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ISBN 85-323-0180-0
9"788532"301802
o esr,elpo
magtco
um
fenômeno
social
.chamada
carpoe
alma
• /
Jose
~gelo
galarsa
13!!: edição
~
summus~edito'ial
C1P-Brasil. Ca talogação- na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP
Gaiarsa, José Ãngelo, 1920-
GUle O espelho mágico : um fenômeno social chamado
corpo e alma / José Angelo Gaiarsa. - São Paulo :
Surnrnus, 1984.
1. Comunicação - Aspectos sociais 2. Relações
interpessoais I. Título.
84-0296
17. CDD-301.1
18. 301.14
Índices para catálogo sistemático:
1. Comunicação Aspectos sociais Psicologia social
301.1 (17.) 301.14 (18.)
2. Relações interpessoais : Comunicação : Aspectos sociais
301.1 (17.) 301.14 (18.)
o espelho
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fenômeno
social
chamado
corpo e
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Jose
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su",",us~edito'iBI
OE'SPELHO MÁGICO
Copyright © 1973, 1984
by José Ângelo Gaiarsa
Capa:
Claudio Rocha
Projeto Gráfico e
Ilustrações: Claudio Rocha e
Suzana Barros Freire
com a cooperação criativa do Autor.
A escultura moderna que
aparece na capa, em foto de
J. A. Gaiarsa, é de '
Marta Minujin (nascida em 1943,
atuando na Argentina),
Proibida a reprodução total ou parcial
deste livro, por qualquer meio e sistema,
sem o prévio consentimento da Editora,
Direitos desta edição
reservados por
SUMMUS EDITORIAL LTDA.
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05006-000 - São Paulo, SP
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Fax: (011) 3872-7476
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tfJ
.'',;
ÍNDICE
1, A FACE ESTRANHA QUE É A MINHA ,.,.,., .. , ... ,'., .... ", 8
2, O ACONTECER E AS CATEGORIAS ."".", .. ", .. ,.' .. ",., 13
3. AS PALAVRAS E A ETERNIDADE .... " .. " .... ,,,'.,,,, '...... 17
4. TUDO COMEÇA NA INFANCIA (FREUD) ".... .. , .. ". .. 19
5 O VíCIO DA PALAVRA " ... " ... """''',,, . .,,, ,,,,,... 23
6. O ESPELHO MÁGICO DA RAINHA ",,,,,,, .. ,,............. 25
7. O íNTIMO ESTA POR FORA! """, " "." ." ." 29
8. CORPO E ALMA "."",,,,,,, .. ,, .. ,,,, .. ,, ,, ,;,,, '31
9. QUEM VP..CARA V~ CORAÇAO? .. , .. ,., .... ,.,.,."""".,." 33
10. O INCONSCIENTE VISíVEL (REICH) """".,.,.,."".,.,., 37
11. HAMLET E A PERPLEXIDADE .: ... """".,.,.,.,. ,," . . . . . .. 41
12. LEI DA DESGRAÇA IRREMEDIÁVEL .. "",,,,,, ,,.:,,.. 47
13. O CAVALEIRO ANDANTE ."".,,,., .. .,,,,, ,,,, ,,,,. 48
14. MORENO, O PSICODRAMA E OS PAPÉIS COMPLEMENTARES,. '53
15. LORENZ E AS CONDUTAS INSTINTIVAS , .. ,., , ,. 57
16. OS FUNDAMENTOS MOTORES DO ,PRINCíPIO DE NÃO CON-
TRADIÇÃO . , , .... , . , .. , , , .. , . , , , , . , .... , , . , , , , , , . , , . , . , , . , . " 59
17. A MORAL AS AVESSAS " , .. , .. , .. ", .. ", .. ,............. 63
18. O UNIFORME ,.,,,., , ,, : , ,... 65
19. A EXEMPLAR HISTÓRIA DO REIZINHO VAIDOSO '''.... 67.
20,. O MAL DO BEM E DO MAL , , , " , :. 71
21. MINHA VONTADE E O OUTRO , .. " ,:, , ,.. 73
22. A MALDIÇÃO DA ESTRUTURA DIVIDIDA , ,., ,;.",. 75
23. O MISTÉRIO DA SOLIDARIEDADE ANT AGdNICA , .. " , 79
24, EPITÁFIO " , , , , , , .. , , _. . .. . . . .. 81
1
o
1.
A FACE
ESTRANHA
QUE É
A MINHA
Meu rosto me é mais estranho
que meu íntimo.
Mais fácil me é aceitar um
pensamento como meu, do que
aceitar (ou sequer perceber) que
ao dizer "sinto muito", a expressão
de meu rosto era
de completa indiferença.
o
o
r"
Sou apresentado a uma pessoa em reunião social. Converso com
ela meia hora. Vejo mais do seu rosto, durante este tempo, do que
vi do meu rosto durante o ano inteiro.
Não só vi muito mais, como vi de outro modo. Eu reparei no
seu sorriso, no seu modo de olhar, prestei atenção no gesticular de
suas· mãos, e nas posições de seu corpo.
Tudo o que vi influiu no nosso relacionamento; mas se, ao me
despedir, alguém me perguntar o que achei da pessoa, resumo minha
impressão em frases curtas:
NO DIALOGO COM O OUTRO
QUEM ESTA DE COSTAS É VOCf:,
QUE NÃO SE vs.
simpático
chato
legal
que pretensioso
um coitado
que matraca.
Se um amigo - ele também um chato! - insistir em saber o
que percebi durante a conversa, terei muita dificuldade em qualificar
os movimentos, os gestos, e os tons de voz. Se por acaso o diálogo
entre eu e o estranho for filmado e eu tiver a oportunidade de ver
o filme, o estranho continuará estranho para mim; o filme mostrará
uma porção de expressões da pessoa que vi, mas que na certa esqueci.
Tanto o diálogo social como o filme nos demonstram um fato impor-
tante: percebemos bastante da expressão não verbal dos outros, mas
temos consciência vaga e obscura desta percepção que comporá nosso
julgamento e determinará nossa atitude frente à pessoa.
Durante toda a conversa, porém, o mais estranho dos rostos que
participava dela era o meu - sem a menor sombra de dúvida. Se ao
outro eu percebia de forma global e pouco distinta, de mim mesmo
só percebia uma coisa: aquilo que eu pensava enquanto ele falava ou
eu falava.
Tudo o mais, meu sorrir, meu gesticular, meu olhar, escapava,
quase de todo, à minha percepção - mas não à dele!
ELE ESTAVA LENDO MEU CORPO
Podemos afirmar este paradoxo em relação a um encontro e a
uma conversa de meia hora com um estranho: o rosto dele se fez
quase .farniliar para mim, e o meu rosto se fez quase familiar para ele,
ao longo da conversa, mas meu rosto, para mim, e o rosto dele,
para ele, continuam tão estranhos quanto sempre foram! Falar consigo
ou falar sozinho são expressões familiares, mas "conversar com o
próprio corpo" é uma declaração estranha.
NINGUÉM CONVERSA COM SEU PROPRIO CORPO ...
10
2.
O ACONTECER E
AS CATEGORIAS
~
o acontecer é muito mais amplo do que o retrato falado que
dele fazemos - depois que ele aconteceu.
As categorias são verbais e o acontecer, além de ser verbal, é
também visual, afetivo, condicionado pela experiência passada. Depen-
de do lugar, do momento, das pessoas.
O acontecer é, 'também, muito mais rico do que as palavras que
dizemos enquanto o acontecer se desenrola.
No entanto, porque a palavra é fácil, porque somos animais irre-
mediavelmente tagarelas,
PORQUE A PALAVRA FEZ AO HOMEM
MUITO MAIS DO QUE O HOMEM FEZ À PALAVRA,
por tudo isso e por muito mais, preferimos, sempre que não seja
absolutamente indispensável proceder de outro modo, acreditar que
as palavras se confundem com as coisas, e que o mundo é uma vasta
sinfonia de significados verbais e mais nada.
O mundo é uma soma de significados sem substância: um dicio-
nário!
Além disso,
"O ACONTECER É GLOBAL E
SIMULTANEO. AO PASSO QUE O VERBAL
É SUCESSIVO E LINEAR ... "
MarshalI McLuhan
Muitas coisas acontecem a cada instante. Se fôssemos descrever,
com toda a precisão, um instante do acontecer, facilmente escrevería-
mos um livro. Para ler este livro, de outra parte, levaríamos tempo
deveras enorme, se comparado com a duração do instante em que o
acontecer aconteceu.
As palavras representam muito pouco do fato e, além disso, colo-
cam todos os fatos dentro do mesmo sistema de coordenadas.
TUDO FICA IMENSAMENTE SIMPLIFICADO.
TUDO FICA IMENSAMENTE FALSIFICADO.
13
~
l--.-
,.
o o o o
Quanto tempo você demora para ler o texto?
Quanto tempo você demora para ver a figura?
o menino
O menino chama-se Joãozinho
A bola
Joãozinho corre atrás da bola
O cachorro
O cachorro chama-se Leão
O por tão
A cerca
O portão completa a cerca
J oãozinho está na frente do portão
A árvore
A árvore está dentro do cercado
o
3.
AS PALAVRAS
EA
ETERNIDADE
Há milênios, os homens descobriram
uma classificação dita fundamental das coisas:
as transitórias e as "eternas"
( ".. J
permanentes, seguras ...
Na verdade, a distinção tem mais que milênios. Começou com
os primeiros balbucios humanos, porque as únicas coisas estáveis do
mundo são as palavras, que podemos repetir, sempre iguais e sempre
as mesmas, quando e quanto nos aprazo Podemos descansar nas pala-
vras, confiar nas palavras, obter delas a mais profunda e embaladora
ilusão de certeza, de segurança e de permanência. A Lei, os Princípios,
o Regulamento -. eis a eternidade realizada.
TUDO O MAIS MUDA, CAMINHA,
TRANSFORMA-SE, EVOLUI.
De outra parte, se a cada momento que abrirmos os olhos, perce-
berrnos com clareza todas as diferenças que ocorreram em torno de
nós e dentro de nós durante este instante, viveremos em pasmo e em
perplexidade sem fim.
RECÉM-NASCIDOS A CADA MOMENTO!
CALEIDOSCOPIOS QUE SE TRANSMUDAM
A CADA INSTANTE.
NÃO SERIA LOUCURA?
Algo precisa parecer-nos estável:
ESCOLHEMOS AS PALAVRAS.
É muito importante manter a ilusão de que as coisas são perma-
nentes.
Na verdade, é muito importante transformar, por um ato de
adoração, coisas tão transitórias quanto as demais em coisas "eternas".
Nosso ato de adoração eterniza as coisas.
Assim nasce a Iiturgia.
É nosso medo que nos faz adorar.
AD + ORAR = Recorrer a alguém.
Nosso prêmio é a ficção de segurança.
"Nada mudou. Sou sempre eu!"
ETERNO COMO A ROCHA. VOLÚVEL COMO AS ONDAS.
(MAS AS ONDAS ACABAM COM A ROCHA).
17
4.
TUDO COMEÇA
NA
INFÂNCIA
(FREUD)
Bem antes de aprendermos a falar, porém, já sabemos muito bem
o que mamãe quer dizer com o olhar e com o tom de voz, o que
significa o gesto de nosso irmão, como fazer para- controlar as visitas
- tudo isso sem abrir a boca! Com sorrizinhos, bater de palmas,
gargarejos, volver de cabeça e movimento dos olhos, conversamos,
ativamente, com o mundo que nos cerca, desde poucos meses de
idade. O corpo fala e os olhos ouvem, muito antes de a boca aprender
a articular palavras. É de se supor que, já com um ano, sabemos
bastante bem qual o estado de espírito de mamãe, apenas ouvindo
seu tom de voz, apenas sentindo sua maneira de nos retirar do berço
e de nos carregar nos braços.
Só vários anos depois é que a palavra começa a fazer-se impor-
tante para nós; a palavra enquanto articulação, significado, ordem,
súplica.
Mesmo mais tarde, em nossa vida, -sabemos bem como devemos
proceder diante do patrão, do professor ou do papai, apenas perce-
bendo, num relance, a expressão do rosto de cada um deles, a maneira
de gesticular ou até o ruído da marcha destes personagens importantes.
Ouvimos com os olhos.
Note-se que os estados de ânimo variam facilmente e o bom
filho sabe o que papai está pensando, até sem olhar para ele. Quando
papai chega em casa não é bom dizer que, com a bola, quebrou a
vidraça do vizinho. Uma hora depois, quando papai já desabafou o
mau humor, mudou de voz, de cara e de roupa, a confissão pode ser
feita com risco bem menor ...
SE SO AS PALAVRAS TIVESSEM SIGNIFICADO ...
19
DO·
DO
DO
5.
O VíCIO
DA PALAVRA
o vício da palavra, portanto, não é apenas congênito - é here-
ditário. Só se faz vício, realmente, lá pelos 8, 10 ou mais-anos, época
em que conseguimos falar de verdade, com fluência, empregando as
palavras no sentido em que os adultos do nosso mundo as empregam.
É neste período que incorporamos um código geral de significados.
Antes disso, a palavra era uma porção de coisas, era exclamação,
música, brinquedo, poema, meio de conseguir atenção de parecer
inteligente, de impressionar gente grande.
Era tudo o que se queira, menos palavra.
23
6.
O ESPELHO MÁGICO DA
RAINHA
Todos os espelhos são maqrcos.
Mostram apenas o que queremos ver.
------- PONHA UM ESPELHO
NO RETÂNGULO
EM BRANCO.
I
I
I
I
I
I
I
I
I
I
OLHE.
VOC~ TEM REALMENTE
PRAZER EM CONHECER-SE?
CONVERSE
COM ELE.
PERGUNTE COMO
ELE SE CHAMA ...
--------
Quando olhamos para o espelho, fácil e inconscientemente desfazemos
expressões que poderiam desdizer das que os outros vêem.
Se prestássemos atenção àquela face, na certa estranharíamos:
"Quem é?"
Mas ninguém faz isso.
Já se viu alguém ficar se olhando, no espelho, apenas para se conhecer?
Que vergonha! É coisa de esquizofrênico. Além disso é narcisismo!
É indecente ficar olhando tanto tempo para si mesmo... Por isso
olhamos pouco para o espelho. Quando -olhamos, fazemos a cara que
nos apraz ou vemos a cara que nos convém. Quando não, olhamos
25
para ver se a barba está comprida, se o cabelo está despenteado, se
a pintura ficou como devia.
Sempre olhamos para o espelho com alguma intenção e, por isso, nada
mais vemos fora desta intenção. A intenção é um seletor de estímulos.
Por isso o espelho não serve para nos mostrar nossa face que, lembre-
mos, é uma estranha face para nós.
O espelho não serve para descobrirmos o criminoso.
E a fotografia? Será que serve? Tomemos o álbum de retratos.
Quando vemos uma fotografia nossa, logo vamos dizendo:
"Não parece comigo. Não sei de quem é esta cara. Não sou fotogênico.
Olha meu cabelo desarrumado! Que nariz feio que eu tenho. Isto é
lá fotógrafo!"
E a voz? Numa hora de brinquedo, gravamos a conversa das pessoas
e a nossa também. Em seguida, ouvimos o gravador e continua o
rosário:
"Que voz esquisita! Minha voz não é assim. Nunca imaginei que
minha voz fosse assim. Que voz feia, não gosto desta coisa. É assim
que falo?"
Por fim, o acaso feliz ou um amigo rico nos permitem ver a nós
mesmos numa película de cinema ou em vídeo-tape. Aí a coisa alcança
níveis absurdos ...
Nossa aparência pode, num instante, produzir em nós- desvanecimento
de complacência e, em outro momento, agudo sentimento de vergonha,
de constrangimento ou de estranheza. Por isto evitamos todo feedback.
Positivamente: não nos conhecemos
NEM POR FORA. E PRETENDEMOS CONHECER-NOS POR
DENTRO. PIOR DO QUE 1550: VIVEM TODOS CONVICTOS
DE QUE O QUE APARECE POR FORA - AS APARENCIAS -
NAO TEM NADA 11 VER COM A PESSOA, NAO É DELA,
NEM É ELA! DE QUEM É, ENT AO?
26
'D/~lJTTf:
7.
O íNTIMO
ESTA
POR FORA!
Depois de um encontro ou de uma conversa, sempre achamos que
dissemos exatamente o que queríamos. Nove vezes em dez, esta convic-
ção é redondamente falsa. Dissemos apenas "nossa opinião", isto é
AS PALAVRAS QUE TÍNHAMOS EM MENTE.
Não cuidamos do gesto, nem do tom de voz, nem do olhar, nem
de nada ...
Sempre que temos que falar com alguém importante cuidamos um
pouco destas coisas e então sentimo-nos mal, meio presos, meio atores.
Este mal-estar é boa medida do que nos custa
TOMAR CONSCI~NCIA
de nossa expressão não verbal.
As coisas pioram se considerarmos que a convicção de termos di to
"EXAT AMENTE O QUE PENSAMOS"
é implícita, é uma certeza íntima que as pessoas nunca ou quase nunca
põem em dúvida.
Por vezes, o interlocutor não ouviu uma palavra sequer. Fez dos olhos
um vídeo-tape e nos fotografou por dentro pelos gestos.
ENQUANTO AS PESSOAS FALAM FACE-A-FACE, O GESTO E
A VOZ DIZEM MAIS E DIFEREM MUITO DO QUE AS PALA-
VRAS ESTÃO AFIRMANDO - E DO QUE A PESSOA CONSI-
DERA SUA INTENÇÃO.
.' ~;"..
O mal-entendido se faz irremediável, porque se mostrarmos às pessoas
o jeito com que elas falam ou gesticulam, podemos ter quase certeza
de fazer inimigos. "Sua voz era prepotente ", "seu olhar era duro",
" seu sorriso era de pouco caso", " seu olhar era de desconfiança"
são pequenas frases que podem iniciar uma guerra.
29
8.
CORPO
E
ALMA
Por que as coisas se passam assim?
Por que a palavra é tão boa para disfarçar?
Porque queremos crer, porque precisamos crer, que não mostramos
aquilo que não fica bem, que não é elegante, que é mau ou que é feio.
Esta divergência entre o que eu acredito estar mostrando e o que o
outro vê, gerou uma das dicotomias mais falsas e mais patéticas de
toda a história do pensamento humano - a noção do corpo e alma:
ALMA É AQUILO QUE EU
ACHO QUE ESTOU MOSTRANDO.
CORPO É AQUILO QUE
O OUTRO V~ DE MIM.
Quase sempre há entre as duas divergência tão acentuada que só pode
ser "explicada", logicamente, pela existência de duas coisas, diferentes
"por natureza" e discordantes na intenção: corpo e alma, precisamente.
Em termos modernos falamos de objetividade e de subjetividade.
A distinção continua válida; na verdade, continua a mesma. Todos
são muito ciosos daquilo que pensam, que sentem e do que dizem;
quase ninguém tem a menor noção daquilo que mostra enquanto está
pensando, sentindo ou dizendo: objetividade e subjetividade, dois
mundos à parte!
Contudo,. só posso conhecer minha subjetividade pelo retro-efeito de
minha objetivação. OEU resulta dos feedbacks sociais de nossa ação.
31
9.
QUEM VÊ CARA VÊ
CORAÇÃO?
Vê. Vê muito bem. Basta olhar.
Cara é o corpo e coração é o íntimo.
Alguns sinônimos nos auxiliarão. Nos romances fala-se do íntimo;
nos textos de filosofia existencial, do inefável, do profundo; nos textos
de psicanálise fala-se do inconsciente, também tido como profundo,
misterioso e mágico.
O corpo, a face e o gesto são sempre minimizados como se fossem
propriedade exclusiva de mímicas, de palhaços ou de atores, alguma
coisa subalterna, ligeiramente cômica e, acima de tudo, alguma coisa
com a qual eu faço o que eu quero.
Nada mais falso do que esta convicção.
AS PESSOAS T~M CONTROLE PRECARfSSIMO DAS
SUAS EXPRESSOES NÃO VERBAIS. QUASE NIN-
GUÉM PERCEBE OS MOVIMENTOS QUE FAZ NEM
AS EXPRESSOES QUE TEM NA FACE. NINGUÉM
ACHA IMPORTANTE CONHECER O PRÓPRIO ROS·
TO E NINGUÉM SE DA CONTA DA IMPORTÂNCIA
DESTAS COISAS. MAS PARA O OUTRO NOSSA FACE
É SEMPRE MUITO IMPORTANTE! É PARA ELA
QUE ELE OLHA O TEMPO TODO.
~1f~aJlli~~~~~:Wi1%~t(.~~{ç~j~~~~;~.ki~~~%~~~·:;;;.f$~~~jt.~0~1l1:.
Os limites desta situação tragicômica podem ser encontrados na psica-
nálise. Pretende ela investigar as profundezas do ser humano e a pri-
meira coisa que faz, a fim de realizar este propósito, é afastar delibera-
damente os olhos daquilo que está aí - o pobre corpo de sempre!
As projundezas do ser humano são aquilo que transparece nas palavras
- nem mais nem menos. Este o princípio prático da psicanálise.
As palavras são o espelho do SER!
Nas palavras humanas existe
33
LETRA E MÚSICA
A letra comunica muito do processo intelectual e a música comunica
muito do processo emocional. Mas a palavra continua e continuará
para todo o sempre sendo apenas parte do homem. Se não olharmos
para seu corpo, certamente, não o veremos, nem saberemos como é
este homem. Além disso, sem ver a face e o corpo, nem sequer pode-
mos compreender bem o que a pessoa está dizendo, pois é de forma
instintiva que captamos o sentido da palavra pelo modo (e a situação)
como a palavra é dita.
Enfaixemos o corpo e a alma emudece.
Aqui é importante assinalar o fato de uma ciência tão nova,
ainda com grande prestígio, nascida do desejo idealista de compreender
bem o homem inteiro, acabar engolida pelo preconceito milenar de
corpo e alma ... Também para o psicanalista,
a alma é aquilo que se ouve através da palavra, e o corpo é aquilo que
não importa muito.
PERFEITO ASCETA, AMANTE DO ESP1RITO E CHEIO DE
DESPREZO PELA CARNE ...
Quando movimento social da envergadura da psicanálise embarca em
omissão desta grandeza, podemos suspeitar de que o preconceito corres-
pondente é deveras profundo, significativo e atuante.
Por que o homem não quer saber de seu corpo?
Por que não quer se ver sequer no espelho? Quem transformou o
corpo em
PECADO?
34
10.
O INCONSCIENTE
VISíVEL
(REICH)
CONTUDO - SE BEM OLHARMOS
TODOS ESTAMOS NUS, NA VOZ,
NO GESTO,
NO ROSTO, NAS MAOS,
NA POSTURA, NO OLHAR ...
Reích aprendeu a ver e ensinou a ver.
Ele pôde mostrar que nós escondemos pouco e nada de nossos
sentimentos e intenções. Nossos sentimentos alteram nossas expressões
e nossos gestos, ou provocam em nós esforços destinados' a contê-los,
controlá-Ias, escondê-los. Para quem tem olhos de ver) todos estão NUS.
DE QUALQUER MODO, OU VEMOS O QUE A PESSOA
SENTE, OU PERCEBEMOS O QUE ELA ESTA PRETENDENDO
ESCONDER. COM ALGUMA PRATICA, PERCEBEMOS COM
CLAREZA SUA MANEIRA DE ESCONDER AS COISAS - O QUE,
AFINAL, É UM MODO DE REVELAR-SE.
Quer isso dizer que todas as pessoas vivem sempre cheias de
más intenções que escondem a todo instante?
NOSSO INTERIOR SERA UMA LATA DE LIXO?
(Lida ingenuamente a Psicanálise nos diz que sim ... )
Convém aprender a distinguir nas pessoas as atitudes estáveis e
as atitudes que surgem; igualmente, convém distinguir os gestos este-
reotipados, sempre os mesmos, muito característicos da pessoa, e os
gestos espontâneos que aparecem ou que nascem aqui e agora.
Com um pouco de prática a distinção não é muito difícil. Quase
tudo o que é estável ou estereotipado desperta pouca ou nenhuma
ressonância no observador atento; aparece como formalismo, hábito,
rotina.
Mas é preciso cuidado nestas coisas: se o observador atento,
apesar de atento é ele também rotineiro ou formal, poderá achar o
outro muito espontâneo e autêntico!
37
Ainda, se vejo alguém pela primeira vez, vejo-o como novidade.
Só ao reencontrá-Ia ou ao conviver com ele vou percebendo o quanto
ele se repete.
Mas para ver - note-se - é preciso olhar ...
Então, de novo: nossos complexos e recalques estão POR FORA,
no jeito. Por isso não queremos ver nem saber de nosso jeito:
Quando se fala de pessoas que observam ou são observadas,
convém não embarcar na ilusão de que o observador, pelo fato de
ser observador, está isento de si mesmo.
Ninguém está isento de si mesmo e só podemos ver o outro
através dos nossos olhos e dentro de nossa perspectiva.
Vemos o mundo com nossa experiência. Isto é irremediável.
Reich mostrou ainda, com cuidado e precisão, que as atitudes
mais estáveis das pessoas e seus gestos estereotipados são verdadeiro
resumo da história vivida por elas.
Quem teve pai despótico desenvolve atitudes crônicas ou de
rebeldia ou de submissão. Quem vem a cruzar com esta pessoa já
adulta, ao vê-Ia submissa saberá da sua história - sem palavras.
Quem teve mãe instável, cheia de repentes amorosos e agressivos,
pode desenvolver modos de borboleta que adeja sempre e nunca pousa.
O modo de ser contém em si a história de sua origem. Ao ver o modo "
podemos compreender a pessoa. Basta olhar. Olhar bem. .
Reich denominou ao conjunto destes elementos estáveis da expres-
são não verbal de "couraça muscular do caráter". Couraça porque
protege, defende, esconde (e revela). Muscular porque feita ou consti-
tuída de conjuntos de tensões musculares cronicamente mantidas. Do
caráter, porque compõe o jeito da pessoa, porque são características
da pessoa e porque influem em tudo o que a pessoa faz, pensa,
sente, e diz.
PARA NÃO VER NOSSO íNTIMO!
Porque nosso' aspecto exterior é retrato acabado de nosso íntimo,
ele se mostra quase sempre com contradições. Posso, em certo momen-
to, sorrir amistosamente enquanto olho ao outro com dureza. Meu
gesto de mão pode ir até o outro enquanto faço um movimento de
afastamento com o corpo. Posso olhar alguém nos olhos, direta e
francamente, enquanto meus ombros estão apertados (de medo) e mi-
nhas pernas se plantam no chão com força (preparação para o ataque).
MAS SE MOSTRO O QUE SOU, COMO SOU, O QUE SINTO
E O QUE VIVI, ENTÃO, MEU "íNTIMO" ESTA POR FORA!
MEU CORPO É MINHA ALMA. POR ISSO NÃO QUERO SABER
DE MEU CORPO. PORQUE ELE É EU. PORQUE ELE É MUITO
MAIS DO QUE EU ... SE O CORPO NÃO FOR MEU, DE QUEM
SERA?
Tem mais - do mesmo.
Todo mundo sabe o que significa IDENTIFICAÇAO com pai,
mãe, herói de cinema, coitadinho, machão, etc ...
Todo mundo sabe, porque identificação a gente vê, no jeito, no
gesto, na cara, "é como o pai", "ela está querendo ser a Brigite ",
"você sempre se faz de vítima" ...
A identificação não é um "mecanismo neurótico profundo", nem
"complexo inconsciente", que só se evidencia com análise de 5 anos.
A identificação "está na cara".
Basta ver.
,DI~~m.
PARA A PESSOA FORMAL O FORMALISMO É MUITO ESPONTÂNEO,
38 39
11.
HAMLET
EA
PERPLEXIDADE
Digamos que temos algum negócio, um passeio, um amor, uma
briga ou simplesmente uma conversa com uma pessoa. Digamos tam-
bém que, no momento do encontro, ou poucos instantes depois, nos
damos conta das várias expressões da pessoa, e nos apercebemos das
várias intenções contidas em sua posição e no seu modo de gesticular.
Que faremos? Que faremos se os olhos suplicam e se a boca
despreza?
Que faremos se os olhos desafiam, se os ombros estão espre-
midos de medo e se o punho da mão direita se fecha com força -
como se pronto para um murro?
QUE FAREMOS SE A PESSOA NOS CONTA SUA
ÚLTIMA DESGRAÇA COM UM TOM DE VOZ CHO-
ROSO DE ViTIMA. SE SEUS OLHOS NOS OBSER-
VAM COM DESCONFIANÇA, SE SEUS LABIOS NOS
AFRONTAM COM UM VAGO SORRISO ZOMBETEI-
RO, SE SEU PEITO INFLADO E A DIREÇAO DA
FACE - QUE NOS OLHA DE CIMA PARA BAIXO-
LEMBRAM UM ORGULHOSO, SE O SEU OMBRO
ESQUERDO FOGE LIGEIRAMENTE NUM MOVI-
MENTO DE ACANHAMENTO. A QUAIS E A QUAN-
TAS DESTAS INTENÇOES IREMOS RESPONDER?
Faremos exatamente o que faz o estrábico quando vê dois mundos:
SUPRIME UM DELES.
Se não fizesse assim o estrábico não conseguiria se mover.
Nem nós.
Ninguém sabe como o cérebro, a mente, a consciência ou seja lá
o que for, consegue suprimir metade ou mais das coisas que percebemos.
Não sabemos como, mas o fato é muito evidente, respondendo
pela alienação de todos. Todos estão alienados de algumas coisas ou
de algum modo.
41
Como nos será dado compor uma resposta que responda simul-
tânea e adequadamente a solicitações tão discordantes?
É muito difícil estar engajado inteiro no aqui e no agora, perce-
bendo "tudo o que há para perceber" (Chardin)
Só os iluminados o conseguem - às vezes.
Todos os demais suprimem alguns ou muitos aspectos das coisas:
Diante de tantas intenções contraditórias, podemos ser levados
42
a sentir - não sei porque - que a pessoa é simpática, nos condoemos
da sua desgraça e ouvimos suas queixas. Neste caso concluiremos que
a pessoa é uma boa pessoa e tê-la-emos na conta de nossa amiga. Mas
também podemos - não sei porque - nos deter mais em todas as
intenções desagradáveis expressas em seu corpo, concluindo que a
pessoa é insuporfável e que é nossa inimiga.
o QUE VOCE FARIA
SE CAíSSE DE REPENTE
DENTRO DESTE
QUADRO?
o
o
o
o
o
o
L
c'-.~·_ •.
43
Claro e evidente
que faremos
assim.
DIVIDIREMOS A PESSOA TRANQÜiLAMENTE AO MEIO
E NO MESMO ATO NOS DIVIDIREMOS AO MEIO.
~
Responderemos de metade a metade.
Se ela for nossa amiga - se não sei como, nem porque, decidir-
mos que ela é nossa amiga - responderemos como amigo e a achare-
mos boa, talvez trágica, nobre, heróica.
Caso contrário, achá-la-emos aborrecida, enfadonha, chantagista e
ou tras coisas assim.
44
••
-
~r§
k1â1W'~titiiij}ttj;,i,ifg;:'''~iJ?:;.~li.%};~~~~
12.
LEI DA DESGRAÇA
IRREMEDIÁVEL
C. G. Jung viveu para demonstrar esta verdade: o in-
consciente funciona sempre complementando a per-
cepção consciente, e compensando as deformações
de valor e significado de que a consciência sofre -
ou que nos são impostas pela educação e pelas cir-
cunstâncias.
Quanto melhor percebo o outro, mais confuso fico.
Quanto mais aceito ver aquilo que meus olhos estão vendo e
aquilo que meus ouvidos estão ouvindo, mais me dou conta de quanto
são contrárias, inclusive. contraditórias, as expectativas do outro em
relação a mim.
Ficamos perplexos não só por perceber tantas coisas difíceis de
conciliar, como também porque elas. despertam coisas análogas em
nós, e nós não sabemos o que fazer conosco mesmos.
A regra, como vimos, é a alienação, a negação de uma parte, a
desvalorização ou a alteração do sentido daquilo que percebemos. Simulo
taneamente, apreendemos ou criamos um sentido relativamente falso
para o momento, baseados apenas naquilo que nos permitimos perceber.
O sentido é necessariamente falso, porque lida com dados tornados
insuficientes por alguma espécie de deliberação - ou de inibição.
Em algum lugar de nós mesmos, porém, subsiste outra visão do
momento, com outra organização, igualmente parcia1. Seu sentido é
complementar em relação à apreciação consciente do encontro - ou
do outro.
Ao ceder à alienação nós eternizamos o desentendimento. Ele
continua a existir mas,
A LUZ DE TUDO AQUILO QUE PERCEBEMOS COM CLAREZA,
não podemos compreendê-lo. O desentendimento ocorre naquilo que
estamos negando, nas áreas que, por hipótese de alienação, não exis-
tem ou não têm importância. O desentendimento não tem causa
suficiente.
Concluímos o óbvio: o outro é muito esquisito, muito incorn-
preensível, louco, irracional, incoerente.
A culpa é dele - evidentemente.
A tragédia é esta: "ele" pensa exatamente o mesmo!
Diálogo desumano ...
47
13.
O CAVALEIRO
ANDANTE
Por uma estrada
vinha um cavaleiro
andante, de
penacho branco e
reluzente armadura ...
. . .seguido de seu
fiel escudeiro.
Pela estrada ia também
uma pobre velhinha
com um enorme
feixe de lenha
nas costas
o cavaleiro
aproxima-se
da velhinha
sofredôra ...
contempla-a
do alto de sua
magnificência ..
'Ir" !li Ir
sem a menor
hesitação, sem a
menor cerimônia,
aplica-lhe um
violento pontapé
na cara ...
No início, como você viu, insinuou-se a presença de um herói;
no momento do pontapé, sentimos todos que perdemos o chão sob
os pés. .. Esta comparação não é apenas literária. Creio que ela é
literal.
A verdade é que ao ver o cavaleiro andante nós todos armamos,
subconscientemente, alguma espécie de atitude de admiração pelo herói,
de identificação com ele, de participação no seu garbo ou na sua
coragem. No momento do pontapé, damo-nos conta, subitamente, de
que este mocinho não é o mocinho, mas o bandido.
Impõe-se a todos rápida mudança de atitude, e é precisamente
esta mudança que nos traz a sensação de que o chão nos foge sob os
pés. Temos que mudar rapidamente de posição, porque toda a cena
visual e todas as intenções da cena mudaram abruptamente.
Vê-se, pelo exemplo, o quanto intervém, no diálogo e na interação
humana, o jogo de atitudes opostas, contrárias, ou apenas diferentes.
Vê-se bem qual o critério que organiza a percepção:
NÃO POSSO AGIR COMO MOCINHO E
BANDIDO AO MESMO TEMPO.
Se o momento solicita atitudes ou ações contraditórias, fico
confuso.
No momento seguinte encontro um modo, qualquer que ele seja,
de recompor ou de reorganizar a situação: ou suprimo elementos da
percepção, ou faço variar o valor dos elementos dados. Assim consigo
equilibrá-los de algum modo, consigo unificá-los e, no mesmo ato,
passo a saber o que fazer. '
Isto se chama "ioisbjul thinking" - pensamento subordinado ao
desejo.
Melhor seria dizer subordinado ao ato ou à conduta.
Segundo os cientistas, isto é próprio da imaturidade emocional.
Na verdade, isto é irremediável.
. . .e segue seu
caminho, sem
ao menos
olhar para trás.
O CIENTISTA "MADURO" TAMBÉM vs O MUNDO
A SEU MODO E BRIGA BASTANTE COM A IGREJI-
NHA DO LADO DE LA - TAL QUAL A VIZINHA
E SUA VIZINHA. LOGO, OU SOMOS TODOS IMATU-
ROS OU ISTO É ASSIM MESMO ...
Pensamos sempre que é a situação que determina o ato ou a
atitude. Muitas vezes, é o contrário - como estamos vendo. Quem
entra na situação disposto a brigar, na certa encontrará - ou produ-
zirá - algum mal-entendido. Com ou sem razão, o lobo comeu o
carneirinho . _.
51
•
•
14.
MORENO,
O PSICODRAMA
E OS
PAPÉIS
COMPLEMENTARES
Moreno é o criador do Psicodrama.
Define com precisão um papel: é uma unidade, culturalmente
aceita, de comportamento. Pai e filho, marido e mulher, patrão e ope-
rário, amigo e amiga, namorado e namorada são alguns exemplos
dos muitos papéis que a sociedade ao mesmo tempo permite, cultiva
e exige.
AINDA COM PRECISÃO, MORENO CHAMA A ESTES
PAPÉIS DE COMPLEMENTARES, O QUE SÃO DE
FATO, EM VÁRIOS SENTIDOS: UM COMPLEMENTA
O OUTRO, QUASE COMO MOLDES QUE SE ENCAI-
XAM. UM NÃO TEM SENTIDO SEM O OUTRO. UM
ESTIMULA O OUTRO. UM FORMA O OUTRO. NÃO
HÁ PAI SEM FILHO. MÉDICO SEM CLIENTE. PA-
DRE SEM "FIÉIS".
Todos os papéis são, obviamente, parciais, exigindo, se podemos
dizê-lo, em termos numéricos, o empenho de apenas metade da pessoa.
Os dois papéis formam uma unidade. Logo, cada um deles
é metade do outro:
maeido mulher.
Variando as circunstâncias, a idade, a companhia, a que hoje é
filha amanhã será mãe, aquele que hoje é empregado amanhã poderá
ser patrão, aquele que hoje domina amanhã poderá ter que submeter-se.
Na verdade, a divisão é mais sutil do que esta: o indivíduo que é
patrão e dominador no seu trabalho, pode ser em casa, diante da
esposa tirânica ou de uma filha mimada, um escravo dócil e submisso.
Parece claro que nestes termos cada papel é apenas uma pequena
manifestação da individualidade. Esta subjaz e ultrapassa a todos eles.
É como o indivíduo que escreve a máquina ou toca piano com
os dois dedos, sem jamais usar todos os dedos das duas mãos.
53
Com esta comparação creio que o tema volta a fazer-se familiar,
pondo-se em paralelo com quanto dissemos a respeito da aparência
das pessoas, e das solicitações múltiplas e divergentes presentes nesta
aparência.
"SOMOS TODOS UMA SOMA NÃO MUITO
CONGRUENTE DE MEIOS PAPÉIS".
Isto é outra definição para a couraça muscular do caráter. Toda
a psicologia da estrutura social pode ser descrita em termos de papéis
ou de couraça muscular. Os dois referenciais esclarecem de modo com-
plementar a dependência de todos para com todos.
Moreno separou os papéis sociais - aqueles que exemplificamos
- dos papéis emocionais ou psicológicos, precisamente aqueles que
Reich estudou mais de perto.
15.
LORENZ
E AS
CONDUTAS INSTINTIVAS
Subjacentes aos papéis sociais e psicológicos, encontramos as con-
dutas instintivas, a do macho e a da fêmea, na época do cio, a da
paternidade e da maternidade concebida em seus termos mais simples
e diretos, como as observamos nos animais, os comportamentos de
dominação e submissão, de ataque e fuga, de auto-afirmação e de indi-
vidualidade de um lado e, do lado contrário, a participação no grupo,
a fusão com a horda ou a coletividade.
57
..,
" §, ',,, ';"', i;.. ,~. ;';",.',.-,.:;'.: .. ' :. ", :.,:,:;',~~--;.;
~ ~i'~.Riit;..-&~:.~
Nossos princípios nos são apoio e nos elevam. O mal é que podemos cair deles.
16.
OS FUNDAMENTOS MOTORES DO
PRINCíPIO DE NÃO CONTRADIÇÃO
o animal não pode estar atacando e fugindo, ao mesmo tempo,
na mesma situação.
Nosso aparelho de movimento é extremamente complicado, deli-
cado e preciso, integrando a cada instante um número de esforços
elementares da ordem de centenas de milhares.
Cada um desses esforços tem um controle neuronal independente,
cada um desses elementos é potencialmente voluntário, potencialmente
perceptível e, via de regra, mesmo em ações bastante simples, temos
em ação algumas centenas ou milhares de tais esforços exercendo-se
simultaneamente.
Não só a integração desses esforços é um processo na certa bastan-
te complicado, a ponto de exigir praticamente dois terços do peso do
encéfalo para se realizar, como também esses esforços têm que obede-
cer a condições de equilíbrio muito estritas e difíceis.
A forma humana - fiquemos com o homem - é bastante impró-
pria para permanecer de pé.
SE FIZERMOS UM BONECO COM A FORMA E A
DISTRIBUIÇÃO DE PESO ID~NTICAS À DO HO-
MEM VEREMOS QUE BASTA UM PEQUENO EM-
PURRÃO PARA QUE ELE GAlA. ESTE EMPURRÃO,
DE OUTRA PARTE, É IMPOSTO A ESTA FORMA,
A CADA INSTANTE, POR TODOS OS MOVIMENTOS
QUE ELE FAZ.
59
Basta que levantemos o braço, que inclinemos a cabeça ou o corpo
para um lado, e já estamos comprometendo nosso equilíbrio no espaço.
Pode tratar-se de ações ligadas a objetos, carregar uma mala, andar
de bicicleta, manejar uma serra, um martelo. Pode tratar-se de uma
agitação emocional, de expressão veemente de ódio, de medo, da atitu-
de de ataque ou de fuga. A dificuldade é sempre comparável.'
São esforços muito complexos e bem organizados, a cada momento
unitários, isto é, voltados para um fim e, via de regra, capazes de
alcançã-lo. No momento seguinte esses esforços podem se inverter e
se compor de outro modo.
MAS ENQUANTO O SISTEMA
DE ESFORÇOS OSCILA,
NOS FICAMOS
.OU NOS SENTIMOS PERPLEXOS.
Sentimo-nos" sem jeito", o que, de novo, não é literário, é literal.
É o que sucede quando "balançam nosso coreto" - isto é, quándo
abalam nossas atitudes ou nosso status.
É, talvez, por isto que os comportamentos instintivos mostram
tenacidade tão acentuada. . '
São fruto de uma lenta coordenação de esforços, entendendo-se
sistema tanto no sentido de forças que se exercem em conjunto a
cada instante (atitude, postura), como conjunto de forças que se suce-
dem no decorrer do tempo, compondo uma conduta, um papel, um
gesto ou uma seqüência de gestos.
É a finalidade, sempre limitada, que limita a organização matara
e gera os papéis.
Convém compreender bem concretamente esta afirmação. Nenhum
animal
VIVE CONTINUAMENTE
E bebendo
E evacuando
E dormindo
E tendo relações sexuais
E cuidando da prole ...
TODAS ESTAS ATIVIDADES
SÃO NECESSARIAS
MAS MUITAS DELAS NÃO PODEM SE
REALIZAR SIMULTANEAMENTE.
Daí nasce a organização da conduta total como algo constituído
de elementos distinguíveis, como soma de papéis, de atitudes, de
gestos. .. de palavras.
60
17..
A MORAL
AS
AVESSAS
Insistem os defensores da chamada lei natural, que todas as socie-
dades humanas têm algum conceito de bem ou de mal, mesmo quando
este conceito possa variar de sociedade para sociedade.
Aquilo que é tido cama bom por nós e para nós, pode ser tido
como mau pelos nossos oizinbos de outra nação, de outro estado ou
cidade, bairro ou casa.
Se tomarmos a afirmação do moralista como pura descrição,
concordaremos com ele. De fato, não há no mundo sociedade humana
na qual não esteja definida alguma espécie de bem e de mal, de per-
mitido e de proibido, de desejável e de abominável.
A SOCIEDADE, TANTO QUANTO O INDIVíDUO, DIVIDE
O MUNDO. AS PESSOAS E OS ATOS EM DUAS CLASSES,
A FIM DE PERMITIR A AÇÃO COLETIVA.
Vimos que solicitações contraditórias e simultâneas são paralisantes.
Nesta divisão vai nossa organização motora e vai a organização
do comportamento (são duas coisas distintas). Como conseqüência,
vai a organização social.
Mas no indivíduo a resposta A pode ser seguida em poucos
instantes pelas respostas B e C e A de novo. Diante de um agressor
posso tentar submeter-me, depois agredir e por fim fugir.
Já a regulamentação social não tem essa flexibilidade.
Até hoje nenhuma sociedade teve sistema de controle tão preciso
e tão rápido como o sistema nervoso do indivíduo; por elas tendem
a eternizar aquilo que no indivíduo ocorre em momentos.
Sabemos bem que toda organização coletiva tende .a funcionar
sempre do mesmo modo, durante um período longo de tempo.
Parece claro que a sociedade não pode mudar seus princípios todos
os anos, muito menos todos os meses ou todos os dias. Mas vai nesta
percepção, em aparência intuitiva ou "natural", um erro fundamental
de lógica - e de humanidade.
63
18.
O UNIFORME
Até boie parece dominar a mente da maior parte das pessoas a
noção de que a sociedade implica em uniformidade de comportamento,
mesmo que esta uniformidade se limite à classe do indivíduo. Caso
contrário supomos, imaginamos ou tememos o caos.
Concebemos todas as sociedades no molde e no modelo do formi-
gueiro. Cada classe é concebida como uma casta, com aparência, com-
portamento, funções e inter-relações perfeitamente definidas e estáveis
em relação às demais classes (ou castas).
EM CADA CLASSE, SEJA ELA ECONOMICA, PROFISSIO-
NAL, RELIGIOSA OU MORAL (OS VIRTUOSOS E OS PECA-
DORES), SEMPRE SE ESPERA, EM CADA UMA DELAS E EM
TODAS ELAS, QUE OS INDIV1DUOS MOSTREM CERTAS ESPÉ-
CIES DE COMPORTAMENTOS.
A SOCIEDADE PRECISA SER ASSIM?
Em todas elas existem as coisas que estão certas, são direitas e
ficam bem, e em todas elas existem as coisas que estão erradas, não
ficam bem ou são pecado - seja o pecado moral, social, econômico
ou outro.
Daí que todos os indivíduos se sintam coagidos a só permitir a
manifestação de algumas de suas inclinações, e a suprimir a manifes-
tação de outras inclinações - todas aquelas que colidem com as
exigências de sua classe, sua casta ou sua tradição familiar.
O indivíduo passa então a manifestar o que convém, e tenta
controlar ou impedir a expressão daquilo que não convém.
Ele se faz cúmplice do sistema - ou célula do organismo - ou
cidadão de seu mundo. É um indivíduo bem integrado, que a bem
da agregação social se desintegra.
DE NOVO EMERGE O MEIO HOMEM.
65
'"
o
19.
A EXEMPLAR HISTóRIA
DO
REIZINHO VAIDOSO
Todos conhecem a história do reizinho vaidoso que pagou uma
fortuna para que dois espertalhões lhe fizessem um traje, tido e havido
como inigualável mas que não era traje nenhum.
No dia em que o reizinho saiu nu à rua, todo mundo se encan-
tou com a beleza e o luxo indescritíveis da pele do soberano, que
nada tinha sobre o corpo.
ALÉM DAQUILO QUE SUA VAIDADE O
OBRIGAVA A AFIRMAR,
e além daquilo
QUE SEUS SÚDITOS SE SENTIAM OBRIGADOS A VER.
Foi preciso a ingenuidade de uma criança para que a situação
fosse denunciada.
NO JOGO DAS RELAÇOES SOCIAIS, A MESMA CUM-
PLICIDADE DO SILENCIO E DA CEGUEIRA EXISTE
DE CADA UM PARA COM TODOS OS DEMAIS.
O contrato, que é a própria definição do homem, presta-se a
manifestações ridículas ou trágicas. O contrato é o acordo das vonta-
des em função de uma fórmula verbal aceita pelos contrastantes. Esta
fórmula, no contrato social, de regra é implícita (preconceito, usos e
costumes de cada mundo social).
O contrato é, segundo alguns estudiosos, o ato mais específico
do homem, o ato que fez o homem, a partir dos antropóides. O pri-
meiro dos contratos - o que gerou a humanidade - foi a proibição
do incesto, que é, ao mesmo tempo, aceitação da exogamia.
Como instrumento ge produzir humanidade, o contrato é deveras
prodigioso, justificando todos os louvores feitos até hoje ao livre arbí-
trio (sem o qual o contrato não tem sentido). Nada de surpreender
que força tão poderosa possa estar sujeita a usos tão maus ou ridí-
culos como os Que estamos examinando.
67
Do contrato implícito à cegueira coletiva convencional vai passo
menor do que se imagina.
É claro que os primeiros contratos humanos não foram verbais
(nem registrados em tabelião!). Logo, podemos falar de contrato ao
assinalar que ninguém pode ver o que não convém à estrutura social.
Esta cláusula é tão original (tão próxima da origem), quanto a
do tabu do incesto. Também Preud, que denunciou a este, foi vítima
daquele: preferiu não ver seus pacientes!
A VERDADE SIMPLES É QUE NINGUÉM ESCONDE
MUITO O QUE SENTE, NEM CONSEGUE DISFAR-
ÇAR QUANDO ESTA DISFARÇANDO, MAS COMO
NA PRÓPRIA CLASSE TODOS USAM O MESMO
ARTIFICIO E PRATICAM O MESMO EMBUSTE, NIN-
GUÉM DENUNCIA NINGUÉM. E A MENTIRA DE
CADA UM SUBSISTE A CUSTADA MENTIRA DE
TODOS.
Não vemos nem dizemos que o outro está nu, pois que no mes-
mo ato nos sentiríamos fazendo um strip-tease em público! Nossos
sonhos, que ainda são ingênuos, muitas vezes fazem exatamente assiml ,
Para fugir ao vexame concordamos todos em que o homem é
composto de corpo e alma, a alma que só eu vejo, que só eu sei, que
só eu conheço; e um corpo que só os outros vêem - mas que não
tem muito a ver comigo, graças a Deus! Se meu corpo fosse de fato
meu, se eu o sentisse corno tal e se eu percebesse o que ele exprime,
MINHA ALMA NÃO TERIA MAIS ATRAS
.DE QUE ESCONDER-SE.
Hoje ela, minha alma, acredita que está escondida "atrás" do
corpo.
Vezes outras ela acredita que o corpo só manifesta o que ela
permite, quer ou deseja. Deixemo-Ia na sua ilusão de rainhazinha
vaidosa, a caminhar nuazinha pela rua, convicta do seu traje suntuoso
e convicta da sua intimidade profunda - que ela pensa que ninguém
conhece.
A tese parece muito ousada - ou simplória. Mas antes de julgá-
Ia assim é preciso meditar em um dos maiores mistérios do homem
ocidental: sua relação com seu corpo.
NA VERDADE, SUA NÃO ACEITAÇÃO DE SUA APARtNCIA.
Sejamos bem concretos:
vamos sair nus, na rua. Já!
É isto.
68
Muito antes do tabu sexual, muito mais profundo e amplo, existe
em nós o tabu da nossa nudez. Nem tanto a pele. Bem mais a aparên-
cia, o aspecto exterior, o gesto, a atitude ...
Tenho para mim, inclusive, que a condenação do prazer do corpo
e da carne é conseqüência lógica - isto é, necessária _ da negação
desta aparência.
"Atrás" daquilo que eu quero (e posso mostrar - a roupa,
meus aspectos convencionais aceitáveis) não existe mais nada.
Não posso admitir que existe - ou me desclassifico socialmente!
Logo: não posso ter corpo! Ter corpo significa aceitar tudo aquilo
que por amor e temor à minha casta eu tenho certeza que não tenho.
Segundo a linguagem do asceta, a carne é o mal, é o pecado, é o
proibido ...
Ora, foi exatamente isso que dissemos até agora: quem se dê
conta do corpo e da aparência perceberá que sente em ato tudo aquilo
que mentalmente excluiu da imagem "oficial" de si mesmo.
Mas repetindo: o que eu « jogo fora" o outro recolhe. O que eu
. nego em mim o outro vê - simplesmente.
Pode-se conceber um estilo de convívio social no qual a unifor-
midade do grupo não seja obrigatória?
69
I 20.
O MAL DO BEM
E DO MAL
:g preciso destruir a moral para que a moralidade se realize.
Só no dia em que os homens abandonarem critérios gerais
ditos "universais" - de bem e de mal, é que poderão todos mani-
festar aquilo que são, sem se retalharem e se dividirem - interior
como exteriormente.
SO ENTÃO AS CLASSES SOCIAIS DESAPARECERÃO.
Só então, numa sociedade amplamente permissiva, poderão os
indivíduos viver todas as suas aptidões e inclinações, sem estabelecer
entre elas prioridades suspeitas, desde que toda escolha de uma implica
em sacrifício da outra, desde que toda realização de uma implica na
supressão ou mutilação do seu contrário.
SE O PRIMEIRO DEVER DO HOMEM É A REALI-
ZAÇÃO DE SI MESMO ATÉ SEU LIMITE, ENTÃO
TODA SOCIEDADE UNIFORMIZANTE É UM PECA-
DO IMPERDOAVEL. OU UMA CONTRADIÇÃO INSO-
LÚVEL, ISTO É, UMA PARALISIA MULTIPLAMEN-
TE RECIPROCA E ESTRUTURADA.
Ainda hoje é grande o número de pessoas a acreditar que a moral
do "fazer a própria vontade" é uma coisa fácil, é a linha de menor
resistência, a vertente da decadência e da frouxidão moral. Só pode
pensar assim quem nunca tentou fazer a própria vontade até o limi-
te - nem agüentou as conseqüências!
Não temos em nós - aparentemente não temos - a força, a
grandeza e a duração dos
GRANDES PRINCIPIOS
que são a
LEI DE TODOS CONTRA TODOS.
Por isso nossa posição individual é frágil, incerta e pequenina _,
é difícil de sofrer. Por isso renunciamos a nós mesmos, à nossa fragi-
lidade, "maldade" e pequenez.
Que a Grande Autoridade cuide de nós. Que os Grandes Princí-
pios nos protejam!
A norma social nos alivia ao absorver e consagrar nossa incerteza,
devolvendo-a logo sob a forma de Bem e Mal Coletivo, de Obrigação.
Por isso aceitamos a moral de todos - do grupo. Porque ela
elimina incertezas individuais pungentes e insolvências emocionais
difíceis de sofrer.
71
EU SOU UMA ILHA E OS OUTROS SÃO O MAR..
21.
MINHA VONTADE
EO
OUTRO
Não se pense que "fazer a própria vontade" exclua ou destrua
ao outro. O outro está sempre aí - multidão inumerável que me
envolve do primeiro ao último instante da vida. Que me envolve
por fora e me invade por dentro. Tudo o que sou e faço se formou
e acontece na relação com os outros. Tudo o que eu faço tem conse-
qüências - dentro e fora de mim. A vontade própria não é o fim
da norma, nem do outro.
73
22.
A MALDIÇÃO
DA
ESTRUTURA DIVIDIDA
É a estrutura social que mantém a tortura da carne!
Explico-me: vimos bem o quanto são múltiplas e discordantes
as expressões emocionais das pessoas, suas atitudes, suas faces, seus
gestos.
Vimos também o quanto esta discordância decorre do fato de
todos nós querermos manifestar a qualquer preço aquilo' que parece
conveniente, e de tentarmos todos esconder aquilo que parece impró-
prio, inadequado ou errado.
QUANDO, PORÉM, POR INJUNÇÃO SOCIAL, EU
ESCOLHO ALGUMA COISA DE MIM MESMO, PASSO
IMEDIATA E IRREMEDIAVELMENTE A COBRAR DA
SOCIEDADE O SACRIFíCIO QUE ELA EXIGIU DE MIM.
Sinto-me mutilado, com direito a pensão e privilégios. Passo a
uma atitude básica de dependência em relação à autoridade consti-
tuída, que de algum modo reúne ou resume em si a força da estru-
tura social. Passo imediatamente a implorar ao Deus que me mutila
- e a odiá-lo.
Viver estes dois elementos inevitáveis é difícil - senão impossível.
Como viver duas atitudes tão contrárias como a de adoração e a
do ódio?
O que acontece é que nós imediatamente projetamos a metade
suprimida de nós mesmos, e passamos todos a caçar bruxas. Crimi-
noso, anti-social e perigoso passa a ser o vizinho, o parente próximo,
o patrão, o Governo, o negro, o bicha, o maconheiro e os outros
bodes expiatórios que todos nós inventamos a todo instante, para
que eles carreguem em si aquilo que nós temos que negar em nós
mesmos.
Nenhuma sociedade atual sobreviveria sem bodes expiatórios, O
genocídio dos judeus além de fato é símbolo.
Enquanto aniquilamos aqueles que são culpados, pioram as rela-
ções sociais.
Porque os culpados não são culpados - claro.
Porque culpados são todos - somos todos -, claro.
75
Mas também somos vítimas - todos.
Ou aprendemos todos a sofrer como vítimas - que somos;
ou seremos todos vítimas termo nucleares .
Não sou eu o bom e ele o coitado - ou o f. da p.
Somos os dois coitados.
Ef.dap ...
Esta a tragédia, a comédia e a perplexidade. O capitalista é tão
coitado quanto o trabalhador e o trabalhador é tão f. da p. quanto o
capitalista. O russo é tão desgraçado quanto o americano que é tão
f. da p. quanto ele. Ou entendemos assim, ou continuaremos a fabri-
car a interminável tragédia que é a história da humanidade.
De onde nasce o temor de perseguição que reside em todos -
se aceitarmos os achados centrais de M. Klein?
ENQUANTO APOIAMOS TODOS A LEI DE TODOS,
SOMOS TODOS PERSEGUIDORES, JUíZES E POLICIAIS
DE TODOS. PRINCIPALMENTE CARRASCOS.
Ninguém pode fazer diferente.
De onde vem, ainda, a profunda sensação individual de que
temos todos os direitos, senão do fato de termos nos mutilado para
sempre - por imposição de todos?
Se sou mutilado assim, então tenho o direito de enca)TIpar, con-
quistar e possuir o máximo que eu puder. Eles, os outros, não são
meus inimigos?
Por que hei de tomá-I os em consideração?
Não é difícil perceber que estamos generalizando alguns achados
básicos da psicanálise.
Até onde pôde, a psicanálise limitou-se à família, que é instru-
mento social de transmissão automática das pressões sociais, que
perpetua as classes e fabrica os cidadãos. .
Se o neurótico subsiste e continua neurótico, é porque a estru-
tura da família foi interiorizada por ele, é porque a estrutura social
é análoga à familiar.
DEIXAR DE SER NEUROTICO - SE, E ATÉ ONDE FOR
POSSíVEL - É DEIXAR A ESTRUTURA SOCIAL E É PASSAR
A EXISTIR EM OUTRO MUNDO.
SOZINHO.
76
,'."
• •
23.
O MISTÉRIO
DA
SOLIDARIEDADE ANTAGôNICA
'o MISTÉRIO É ESSE: PRECISO DO MEU INIMIGO POR-
QUE ELE É METADE DE MIM. SEM ELE NÃO CONSIGO CON-
CEBER-ME E SEM ELE NÃO SEI AGIR.
SO SEI AGIR CONTRA ELE - O INIMIGO CUJA EXIS-
T:hNCIA ME ORGANIZA, ORIENTA E ANIMA.
MEU IRMÃO - APESAR DE TUDO E POR CAUSA DE
TUDO.
79
_ - ilfl"
,~
AQÚI·;~·~
. TUDO:
QUE NEGO
. EM MIM
E PONHOEM
voee:
- i--
1111111'
,. .c.
24.
EPITÁFIO
AQUI JAZ
TUDO QUE EU NEGO
EM MIM
E PONHO EM VOCÊ
É assim que são geradas e assim se mantêm as forças de repul-
são da estrutura social, tão necessárias para a manutenção desta estru-
tura, quanto a pressão das necessidades comuns, e a atração da soli-
dariedade humana. Ficamos todos imobilizados a uma certa distância
uns dos outros e compomos assim, em uma analogia inevitavelmente
molecular, uma estrutura, isto é, uma forma que se mantém indefini-
damente, à custa de forças de atração e repulsâo equilibradas entre si.
PUDÉSSEMOS NOS ASSUMIR
A METADE REJEITADA DE NOS MESMOS,
E IMEDIATAMENTE MODIFICAR-SE-IA
TODA A ESTRUTURA SOCIAL.
Creio - é um ato de fé - que deste modo, e só deste modo,
nos será dado transformar uma estrutura rígida, cristalizada, opressiva
e ameaçadora, numa organização capaz de crescimento, de fato viva,
de fato cálida, de fato amorosa.
1",,",1'  Amar o outro é a primeira condição da liberdade. Para amar
é preciso aceitar a si próprio e depois aceitar o outro - o inimigo
tradicional. A aceitação começa
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O processo é dialético e interminável.
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O espelho-magico-jose-angelo-gaiarsa

  • 2. C1P-Brasil. Ca talogação- na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP Gaiarsa, José Ãngelo, 1920- GUle O espelho mágico : um fenômeno social chamado corpo e alma / José Angelo Gaiarsa. - São Paulo : Surnrnus, 1984. 1. Comunicação - Aspectos sociais 2. Relações interpessoais I. Título. 84-0296 17. CDD-301.1 18. 301.14 Índices para catálogo sistemático: 1. Comunicação Aspectos sociais Psicologia social 301.1 (17.) 301.14 (18.) 2. Relações interpessoais : Comunicação : Aspectos sociais 301.1 (17.) 301.14 (18.) o espelho magtco Ulll fenômeno social chamado corpo e âhna • / Jose â~gelo gaIarsa ~ su",",us~edito'iBI
  • 3. OE'SPELHO MÁGICO Copyright © 1973, 1984 by José Ângelo Gaiarsa Capa: Claudio Rocha Projeto Gráfico e Ilustrações: Claudio Rocha e Suzana Barros Freire com a cooperação criativa do Autor. A escultura moderna que aparece na capa, em foto de J. A. Gaiarsa, é de ' Marta Minujin (nascida em 1943, atuando na Argentina), Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio e sistema, sem o prévio consentimento da Editora, Direitos desta edição reservados por SUMMUS EDITORIAL LTDA. Rua Itapicuru, 613 - cj. 72 05006-000 - São Paulo, SP Tel.: (011) 3872-3322 Fax: (011) 3872-7476 http://www.summus.com.br e-mail: summus@summus.com.br Impresso no Brasil ,.
  • 4. tfJ .'',; ÍNDICE 1, A FACE ESTRANHA QUE É A MINHA ,.,.,., .. , ... ,'., .... ", 8 2, O ACONTECER E AS CATEGORIAS ."".", .. ", .. ,.' .. ",., 13 3. AS PALAVRAS E A ETERNIDADE .... " .. " .... ,,,'.,,,, '...... 17 4. TUDO COMEÇA NA INFANCIA (FREUD) ".... .. , .. ". .. 19 5 O VíCIO DA PALAVRA " ... " ... """''',,, . .,,, ,,,,,... 23 6. O ESPELHO MÁGICO DA RAINHA ",,,,,,, .. ,,............. 25 7. O íNTIMO ESTA POR FORA! """, " "." ." ." 29 8. CORPO E ALMA "."",,,,,,, .. ,, .. ,,,, .. ,, ,, ,;,,, '31 9. QUEM VP..CARA V~ CORAÇAO? .. , .. ,., .... ,.,.,."""".,." 33 10. O INCONSCIENTE VISíVEL (REICH) """".,.,.,."".,.,., 37 11. HAMLET E A PERPLEXIDADE .: ... """".,.,.,.,. ,," . . . . . .. 41 12. LEI DA DESGRAÇA IRREMEDIÁVEL .. "",,,,,, ,,.:,,.. 47 13. O CAVALEIRO ANDANTE ."".,,,., .. .,,,,, ,,,, ,,,,. 48 14. MORENO, O PSICODRAMA E OS PAPÉIS COMPLEMENTARES,. '53 15. LORENZ E AS CONDUTAS INSTINTIVAS , .. ,., , ,. 57 16. OS FUNDAMENTOS MOTORES DO ,PRINCíPIO DE NÃO CON- TRADIÇÃO . , , .... , . , .. , , , .. , . , , , , . , .... , , . , , , , , , . , , . , . , , . , . " 59 17. A MORAL AS AVESSAS " , .. , .. , .. ", .. ", .. ,............. 63 18. O UNIFORME ,.,,,., , ,, : , ,... 65 19. A EXEMPLAR HISTÓRIA DO REIZINHO VAIDOSO '''.... 67. 20,. O MAL DO BEM E DO MAL , , , " , :. 71 21. MINHA VONTADE E O OUTRO , .. " ,:, , ,.. 73 22. A MALDIÇÃO DA ESTRUTURA DIVIDIDA , ,., ,;.",. 75 23. O MISTÉRIO DA SOLIDARIEDADE ANT AGdNICA , .. " , 79 24, EPITÁFIO " , , , , , , .. , , _. . .. . . . .. 81 1
  • 5. o 1. A FACE ESTRANHA QUE É A MINHA Meu rosto me é mais estranho que meu íntimo. Mais fácil me é aceitar um pensamento como meu, do que aceitar (ou sequer perceber) que ao dizer "sinto muito", a expressão de meu rosto era de completa indiferença. o o r"
  • 6. Sou apresentado a uma pessoa em reunião social. Converso com ela meia hora. Vejo mais do seu rosto, durante este tempo, do que vi do meu rosto durante o ano inteiro. Não só vi muito mais, como vi de outro modo. Eu reparei no seu sorriso, no seu modo de olhar, prestei atenção no gesticular de suas· mãos, e nas posições de seu corpo. Tudo o que vi influiu no nosso relacionamento; mas se, ao me despedir, alguém me perguntar o que achei da pessoa, resumo minha impressão em frases curtas: NO DIALOGO COM O OUTRO QUEM ESTA DE COSTAS É VOCf:, QUE NÃO SE vs. simpático chato legal que pretensioso um coitado que matraca. Se um amigo - ele também um chato! - insistir em saber o que percebi durante a conversa, terei muita dificuldade em qualificar os movimentos, os gestos, e os tons de voz. Se por acaso o diálogo entre eu e o estranho for filmado e eu tiver a oportunidade de ver o filme, o estranho continuará estranho para mim; o filme mostrará uma porção de expressões da pessoa que vi, mas que na certa esqueci. Tanto o diálogo social como o filme nos demonstram um fato impor- tante: percebemos bastante da expressão não verbal dos outros, mas temos consciência vaga e obscura desta percepção que comporá nosso julgamento e determinará nossa atitude frente à pessoa. Durante toda a conversa, porém, o mais estranho dos rostos que participava dela era o meu - sem a menor sombra de dúvida. Se ao outro eu percebia de forma global e pouco distinta, de mim mesmo só percebia uma coisa: aquilo que eu pensava enquanto ele falava ou eu falava. Tudo o mais, meu sorrir, meu gesticular, meu olhar, escapava, quase de todo, à minha percepção - mas não à dele! ELE ESTAVA LENDO MEU CORPO Podemos afirmar este paradoxo em relação a um encontro e a uma conversa de meia hora com um estranho: o rosto dele se fez quase .farniliar para mim, e o meu rosto se fez quase familiar para ele, ao longo da conversa, mas meu rosto, para mim, e o rosto dele, para ele, continuam tão estranhos quanto sempre foram! Falar consigo ou falar sozinho são expressões familiares, mas "conversar com o próprio corpo" é uma declaração estranha. NINGUÉM CONVERSA COM SEU PROPRIO CORPO ... 10
  • 7. 2. O ACONTECER E AS CATEGORIAS ~ o acontecer é muito mais amplo do que o retrato falado que dele fazemos - depois que ele aconteceu. As categorias são verbais e o acontecer, além de ser verbal, é também visual, afetivo, condicionado pela experiência passada. Depen- de do lugar, do momento, das pessoas. O acontecer é, 'também, muito mais rico do que as palavras que dizemos enquanto o acontecer se desenrola. No entanto, porque a palavra é fácil, porque somos animais irre- mediavelmente tagarelas, PORQUE A PALAVRA FEZ AO HOMEM MUITO MAIS DO QUE O HOMEM FEZ À PALAVRA, por tudo isso e por muito mais, preferimos, sempre que não seja absolutamente indispensável proceder de outro modo, acreditar que as palavras se confundem com as coisas, e que o mundo é uma vasta sinfonia de significados verbais e mais nada. O mundo é uma soma de significados sem substância: um dicio- nário! Além disso, "O ACONTECER É GLOBAL E SIMULTANEO. AO PASSO QUE O VERBAL É SUCESSIVO E LINEAR ... " MarshalI McLuhan Muitas coisas acontecem a cada instante. Se fôssemos descrever, com toda a precisão, um instante do acontecer, facilmente escrevería- mos um livro. Para ler este livro, de outra parte, levaríamos tempo deveras enorme, se comparado com a duração do instante em que o acontecer aconteceu. As palavras representam muito pouco do fato e, além disso, colo- cam todos os fatos dentro do mesmo sistema de coordenadas. TUDO FICA IMENSAMENTE SIMPLIFICADO. TUDO FICA IMENSAMENTE FALSIFICADO. 13
  • 8. ~ l--.- ,. o o o o Quanto tempo você demora para ler o texto? Quanto tempo você demora para ver a figura? o menino O menino chama-se Joãozinho A bola Joãozinho corre atrás da bola O cachorro O cachorro chama-se Leão O por tão A cerca O portão completa a cerca J oãozinho está na frente do portão A árvore A árvore está dentro do cercado o
  • 9. 3. AS PALAVRAS EA ETERNIDADE Há milênios, os homens descobriram uma classificação dita fundamental das coisas: as transitórias e as "eternas" ( ".. J permanentes, seguras ... Na verdade, a distinção tem mais que milênios. Começou com os primeiros balbucios humanos, porque as únicas coisas estáveis do mundo são as palavras, que podemos repetir, sempre iguais e sempre as mesmas, quando e quanto nos aprazo Podemos descansar nas pala- vras, confiar nas palavras, obter delas a mais profunda e embaladora ilusão de certeza, de segurança e de permanência. A Lei, os Princípios, o Regulamento -. eis a eternidade realizada. TUDO O MAIS MUDA, CAMINHA, TRANSFORMA-SE, EVOLUI. De outra parte, se a cada momento que abrirmos os olhos, perce- berrnos com clareza todas as diferenças que ocorreram em torno de nós e dentro de nós durante este instante, viveremos em pasmo e em perplexidade sem fim. RECÉM-NASCIDOS A CADA MOMENTO! CALEIDOSCOPIOS QUE SE TRANSMUDAM A CADA INSTANTE. NÃO SERIA LOUCURA? Algo precisa parecer-nos estável: ESCOLHEMOS AS PALAVRAS. É muito importante manter a ilusão de que as coisas são perma- nentes. Na verdade, é muito importante transformar, por um ato de adoração, coisas tão transitórias quanto as demais em coisas "eternas". Nosso ato de adoração eterniza as coisas. Assim nasce a Iiturgia. É nosso medo que nos faz adorar. AD + ORAR = Recorrer a alguém. Nosso prêmio é a ficção de segurança. "Nada mudou. Sou sempre eu!" ETERNO COMO A ROCHA. VOLÚVEL COMO AS ONDAS. (MAS AS ONDAS ACABAM COM A ROCHA). 17
  • 10. 4. TUDO COMEÇA NA INFÂNCIA (FREUD) Bem antes de aprendermos a falar, porém, já sabemos muito bem o que mamãe quer dizer com o olhar e com o tom de voz, o que significa o gesto de nosso irmão, como fazer para- controlar as visitas - tudo isso sem abrir a boca! Com sorrizinhos, bater de palmas, gargarejos, volver de cabeça e movimento dos olhos, conversamos, ativamente, com o mundo que nos cerca, desde poucos meses de idade. O corpo fala e os olhos ouvem, muito antes de a boca aprender a articular palavras. É de se supor que, já com um ano, sabemos bastante bem qual o estado de espírito de mamãe, apenas ouvindo seu tom de voz, apenas sentindo sua maneira de nos retirar do berço e de nos carregar nos braços. Só vários anos depois é que a palavra começa a fazer-se impor- tante para nós; a palavra enquanto articulação, significado, ordem, súplica. Mesmo mais tarde, em nossa vida, -sabemos bem como devemos proceder diante do patrão, do professor ou do papai, apenas perce- bendo, num relance, a expressão do rosto de cada um deles, a maneira de gesticular ou até o ruído da marcha destes personagens importantes. Ouvimos com os olhos. Note-se que os estados de ânimo variam facilmente e o bom filho sabe o que papai está pensando, até sem olhar para ele. Quando papai chega em casa não é bom dizer que, com a bola, quebrou a vidraça do vizinho. Uma hora depois, quando papai já desabafou o mau humor, mudou de voz, de cara e de roupa, a confissão pode ser feita com risco bem menor ... SE SO AS PALAVRAS TIVESSEM SIGNIFICADO ... 19
  • 12. 5. O VíCIO DA PALAVRA o vício da palavra, portanto, não é apenas congênito - é here- ditário. Só se faz vício, realmente, lá pelos 8, 10 ou mais-anos, época em que conseguimos falar de verdade, com fluência, empregando as palavras no sentido em que os adultos do nosso mundo as empregam. É neste período que incorporamos um código geral de significados. Antes disso, a palavra era uma porção de coisas, era exclamação, música, brinquedo, poema, meio de conseguir atenção de parecer inteligente, de impressionar gente grande. Era tudo o que se queira, menos palavra. 23
  • 13. 6. O ESPELHO MÁGICO DA RAINHA Todos os espelhos são maqrcos. Mostram apenas o que queremos ver. ------- PONHA UM ESPELHO NO RETÂNGULO EM BRANCO. I I I I I I I I I I OLHE. VOC~ TEM REALMENTE PRAZER EM CONHECER-SE? CONVERSE COM ELE. PERGUNTE COMO ELE SE CHAMA ... -------- Quando olhamos para o espelho, fácil e inconscientemente desfazemos expressões que poderiam desdizer das que os outros vêem. Se prestássemos atenção àquela face, na certa estranharíamos: "Quem é?" Mas ninguém faz isso. Já se viu alguém ficar se olhando, no espelho, apenas para se conhecer? Que vergonha! É coisa de esquizofrênico. Além disso é narcisismo! É indecente ficar olhando tanto tempo para si mesmo... Por isso olhamos pouco para o espelho. Quando -olhamos, fazemos a cara que nos apraz ou vemos a cara que nos convém. Quando não, olhamos 25
  • 14. para ver se a barba está comprida, se o cabelo está despenteado, se a pintura ficou como devia. Sempre olhamos para o espelho com alguma intenção e, por isso, nada mais vemos fora desta intenção. A intenção é um seletor de estímulos. Por isso o espelho não serve para nos mostrar nossa face que, lembre- mos, é uma estranha face para nós. O espelho não serve para descobrirmos o criminoso. E a fotografia? Será que serve? Tomemos o álbum de retratos. Quando vemos uma fotografia nossa, logo vamos dizendo: "Não parece comigo. Não sei de quem é esta cara. Não sou fotogênico. Olha meu cabelo desarrumado! Que nariz feio que eu tenho. Isto é lá fotógrafo!" E a voz? Numa hora de brinquedo, gravamos a conversa das pessoas e a nossa também. Em seguida, ouvimos o gravador e continua o rosário: "Que voz esquisita! Minha voz não é assim. Nunca imaginei que minha voz fosse assim. Que voz feia, não gosto desta coisa. É assim que falo?" Por fim, o acaso feliz ou um amigo rico nos permitem ver a nós mesmos numa película de cinema ou em vídeo-tape. Aí a coisa alcança níveis absurdos ... Nossa aparência pode, num instante, produzir em nós- desvanecimento de complacência e, em outro momento, agudo sentimento de vergonha, de constrangimento ou de estranheza. Por isto evitamos todo feedback. Positivamente: não nos conhecemos NEM POR FORA. E PRETENDEMOS CONHECER-NOS POR DENTRO. PIOR DO QUE 1550: VIVEM TODOS CONVICTOS DE QUE O QUE APARECE POR FORA - AS APARENCIAS - NAO TEM NADA 11 VER COM A PESSOA, NAO É DELA, NEM É ELA! DE QUEM É, ENT AO? 26 'D/~lJTTf:
  • 15. 7. O íNTIMO ESTA POR FORA! Depois de um encontro ou de uma conversa, sempre achamos que dissemos exatamente o que queríamos. Nove vezes em dez, esta convic- ção é redondamente falsa. Dissemos apenas "nossa opinião", isto é AS PALAVRAS QUE TÍNHAMOS EM MENTE. Não cuidamos do gesto, nem do tom de voz, nem do olhar, nem de nada ... Sempre que temos que falar com alguém importante cuidamos um pouco destas coisas e então sentimo-nos mal, meio presos, meio atores. Este mal-estar é boa medida do que nos custa TOMAR CONSCI~NCIA de nossa expressão não verbal. As coisas pioram se considerarmos que a convicção de termos di to "EXAT AMENTE O QUE PENSAMOS" é implícita, é uma certeza íntima que as pessoas nunca ou quase nunca põem em dúvida. Por vezes, o interlocutor não ouviu uma palavra sequer. Fez dos olhos um vídeo-tape e nos fotografou por dentro pelos gestos. ENQUANTO AS PESSOAS FALAM FACE-A-FACE, O GESTO E A VOZ DIZEM MAIS E DIFEREM MUITO DO QUE AS PALA- VRAS ESTÃO AFIRMANDO - E DO QUE A PESSOA CONSI- DERA SUA INTENÇÃO. .' ~;".. O mal-entendido se faz irremediável, porque se mostrarmos às pessoas o jeito com que elas falam ou gesticulam, podemos ter quase certeza de fazer inimigos. "Sua voz era prepotente ", "seu olhar era duro", " seu sorriso era de pouco caso", " seu olhar era de desconfiança" são pequenas frases que podem iniciar uma guerra. 29
  • 16. 8. CORPO E ALMA Por que as coisas se passam assim? Por que a palavra é tão boa para disfarçar? Porque queremos crer, porque precisamos crer, que não mostramos aquilo que não fica bem, que não é elegante, que é mau ou que é feio. Esta divergência entre o que eu acredito estar mostrando e o que o outro vê, gerou uma das dicotomias mais falsas e mais patéticas de toda a história do pensamento humano - a noção do corpo e alma: ALMA É AQUILO QUE EU ACHO QUE ESTOU MOSTRANDO. CORPO É AQUILO QUE O OUTRO V~ DE MIM. Quase sempre há entre as duas divergência tão acentuada que só pode ser "explicada", logicamente, pela existência de duas coisas, diferentes "por natureza" e discordantes na intenção: corpo e alma, precisamente. Em termos modernos falamos de objetividade e de subjetividade. A distinção continua válida; na verdade, continua a mesma. Todos são muito ciosos daquilo que pensam, que sentem e do que dizem; quase ninguém tem a menor noção daquilo que mostra enquanto está pensando, sentindo ou dizendo: objetividade e subjetividade, dois mundos à parte! Contudo,. só posso conhecer minha subjetividade pelo retro-efeito de minha objetivação. OEU resulta dos feedbacks sociais de nossa ação. 31
  • 17. 9. QUEM VÊ CARA VÊ CORAÇÃO? Vê. Vê muito bem. Basta olhar. Cara é o corpo e coração é o íntimo. Alguns sinônimos nos auxiliarão. Nos romances fala-se do íntimo; nos textos de filosofia existencial, do inefável, do profundo; nos textos de psicanálise fala-se do inconsciente, também tido como profundo, misterioso e mágico. O corpo, a face e o gesto são sempre minimizados como se fossem propriedade exclusiva de mímicas, de palhaços ou de atores, alguma coisa subalterna, ligeiramente cômica e, acima de tudo, alguma coisa com a qual eu faço o que eu quero. Nada mais falso do que esta convicção. AS PESSOAS T~M CONTROLE PRECARfSSIMO DAS SUAS EXPRESSOES NÃO VERBAIS. QUASE NIN- GUÉM PERCEBE OS MOVIMENTOS QUE FAZ NEM AS EXPRESSOES QUE TEM NA FACE. NINGUÉM ACHA IMPORTANTE CONHECER O PRÓPRIO ROS· TO E NINGUÉM SE DA CONTA DA IMPORTÂNCIA DESTAS COISAS. MAS PARA O OUTRO NOSSA FACE É SEMPRE MUITO IMPORTANTE! É PARA ELA QUE ELE OLHA O TEMPO TODO. ~1f~aJlli~~~~~:Wi1%~t(.~~{ç~j~~~~;~.ki~~~%~~~·:;;;.f$~~~jt.~0~1l1:. Os limites desta situação tragicômica podem ser encontrados na psica- nálise. Pretende ela investigar as profundezas do ser humano e a pri- meira coisa que faz, a fim de realizar este propósito, é afastar delibera- damente os olhos daquilo que está aí - o pobre corpo de sempre! As projundezas do ser humano são aquilo que transparece nas palavras - nem mais nem menos. Este o princípio prático da psicanálise. As palavras são o espelho do SER! Nas palavras humanas existe 33
  • 18. LETRA E MÚSICA A letra comunica muito do processo intelectual e a música comunica muito do processo emocional. Mas a palavra continua e continuará para todo o sempre sendo apenas parte do homem. Se não olharmos para seu corpo, certamente, não o veremos, nem saberemos como é este homem. Além disso, sem ver a face e o corpo, nem sequer pode- mos compreender bem o que a pessoa está dizendo, pois é de forma instintiva que captamos o sentido da palavra pelo modo (e a situação) como a palavra é dita. Enfaixemos o corpo e a alma emudece. Aqui é importante assinalar o fato de uma ciência tão nova, ainda com grande prestígio, nascida do desejo idealista de compreender bem o homem inteiro, acabar engolida pelo preconceito milenar de corpo e alma ... Também para o psicanalista, a alma é aquilo que se ouve através da palavra, e o corpo é aquilo que não importa muito. PERFEITO ASCETA, AMANTE DO ESP1RITO E CHEIO DE DESPREZO PELA CARNE ... Quando movimento social da envergadura da psicanálise embarca em omissão desta grandeza, podemos suspeitar de que o preconceito corres- pondente é deveras profundo, significativo e atuante. Por que o homem não quer saber de seu corpo? Por que não quer se ver sequer no espelho? Quem transformou o corpo em PECADO? 34
  • 19. 10. O INCONSCIENTE VISíVEL (REICH) CONTUDO - SE BEM OLHARMOS TODOS ESTAMOS NUS, NA VOZ, NO GESTO, NO ROSTO, NAS MAOS, NA POSTURA, NO OLHAR ... Reích aprendeu a ver e ensinou a ver. Ele pôde mostrar que nós escondemos pouco e nada de nossos sentimentos e intenções. Nossos sentimentos alteram nossas expressões e nossos gestos, ou provocam em nós esforços destinados' a contê-los, controlá-Ias, escondê-los. Para quem tem olhos de ver) todos estão NUS. DE QUALQUER MODO, OU VEMOS O QUE A PESSOA SENTE, OU PERCEBEMOS O QUE ELA ESTA PRETENDENDO ESCONDER. COM ALGUMA PRATICA, PERCEBEMOS COM CLAREZA SUA MANEIRA DE ESCONDER AS COISAS - O QUE, AFINAL, É UM MODO DE REVELAR-SE. Quer isso dizer que todas as pessoas vivem sempre cheias de más intenções que escondem a todo instante? NOSSO INTERIOR SERA UMA LATA DE LIXO? (Lida ingenuamente a Psicanálise nos diz que sim ... ) Convém aprender a distinguir nas pessoas as atitudes estáveis e as atitudes que surgem; igualmente, convém distinguir os gestos este- reotipados, sempre os mesmos, muito característicos da pessoa, e os gestos espontâneos que aparecem ou que nascem aqui e agora. Com um pouco de prática a distinção não é muito difícil. Quase tudo o que é estável ou estereotipado desperta pouca ou nenhuma ressonância no observador atento; aparece como formalismo, hábito, rotina. Mas é preciso cuidado nestas coisas: se o observador atento, apesar de atento é ele também rotineiro ou formal, poderá achar o outro muito espontâneo e autêntico! 37
  • 20. Ainda, se vejo alguém pela primeira vez, vejo-o como novidade. Só ao reencontrá-Ia ou ao conviver com ele vou percebendo o quanto ele se repete. Mas para ver - note-se - é preciso olhar ... Então, de novo: nossos complexos e recalques estão POR FORA, no jeito. Por isso não queremos ver nem saber de nosso jeito: Quando se fala de pessoas que observam ou são observadas, convém não embarcar na ilusão de que o observador, pelo fato de ser observador, está isento de si mesmo. Ninguém está isento de si mesmo e só podemos ver o outro através dos nossos olhos e dentro de nossa perspectiva. Vemos o mundo com nossa experiência. Isto é irremediável. Reich mostrou ainda, com cuidado e precisão, que as atitudes mais estáveis das pessoas e seus gestos estereotipados são verdadeiro resumo da história vivida por elas. Quem teve pai despótico desenvolve atitudes crônicas ou de rebeldia ou de submissão. Quem vem a cruzar com esta pessoa já adulta, ao vê-Ia submissa saberá da sua história - sem palavras. Quem teve mãe instável, cheia de repentes amorosos e agressivos, pode desenvolver modos de borboleta que adeja sempre e nunca pousa. O modo de ser contém em si a história de sua origem. Ao ver o modo " podemos compreender a pessoa. Basta olhar. Olhar bem. . Reich denominou ao conjunto destes elementos estáveis da expres- são não verbal de "couraça muscular do caráter". Couraça porque protege, defende, esconde (e revela). Muscular porque feita ou consti- tuída de conjuntos de tensões musculares cronicamente mantidas. Do caráter, porque compõe o jeito da pessoa, porque são características da pessoa e porque influem em tudo o que a pessoa faz, pensa, sente, e diz. PARA NÃO VER NOSSO íNTIMO! Porque nosso' aspecto exterior é retrato acabado de nosso íntimo, ele se mostra quase sempre com contradições. Posso, em certo momen- to, sorrir amistosamente enquanto olho ao outro com dureza. Meu gesto de mão pode ir até o outro enquanto faço um movimento de afastamento com o corpo. Posso olhar alguém nos olhos, direta e francamente, enquanto meus ombros estão apertados (de medo) e mi- nhas pernas se plantam no chão com força (preparação para o ataque). MAS SE MOSTRO O QUE SOU, COMO SOU, O QUE SINTO E O QUE VIVI, ENTÃO, MEU "íNTIMO" ESTA POR FORA! MEU CORPO É MINHA ALMA. POR ISSO NÃO QUERO SABER DE MEU CORPO. PORQUE ELE É EU. PORQUE ELE É MUITO MAIS DO QUE EU ... SE O CORPO NÃO FOR MEU, DE QUEM SERA? Tem mais - do mesmo. Todo mundo sabe o que significa IDENTIFICAÇAO com pai, mãe, herói de cinema, coitadinho, machão, etc ... Todo mundo sabe, porque identificação a gente vê, no jeito, no gesto, na cara, "é como o pai", "ela está querendo ser a Brigite ", "você sempre se faz de vítima" ... A identificação não é um "mecanismo neurótico profundo", nem "complexo inconsciente", que só se evidencia com análise de 5 anos. A identificação "está na cara". Basta ver. ,DI~~m. PARA A PESSOA FORMAL O FORMALISMO É MUITO ESPONTÂNEO, 38 39
  • 21. 11. HAMLET EA PERPLEXIDADE Digamos que temos algum negócio, um passeio, um amor, uma briga ou simplesmente uma conversa com uma pessoa. Digamos tam- bém que, no momento do encontro, ou poucos instantes depois, nos damos conta das várias expressões da pessoa, e nos apercebemos das várias intenções contidas em sua posição e no seu modo de gesticular. Que faremos? Que faremos se os olhos suplicam e se a boca despreza? Que faremos se os olhos desafiam, se os ombros estão espre- midos de medo e se o punho da mão direita se fecha com força - como se pronto para um murro? QUE FAREMOS SE A PESSOA NOS CONTA SUA ÚLTIMA DESGRAÇA COM UM TOM DE VOZ CHO- ROSO DE ViTIMA. SE SEUS OLHOS NOS OBSER- VAM COM DESCONFIANÇA, SE SEUS LABIOS NOS AFRONTAM COM UM VAGO SORRISO ZOMBETEI- RO, SE SEU PEITO INFLADO E A DIREÇAO DA FACE - QUE NOS OLHA DE CIMA PARA BAIXO- LEMBRAM UM ORGULHOSO, SE O SEU OMBRO ESQUERDO FOGE LIGEIRAMENTE NUM MOVI- MENTO DE ACANHAMENTO. A QUAIS E A QUAN- TAS DESTAS INTENÇOES IREMOS RESPONDER? Faremos exatamente o que faz o estrábico quando vê dois mundos: SUPRIME UM DELES. Se não fizesse assim o estrábico não conseguiria se mover. Nem nós. Ninguém sabe como o cérebro, a mente, a consciência ou seja lá o que for, consegue suprimir metade ou mais das coisas que percebemos. Não sabemos como, mas o fato é muito evidente, respondendo pela alienação de todos. Todos estão alienados de algumas coisas ou de algum modo. 41
  • 22. Como nos será dado compor uma resposta que responda simul- tânea e adequadamente a solicitações tão discordantes? É muito difícil estar engajado inteiro no aqui e no agora, perce- bendo "tudo o que há para perceber" (Chardin) Só os iluminados o conseguem - às vezes. Todos os demais suprimem alguns ou muitos aspectos das coisas: Diante de tantas intenções contraditórias, podemos ser levados 42 a sentir - não sei porque - que a pessoa é simpática, nos condoemos da sua desgraça e ouvimos suas queixas. Neste caso concluiremos que a pessoa é uma boa pessoa e tê-la-emos na conta de nossa amiga. Mas também podemos - não sei porque - nos deter mais em todas as intenções desagradáveis expressas em seu corpo, concluindo que a pessoa é insuporfável e que é nossa inimiga. o QUE VOCE FARIA SE CAíSSE DE REPENTE DENTRO DESTE QUADRO? o o o o o o L c'-.~·_ •. 43
  • 23. Claro e evidente que faremos assim. DIVIDIREMOS A PESSOA TRANQÜiLAMENTE AO MEIO E NO MESMO ATO NOS DIVIDIREMOS AO MEIO. ~ Responderemos de metade a metade. Se ela for nossa amiga - se não sei como, nem porque, decidir- mos que ela é nossa amiga - responderemos como amigo e a achare- mos boa, talvez trágica, nobre, heróica. Caso contrário, achá-la-emos aborrecida, enfadonha, chantagista e ou tras coisas assim. 44
  • 24. •• - ~r§ k1â1W'~titiiij}ttj;,i,ifg;:'''~iJ?:;.~li.%};~~~~ 12. LEI DA DESGRAÇA IRREMEDIÁVEL C. G. Jung viveu para demonstrar esta verdade: o in- consciente funciona sempre complementando a per- cepção consciente, e compensando as deformações de valor e significado de que a consciência sofre - ou que nos são impostas pela educação e pelas cir- cunstâncias. Quanto melhor percebo o outro, mais confuso fico. Quanto mais aceito ver aquilo que meus olhos estão vendo e aquilo que meus ouvidos estão ouvindo, mais me dou conta de quanto são contrárias, inclusive. contraditórias, as expectativas do outro em relação a mim. Ficamos perplexos não só por perceber tantas coisas difíceis de conciliar, como também porque elas. despertam coisas análogas em nós, e nós não sabemos o que fazer conosco mesmos. A regra, como vimos, é a alienação, a negação de uma parte, a desvalorização ou a alteração do sentido daquilo que percebemos. Simulo taneamente, apreendemos ou criamos um sentido relativamente falso para o momento, baseados apenas naquilo que nos permitimos perceber. O sentido é necessariamente falso, porque lida com dados tornados insuficientes por alguma espécie de deliberação - ou de inibição. Em algum lugar de nós mesmos, porém, subsiste outra visão do momento, com outra organização, igualmente parcia1. Seu sentido é complementar em relação à apreciação consciente do encontro - ou do outro. Ao ceder à alienação nós eternizamos o desentendimento. Ele continua a existir mas, A LUZ DE TUDO AQUILO QUE PERCEBEMOS COM CLAREZA, não podemos compreendê-lo. O desentendimento ocorre naquilo que estamos negando, nas áreas que, por hipótese de alienação, não exis- tem ou não têm importância. O desentendimento não tem causa suficiente. Concluímos o óbvio: o outro é muito esquisito, muito incorn- preensível, louco, irracional, incoerente. A culpa é dele - evidentemente. A tragédia é esta: "ele" pensa exatamente o mesmo! Diálogo desumano ... 47
  • 25. 13. O CAVALEIRO ANDANTE Por uma estrada vinha um cavaleiro andante, de penacho branco e reluzente armadura ... . . .seguido de seu fiel escudeiro. Pela estrada ia também uma pobre velhinha com um enorme feixe de lenha nas costas o cavaleiro aproxima-se da velhinha sofredôra ... contempla-a do alto de sua magnificência ..
  • 26. 'Ir" !li Ir sem a menor hesitação, sem a menor cerimônia, aplica-lhe um violento pontapé na cara ... No início, como você viu, insinuou-se a presença de um herói; no momento do pontapé, sentimos todos que perdemos o chão sob os pés. .. Esta comparação não é apenas literária. Creio que ela é literal. A verdade é que ao ver o cavaleiro andante nós todos armamos, subconscientemente, alguma espécie de atitude de admiração pelo herói, de identificação com ele, de participação no seu garbo ou na sua coragem. No momento do pontapé, damo-nos conta, subitamente, de que este mocinho não é o mocinho, mas o bandido. Impõe-se a todos rápida mudança de atitude, e é precisamente esta mudança que nos traz a sensação de que o chão nos foge sob os pés. Temos que mudar rapidamente de posição, porque toda a cena visual e todas as intenções da cena mudaram abruptamente. Vê-se, pelo exemplo, o quanto intervém, no diálogo e na interação humana, o jogo de atitudes opostas, contrárias, ou apenas diferentes. Vê-se bem qual o critério que organiza a percepção: NÃO POSSO AGIR COMO MOCINHO E BANDIDO AO MESMO TEMPO. Se o momento solicita atitudes ou ações contraditórias, fico confuso. No momento seguinte encontro um modo, qualquer que ele seja, de recompor ou de reorganizar a situação: ou suprimo elementos da percepção, ou faço variar o valor dos elementos dados. Assim consigo equilibrá-los de algum modo, consigo unificá-los e, no mesmo ato, passo a saber o que fazer. ' Isto se chama "ioisbjul thinking" - pensamento subordinado ao desejo. Melhor seria dizer subordinado ao ato ou à conduta. Segundo os cientistas, isto é próprio da imaturidade emocional. Na verdade, isto é irremediável. . . .e segue seu caminho, sem ao menos olhar para trás. O CIENTISTA "MADURO" TAMBÉM vs O MUNDO A SEU MODO E BRIGA BASTANTE COM A IGREJI- NHA DO LADO DE LA - TAL QUAL A VIZINHA E SUA VIZINHA. LOGO, OU SOMOS TODOS IMATU- ROS OU ISTO É ASSIM MESMO ... Pensamos sempre que é a situação que determina o ato ou a atitude. Muitas vezes, é o contrário - como estamos vendo. Quem entra na situação disposto a brigar, na certa encontrará - ou produ- zirá - algum mal-entendido. Com ou sem razão, o lobo comeu o carneirinho . _. 51
  • 27. • • 14. MORENO, O PSICODRAMA E OS PAPÉIS COMPLEMENTARES Moreno é o criador do Psicodrama. Define com precisão um papel: é uma unidade, culturalmente aceita, de comportamento. Pai e filho, marido e mulher, patrão e ope- rário, amigo e amiga, namorado e namorada são alguns exemplos dos muitos papéis que a sociedade ao mesmo tempo permite, cultiva e exige. AINDA COM PRECISÃO, MORENO CHAMA A ESTES PAPÉIS DE COMPLEMENTARES, O QUE SÃO DE FATO, EM VÁRIOS SENTIDOS: UM COMPLEMENTA O OUTRO, QUASE COMO MOLDES QUE SE ENCAI- XAM. UM NÃO TEM SENTIDO SEM O OUTRO. UM ESTIMULA O OUTRO. UM FORMA O OUTRO. NÃO HÁ PAI SEM FILHO. MÉDICO SEM CLIENTE. PA- DRE SEM "FIÉIS". Todos os papéis são, obviamente, parciais, exigindo, se podemos dizê-lo, em termos numéricos, o empenho de apenas metade da pessoa. Os dois papéis formam uma unidade. Logo, cada um deles é metade do outro: maeido mulher. Variando as circunstâncias, a idade, a companhia, a que hoje é filha amanhã será mãe, aquele que hoje é empregado amanhã poderá ser patrão, aquele que hoje domina amanhã poderá ter que submeter-se. Na verdade, a divisão é mais sutil do que esta: o indivíduo que é patrão e dominador no seu trabalho, pode ser em casa, diante da esposa tirânica ou de uma filha mimada, um escravo dócil e submisso. Parece claro que nestes termos cada papel é apenas uma pequena manifestação da individualidade. Esta subjaz e ultrapassa a todos eles. É como o indivíduo que escreve a máquina ou toca piano com os dois dedos, sem jamais usar todos os dedos das duas mãos. 53
  • 28. Com esta comparação creio que o tema volta a fazer-se familiar, pondo-se em paralelo com quanto dissemos a respeito da aparência das pessoas, e das solicitações múltiplas e divergentes presentes nesta aparência. "SOMOS TODOS UMA SOMA NÃO MUITO CONGRUENTE DE MEIOS PAPÉIS". Isto é outra definição para a couraça muscular do caráter. Toda a psicologia da estrutura social pode ser descrita em termos de papéis ou de couraça muscular. Os dois referenciais esclarecem de modo com- plementar a dependência de todos para com todos. Moreno separou os papéis sociais - aqueles que exemplificamos - dos papéis emocionais ou psicológicos, precisamente aqueles que Reich estudou mais de perto.
  • 29. 15. LORENZ E AS CONDUTAS INSTINTIVAS Subjacentes aos papéis sociais e psicológicos, encontramos as con- dutas instintivas, a do macho e a da fêmea, na época do cio, a da paternidade e da maternidade concebida em seus termos mais simples e diretos, como as observamos nos animais, os comportamentos de dominação e submissão, de ataque e fuga, de auto-afirmação e de indi- vidualidade de um lado e, do lado contrário, a participação no grupo, a fusão com a horda ou a coletividade. 57
  • 30. .., " §, ',,, ';"', i;.. ,~. ;';",.',.-,.:;'.: .. ' :. ", :.,:,:;',~~--;.; ~ ~i'~.Riit;..-&~:.~ Nossos princípios nos são apoio e nos elevam. O mal é que podemos cair deles. 16. OS FUNDAMENTOS MOTORES DO PRINCíPIO DE NÃO CONTRADIÇÃO o animal não pode estar atacando e fugindo, ao mesmo tempo, na mesma situação. Nosso aparelho de movimento é extremamente complicado, deli- cado e preciso, integrando a cada instante um número de esforços elementares da ordem de centenas de milhares. Cada um desses esforços tem um controle neuronal independente, cada um desses elementos é potencialmente voluntário, potencialmente perceptível e, via de regra, mesmo em ações bastante simples, temos em ação algumas centenas ou milhares de tais esforços exercendo-se simultaneamente. Não só a integração desses esforços é um processo na certa bastan- te complicado, a ponto de exigir praticamente dois terços do peso do encéfalo para se realizar, como também esses esforços têm que obede- cer a condições de equilíbrio muito estritas e difíceis. A forma humana - fiquemos com o homem - é bastante impró- pria para permanecer de pé. SE FIZERMOS UM BONECO COM A FORMA E A DISTRIBUIÇÃO DE PESO ID~NTICAS À DO HO- MEM VEREMOS QUE BASTA UM PEQUENO EM- PURRÃO PARA QUE ELE GAlA. ESTE EMPURRÃO, DE OUTRA PARTE, É IMPOSTO A ESTA FORMA, A CADA INSTANTE, POR TODOS OS MOVIMENTOS QUE ELE FAZ. 59
  • 31. Basta que levantemos o braço, que inclinemos a cabeça ou o corpo para um lado, e já estamos comprometendo nosso equilíbrio no espaço. Pode tratar-se de ações ligadas a objetos, carregar uma mala, andar de bicicleta, manejar uma serra, um martelo. Pode tratar-se de uma agitação emocional, de expressão veemente de ódio, de medo, da atitu- de de ataque ou de fuga. A dificuldade é sempre comparável.' São esforços muito complexos e bem organizados, a cada momento unitários, isto é, voltados para um fim e, via de regra, capazes de alcançã-lo. No momento seguinte esses esforços podem se inverter e se compor de outro modo. MAS ENQUANTO O SISTEMA DE ESFORÇOS OSCILA, NOS FICAMOS .OU NOS SENTIMOS PERPLEXOS. Sentimo-nos" sem jeito", o que, de novo, não é literário, é literal. É o que sucede quando "balançam nosso coreto" - isto é, quándo abalam nossas atitudes ou nosso status. É, talvez, por isto que os comportamentos instintivos mostram tenacidade tão acentuada. . ' São fruto de uma lenta coordenação de esforços, entendendo-se sistema tanto no sentido de forças que se exercem em conjunto a cada instante (atitude, postura), como conjunto de forças que se suce- dem no decorrer do tempo, compondo uma conduta, um papel, um gesto ou uma seqüência de gestos. É a finalidade, sempre limitada, que limita a organização matara e gera os papéis. Convém compreender bem concretamente esta afirmação. Nenhum animal VIVE CONTINUAMENTE E bebendo E evacuando E dormindo E tendo relações sexuais E cuidando da prole ... TODAS ESTAS ATIVIDADES SÃO NECESSARIAS MAS MUITAS DELAS NÃO PODEM SE REALIZAR SIMULTANEAMENTE. Daí nasce a organização da conduta total como algo constituído de elementos distinguíveis, como soma de papéis, de atitudes, de gestos. .. de palavras. 60
  • 32. 17.. A MORAL AS AVESSAS Insistem os defensores da chamada lei natural, que todas as socie- dades humanas têm algum conceito de bem ou de mal, mesmo quando este conceito possa variar de sociedade para sociedade. Aquilo que é tido cama bom por nós e para nós, pode ser tido como mau pelos nossos oizinbos de outra nação, de outro estado ou cidade, bairro ou casa. Se tomarmos a afirmação do moralista como pura descrição, concordaremos com ele. De fato, não há no mundo sociedade humana na qual não esteja definida alguma espécie de bem e de mal, de per- mitido e de proibido, de desejável e de abominável. A SOCIEDADE, TANTO QUANTO O INDIVíDUO, DIVIDE O MUNDO. AS PESSOAS E OS ATOS EM DUAS CLASSES, A FIM DE PERMITIR A AÇÃO COLETIVA. Vimos que solicitações contraditórias e simultâneas são paralisantes. Nesta divisão vai nossa organização motora e vai a organização do comportamento (são duas coisas distintas). Como conseqüência, vai a organização social. Mas no indivíduo a resposta A pode ser seguida em poucos instantes pelas respostas B e C e A de novo. Diante de um agressor posso tentar submeter-me, depois agredir e por fim fugir. Já a regulamentação social não tem essa flexibilidade. Até hoje nenhuma sociedade teve sistema de controle tão preciso e tão rápido como o sistema nervoso do indivíduo; por elas tendem a eternizar aquilo que no indivíduo ocorre em momentos. Sabemos bem que toda organização coletiva tende .a funcionar sempre do mesmo modo, durante um período longo de tempo. Parece claro que a sociedade não pode mudar seus princípios todos os anos, muito menos todos os meses ou todos os dias. Mas vai nesta percepção, em aparência intuitiva ou "natural", um erro fundamental de lógica - e de humanidade. 63
  • 33. 18. O UNIFORME Até boie parece dominar a mente da maior parte das pessoas a noção de que a sociedade implica em uniformidade de comportamento, mesmo que esta uniformidade se limite à classe do indivíduo. Caso contrário supomos, imaginamos ou tememos o caos. Concebemos todas as sociedades no molde e no modelo do formi- gueiro. Cada classe é concebida como uma casta, com aparência, com- portamento, funções e inter-relações perfeitamente definidas e estáveis em relação às demais classes (ou castas). EM CADA CLASSE, SEJA ELA ECONOMICA, PROFISSIO- NAL, RELIGIOSA OU MORAL (OS VIRTUOSOS E OS PECA- DORES), SEMPRE SE ESPERA, EM CADA UMA DELAS E EM TODAS ELAS, QUE OS INDIV1DUOS MOSTREM CERTAS ESPÉ- CIES DE COMPORTAMENTOS. A SOCIEDADE PRECISA SER ASSIM? Em todas elas existem as coisas que estão certas, são direitas e ficam bem, e em todas elas existem as coisas que estão erradas, não ficam bem ou são pecado - seja o pecado moral, social, econômico ou outro. Daí que todos os indivíduos se sintam coagidos a só permitir a manifestação de algumas de suas inclinações, e a suprimir a manifes- tação de outras inclinações - todas aquelas que colidem com as exigências de sua classe, sua casta ou sua tradição familiar. O indivíduo passa então a manifestar o que convém, e tenta controlar ou impedir a expressão daquilo que não convém. Ele se faz cúmplice do sistema - ou célula do organismo - ou cidadão de seu mundo. É um indivíduo bem integrado, que a bem da agregação social se desintegra. DE NOVO EMERGE O MEIO HOMEM. 65
  • 34. '" o 19. A EXEMPLAR HISTóRIA DO REIZINHO VAIDOSO Todos conhecem a história do reizinho vaidoso que pagou uma fortuna para que dois espertalhões lhe fizessem um traje, tido e havido como inigualável mas que não era traje nenhum. No dia em que o reizinho saiu nu à rua, todo mundo se encan- tou com a beleza e o luxo indescritíveis da pele do soberano, que nada tinha sobre o corpo. ALÉM DAQUILO QUE SUA VAIDADE O OBRIGAVA A AFIRMAR, e além daquilo QUE SEUS SÚDITOS SE SENTIAM OBRIGADOS A VER. Foi preciso a ingenuidade de uma criança para que a situação fosse denunciada. NO JOGO DAS RELAÇOES SOCIAIS, A MESMA CUM- PLICIDADE DO SILENCIO E DA CEGUEIRA EXISTE DE CADA UM PARA COM TODOS OS DEMAIS. O contrato, que é a própria definição do homem, presta-se a manifestações ridículas ou trágicas. O contrato é o acordo das vonta- des em função de uma fórmula verbal aceita pelos contrastantes. Esta fórmula, no contrato social, de regra é implícita (preconceito, usos e costumes de cada mundo social). O contrato é, segundo alguns estudiosos, o ato mais específico do homem, o ato que fez o homem, a partir dos antropóides. O pri- meiro dos contratos - o que gerou a humanidade - foi a proibição do incesto, que é, ao mesmo tempo, aceitação da exogamia. Como instrumento ge produzir humanidade, o contrato é deveras prodigioso, justificando todos os louvores feitos até hoje ao livre arbí- trio (sem o qual o contrato não tem sentido). Nada de surpreender que força tão poderosa possa estar sujeita a usos tão maus ou ridí- culos como os Que estamos examinando. 67
  • 35. Do contrato implícito à cegueira coletiva convencional vai passo menor do que se imagina. É claro que os primeiros contratos humanos não foram verbais (nem registrados em tabelião!). Logo, podemos falar de contrato ao assinalar que ninguém pode ver o que não convém à estrutura social. Esta cláusula é tão original (tão próxima da origem), quanto a do tabu do incesto. Também Preud, que denunciou a este, foi vítima daquele: preferiu não ver seus pacientes! A VERDADE SIMPLES É QUE NINGUÉM ESCONDE MUITO O QUE SENTE, NEM CONSEGUE DISFAR- ÇAR QUANDO ESTA DISFARÇANDO, MAS COMO NA PRÓPRIA CLASSE TODOS USAM O MESMO ARTIFICIO E PRATICAM O MESMO EMBUSTE, NIN- GUÉM DENUNCIA NINGUÉM. E A MENTIRA DE CADA UM SUBSISTE A CUSTADA MENTIRA DE TODOS. Não vemos nem dizemos que o outro está nu, pois que no mes- mo ato nos sentiríamos fazendo um strip-tease em público! Nossos sonhos, que ainda são ingênuos, muitas vezes fazem exatamente assiml , Para fugir ao vexame concordamos todos em que o homem é composto de corpo e alma, a alma que só eu vejo, que só eu sei, que só eu conheço; e um corpo que só os outros vêem - mas que não tem muito a ver comigo, graças a Deus! Se meu corpo fosse de fato meu, se eu o sentisse corno tal e se eu percebesse o que ele exprime, MINHA ALMA NÃO TERIA MAIS ATRAS .DE QUE ESCONDER-SE. Hoje ela, minha alma, acredita que está escondida "atrás" do corpo. Vezes outras ela acredita que o corpo só manifesta o que ela permite, quer ou deseja. Deixemo-Ia na sua ilusão de rainhazinha vaidosa, a caminhar nuazinha pela rua, convicta do seu traje suntuoso e convicta da sua intimidade profunda - que ela pensa que ninguém conhece. A tese parece muito ousada - ou simplória. Mas antes de julgá- Ia assim é preciso meditar em um dos maiores mistérios do homem ocidental: sua relação com seu corpo. NA VERDADE, SUA NÃO ACEITAÇÃO DE SUA APARtNCIA. Sejamos bem concretos: vamos sair nus, na rua. Já! É isto. 68 Muito antes do tabu sexual, muito mais profundo e amplo, existe em nós o tabu da nossa nudez. Nem tanto a pele. Bem mais a aparên- cia, o aspecto exterior, o gesto, a atitude ... Tenho para mim, inclusive, que a condenação do prazer do corpo e da carne é conseqüência lógica - isto é, necessária _ da negação desta aparência. "Atrás" daquilo que eu quero (e posso mostrar - a roupa, meus aspectos convencionais aceitáveis) não existe mais nada. Não posso admitir que existe - ou me desclassifico socialmente! Logo: não posso ter corpo! Ter corpo significa aceitar tudo aquilo que por amor e temor à minha casta eu tenho certeza que não tenho. Segundo a linguagem do asceta, a carne é o mal, é o pecado, é o proibido ... Ora, foi exatamente isso que dissemos até agora: quem se dê conta do corpo e da aparência perceberá que sente em ato tudo aquilo que mentalmente excluiu da imagem "oficial" de si mesmo. Mas repetindo: o que eu « jogo fora" o outro recolhe. O que eu . nego em mim o outro vê - simplesmente. Pode-se conceber um estilo de convívio social no qual a unifor- midade do grupo não seja obrigatória? 69
  • 36. I 20. O MAL DO BEM E DO MAL :g preciso destruir a moral para que a moralidade se realize. Só no dia em que os homens abandonarem critérios gerais ditos "universais" - de bem e de mal, é que poderão todos mani- festar aquilo que são, sem se retalharem e se dividirem - interior como exteriormente. SO ENTÃO AS CLASSES SOCIAIS DESAPARECERÃO. Só então, numa sociedade amplamente permissiva, poderão os indivíduos viver todas as suas aptidões e inclinações, sem estabelecer entre elas prioridades suspeitas, desde que toda escolha de uma implica em sacrifício da outra, desde que toda realização de uma implica na supressão ou mutilação do seu contrário. SE O PRIMEIRO DEVER DO HOMEM É A REALI- ZAÇÃO DE SI MESMO ATÉ SEU LIMITE, ENTÃO TODA SOCIEDADE UNIFORMIZANTE É UM PECA- DO IMPERDOAVEL. OU UMA CONTRADIÇÃO INSO- LÚVEL, ISTO É, UMA PARALISIA MULTIPLAMEN- TE RECIPROCA E ESTRUTURADA. Ainda hoje é grande o número de pessoas a acreditar que a moral do "fazer a própria vontade" é uma coisa fácil, é a linha de menor resistência, a vertente da decadência e da frouxidão moral. Só pode pensar assim quem nunca tentou fazer a própria vontade até o limi- te - nem agüentou as conseqüências! Não temos em nós - aparentemente não temos - a força, a grandeza e a duração dos GRANDES PRINCIPIOS que são a LEI DE TODOS CONTRA TODOS. Por isso nossa posição individual é frágil, incerta e pequenina _, é difícil de sofrer. Por isso renunciamos a nós mesmos, à nossa fragi- lidade, "maldade" e pequenez. Que a Grande Autoridade cuide de nós. Que os Grandes Princí- pios nos protejam! A norma social nos alivia ao absorver e consagrar nossa incerteza, devolvendo-a logo sob a forma de Bem e Mal Coletivo, de Obrigação. Por isso aceitamos a moral de todos - do grupo. Porque ela elimina incertezas individuais pungentes e insolvências emocionais difíceis de sofrer. 71
  • 37. EU SOU UMA ILHA E OS OUTROS SÃO O MAR.. 21. MINHA VONTADE EO OUTRO Não se pense que "fazer a própria vontade" exclua ou destrua ao outro. O outro está sempre aí - multidão inumerável que me envolve do primeiro ao último instante da vida. Que me envolve por fora e me invade por dentro. Tudo o que sou e faço se formou e acontece na relação com os outros. Tudo o que eu faço tem conse- qüências - dentro e fora de mim. A vontade própria não é o fim da norma, nem do outro. 73
  • 38. 22. A MALDIÇÃO DA ESTRUTURA DIVIDIDA É a estrutura social que mantém a tortura da carne! Explico-me: vimos bem o quanto são múltiplas e discordantes as expressões emocionais das pessoas, suas atitudes, suas faces, seus gestos. Vimos também o quanto esta discordância decorre do fato de todos nós querermos manifestar a qualquer preço aquilo' que parece conveniente, e de tentarmos todos esconder aquilo que parece impró- prio, inadequado ou errado. QUANDO, PORÉM, POR INJUNÇÃO SOCIAL, EU ESCOLHO ALGUMA COISA DE MIM MESMO, PASSO IMEDIATA E IRREMEDIAVELMENTE A COBRAR DA SOCIEDADE O SACRIFíCIO QUE ELA EXIGIU DE MIM. Sinto-me mutilado, com direito a pensão e privilégios. Passo a uma atitude básica de dependência em relação à autoridade consti- tuída, que de algum modo reúne ou resume em si a força da estru- tura social. Passo imediatamente a implorar ao Deus que me mutila - e a odiá-lo. Viver estes dois elementos inevitáveis é difícil - senão impossível. Como viver duas atitudes tão contrárias como a de adoração e a do ódio? O que acontece é que nós imediatamente projetamos a metade suprimida de nós mesmos, e passamos todos a caçar bruxas. Crimi- noso, anti-social e perigoso passa a ser o vizinho, o parente próximo, o patrão, o Governo, o negro, o bicha, o maconheiro e os outros bodes expiatórios que todos nós inventamos a todo instante, para que eles carreguem em si aquilo que nós temos que negar em nós mesmos. Nenhuma sociedade atual sobreviveria sem bodes expiatórios, O genocídio dos judeus além de fato é símbolo. Enquanto aniquilamos aqueles que são culpados, pioram as rela- ções sociais. Porque os culpados não são culpados - claro. Porque culpados são todos - somos todos -, claro. 75
  • 39. Mas também somos vítimas - todos. Ou aprendemos todos a sofrer como vítimas - que somos; ou seremos todos vítimas termo nucleares . Não sou eu o bom e ele o coitado - ou o f. da p. Somos os dois coitados. Ef.dap ... Esta a tragédia, a comédia e a perplexidade. O capitalista é tão coitado quanto o trabalhador e o trabalhador é tão f. da p. quanto o capitalista. O russo é tão desgraçado quanto o americano que é tão f. da p. quanto ele. Ou entendemos assim, ou continuaremos a fabri- car a interminável tragédia que é a história da humanidade. De onde nasce o temor de perseguição que reside em todos - se aceitarmos os achados centrais de M. Klein? ENQUANTO APOIAMOS TODOS A LEI DE TODOS, SOMOS TODOS PERSEGUIDORES, JUíZES E POLICIAIS DE TODOS. PRINCIPALMENTE CARRASCOS. Ninguém pode fazer diferente. De onde vem, ainda, a profunda sensação individual de que temos todos os direitos, senão do fato de termos nos mutilado para sempre - por imposição de todos? Se sou mutilado assim, então tenho o direito de enca)TIpar, con- quistar e possuir o máximo que eu puder. Eles, os outros, não são meus inimigos? Por que hei de tomá-I os em consideração? Não é difícil perceber que estamos generalizando alguns achados básicos da psicanálise. Até onde pôde, a psicanálise limitou-se à família, que é instru- mento social de transmissão automática das pressões sociais, que perpetua as classes e fabrica os cidadãos. . Se o neurótico subsiste e continua neurótico, é porque a estru- tura da família foi interiorizada por ele, é porque a estrutura social é análoga à familiar. DEIXAR DE SER NEUROTICO - SE, E ATÉ ONDE FOR POSSíVEL - É DEIXAR A ESTRUTURA SOCIAL E É PASSAR A EXISTIR EM OUTRO MUNDO. SOZINHO. 76
  • 40. ,'." • • 23. O MISTÉRIO DA SOLIDARIEDADE ANTAGôNICA 'o MISTÉRIO É ESSE: PRECISO DO MEU INIMIGO POR- QUE ELE É METADE DE MIM. SEM ELE NÃO CONSIGO CON- CEBER-ME E SEM ELE NÃO SEI AGIR. SO SEI AGIR CONTRA ELE - O INIMIGO CUJA EXIS- T:hNCIA ME ORGANIZA, ORIENTA E ANIMA. MEU IRMÃO - APESAR DE TUDO E POR CAUSA DE TUDO. 79
  • 41. _ - ilfl" ,~ AQÚI·;~·~ . TUDO: QUE NEGO . EM MIM E PONHOEM voee: - i-- 1111111' ,. .c. 24. EPITÁFIO AQUI JAZ TUDO QUE EU NEGO EM MIM E PONHO EM VOCÊ É assim que são geradas e assim se mantêm as forças de repul- são da estrutura social, tão necessárias para a manutenção desta estru- tura, quanto a pressão das necessidades comuns, e a atração da soli- dariedade humana. Ficamos todos imobilizados a uma certa distância uns dos outros e compomos assim, em uma analogia inevitavelmente molecular, uma estrutura, isto é, uma forma que se mantém indefini- damente, à custa de forças de atração e repulsâo equilibradas entre si. PUDÉSSEMOS NOS ASSUMIR A METADE REJEITADA DE NOS MESMOS, E IMEDIATAMENTE MODIFICAR-SE-IA TODA A ESTRUTURA SOCIAL. Creio - é um ato de fé - que deste modo, e só deste modo, nos será dado transformar uma estrutura rígida, cristalizada, opressiva e ameaçadora, numa organização capaz de crescimento, de fato viva, de fato cálida, de fato amorosa. 1",,",1' Amar o outro é a primeira condição da liberdade. Para amar é preciso aceitar a si próprio e depois aceitar o outro - o inimigo tradicional. A aceitação começa NO .MEU ESPELHO MÁGICO (QUE É voem O processo é dialético e interminável. 81 _. , IlH1l,1 " •. I Ihll' ~. 1 111· li, .~! '111'11' lU- 1, 111 hllllllllll ' (dl"l'-
  • 42. ::; - - ª = , - - ~ - - .' -