalo Byrne, João Paciência ou Pedro Botelho são alguns dos arquitectos que construíram a re- putação do escritório. O Movimento de Renovação da Arte Religiosa que publicamente se manifestou em exposição mon- tada em 1953, na Igreja de São Ni- colau, seria igualmente um dos primeiros veículos para Teotónio Pereira expor os seus ideais. Num dos primeiros textos críticos que assinou, ainda em 1947, e que mais tarde descreveria como uma “críti- ca de arquitectura escrita por um arquitecto”, confirmava que “a arquitectura portuguesa (estava) divorciada do Povo, da Terra e da Época”. A sua luta era por uma ar- quitectura mais séria e mais genu- ína, valores que procuraria incutir aos programas religiosos que foi concretizando, após o arranque auspicioso que a Igreja das Águas representou. Sobre esse edifício, Ana Tostões haveria de escrever em 2004: “Este projecto antecipa quer a revelação da arquitectura popular com a tarefa do ‘inquérito’, quer, de algum modo, os debates que irão suceder no seio dos CIAM (Congres- sos internacionais de Arquitectu- ra Moderna).” Situava-se assim o contributo pioneiro de Teotónio Pereira na história da arquitectura portuguesa. A participação activa de Teotónio Pereira no levantamento à arqui- tectura popular que o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa representou reforçaria a sua liga- ção às populações rurais do país, confirmando as difíceis condições de sobrevivência da maioria. In- tegrando a equipa que se ocupou da Estremadura, com o colega de atelier Pinto de Freitas e Francisco da Silva Dias, Teotónio percorre- ria uma região entre o Atlântico e o interior, “uma paisagem” como escreveram, reflexo de “uma luta continuada e sem heróis vistosos”. O livro Arquitectura Popular em Portugal seria publicado em 1961, transformando-se, quase imedia- tamente, no depoimento de uma geração, a que — como a vida de Teotónio haveria de provar — iria conseguir levar a arquitectura por- tuguesa a encontrar o seu próprio percurso no âmbito das diferentes arquitecturas locais que começa- ram a emergir a partir da revisão do Movimento Moderno. Durante o inquérito, os arquitec- tos fotografaram as casas, os utensí- lios de trabalho e os habitantes. Um cunho quase neo-realista impregna- va as narrativas e, de algum modo, acabaria por transportar-se para a arquitectura realizada durante e logo imediatamente depois: “Do construtor rural recebemos o lega- do do seu engenho e da economia das suas soluções, admiráveis pela sinceridade formal, a coerência en- tre a construção e o ambiente que a rodeia, a natural compreensão dos valores espaciais e a sua tradução em situações variadas e de eleva- do sentido estético.” A admiração genuína e verdadeira repercutia-se nas obras desenvolvidas no atelier nos anos de 1950 e década seguinte. O seu percurso ganhava agora um sentido mais “pragmático”, acom- panhando as evoluções internacio- nais, mais do que propriamen-PrédioemOlivais-Norte,co-autoriacomPortasePintodeFreitas BlocodasÁguasLivres,co-autoriacomBartolomeuCostaCabral RICARDO CAMPOS GUILHERME MARQUES Em1948,ojovem Teotóniodefende, no1.ºCongresso Nacionaldos Arquitectos, umahabitação económica emproldeum reajustamento social.Aírecorda que“umaenorme partedapopulação estáalojadaem condiçõesque nãosatisfazemas maisfundamentais exigências”.Era obviamenteuma críticaaoEstado Novo c
  • 6. 6 | DESTAQUE | PÚBLICO,QUI21JAN2016 T ive o privilégio de conviver com o Nuno Teotónio Pereira durante mais de 25 anos e de descobrir o arquitecto que mudou a arquitectura portuguesa. Mas também de desvendar o homem generoso, justo e desassombrado que se bateu pelas causas sociais. Construímos uma amizade intensa, solidária, feita de lealdade e admiração. Em 2005, quando o Nuno me convidou para ser madrinha do seu doutoramento honoris causa, lembro-me de ter começado o discurso de homenagem dizendo que o que mais impressiona, na arquitectura e na vida, é a sua honestidade e busca permanente de verdade. Porque são os conceitos e não as formas que estão na base da sua reflexão e prática arquitectónica. Ao rigor e exigência disciplinar aliou uma capacidade crítica, original e polémica. A uma insaciável curiosidade intelectual aliou a vontade de intervenção, de quem acredita na possibilidade de um mundo melhor. A contemporaneidade da sua obra é prova da resistência a modas e estilos. Nuno Teotónio Pereira foi o militante do moderno contra o estilo “nacional” que, sem esquecer as raízes, procurou a verdade da construção. Acreditava na possibilidade de uma terceira via, pelo que foi capaz de manter um olhar crítico em relação ao dogmatismo do ideário moderno, batendo-se pela ponte com a arquitectura vernácula e pela urgência da reconciliação com a história e a memória. A sua obra confunde-se com o magistério do pedagogo porque, à margem do academismo da escola de Lisboa, o seu atelier funcionou como uma escola de inovação e discussão. Pioneiro do trabalho de equipa, sempre disponível para arriscar novas soluções, o magistério sustentou- se na pesquisa do arquitecto, na disponibilidade do pensador, na tolerância do homem; cidadão de coragem, capaz de ser solidário e interveniente, de partilhar com os outros as suas grandes inquietações. Para entender o seu percurso é preciso ter em conta o empenhamento nas causas sociais, a que acrescentou uma dimensão, vital, a de intervenção na sociedade. Com bom desenho e coragem, bateu-se pela habitação para o “maior número”. Hoje, Um realismo sem precedentes na arquitectura e na vida Opinião AnaTostões mais do que nunca, é o lutador inconformado que sabe que “a cidade é coisa colectiva”. Nuno Teotónio Pereira é para nós um exemplo de coerência, rigor e tenacidade. Por isso a nossa responsabilidade é imensa para podermos ser dignos da exigência do seu magistério, do desassombro da sua inteligência, da generosidade da sua acção. Nuno, obrigada pelos ensinamentos de todos estes anos, por nos ter ensinado a disciplina do rigor e da exigência, por ter partilhado connosco a sua vontade de um mundo melhor, por ter feito da sua vida um modelo de solidariedade e generosidade. CARLOS LOPES NUNOTEOTÓNIOPEREIRA(1922-2016) te interessando-se em “inovar”. O Portugal que Teotónio apreenderia através do inquérito era um país on- de se tornava urgente intervir. Em 1957, também, Nuno Portas era admitido no atelier da Rua da Alegria, provocando naturalmente novas tensões. Cinco anos depois, a associação Teotónio-Portas era uma realidade consolidada. O que subsistia de “linguagem arquitec- tónica” no desenho, ou seja, as referências demasiado óbvias ao modernismo corbusiano, viria a esbater-se. O recurso à pintura ou à escultura enquanto elemen- tos de composição espacial seria igualmente e progressivamente suprimido. Logo em 1958, Portas iria desenvolver no atelier uma das suas obras-mestras: a Casa de Vila Viçosa, apontando a direcção do atelier para um expressionismo scarpiano e de algum modo “não- moderno”. Passava-se a confiar mais na ca- pacidade da matéria tectónica e da massa na criação de espaços inten- sos, despidos de “artificialidades acessórias”, como passaram a ser vistas as artes plásticas que Teotó- nio tinha numa primeira fase aca- lentado nas suas obras. Por outro lado, os edifícios eram tendencial- mente mais orgânicos, ganhando presença urbana, repensando a ci- dade tradicional e constituindo-se focos regeneradores. Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, projectada com Portas, Pedro Vieira de Almeida (e outros), a partir de 1962, o interior do quarteirão tradicional da cidade oitocentista tornava-se permeável. Proclamava-se, nesta obra-prima da arquitectura portuguesa, um retorno à monumentalidade que a arquitectura internacional recla- mava desde os anos de 1940 e que aqui se manifestava no elogio da ex- pressividade dos materiais (explo- rados em toda a sua potencialidade plástica). A arquitectura passava a funcionar como uma tribuna para o seu próprio discurso, dispensando terceiros, como as artes plásticas ou mesmo os discursos mais sociais. A arquitectura religiosa construí- da em território nacional também conhece aqui o seu apogeu — em 1975. Ter-se-ia de esperar por Marco de Canaveses, de Álvaro Siza, já no dobrar do milénio, para assistir a uma realização tão intensa. Outros edifícios iriam fortalecer um dos períodos mais intensos do atelier, caso do Edifício Franjinhas (Teotónio-Braula Reis, Lisboa, 1966- 69), que na dureza da sua fachada- cortina de placas de betão, e com as calçadas desenhadas por Eduardo Nery, funcionaria como pedra de fecho deste período. A passagem de Gonçalo Byrne pe- lo atelier, no início da década de 70, produziria um novo sobressalto na linguagem seguida. Uma nova ruptura iria permitir o regresso das figurações modernas que os edifí- cios residenciais do plano do Alto do Restelo colocariam em destaque (Teotónio-Portas-Botelho-Paciên- cia-Ribeiro Teles, Lisboa, 1971-85). O período seria assinalado com o endurecimento da luta política. Em 1973, preso em Caxias pela PIDE, Teotónio seria torturado. A liberdade veio com a revolução de Abril. No escritório, nesses mesmos anos, Pedro Botelho surgiria nesta constelação como pedra de fecho. A parceria iria resultar em projectos como a celebrada estação de metro do Cais do Sodré (1992-2003), com retorno à austeridade “tectónica”. Integrados no Programa Polis, os projectos urbanos para a Covilhã, com o arquitecto paisagista Luís Cabral, desenvolvidos no final do milénio (1999-2003), revelariam o raciocínio reformador de Teotó- nio ao proporem uma nova utopia moderna a partir da introdução de elementos capazes de contrariar a topografia acidentada da cidade e contribuindo para uma mobilida- de essencialmente pedonal. Sendo provavelmente o mais bem-sucedi- do dos planos Polis, o plano da Co- vilhã revelava um velho mestre em elevadíssima forma. Fiel aos seus princípios, Teotónio continuou a intervir politicamente, mesmo de- pois de ter cegado. Em 2004, o Centro Cultural de Belém acolhia a primeira grande exposição sobre a sua obra, comis- sariada por Ana Tostões. Uma vez mais, o protagonismo seria dado à arquitectura e aos diversos colabo- radores do atelier. Tostões daria à mostra o nome Arquitectura e Cida- dania, um belíssimo corolário para um extraordinário percurso a favor do interesse público. Nessa ocasião, em entrevista ao PÚBLICO, haveria de revelar a chave para uma boa ar- quitectura: “Acho que a chave para isso é os arquitectos colocarem-se na posição dos utentes, pensar que somos nós que vamos usar o espa- ço, numa moradia, apartamento, escritório, fábrica, escola. Imagi- narmo-nos ali dentro a trabalhar, a funcionar. A conformação do es- paço nascer a partir disso...” IgrejadoSagradoCoraçãodeJesus,emLisboa
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  • 8. 8 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016 PobrezanoParlamento:“demagogia” ou“desempobrecimentonacional”? O PS, que requerera o debate de urgência no Parlamento sobre com- bate à pobreza, não levou nenhuma proposta nova. Antes descreveu o que considera ter sido o impacto das políticas do Governo anterior — “Em cada mês de governação PSD/ CDS houve mais cinco mil pobres, dois mil dos quais crianças e jovens”, disse, logo a abrir, o deputado João Galamba — e explicou por que é que acha que o executivo de António Cos- ta é o “Governo do desempobreci- mento nacional”, expressão usada por outro deputado socialista, Tiago Barbosa Ribeiro. “É só demagogia!” — gritou-se na bancada da oposição. Foi, de resto, um debate bastante aceso, o de ontem, no Parlamento. Galamba falou de “selvajaria social na austeridade” para descrever o que se viveu nos últimos tempos, com uma taxa de risco de pobreza a atingir os 19,5% em 2014. Os deputados do PSD e do CDS não deixaram de reagir rui- dosamente uma vez mais. De seguida, o CDS-PP fez saber, através do deputado Filipe Lobo D’ Ávila, que acabara de entregar uma proposta de diploma à assembleia. Quer que as pensões mínimas, so- ciais e rurais sejam actualizadas anu- almente, tendo como base o valor da inflação prevista para o ano em que entram em vigor e não o aumento da inflação do ano anterior, como ago- ra. É que o já anunciado aumento de 0,4%, para 2016, das pensões até 628 euros, “dá três cêntimos por dia” [no caso da pensão social]. Indigna- ção ruidosa, de novo, desta vez nas bancadas da esquerda. José Soeiro, do BE, declarou: “80% dos pensionistas que vão ver agora as suas pensões aumentadas tiveram- nas congeladas pelo seu Governo.” E mais, disse Soeiro: “As poucas pensões que o Governo [PSD/CDS] aumentou foi uma aldrabice. Aumen- taram as pensões, tiraram o Comple- mento Solidário para Idosos [CSI].” Quem recebia a pensão social e CSI, por exemplo, perdeu rendimento, já dissera Galamba. O CSI, recorde-se, foi criado pelo Executivo de José Sócrates para asse- gurar que nenhum pensionista, que não tivesse outros rendimentos, re- cebia uma pensão abaixo do limiar de pobreza (limiar que está actual- mente nos 422 euros mensais). Mas nos últimos anos, esta medida sofreu alterações — o valor de referência dos rendimentos, que determina quem pode ter direito, baixou — e o univer- so de beneficiários foi encolhendo. Tanto Diana Ferreira, do PCP, como José Luís Ferreira, do PEV elogiaram as medidas já adoptadas pelo Governo PS, de alargar o CSI e descongelar as reformas inferiores a 628 euros, mas mostraram-se in- satisfeitos. Pediram “um aumento real das pensões”. Já Filipe Lobo D’ Ávila não deixou de responder a Soeiro. Disse que o BE chegou a apresentar uma pro- posta para o Orçamento do Estado de 2015, que previa “um aumento de 25 euros por mês nas pensões, e agora acaba por aceitar 3 cêntimos por dia”. Rematou: “Deviam corar de vergonha.” “Os senhores actualizaram mais ou menos 800 mil pensões”, respondeu Cláudia Joaquim, a secretária de Es- tado do Segurança Social. O Governo socialista vai actualizar 2,5 milhões, sublinhou ministro da Solidarieda- de e Segurança Social, José Vieira da Silva. Lembrando também que o Go- verno anterior se limitou a aumentar as pensões mínimas com carreiras contributivas curtas, de até 15 anos, o ministro acrescentou, não sem iro- nia: “Todas as outras não tiveram um cêntimo de aumento, mesmo as dos pensionistas com carreiras contribu- tivas de 15 a 20 anos, por exemplo, que recebem 275 euros de pensão, o que não é propriamente uma pen- são milionária.” Ao mesmo tempo, o CSI “foi duplamente desvalorizado”, prosseguiu. O seu valor foi reduzido e “deixou de ser alvo de divulgação”, o que, lembrou, é importante numa prestação que tem de ser requerida pelos idosos. No último dia de 2015, o seu Go- verno decidiu repor o valor de refe- rência do CSI que existia em 2013, 5022 euros/ano, o que deverá per- VieiradaSilvadizqueaumentosnaspensõesemudançasnoCSItêmdeservistosde“formaintegrada” Foi quente o debate no Parlamento. O Complemento Solidário para Idosos e os aumentos — deste e do anterior Governo — das pensões tiveram um papel central nas intervenções dos deputados Parlamento AndreiaSanches EmDezembrohouvemenosidososcomcomplementosolidário EstatísticasdaSegurançaSocialmostramfortebaixanoabonodefamília O número de idosos com complemento solidário (prestação social que pode ser requerida por quem tem pensões muito baixas) continuou em quebra, em Dezembro: o ano acabou com 166.174 beneficiários contra 170.529 contabilizados em Dezembro de 2014 (chegaram a ser mais de 236 mil em 2011). O mesmo se passou com os titulares de abono de família: 1.119.222, menos 498 mil crianças abrangidas do que um ano antes. Menor foi a redução no Rendimento Social de Inserção (RSI), que chegava no fim de 2015 a 209.390 pessoas, novas e menos novas, muito perto das 209.734 registadas um ano antes. As mais recentes estatísticas mensais da Segurança Social confirmam ainda uma tendência para a redução do universo dos que são abrangidos por alguns apoios sociais destinados aos mais pobres — o RSI, por exemplo, chegava em Dezembro de 2011 a mais de 316 mil pessoas, um ano depois era pago a menos de 281 mil e em Dezembro de 2014 não chegava aos 210 mil. Um corte de 34% num período em que a taxa de pobreza aumentou de 17,9% para 19,5%. O montante médio da prestação é hoje de 213 euros por família abrangida. Com as medidas recentemente aprovadas pelo Governo é previsível que estes números voltem a subir. Por exemplo, no último dia do ano, o Governo decidiu repor o valor de referência do Complemento Solidário para Idosos que existia em 2013, 5022 euros/ano, o que deverá permitir que mais pessoas possam ser abrangidas. As estatísticas mostram ainda que as prestações de parentalidade sobem em geral, num ano em que a natalidade também subiu: mais de 38 mil beneficiários em Dezembro de 2015 contra 33.577 em Dezembro de 2014 (números que incluem os beneficiários de subsídio parental inicial, subsídio parental alargado e subsídio social parental inicial).
  • 9. PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 9 mitir que mais pessoas possam ser abrangidas. Claudia Joaquim estimou que 70 mil idosos possam voltar a beneficiar desta medida. Pedro Roque, do PSD, ainda fez questão de sublinhar que todos na- quelas bancadas estavam “a favor do Estado Social”. O deputado defendeu que o anterior Governo, mesmo num momento difícil, “salvaguardou os portugueses de menores rendimen- to” e criou “o Programa de Emergên- cia Social”. Já Cláudia Joaquim disse que “o Programa de Emergência So- cial resume-se às cantinas sociais” que custaram mais de 40 milhões de euros por ano. “E nem uma avaliação encontrámos” sobre o seu impacto, prosseguiu. Vai agora ser feita, pro- meteu, explicando que, seja como for, nos próximos seis meses as can- tinas continuarão a funcionar. Já Vieira da Silva respondeu ao PCP e ao PEV, reconhecendo que os au- mentos das pensões são baixos — “É óbvio que há limitações” —, mas há o aumento do CSI. “É preciso ver isto de forma integrada.” PAULO PIMENTA Acabou no final de 2015 a Estratégia Nacional de Integração das Pessoas Sem-Abrigo. Os vários Núcleos de Planeamento, Intervenção a Sem- Abrigo (NPISA) aguardam orienta- ção do Instituto de Segurança So- cial. Ninguém sabe se a estratégia termina mesmo, se se prolonga, se dá lugar a uma nova. O Bloco de Es- querda quer que o Governo a avalie, a renove e lhe destine recursos. Incitado por Bruxelas, Portugal criou em 2007 um grupo de traba- lho para desenvolver uma Estratégia Nacional de Integração das Pessoas Sem-Abrigo. O plano, com um eixo sobre informação e outro sobre in- tervenção, foi aprovado em Março de 2009, mas nunca teve dotação orçamental. O Instituto de Segurança Social, que coordena a estratégia, não res- pondeu ainda às questões colocadas pelo PÚBLICO, pelo que, para já, é impossível dizer se há uma avaliação interna, se há uma decisão, quantas pessoas em situação de sem-abrigo foram sinalizadas, quantas saíram das ruas, quantas foram integradas, quantas continuam a ser acompa- nhadas, em que partes do país. De acordo com o plano, sempre que o número de sem-abrigo justi- fica, deve constituir-se um NPISA e delinear-se um conjunto de respos- tas integradas. Em 2013, quando foi feita a avaliação intercalar, havia 14 - Almada, Amadora, Aveiro, Braga, Cascais, Coimbra, Faro, Figueira da Foz, Lisboa, Oeiras, Porto, Seixal, Setúbal e Vila Nova de Gaia. Pou- cos iam além da articulação entre técnicos. Nessa altura, 4420 pesso- as sem-abrigo em todo o país eram acompanhadas. Muito ficou por fazer nesta estra- tégia destinada a garantir que nin- guém é obrigado a permanecer na rua mais de 24 horas. Um exemplo: não foi criado qualquer centro de emergência (estruturas de resposta imediata, das quais se sairia, com um diagnóstico já feito, para alojamento temporário ou permanente). José Soeiro, eleito pelo círculo do Porto, ouviu falar nas falhas - em Julho do ano passado levou ao Par- Bloco quer que Governo renove estratégia de integração de sem-abrigo lamento membros do movimento Uma Vida Como a Arte, formado por pessoas com experiência de rua -, mas confere mérito à estratégia, que juntou entidades públicas e privadas de diversas áreas. A transversalida- de da intervenção e a articulação de técnicos, de entidades, parecem-lhe características demasiado importan- tes no combate à pobreza. “Faltaram recursos”, resume o deputado. “Há medidas concretas que estavam previstas e que não fo- ram desenvolvidas.” Críticas e esquecimento O NPISA-Porto foi o que mais se de- senvolveu: criou uma plataforma de intervenção, outra de voluntários, outra de emprego, outra ainda de expressão, a que chamou Vozes do Silêncio. Em vez de um centro de emergência, lançou um serviço de triagem: um atendimento de pri- meira linha, assegurado, à vez, por técnicos de organizações que fazem parte a rede coordenada pela Segu- rança Social. E sobram críticas. O número de técnicos disponibilizados pelos parceiros foi diminuindo com o tempo. A triagem não funciona ao fim-de-semana. O albergue não che- ga para as encomendas. Um quarto de pensão pode ser mais aconselhá- vel e não haver verba. No início de 2015, a EAPN/Rede Europeia Anti-Pobreza - Portugal questionou o então ministro da Se- gurança Social, Pedro Mota Soares. Ainda houve uma reunião, mas já no fim da legislatura, diz Sérgio Aires, consultor daquela entidade e diri- gente do Observatório de Luta Con- tra a Pobreza na Cidade de Lisboa. “Era suposto ter havido uma ava- liação do impacto da estratégia, executada por entidade externas”, salienta José Soeiro. O balanço per- mitiria perceber o que correu bem, o que correu mal, delinear propos- tas de reformulação da Estratégia a partir de 2015. “É um tema sufi- cientemente importante para não se descurar “, diz. “A sensação que temos é que caiu no esquecimento”. O ano chegou ao fim sem que tivesse sido divulgado qualquer relatório de avaliação. E, diz ainda, “o anterior Governo não fez nenhuma diligência para lançar uma nova estratégia.” Esta quinta-feira, o grupo parla- mentar do Bloco de Esquerda en- trega na Assembleia da República um projecto de resolução a reco- mendar “ao Governo que proceda a uma avaliação participada e inte- grada da estratégia, incluindo todas as entidades parceiras e as próprias pessoas sem-abrigo”, que a renove, “garantindo a parceria entre os di- ferentes sectores da política social, as entidades envolvidas e as pessoas sem-abrigo”, e que “destine recur- sos” para a sua concretização. O mais provável é que a propos- ta baixe à Comissão do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social. AnaCristinaPereira PAULO PIMENTA Muitoficouporfazernaestratégiadeintegraçãodossem-abrigo 4420Em2013,quandofoifeitaa avaliaçãointercalardaestratégia queacabouem2015,eram acompanhadas4420pessoas sem-abrigoemtodoopaís Melhorespensões Aumentosnas pensõesmínimas A ideia é simples: em vez de fazer contas com o passado, fazê-las para o futuro. O CDS entregou ontem no Parlamento uma proposta para que as pensões mínimas, sociais e rurais sejam actualizadas anualmente pelo menos consoante a inflação do ano prevista para o ano em que o aumento entra em vigor. O PSD já prometeu entregar idêntica proposta, sendo ambas discutidas no dia 28 deste mês. O líder parlamentar do CDS- PP defendeu que a medida é “da maior justiça social”, por se tratar das “pensões mais baixas das pensões baixas”, e em “defesa de mais de um milhão de pensionistas que serão afectados pela medida do Governo que provocará uma perda real do seu poder de compra”. Se as pensões fossem actualizadas este ano tendo como referência a inflação de 1,5% prevista no DEO - Documento de Estratégia Orçamental como propõe o CDS, os beneficiários da pensão social receberiam mensalmente mais 3,02 euros, da pensão rural teriam mais 3,63 euros, e a pensão mínima aumentaria 3,93 euros. Mas com a proposta de aumento de 0,4% do Governo os pensionistas recebem, respectivamente, mais 80 cêntimos mensais (pensão social), 96 cêntimos (rural) e 1,05 euros (mínima). O PSD apressou-se a vir anunciar que vai entregar um diploma com o mesmo teor. O deputado Adão Silva disse que o Governo “começou muito mal” ao aumentar as pensões de 1,1 milhões de pensionistas mais pobres em apenas 0,4% quando a inflação prevista pelo próprio PS é “muito maior”. A direita quer aprovar estes diplomas com o Orçamento do Estado para 2016, com retroactivos a Janeiro.
  • 10. 10 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016 Ministroquerreduzirurgênciasem 10%parainvestiremcentrosdesaúde MARIA JOÃO GALA FERNANDO VELUDO/NFACTOS Reduçãodonúmerodeurgênciaspermitiriaumapoupançaanualde48milhõesdeeuros Ministroestáaestudarnovosincentivosparaosmédicos Fazer mais e diferente com pratica- mente o mesmo orçamento. Esta foi uma das ideias mais repetidas pelo ministro da Saúde durante a audição de ontem, em que se estreou na co- missão parlamentar de Saúde. Co- mo exemplo do que pode mudar e poupar ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), Adalberto Campos Fernandes avançou que quer reduzir em 10% as urgências hospitalares — uma pou- pança de 48 milhões de euros anuais, necessários para investir nos cuida- dos de saúde primários. A primeira audição enquanto mi- nistro foi requerida pelo PCP para debater o caso da morte no Hospi- tal de S. José de um doente com 29 anos e que, por ser fim-de-semana, não tinha equipas de prevenção de neurocirurgia e neurorradiologia. No entanto, Campos Fernandes acabou por falar mais das grandes linhas orientadoras para a legislatura. A propósito do exercício orça- mental para este ano, o ministro insistiu nas escolhas e exemplificou com a área das urgências hospitala- res. “Este dinheiro seria muito mais bem utilizado na abertura de mais Unidades de Saúde Familiar (USF) e na contratação de mais médicos e enfermeiros de família”, acrescen- tou, dizendo que quer “fazer coisas diferentes com o mesmo dinheiro”. Sobre as taxas moderadoras, que se tinha comprometido a baixar, o governante anunciou que os uten- tes que cheguem à urgência hospi- talar referenciados pelos cuidados de saúde primários não pagam taxa moderadora e vão deixar de pagar as análises que façam nesse atendimen- to. “Vamos transformar as taxas, não em co-pagamento, mas sim como estão interpretadas na Constituição da República”, disse. Outro exem- plo apontado de mudanças a imple- mentar, nomeadamente para fixar os médicos em regiões carenciadas, como o Algarve, passa por propor- cionar uma progressão da carreira mais rápida para os que optem por ir para essas zonas. Ainda a propósito das urgências, já em declarações aos jornalistas, o ministro explicou que estão a estudar uma forma de os médicos com mais de 55 anos continuarem a fazer ur- fria”, mas reconheceu que o caso deixa uma lição: “os cortes são peri- gosos não tanto pela sua magnitude mas pela sua falta de selectividade”. O ministro reconheceu que com as restrições orçamentais terá de fa- zer “escolhas difíceis”. No entanto, comprometeu-se a fazer uma “inter- pretação política diferente e escolhas diferentes”. “Queremos conjugar ri- gor orçamental com justiça social”, insistiu. Campos Fernandes insistiu que os cortes não podem ser culpa- dos de tudo, adiantando que “quan- do expomos um país a um quadro de empobrecimento e restrição do rendimento criamos condições para que a saúde piore”. Do lado do PSD, o deputado Mi- guel Santos levantou dúvidas sobre várias nomeações, nomeadamente de Ana Escoval para suceder a Teresa Sustelo à frente do Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC, de que faz parte o Hospital de S. José), depois de a administradora ter pedido a demis- são após o caso da morte do doente de 29 anos. O ministro terminou com críticas à intervenção de Miguel San- tos sobre Ana Escoval, lamentando a escolha da palavra “purga” com que o deputado se referiu às mudanças. “‘Purga’ é uma palavra deselegan- te. As pessoas não são purgáveis,” disse. Ainda sobre nomeações, o minis- tro confirmou que recebeu na terça- feira o pedido de renúncia do presi- dente da Administração Regional de Saúde do Norte. O tema foi abordado por Miguel Santos, quando questio- nou algumas das escolhas da equipa, insinuando a perseguição a alguns dirigentes. O ministro negou também que o cirurgião Eduardo Barroso o tivesse pressionado na escolha de di- rigentes hospitalares do CHLC. Segundo algumas notícias, Edu- ardo Barroso terá tentado interferir nas nomeações, evitando a escolha do actual presidente do Instituto Por- tuguês de Oncologia de Lisboa, Fran- cisco Ramos. O ministro revelou ter convidado Francisco Ramos para o CHLC e disse que este aceitou o con- vite, mas teve alguns problemas na formaçãodaequipa.Oadministrador terá dito a Campos Fernandes que te- ria tido dificuldade em “encontrar uma equipa estável”, tendo por isso retirado a sua disponibilidade para o cargo, que entretanto ficou nas mãos de Ana Escoval. com Lusa Adalberto Campos Fernandes, na comissão de Saúde, prometeu “escolhas diferentes” com o mesmo orçamento, admitindo que o caso do Hospital de S. José mostra a importância da “selectividade” dos cortes Saúde RomanaBorja-Santos “É tão errado culpar os cortes por todos os incidentes como errado será dizer que não têm nenhum efeito” gência Metropolitana de Lisboa, com o respectivo modelo de pagamento aos profissionais. “De três em três meses, também prestaremos contas daquilo que era suposto ser feito e que nós fizemos ou não fomos capa- zes de fazer por razões que teremos naturalmente de justificar”, avançou, dizendo que a 1 de Fevereiro será apresentado um novo portal do SNS com informação sobre a actividade assistencial e financeira. A informa- ção será “boa ou má”, prometendo Campos Fernandes que não escon- derá os défices ou os “portugueses sem médico de família”. No início da sessão, na primeira in- tervenção, questionado pelo PCP so- bre os efeitos dos cortes dos últimos anos no SNS, o ministro contrapôs que é preciso analisar o tema com prudência. “É tão errado culpar os cortes por todos os incidentes sisté- micoscomoerradoserádizerquenão têm nenhum efeito”, afirmou. O mi- nistro da Saúde mostrou-se solidário com a família de David Duarte, mas criticou a “excessiva mediatização” da morte do doente de 29 anos. O ministro defendeu que é preciso esperar por uma “investigação inde- pendente, distanciada, objectiva e gências, por considerar que estes são uma garantia de segurança clínica do SNS. Questionado sobre a forma como a equipa ministerial vai con- vencer estes profissionais, lembrou que está em curso uma nova fase da reorganização das urgências. O titular da pasta da Saúde aprovei- tou para avançar com outros compro- missos. No dia 29 de Janeiro vai ser apresentada a reforma global da Ur-
  • 11. PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 11 Em parceria com a plataforma Miu- dosSegurosNa.Net, o Facebook lança hoje uma campanha de sensibiliza- ção para os perigos da Internet, com advertências e ferramentas para um uso mais seguro da Web. “Pensa an- tes de partilhar” baseou-se nos re- sultados de um inquérito feito a mil jovens, com idades entre os 14 e os 18 anos, e que permitiu definir os seus comportamentos nas redes sociais para melhor contornar as ameaças à sua privacidade. Levado a cabo pela empresa Net- sonda no Verão, o estudo “Jovens portugueses e o uso das plataformas sociais na Internet” questionou os jovens sobre o controlo que mantêm das suas contas, como procederiam em caso de ameaça e como encaram a privacidade na rede e o problema de cyberbulling. Antes de mais, os resultados mostram que este jovens entre os 14 e 18 anos têm em média três contas em redes sociais. Conclui-se que os adolescentes têm consciência dos contornos e riscos da exposição online. Um dos dados que comprovam essa percepção é o facto de 80% deles já terem bloqueado ou rejeitado “amizades” na rede — e são as raparigas as que mais bloqueiam, sobretudo quando se trata de estra- nhos. “Este estudo demonstra que os jovens se preocupam cada vez mais com a privacidade, mas tam- bém prova que, às vezes, em certos momentos ou sem dar conta, podem partilhar conteúdos prejudiciais para outras pessoas e gerar situações inde- sejadas”, afirma em comunicado Na- talia Basterrechea, relações públicas do Facebook em Portugal. Quase todos (94%) os jovens re- conhecem que não é correcto a publicação de fotografias negativas ou embaraçosas de terceiros e 69% consideram que não é correcto publi- car fotos sem autorização, “mesmo que boas”. Apenas metade afirma que nunca revelaria a senha da sua conta. O estudo indica que 5% dos in- quiridos passaram este ano por situa- ções incómodas nas redes socias, dos quais apenas 1,5% consideram que os casos foram graves. Texto editado por Andrea Cunha Freitas Internet: 80% dos jovens já bloquearam alguém Redessociais InêsMoreiraCabral Jovens portugueses têm um controlo activo das suas contas. Campanha de prevenção do Facebook arranca hoje PAULO PIMENTA PSdefendeasubstituiçãodoensinorecorrenteporoutroscursos As condições de acesso ao ensino su- perior dos alunos do ensino artístico e profissional, que foram alteradas por Nuno Crato, estão actualmente a ser avaliadas pelo Ministério da Edu- cação, segundo confirmou ao PÚBLI- CO o gabinete de comunicação do ME. Segundo o ME, “todas as modali- dades de ensino secundário, que não as dos cursos científico-humanísticos [ensino regular], constituem neste momento objecto de análise”, o que também abrangerá o ensino recor- rente. O ministério não especificou quais os objectivos desta análise. Na próxima semana, o Parlamento vai apreciar um projecto de resolu- ção apresentado pelo Bloco de Es- querda (BE), que deverá contar com o apoio do PS, onde se recomenda ao Governo que reponha, para o ensino artístico, o regime de avaliação exis- tente antes das mudanças aprovadas por Crato. Na anterior legislatura já tinham sido apresentados três pro- jectos de resolução no mesmo sen- tido, propostos pelo PS, pelo PCP e Bloco de Esquerda. Segundo o PS, a revisão do regime de avaliação e classificação para acesso ao superior daqueles alunos justificava-se para “garantir a igualdade de oportuni- dades”. A legislação ainda em vigor prevê que, em 2016, os alunos do ensino artístico terão de realizar os exames nacionais de Português e Filosofia e os dos cursos profissionais, para além da prova de Português, deve- rão fazer mais outros dois das dis- ciplinas de formação específica que compõem os planos de estudo dos cursos científico-humanísticos do secundário. O que significa que te- rão de fazer exames a disciplinas que não constam dos planos dos cursos do ensino profissional. A aplicação da totalidade destas alterações, que deveria ter sido concretizada em 2013, foi já adiada por três vezes no seguimento de protestos de alunos, pais e professores do ensino artístico e profissional. No regime anterior, os alunos des- tes cursos eram apenas obrigados a realizar o exame nacional de Portu- guês, a única disciplina comum a Ministério está a avaliar acesso ao superior do ensino artístico, profissional e recorrente uma petição promovida pelas asso- ciações de pais das Escolas Secundá- rias Soares dos Reis, no Porto, e Antó- nio Arroio, em Lisboa, que recolheu 4715 assinaturas, reclamando a revi- são das alterações introduzidas por Crato por considerarem que, através delas, os alunos do ensino artístico especializado são “discriminados” todas as modalidades do ensino se- cundário, e as provas exigidas pelo curso superior a que se pretendam candidatar. Foi, aliás, esta modalida- de que acabou também por vigorar em 2013, 2014 e 2015. No projecto que voltou a apresen- tar agora, o BE lembra que em 2014 foi também dirigida ao Parlamento Educação ClaraViana Regras foram mudadas pelo anterior ministro Nuno Crato. Parlamento também vai avaliar condições de acesso em relação aos dos cursos científico- humanísticos. Estes últimos têm de realizar, no mínimo, quatro exames, mas todos eles a disciplinas que cons- tam dos seus planos de estudos. Embora em sentido contrário, os argumentos de Nuno Crato para justificar as alterações nas condições de acesso ao superior foram seme- lhantes. Segundo o então ministro da Educação, as novas regras decor- riam em parte “da situação anterior de privilégio claro dos alunos dos cursos profissionais e artísticos es- pecializados”. O caso do recorrente Foi também esta a argumentação utilizada pelo anterior ministro da Educação para alterar, em 2012, as condições de acesso ao ensino supe- rior dos alunos do ensino recorrente, uma modalidade destinada a estu- dantes a partir dos 18 anos. Logo com efeitos em 2012, o ministério tornou obrigatória a realização de exames nacionais para os alunos do recor- rente e que estes contassem 30% pa- ra a nota final, como acontece com os estudantes do ensino regular. Até então, os alunos do recorrente apenas eram obrigados a realizar os exames que funcionam como provas de ingresso dos cursos escolhidos, sendo a média final do secundário contabilizada com base apenas na classificação interna. Segundo o ministério, estava-se assim a “corrigir uma flagrante e reiterada injustiça” em relação aos alunos do ensino regular, que se viam ultrapassados no acesso aos cursos mais disputados por estudantes que usavam o recorrente apenas para su- bir a sua nota de candidatura. Cerca de 200 alunos que foram apanhados pelas novas regras quan- do já estavam a concluir o secundário recorreram à justiça, tendo-lhe sido dada razão pelos tribunais adminis- trativos e pelo Ministério Público, que defenderam que deveria ter si- do acautelado um regime transitório. Muitos deles acabaram por fazer os exames nacionais mas entraram de acordo com as regras antigas, com médias mais elevadas. Esta interpretação foi depois con- testada pelo Tribunal Constitucional e pelo Supremo Tribunal Adminis- trativo quando muitos deles já esta- vam no 2.º ano da faculdade, o que levou ao seu afastamento do ensino superior ou à recolocação em cursos menos disputados. No programa do Governo defende-se a substituição do ensino recorrente por outros cur- sos para adultos. Quase100conservatóriosjáforampagos FinanciamentofoiaprovadoemOutubro O Ministério da Educação (ME) indicou, na terça- feira, que falta ainda pagar as verbas em falta a 17 das 115 escolas particulares do ensino artístico especializado que garantiram financiamento para três anos no concurso que foi realizado, pela primeira vez, em 2015 e cujos resultados foram conhecidos em Outubro. Deste balanço não farão parte, contudo, a maioria das 53 escolas que tiveram mais cortes de fundos e cujo financiamento foi reforçado por via de um concurso extraordinário, concluído no final de Novembro. O ME não esclareceu em que situação se encontram actualmente, mas no final de Dezembro referiu que os seus processos ainda não tinham sido instruídos pela Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares. Em resposta ao PÚBLICO, o gabinete de comunicação do ME especificou que do lote das 115 cujos processos já avançaram, os atrasos no financiamento a 17 delas se devem às seguintes razões: há oito escolas cujos contratos de patrocínio ainda estão em análise no Tribunal de Contas (TdC), no caso de outras cinco os processos ainda não foram remetidos para o TdC por faltar documentação e há quatro que não receberam as verbas por ainda não terem pago os emolumentos pedidos por aquela instituição para a análise dos processos de obtenção de vistos, obrigatórios quando o financiamento do Estado é superior a 350 mil euros. Através dos chamados “contratos de patrocínio”, o Estado atribui um financiamento a conservatórios privados para garantirem, gratuitamente, aulas de música e dança a alunos do ensino público. Mas os atrasos na transferência de verbas têm sido uma constante, deixando muitos professores com salários em atraso e levaram já à interrupção temporária destas aulas em algumas instituições.
  • 12. 12 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016 CampanhadeBelémentreaperdade umamigoeapolémicadassubvenções MariadeBelémnocentrodofuracão;SampaiodaNóvoa“cheiodeânimo” A devolução das subvenções vitalí- cias dos políticos entrou na campa- nha das presidenciais e Maria de Be- lém ficou debaixo dos holofotes me- diáticos por ter subscrito o pedido de fiscalização da constitucionalidade à norma do Orçamento do Estado para 2015, juntamente com mais 29 depu- tados do PS e do PSD. Que efeito tem a polémica na sua candidatura? O porta-voz da candidatura de Ma- ria de Belém, Vera Jardim, reconhece que o caso “não é positivo” e critica o “clima de populismo levado ao ex- tremo” que diz marcar estas eleições. Reprova as palavras de Sampaio da Nóvoa no final do debate na RTP, em que cá fora disse que, se for eleito, pretende tirar as subvenções dos ex- presidentes da República”. “Isto é uma enormidade, até porque nem o pode fazer”, atira, lamentando que alguém que é apoiado por três ex- presidentes se comporte assim. A investigadora da área dos me- dia e professora da Universidade do Minho Felisbela Lopes diz que qual- quer leitura política tem de ser feita mediante a cobertura mediática. O facto de o caso das subvenções ter coincidido com a morte de Almeida Santos “neutralizou o grande efeito que essa ligação pudesse ter” na can- didatura de Belém, considera. A cir- cunstância da candidata não ter ido ao debate com os outros candidatos “contribuiu para diminuir o impac- to”. Felisbela Lopes reconhece que, se Almeida Santos não tivesse morri- do e se a candidata tivesse participa- do no debate, “haveria um confronto brutal”, porque ela seria o “rosto das subvenções vitalícias”. António Costa Pinto analisa a questão de outro ponto de vista, chamando a atenção para o facto de haver dois candidatos mais distantes da classe política — Marcelo Rebelo de Sousa, que apesar de ter sido líder do PSD tem um percurso autónomo, e o independente Sampaio da Nóvoa —, o que “faz com que Maria de Be- da. Sobretudo após o caso das sub- venções vitalícias. Nóvoa não quis cavalgar o assunto. “Não gostaria muito de me pronun- ciar sobre essa matéria.” Perante a insistência dos jornalistas, ainda co- meçou por dizer que os deputados gozam de total liberdade nos seus mandatos. Só no fim veio a crítica: “Se eu fosse deputado, jamais toma- ria essa iniciativa.” Nova pergunta: “E é uma contradição pedir a fisca- lização dessa norma e não a dos Or- çamentos de Passos Coelho?” E aqui, sim, Nóvoa repete a crítica: “Teria sido bom que, enquanto deputada e presidente do PS, tivesse tido uma posição mais activa na defesa da Constituição.” Nóvoa parte para os últimos dias de campanha “cheio de ânimo” e com “uma convicção muito forte” de que, no domingo, os eleitores de- cidirão escolhê-lo para disputar uma Vera Jardim, porta-voz da candidata, fala de “clima de populismo” e desanca em Nóvoa. Este diz que não teria subscrito o pedido de inconstitucionalidade da norma que retirou subvenções a políticos Presidenciais MargaridaGomes ePauloPena lém seja facilmente associada aos defeitos da classe política”. E atira outro dado para destacar o “impacto negativo” da acumulação de cargos: a candidata acumulou a presidência da Comissão Parlamentar de Saúde com o de consultora do Grupo Espí- rito Santo Saúde. Ana Belchior, professora de Ci- ência Política do ISCTE, considera que “esta iniciativa de fiscalização só pode ser mal acolhida pelo cida- dão comum”. “Trata-se de um pri- vilégio, ainda mais inaceitável pelo contexto social em que é reposto. Do ponto de vista do pensamento racional do eleitor, o impacto sobre a campanha de Maria de Belém só pode ser objectivamente negativo”, afirma ao PÚBLICO. Embora seja apoiante da ex-pre- sidente do PS, o professor Adelino Maltez não aplaude a decisão da can- didata, afirmando mesmo que revela um perfil que já lhe “causou dissa- bores”, numa alusão à sua ligação ao Grupo Espírito Santo Saúde. “É preciso um choque moral e um novo paradigma”, advoga, considerando que este tipo de comportamentos po- de dar votos a Paulo de Morais. “A democracia exige ética e nem tudo o que é lícito é honesto”, remata o catedrático da Universidade Técnica de Lisboa. André Freire, professor do ISCTE que integra a comissão política da candidatura de Sampaio da Nó- voa, partilha da opinião de Felisbela Lopes, afirmando que “os efeitos vão depender do grau de mediatização”. Fala de um tema que não é popular e critica a “incoerência” da candidata. “Quando foi o episódio de fiscaliza- ção dos cortes de salários na função pública e nas pensões, Maria de Be- lém ficou quietinha. Desta vez, como tinha a ver com as subvenções dos políticos, subscreveu o pedido de fiscalização”, aponta. Nóvoa: “Eu jamais o faria” A paragem forçada da campanha terminou, de vez, com aquilo a que Sampaio da Nóvoa chamou “ataques fratricidas” entre as candidaturas de esquerda. Agora, reina a convicção de que Maria de Belém está em per- segunda volta com Marcelo Rebelo de Sousa. Em Guimarães, onde reto- mou as acções de campanha depois de ter interrompido a agenda duran- te 24 horas, garantiu que a “dinâmi- ca da campanha tem sido boa” e que as coisas até “têm corrido acima das expectativas”. O candidato refere-se ao apoio nas ruas, mas também à mobilização que sente, nas bases da candidatura. Seja nas bases “auto-organizadas”, que ADRIANOMIRANDA
  • 13. PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 13 A dias das eleições, Marcelo Rebe- lo de Sousa prefere o optimismo do que antecipar más notícias quanto ao Orçamento do Estado (OE) para 2016. Fala em “esperança” de que tudo corra bem e no “equilíbrio” que o Governo terá de fazer entre as exi- gências dos partidos que o apoiam e as pressões de Bruxelas. O momento parece ser o de desdramatizar. Reconhecendo que o calendário aponta para que já seja o próximo Presidente a promulgar o OE, o can- didato Marcelo não se compromete. “Há um esforço grande do Governo em ser sensível às apreciações de Bruxelas e com o que se compro- meteu a fazer em termos eleitorais. Estou esperançado em que não haja problemas com o OE”, disse aos jor- nalistas depois de questionado sobre a posição do BE perante as pressões de Bruxelas. O candidato põe água na fervura. “Tenho ouvido dizer da parte dos partidos que o apoiam [o Governo] que não querem provocar crises”, disse, sublinhando que tem de haver um “equilíbrio” em não se afastar das metas orçamentais e as posições dos partidos à esquerda. “É um equilíbrio talentoso”, rematou. As declarações foram contidas, porventura à imagem do que o can- didato deixará transparecer, se for eleito Presidente da República, numa final de futebol, entre o seu clube fa- Marcelo “esperançado” em que não haja problemas com o OE vorito, o Braga, e o FC Porto. “Se for golo do Porto, sorrio. Se for golo do Braga, sorrio para dentro com mais força”. Marcelo falava com um jovem no Centro de Educação do Cidadão com Deficiência, em Sintra, que visi- tou nesta quarta-feira à tarde, antes de partir para o Porto, de comboio. Luís, atleta para-olímpico medalha- do, tinha lançado a pergunta: “Se for eleito, vai ao futebol?”. “Claro!”, res- pondeu, contando a história do seu clube ao mesmo tempo que elogiava os conhecimentos que Luís tinha so- bre futebol. “Tu acompanhas tudo”, disse-lhe, ouvindo a inesperada res- posta: “Sou como o Marcelo”. Se o candidato presidencial, nos seus tempos de comentador televi- sivo, já entrou no mundo do futebol, desta vez é a bola que se intromete na política. O treinador José Mourinho declarou apoio a Marcelo, num vídeo divulgado pela candidatura. Foi mais um apoio a somar a outro que se fez notar à chegada ao centro: o social- democrata Ângelo Correia estava à espera do candidato, mas não foi à primeira que Marcelo o cumprimen- tou. O candidato garante que não viu o ex-dirigente e antigo apoiante de Passos Coelho e só mais tarde, já durante a visita às instalações, lhe deu um abraço, dizendo que “é uma grande figura da democracia”. Coin- cidência ou não, o centro que Marce- lo visitou é onde trabalha a mulher de Passos Coelho, Laura Ferreira, que não estava presente. SofiaRodrigues MIGUEL MANSO MarcelovisitouainstituiçãoondetrabalhaamulherdePassos têm mantido um programa autóno- mo desta “caravana” que percorre o país com o candidato, seja nas estru- turas locais, mais próximas do PS, e que não lhe têm faltado com apoio. Ainda esta quarta, na fábrica de cal- çado Kyaia, em Penselo, Guimarães, António Guimarães, o autarca socia- lista, acompanhou Nóvoa na visita em que foi anfitrião o empresário Fortunato Frederico, dono da céle- bre marca Fly London, o maior em- presário português do sector, que é também mandatário para a inovação da candidatura. Mas Nóvoa quer, nestes últimos dias, regressar ao seu lugar de parti- da: uma candidatura independente, aberta a vários sectores. Por isso on- tem, em Nogueira de Regedoura (Fei- ra), o convidado foi Carvalho da Sil- va, o homem que muitos apontavam como “presidenciável” à esquerda, e é um dos mandatários de Nóvoa. “A democracia exige ética e nem tudo o que é lícito é honesto” AdelinoMaltez Apoiante de Maria de Belém “Quando foi da fiscalização dos cortes de salários, ficou quietinha” AndréFreire Apoiante de Sampaio da Nóvoa MARCODUARTE O presidente do Tribunal Constitucional, Joaquim de Sousa Ribeiro, afirma que o que esteve em causa na decisão das subvenções vitalícias dos políticos foi “a tutela de confiança”, considerando que este regime “não está blindado”. “O que esteve aqui em causa do ponto de vista constitucional era uma questão típica da tutela da confiança e a tutela da confiança para ajuizar este tipo de questões não pode olhar só para o presente, temos que olhar para o passado e apreciar as implicações condicionantes”, disse aos jornalistas o presidente do Tribunal Constitucional (TC). Sousa Ribeiro adiantou que este regime “não é intocável” e “não está blindado”, não sendo imune a alterações legislativas, pelo que o Parlamento pode alterar esta lei. “Este regime que estava em vigor anteriormente e que foi agora modificado não é intocável, isto é, não há uma base de confiança na perpetuação inalterada do regime anteriormente em vigor, estou a utilizar palavras exactas que constam do acórdão. Quer isto dizer que o regime anterior não está blindado, não está imune a alterações legislativas.” O presidente do TC justificou também a decisão com o facto do rendimento do agregado familiar dos ex-políticos não poder ser prejudicado por uma actividade pessoal prestada. “A prestação de subvenção a estes ex-titulares tem como causa uma actividade pessoal que eles prestaram no exercício de uma função pública e quando se remete para o rendimento global de um agregado familiar perde-se este vínculo de personalidade, esta conexão de sentido que fundamenta e que é a razão de ser desta prestação”. Joaquim de Sousa Ribeiro sublinhou igualmente que não esteve em causa “uma apreciação factual se os subsídios são justos e se devem ser pagos”. Lusa PresidentedoTC faladesubvenções
  • 14. 14 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016 Elisabete Gonçalves, 44 anos, costuma estar à porta do jardim da Estrela, em Lisboa, com o carrinho de castanhas. Mas ontem havia mais movimento, muitos carros que chegam e partem, gente conhecida da televisão, curiosos. Às 13h, ouvem-se os sinos na Basílica, pouco depois palmas, a urna está a sair. Novamente mais aplausos quando o carro funerário passa pela Assembleia da República. A cerimónia só acaba no cemitério do Alto de São João. Foram muitas as figuras da política nacional e também simples curiosos que marcaram presença no funeral do histórico socialista Almeida Santos. No cemitério, onde o corpo do antigo advogado — que não quis uma cerimónia religiosa — foi cremado, os jornalistas ficam à porta, a família pede compreensão. Os grandes portões fecham-se, a Polícia de Segurança Pública controla as entradas e as saídas, e o trânsito. Há carros de exteriores das televisões, microfones. Quando o ex-primeiro-ministro socialista António Guterres entra no carro, os fotógrafos colam-se ao grande portão e disparam a uma velocidade tal que o barulho parece o de várias máquinas de escrever juntas. Entre a Basílica da Estrela e o cemitério, ao longo da manhã e do início da tarde, são muitas as figuras da política nacional, de diferentes partidos, que marcam presença. Alguns exemplos: Cavaco Silva, Passos Coelho, Sampaio da Nóvoa, Cândido Ferreira, Isabel Moreira, Alberto Martins, João Cravinho, Ramalho Eanes e Manuela Eanes, José Sócrates... Mais: Adriano Moreira, Jorge Sampaio, Santana Lopes, Jorge Coelho, Manuela Ferreira Leite, Mota Amaral, José Ribeiro e Castro, Carlos César, Carlos Carvalhas, Ferro Rodrigues, António Filipe, José Luís Ferreira, Pedro Filipe Soares, Ana Catarina Mendes, Teresa Caeiro. Apesar de ser difícil conseguir conversar com o ex-primeiro- ministro José Sócrates, que está sistematicamente a ser interrompido por gente conhecida e anónima que o quer cumprimentar, o socialista lá consegue expressar ao PÚBLICO a amizade e admiração que sentia por Almeida Santos. “Era um homem raro e singular e, por isso, há este sentimento”, diz, destacando as qualidades profissionais, políticas e humanas do seu “camarada”. “Era, em primeiro lugar, um grande jurista e advogado, gostava de se ver como jurista. Foi o grande jurista da democracia, da liberdade, da nossa Constituição. Por outro lado, era também um homem da política”, nota, acrescentando que era ainda “um grande homem da língua portuguesa, da geração dos políticos que escrevem bem”. Fados na despedida Também à porta da Basílica, o ensaísta e filósofo Eduardo Lourenço recorda ao PÚBLICO que era da mesma geração de Almeida Santos, ambos estudantes em Coimbra: “Ele estava mais adiantado do que eu, era ele, o Salgado Zenha”, lembra, falando muito baixinho. Tantos “tornaram-se homens de Estado, homens das letras”, continua. Nem só figuras conhecidas marcaram presença na despedida do socialista que morreu na segunda-feira em casa, em Oeiras, aos 89 anos, sentiu-se mal depois do jantar. Maria Olinda, 70 anos, doméstica, está com a mão encostada à testa, a tentar proteger os olhos do sol para ver o carro fúnebre partir. É natural de Seia, cidade onde nasceu o antigo advogado. “É Ocortejo fúnebresaiu daBasílica daEstrela emdirecção aoAltode SãoJoão, passandopela Assembleiada República Ferro Rodrigues, actual presidenteda Assembleiada República,eo ex-provedor deJustiça FariaCostano funeral Políticosecuriososdespediram-se deAlmeidaSantosnumdiadesol Figuras conhecidas de todos os partidos marcaram presença no funeral do histórico socialista. Mas também houve cidadãos que se juntaram à última homenagem ao antigo presidente da AR Reportagem MariaJoãoLopesTexto AdrianoMirandaFotos da minha terra, tenho uma grande admiração por ele e sou socialista.” À porta do cemitério juntam-se outros curiosos. Matilde Barros, 61 anos, quis ir ao funeral, “por sentir muita admiração” por Almeida Santos, que via como alguém “simpático e bondoso”. Porém, quando chega, vê os portões fechados e acaba por ficar do lado de fora a ver quem entra e sai. E são muitos: Manuel Alegre, Pinto Monteiro, Maria de Belém, Marcelo Rebelo de
  • 15. PÚBLICO,QUI21JAN2016 | 15 Sousa, Luís Fazenda. O primeiro- ministro António Costa estava em Cabo Verde, em visita oficial. Na rua, em frente ao cemitério, e na direcção da Avenida Afonso III, consegue ver-se o rio Tejo ao fundo. Está um dia de sol. De dentro do cemitério, saem também, de capas negras aos ombros e instrumentos nas mãos, os músicos que cantaram e tocaram dois fados: Valsa para um tempo que passou, de António Portugal, pelo grupo Alma de Coimbra, e Ré Menor, de Almeida Santos, pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra. Quem também marcou presença no funeral ontem foi o ex-secretário-geral do PS António José Seguro. Citado pela Lusa, recordou o socialista Almeida Santos “como um dos principais protagonistas da construção da democracia portuguesa, da sua consolidação e da edificação do Estado democrático de direito”. Foram muitos, rasgados e eloquentes os elogios que António de Almeida Santos recebeu ontem de todos os partidos na Assembleia da República, numa evocação que trouxe alguma emoção ao plenário e a que assistiu nas galerias a família do presidente honorário do PS. Ferro Rodrigues fez questão de ler o voto de pesar que redigiu e foi aprovado por unani- midade, no qual considera Almeida Santos “um dos grandes estadistas da democracia portuguesa e um dos seus mais destacados arquitectos”. Depois do minuto de silêncio, Al- meida Santos foi ovacionado de pé durante largos momentos por todos os deputados. “Almeida Santos viveu até ao seu último dia empenhado na causa da sua vida: a causa da cidadania”, leu Ferro Rodrigues, descrevendo-o como um “lutador pela liberdade” e “protagonista dos três D do 25 de Abril: Democracia, Descolonização e Desenvolvimento”. Além dos cargos políticos que desempenhou — foi mi- nistro oito vezes, deputado em nove legislaturas, presidente do PS duran- te 19 anos e presidente da Assembleia da República por sete anos — os elo- gios que se ouviram foram sobre a sua forma de estar na vida e o modo como transpôs o seu carácter para a acção política. Recordou-se a sua combatividade contra a ditadura, a Parlamento homenageou o “cavalheiro da política” “grande competência política e o ine- gável patriotismo”. O voto do Parlamento descreve- o como “humanista”, “advogado e jurista reputado e culto, escritor e intérprete do fado de Coimbra”, “um grande legislador da demo- cracia”, “democrata exemplar”, “generoso, conciliador, presente e solidário”. Prestigiou o Parlamen- to como nenhum outro presidente e modernizou a chamada “casa da democracia”, mandando instalar o acesso à Internet e lançar o canal te- levisivo Parlamento, e desenvolver o projecto do Parlamento dos Jovens. Das bancadas parlamentares, da esquerda à direita, vieram os mes- mos e novos louvores sentidos. A in- tervenção mais emocionada veio do PSD: Luís Marques Guedes, que dele disse ser um “homem de excepção”, “jurista de excelência, democrata indefectível, contundente mas res- peitador dos seus adversários”, com uma “insuperável” dimensão huma- na. “Um cavalheiro da política.” “A Assembleia da República perdeu um dos seus grandes, muitos de nós per- demos um amigo”, vincou Marques Guedes. A ideia de uma “figura maior” da história da democracia portuguesa foi também deixada pelo secretário de Estado dos Assuntos Parlamenta- res. “Figura maior, lutador da liber- dade, arquitecto da democracia, um coração gigante”, disse Pedro Nuno Santos. Destacou o seu papel “cen- tral na construção democrática”, na descolonização, na afirmação do PS na sociedade portuguesa, e o apoio à actual solução de Governo. Depois de o considerar “um dos maiores e melhores socialistas portugueses”, Pedro Nuno Santos despediu-se: “Até sempre, presidente!” Pelo PS, coube a Jorge Lacão a evo- cação. “Não morrem as pessoas cuja grandeza de vida as coloca acima e para além do seu tempo”, disse o de- putado lembrando o “patriota e uma das maiores figuras da República de- mocrática”, o “maior legislador do regime democrático” que merece no Parlamento um “lugar de panteão”. Horas antes, deputados e funcioná- rios da Assembleia juntaram-se na escadaria para ver passar o cortejo fúnebre e havia quem chorasse. MariaLopes AlmeidaSantospresidiuàAR “Foi um dos principais protagonistas da construção da democracia” António José Seguro FERNANDO PULIDO VALENTE 1924-2016 A Fundação Professor Francisco Pulido Valente participa o falecimento do seu fundador e antigo presidente do Conselho de Administração, Fer- nando Pulido Valente. Lembramos, nesta hora, o seu papel decisivo na criação desta Fundação e no desenvolvimento das várias iniciativas le- vadas a cabo pela mesma, com particular des- taque para a instituição dos Prémios Professor Francisco Pulido Valente, nas áreas do Ensino e da Ciência. Todos aqueles que pretenderem prestar-lhe uma última homenagem poderão fazê-lo no Centro Paroquial de Miraflores, a partir das 17 horas de dia 20 de Janeiro de 2016. O funeral seguirá no dia 21 pelas 16:30h para o Crematório do Cemi- tério dos Olivais. Fundação Professor Francisco Pulido Valente FERNANDO PULIDO VALENTE 1924-2016 A Família de Fernando Pulido Valente participa o seu falecimento. Neste momento queremos recordar as suas qualidades cívicas e huma- nas, traduzidas numa vida de intensa partici- pação civica, política e sindical, assim como a competência profissional que sempre lhe foi reconhecida. Foi uma pessoa íntegra que pautou a sua vida pelos valores da família, da liberdade, da honestidade, da solidariedade e da justiça. Todos aqueles que pretendam prestar-lhe uma última homenagem poderão fazê-lo no Centro Paroquial de Miraflores, a partir das 17 horas de dia 20 de Janeiro de 2016. O funeral seguirá no dia 21 pelas 16:30h para o Crematório do Cemitério dos Olivais.
  • 16. 16 | PORTUGAL | PÚBLICO,QUI21JAN2016 Coutode DornelasHá mais de 200 anos que a aldeia de Couto de Dornelas celebra São Sebastião com a oferta de um almoço a quem por lá aparecer a 20 de Janeiro. A festa, que poderá ter nascido nas invasões francesas, faz-se do prazer de dar, atrai centenas de pessoas de todo o Norte e tornou-se um agregador de afectos P or volta das dez ho- ras da manhã de on- tem, os autocarros começaram a apa- recer entre o nevo- eiro na descida das serras do Barroso em direcção a Couto de Dornelas. Os seus passageiros enfrentam com risos o ar frio da montanha, a chuva monótona e persistente e a aparência de mesa que se estendia pela rua principal da aldeia ao longo de quase um quilómetro. Dentro de um par de horas, teria ali lugar uma das cele- brações mais antigas e originais da tradição rural do Norte do país, a Mesinha de São Sebastião. Venha quem vier, seja de Valongo, de Barcelos, de Fafe, de Guimarães, grande ou pequeno, português ou galego, rico ou pobre, ninguém pa- ga o almoço — o 20 de Janeiro, dia do Mártir São Sebastião, é o dia em que a aldeia manifesta a sua genero- sidade ao mundo para cumprir uma tradição e para garantir o empenho do santo na sua protecção. Em breve, Couto de Dornelas iria transformar-se num gigantesco res- taurante ao ar livre, onde a comida se temperava com a crença nos mila- gres do santo e com muitos gestos e ritos que tornam irresistível o colori- do das festas populares. Ao fundo da rua, a confusão que se vivia na casa do santo, onde a comida estava a ser preparada, era enorme. “Deixem passar”, dizia uma mulher atarefa- da carregada de panelas. “Maldito fumo”, queixava-se outra com as lágrimas a correrem pela face. Há muitas horas que na sala de entrada da casa ardia uma gigantesca foguei- ra onde se coziam mais de 300 qui- los de carne de porco em dezenas de potes de ferro fundido. O ar era quase irrespirável. Protegido na sala do pão, onde umas mil broas se guardavam na vertical em estantes, José Pereira freguesia do Salto o dia de São Se- bastião é celebrado com dádivas de pão e vinho e nas aldeias de Godiães e de Samão, no concelho de Ribeira de Pena, oferece-se papas de sarra- bulho e vinho. Mas em nenhuma ou- tra terra a tradição se exerce com a mesma paixão. Como se em causa estivesse o cumprimento de um de- ver colectivo. As lendas rezam que a primeira mesinha se fez em 1809, quando os moradores prometeram ao santo fazer a festa se ele evitasse a passagem das tropas napoleónicas pela aldeia e os poupasse às pilha- gens. Um nevão forçou os franceses a desviar-se da rota e a tradição ficou consagrada. “Mas um dia, há muito tempo, a festa não se fez e nesse ano deu uma epidemia ao gado que o matou. E depois disso a festa fez-se todos os anos”, diz Artur Dias, 72 anos, 30 dos quais passados nos Es- tados Unidos. “Eu ouvi essa história muito pequenino e, quem me a con- tou, foram pessoas que a ouviram de outros”, confirma José Ferreira. Claro que a mesinha de hoje já não é organizada pelas nove famílias de lavradores abastados, que roda- vam entre si na organização, como outrora. Os ingredientes deixaram há muito de ser integralmente pro- duzidos na aldeia. É óbvio que hoje já não são crianças de bata branca a servir o arroz pelas mesas, como Artur Dias fez na sua infância. Por- ManuelCarvalho Ferreira olhava para o burburinho em volta da fogueira e justificava a razão de tanto esforço colectivo e de tanta despesa. “Isto é um orgulho. Sempre foi e continuará a ser”, ex- plicava. Fabricar mais de uma tone- lada de pão, cozinhar mais de 300 quilos de carne e mais de 100 quilos de arroz e distribuí-los gratuitamen- te é uma operação difícil, que exige tempo, logística, suor, dinheiro e, muito mais importante, empenho e dedicação. “Isto começa a ser feito dois meses antes”, explica José Fer- reira, que já foi presidente da junta local e integra o grupo da Comissão da Fábrica de São Sebastião. É preci- so recolher esmolas junto da popu- lação, é preciso negociar a ajuda da Câmara de Boticas, é preciso com- prar os ingredientes da festa e, mais difícil ainda, é preciso cozinhá-los e servi-los. “Só para cozermos o pão, gastamos quatro ou cinco dias e cin- co noites, sem parar”, acrescenta. A distribuição de comida a quem passar não é uma tradição exclusiva de Couto de Dornelas — na vizinha Umafestafeitacom oorgulhodedarem
  • 17. PÚBLICO,QUI21JAN2016 | PORTUGAL | 17 que hoje, como no resto do Barroso, a desertificação fez desaparecer as crianças e as famílias poderosas e globalização da agricultura arruinou a produção de centeio e reduziu os rebanhos que, outrora, “enchiam a serra”. O que não mudou foi a devoção de Dornelas ao seu santo e o militante espírito comunitário da aldeia — um feudo da CDU nu- ma geografia política dominada há décadas pelo PSD. Veja-se o caso de António Pires, que há anos é o responsável por angariar esmolas entre os peregri- nos. Ou o de Nestor Carneiro, que é o dono do cargo de transporta- dor do santo. Ou o de António San- casa do santo para benzer o pão e os potes, todos os elos da organiza- ção entram num rodopio nervoso e feliz, como se o momento mais aguardado durante todo o ano es- tivesse a chegar, como se todas as noites sem dormir chegassem ao momento de remissão. A comida começa então a ser servida. À frente, um membro da comissão leva uma vara com talvez um metro e meio que serve para marcar as distâncias a que se vão colocar os pães, as malgas de arroz e os pratos de pau onde será colocada a carne. De seguida, António Pires abre o caminho e anima as hostes impelindo-as a “dar uma esmola ao santinho”. Chapéu enfiado a fundo, pele tisnada pelo frio, António é o animador da festa. “Ele tem jeito, já faz isto há muitos anos”, ri-se Fran- cisco Barreto, o cérebro de toda a operação. “Não botem vinho para a toalha, que é de linho”, diz a uma mulher de Valongo refastelada nu- ma cadeira de praia; “se não fosse o São Sebastião já éramos todos espa- nhóis”, continua; “é para ver se dá para o arroz”, insiste. Logo atrás, Nestor Carneiro empunha o san- to de madeira, com meio metro, dando-o a beijar aos presentes e limpando-o com uma toalha de li- nho após cada acto de devoção. Enquanto espreitam a marcha de progresso da carne e do arroz ao longo da fila de tábuas, as pesso- as brincam, riem, pedem “dois oi- ros” ou “três ouros” emprestados (a palavra “euro” não chegou ainda a todo o Portugal) para a esmola. Alguns improvisam versos. Outros dedicam-se a fundo aos rituais mi- nhotos, com acordeões, em canta- res ao desafio. As piadas brejeiras são muitas. Conforme a marcha da carne progride e as garrafas e gar- rafões se esvaziam, a chuva morri- nhenta vai-se esquecendo, os risos aumentam de tom, as brincadeiras multiplicam-se e a festa entra então na sua dimensão profana. Alguns dançam ao som de uma coluna portátil instalada em cima de um tractor. Há por ali uma fuga delibe- rada aos maus espíritos — exceptu- ando um espanhol que se tentou apropriar de um prato de madeira. Por volta das duas da tarde, a mesa começa a ficar deserta. Os panos de linho estão a ser reco- lhidos. As pessoas retiram em ma- gotes. Muitas cantam e dançam, levando por vezes na mão ou em tupperwares o pão ou o arroz que sobrou. “Ah, a comidinha que boa que era”, regozijava-se Custódia Novais, 81 anos, de Braga, logo an- tes de esclarecer com solenidade: “Olhe que eu não vim cá só para comer.” Pois, veio também por causa da fé, do santo e do conví- vio. Ou ainda pela singularidade daquele encontro no frio húmido da rua, onde se sente o dever de articular uma vénia a uma aldeia que dá de comer a quem passa sem pedir nada em troca — para lá da protecção do santo. A Mesinha de São Sebastião há- de ser muito diferente da festa que José Fonseca e Costa filmou para a RTP nos anos de 1960. Mas ainda atrai televisões estrangei- ras, que estranham aquele ritu- al meio sagrado, meio profano e talvez ainda mais a natureza de uma celebração construída pelo prazer e pelo orgulho de dar e de ser reconhecido apenas por isso. Numa aldeia como tantas outras, envelhecida, com o seu tecido eco- nómico desarticulado pela políti- ca agrícola europeia, esse “orgu- lho” de poder dar que Francisco Barreto, Artur Dias, José Ferreira, António Sanches ou Nestor Carnei- ro ostentam talvez seja um bom ingrediente para resistir a todas as ameaças. Muito mais do que a comida, é essa manifestação de ser pela generosidade que torna aquela festa um acontecimento no- tável desse velho mundo rural por- tuguês sob a ameaça de extinção. FOTOS: NELSON GARRIDO ches, que todos os anos viaja desde o Canadá “para estar cá e ajudar no que for preciso”. A verdade é que tanta tradição acumulada criou na aldeia uma máquina eficaz de fazer e distribuir comida ao longo da mesa de quase mil metros. Mal o padre acaba a celebração da missa, por volta do meio-dia e passa pela Venhaquem vier,sejade Valongo,de Barcelos, deFafe,de Guimarães, grandeou pequeno, português ougalego, ricooupobre, ninguémpaga oalmoço—o 20deJaneiro édiadeSão Sebastião