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ANTONIO JOSÉ MOGADOURO
A TUTELA AO PATRIMÔNIO CULTURAL E OS
PROCESSOS DE INTERVENÇÃO URBANA ADOTADOS
NA CIDADE DE SÃO PAULO
MESTRADO EM DIREITO
UNIMES/Santos
2015
ANTONIO JOSÉ MOGADOURO
A TUTELA AO PATRIMÔNIO CULTURAL E OS
PROCESSOS DE INTERVENÇÃO URBANA ADOTADOS
NA CIDADE DE SÃO PAULO
Dissertação apresentada à banca examinadora
da Universidade Metropolitana de Santos, como
exigência para obtenção do título de Mestre em
Direitos Difusos e Coletivos, sob orientação da
professora doutora Márcia Cristina de Souza
Alvim.
UNIMES/Santos
2015
Dedico aos amigos Gilberto Tanos Natalini,
Henrique Sebastião Francé, Edson
Domingues e Élcita Ravelli.
Aos meus pais, Francisco da Cruz
Mogadouro (in memoriam) e Cecília Rosa
Cordeiro Mogadouro.
A Teresa Cristina Mogadouro, minha irmã, e
a Chokem Roberto Miyagi, meu cunhado.
Sem esquecer de Rosa Cruzato e Marco
Antônio Cruzato, meus cunhados.
E Lúcia Helena Cruzato, minha querida
companheira.
Agradeço à minha orientadora Márcia Alvim,
pela confiança.
Agradeço a ajuda de Walter Pires e de Lia
Mayumi, servidores do Departamento de
Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo. Eventuais falhas,
omissões ou erros devem ser atribuídos
exclusivamente ao autor.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo discutir as políticas públicas de
preservação do patrimônio cultural na cidade de São Paulo, ao tentar
compreender seu impacto e a participação das três esferas de governo e da
sociedade civil na sua formulação e implementação. Esse patrimônio é analisado
sob a ótica ambiental, como uma de suas dimensões, e a importância que
desempenhou na constituição da identidade nacional.
Procura-se analisar a repercussão das políticas federais de preservação no
contexto local, desde os primórdios na década de 1930, até as transformações
econômicas, sociais e políticas experimentadas pelo Brasil no processo de
urbanização e no contexto da globalização.
Palavras-chave: Patrimônio cultural. Políticas federais de preservação.
Identidade nacional. Urbanização. Globalização.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the public policy of preservation of cultural
heritage in the city of São Paulo, to try to understand its impact and the
participation of the three spheres of government and civil society in its formulation
and implementation. This heritage is analyzed from the environmental point of
view, as one of its dimensions, and the importance it played in the formation of
national identity.
Looking to analyze the impact of the preservation of federal policies on local
contexts, from the very beginning in the 1930s, to the economic, social and
political transformations experienced by Brazil in the urbanization process and the
context of globalization.
Keywords: Cultural heritage. Federal preservation policies. National identity.
Urbanization. Globalization.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................1
1. O PATRIMÔNIO CULTURAL..............................................................................5
1.1 Meio ambiente e patrimônio cultural..............................................................5
1.2 A natureza jurídica do bem ambiental ...........................................................8
1.3 Aspectos do meio ambiente ........................................................................11
1.4 Princípios do direito ambiental aplicáveis à tutela do patrimônio cultural ....15
1.5 Princípios específicos da tutela ao patrimônio cultural ................................17
1.5.1 Preservação no próprio sítio e a proteção do entorno ..........................17
1.5.2 Uso compatível com a natureza do bem...............................................18
1.5.3 Pro monumento ....................................................................................20
1.5.4 Fruição coletiva.....................................................................................21
1.5.5 Vinculação dos bens culturais...............................................................22
1.5.6 Cooperação internacional .....................................................................24
1.6 O conceito de cultura...................................................................................25
1.7 O conceito de patrimônio cultural ................................................................29
1.7.1 A origem e a evolução do conceito de patrimônio cultural....................32
1.7.2 A ampliação do conceito de patrimônio cultural....................................37
1.7.3 As diferenças na abordagem do patrimônio cultural na Modernidade e
na Pós-Modernidade......................................................................................42
1.7.4 Os acordos internacionais.....................................................................49
1.7.5 Turismo e consumo cultural de massa..................................................53
2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A TUTELA DO PATRIMÔNIO CULTURAL...56
2.1 Competências em matéria de cultura ..........................................................57
2.2 O conteúdo do patrimônio cultural brasileiro ...............................................60
2.3 Seleção e gestão dos bens culturais ...........................................................63
2.4 A proteção ao patrimônio cultural como direito fundamental.......................66
2.4.1 As dimensões dos direitos fundamentais..............................................69
2.4.2 Direitos culturais como direitos de terceira dimensão...........................73
2.5 O compromisso com a sadia qualidade de vida ..........................................75
2.6 O Sistema Nacional de Cultural (SNC)........................................................76
2.7 O Plano Nacional de Cultura (PNC) ............................................................80
2.8 Os instrumentos de tutela ao patrimônio cultural.........................................80
3. A TRAJETÓRIA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO
BRASIL .................................................................................................................93
3.1 A criação do Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Sphan)...............................................................................................93
3.2 A fase heroica............................................................................................102
3.3 A fase moderna .........................................................................................108
3.3.1 A consultoria internacional e o apoio técnico da Unesco....................112
3.3.2 O Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH)
.....................................................................................................................115
3.3.3 O Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) ............................118
3.3.4 A unificação dos órgãos federais de preservação com o sistema
Sphan/FNPM ...............................................................................................123
3.3.5 O Programa Monumenta ....................................................................128
3.3.6 O Plano de Aceleração do Crescimento das Cidades Históricas (PAC-
CH) ..............................................................................................................128
4. A POLÍTICA DE ACAUTELAMENTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA
CIDADE DE SÃO PAULO...................................................................................131
4.1 A atuação do Sphan/Iphan em São Paulo.................................................133
4.2 Os órgãos de preservação do patrimônio cultural de São Paulo...............138
4.2.1 A atuação do Conpresp no contexto das políticas de planejamento
urbano..........................................................................................................141
4.3 As ações de revitalização executadas na Cidade de São Paulo nas décadas
de 1970 e 1980................................................................................................152
4.3.1 O Plano de Revitalização do Centro ...................................................160
4.3.2 O Projeto Luz Cultural.........................................................................163
4.3.3 A gestão de Jânio Quadros.................................................................167
4.4 As intervenções no Centro de São Paulo na década de 1990 ..................169
4.4.1 O governo de Luíza Erundina .............................................................178
4.4.2 A Associação Viva o Centro................................................................180
4.4.3 A cultura, o mercado e as transformações urbanas na década de 1990
.....................................................................................................................183
4.4.4 O Projeto Luz Cultural.........................................................................184
4.4.5 O Programa de Preservação e Recuperação do Patrimônio Histórico
Urbano (Monumenta)...................................................................................185
4.4.6 O Programa Monumenta em São Paulo .............................................192
CONCLUSÃO .....................................................................................................200
REFERÊNCIAS...................................................................................................207
1
INTRODUÇÃO
O patrimônio cultural é constituído por bens de valor histórico e estético e
desempenha um papel fundamental para a conformação da identidade dos
indivíduos e dos grupos sociais.
A identidade cultural é um patrimônio comum constituído pela história, pela
língua, pelas artes, pelas festas, pela religião, pela culinária, pelas tradições e por
outras formas de expressão. É um sistema de representação das relações entre
indivíduos e grupos, inseridos num processo dinâmico e contínuo de construção
de significados.
O patrimônio cultural, ao incorporar-se na memória social, contribui para
solidificar os laços que ligam as pessoas com o lugar em que vivem. A partilha de
experiências consolida o sentimento de identidade e o vincula a um destino
comum. Por isso, a memória é uma construção social e registra o processo de
apropriação e de identificação com o espaço e as relações estabelecidas a partir
desse reconhecimento.
Daí a importância da preservação do patrimônio cultural, uma vez que não
se pode prescindir de experiências anteriores representadas pelas referências
culturais e pelos valores que incorporam e expressam.
A memória desempenha funções políticas e sociais, mas é sempre parcial.
Os grupos ou classes sociais, a partir de suas percepções da realidade,
determinam o que é digno de ser perpetuado, o que é considerado relevante para
constituir o patrimônio cultural. Portanto, o trabalho de identificação, proteção e
gestão desse patrimônio é essencialmente político.
2
No caso do Brasil, apesar dos avanços, o núcleo do patrimônio cultural
ainda é constituído por bens vinculados à elite política, econômica, intelectual e
religiosa. Por isso, é imperativo buscar a efetivação dos direitos fundamentais
inseridos na Constituição Federal, inclusive os direitos culturais, expressamente
reconhecidos (art. 215) a todos os grupos sociais que constituem a sociedade
brasileira e que contribuíram para a sua formação (art. 216).
Este trabalho tem como foco o patrimônio cultural edificado e não o estudo
de todas as expressões que constituem o fenômeno cultural.
No capítulo 1, os bens culturais são analisados como uma das dimensões
do meio ambiente, mais precisamente, do meio ambiente cultural. Ou seja, tratado
como direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia
qualidade de vida (Constituição Federal, art. 225, caput) no sentido de concretizar
o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, CF).
Daí ser necessária a implementação de políticas públicas que tornem
viável o usufruto desse direito, para as presentes e para as futuras gerações.
Nesse capítulo, também são abordados os conceitos de cultura e de
patrimônio cultural e a forma como foram tratados ao longo do tempo.
O capítulo 2 trata das competências em matéria de cultura dos entes que
compõem a Federação (União, Estados e Município).
Também se discute a seleção, o conteúdo e a gestão do patrimônio cultural
como um direito fundamental. Além disso, são arrolados os meios de tutela
previstos no ordenamento jurídico, que, com a entrada em vigor da Constituição
de 1988 incorporou outros instrumentos, além do consagrado instituto do
tombamento.
3
O capítulo 3 analisa a trajetória da preservação do patrimônio cultural no
Brasil, a partir do governo de Getúlio Vargas, especialmente no período de 1937 a
1945. Nessa fase, são notáveis os esforços do regime de construir e consolidar
uma ideia de Nação.
Verifica-se que o trabalho dos intelectuais modernistas, aliados do governo
nessa empreitada, é essencial para definir as políticas de constituição,
preservação e gestão do patrimônio cultural.
O aparato jurídico e burocrático que dá suporte à política de preservação
resulta na criação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
o atual Iphan), a autarquia federal que recebeu a tarefa de executar a política de
preservação cultural.
Com a edição do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro 1937, que organiza
a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, o Sphan recebeu a
competência para estabelecer os critérios de preservação, tendo no tombamento
o principal meio para concretizar suas ações.
Será demonstrado que a ampliação da concepção de patrimônio, tanto no
âmbito internacional como no contexto nacional, levou a alterações conceituais
que influenciaram as ações do órgão federal de preservação, especialmente a
partir da segunda metade da década de 1960, e que foram incorporadas pela
Constituição de 1988.
Por conta da ampliação desse conceito, que deixa de ser exclusivamente o
monumento construído excepcional, as questões patrimoniais passam a fazer
parte dos processos de planejamento urbano e são grandes os questionamentos
em torno do uso social do patrimônio, sobretudo a partir dos anos de 1970.
4
O capítulo 4 expõe um quadro das políticas de acautelamento do
patrimônio cultural no Brasil e em São Paulo. A partir de 1995, a atuação do
Ministério da Cultura passou a ganhar maior relevância, o que não significou
necessariamente a busca pela efetivação dos direitos culturais assegurados pela
Constituição Federal.
Assim, em projetos formulados pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), especialmente o Programa Monumenta, foram
implementadas ações voltadas para a recuperação do patrimônio edificado,
norteadas fundamentalmente por questões econômicas e não pela busca da
valorização cultural e da inclusão social.
Como se verá, a relação do patrimônio cultural com as ações de
planejamento conduzidas pelo poder público é caracterizada por interesses
conflitantes entre os diferentes setores da sociedade na disputa pelos territórios
ou espaços urbanos. Apesar disso, essas políticas são implementadas em nome
do interesse geral, do bem comum e formalmente expressam concepções ditas
modernas e sustentáveis.
5
1. O PATRIMÔNIO CULTURAL
1.1 Meio ambiente e patrimônio cultural
O patrimônio cultural é uma das dimensões do meio ambiente, ou
seja, trata-se do meio ambiente cultural ou patrimônio cultural.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à
sadia qualidade de vida, como dispõe a Constituição Federal (art. 225, caput).
Assim, o usufruto de uma vida saudável é uma forma de concretizar o princípio da
dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil (art. 1º, inc. III, CF). Nesse sentido, a efetividade desses objetivos é aferida
pela implementação de políticas públicas que tornem viável a preservação do
meio ambiente saudável, para as presentes e para as futuras gerações.
O ambiente ecologicamente equilibrado consagrou-se como direito
fundamental. É patrimônio a ser tutelado pelo poder público (no âmbito legislativo,
administrativo e judicial) e pelos entes federados, aos quais a Constituição
Federal atribuiu competências na área ambiental (União, Estados, Distrito Federal
e Municípios).
À coletividade (pessoas físicas e associações) também é atribuído o
dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como
bem de uso comum do povo (art. 225, caput, CF).
A qualidade de vida e o bem-estar dependem da efetivação dos
direitos fundamentais, especialmente os direitos previstos no art. 5º e os direitos
sociais inseridos no art. 6º da Constituição: educação, saúde, trabalho, moradia,
6
lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e
assistência aos desamparados. Além disso, a Constituição reconhece o direito à
cultura (art. 215) e protege o patrimônio cultural brasileiro e todas as suas
manifestações (art. 216).
Compreendido de forma unitária (integral ou holística), o meio
ambiente não se limita apenas ao aspecto natural. Incorpora todos os aspectos
que garantam o meio ambiente equilibrado e a sadia qualidade de vida, tal como
dispõe o caput do art. 225 da Lei Fundamental. Ou seja, “tudo o que cerca (e
condiciona) o homem em sua existência e o seu desenvolvimento na comunidade
a que pertence e na interação com o ecossistema que o cerca”1
.
A Constituição de 1988 consagra ao tema da cultura os artigos 215 e
216. O art. 215 garante a todos o direito ao exercício dos direitos culturais, o
acesso às fontes da cultural nacional, além do apoio e incentivo a valorização e
difusão das manifestações culturais.
O art. 216, caput, define o patrimônio cultural como conjunto dos
bens materiais e imateriais que são portadores de referências à identidade, à
ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileiro. No parágrafo
1º, há uma relação exemplificativa dos instrumentos de preservação: inventário,
registro, vigilância, tombamento e desapropriação.
A Constituição é precisa ao utilizar-se da expressão patrimônio
cultural, entendida de maneira ampla e como gênero, sendo espécies o
patrimônio histórico, artístico, paisagístico, paleontológico, etnográfico, turístico,
além do patrimônio imaterial. Portanto, é uma “concepção abrangente de todas as
1
Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do
patrimônio cultural e dos consumidores, p. 35.
7
expressões simbólicas da memória coletiva, constitutiva da identidade de um
lugar, uma região e uma comunidade”2
.
Apesar disso, em outros pontos da Constituição são mantidas
expressões antigas e imprecisas, que confundem gênero com espécies. Vejamos.
A ação popular pode ser ajuizada em caso de ameaça ou lesão ao
patrimônio histórico e cultural (art. 5º, inc. LXXIII). É competência comum da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a proteção aos
“documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os
monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (art. 23,
inc. III) e, no inc. IV, para as “obras de arte e de outros bens de valor histórico,
artístico ou cultural”. Há referência à competência concorrente da União, dos
Estados e do Distrito Federal para legislar sobre a “proteção ao patrimônio
histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (art. 24, inc. VII). A
responsabilidade por dano compreende bens e direitos de valor “artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico” (art. 24, inc. VIII). O art. 30, inc. IX,
dispõe sobre a competência dos Municípios para promover o acautelamento do
“patrimônio histórico-cultural”.
2
José Afonso da Silva, Ordenação constitucional da cultura, p. 101. De outra parte, patrimônio
cultural brasileiro “é expressão jurídica que abrange não só o patrimônio cultural estabelecido pela
União, mas também o estabelecido pelos Estados e Municípios. Se a Constituição falasse em
patrimônio cultural nacional, então poder-se-ia entender que ela só estivesse mencionando o
patrimônio cultural organizado pelo Governo Federal. A leitura do § 216 ajuda a esclarecer essa
temática”.
8
1.2 A natureza jurídica do bem ambiental
O direito ambiental tem como objetivo a satisfação das necessidades
humanas, ao colocar em relevo o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana (art. 3º, inc. III, CF).
A dignidade, nesse sentido, permeia a interpretação e a aplicação
das normas constitucionais e da legislação ordinária, o que demonstra a opção
antropocêntrica que confere ao ser humano “uma posição de centralidade em
relação ao nosso sistema de direito positivo”3
.
Entretanto, há que se compatibilizar esse postulado com a defesa da
vida em todas as formas, como prescreve o art. 3º da Lei 6.938, de 31 de agosto
de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente.
Isso é viável, porque o direito ambiental protege todas as formas de
vida, mas a vida que não seja humana só merece tutela quando “sua existência
implique garantia da sadia qualidade de vida do homem, uma vez que numa
sociedade organizada este é destinatário de toda e qualquer norma”4
.
A tradicional divisão entre bens públicos e particulares, de cunho
civilista, não se aplica ao bem ambiental, incluído em nova categoria instituída
pela Lei Fundamental, que são os bens de uso comum do povo. Uma terceira
espécie de bem, que não é público e nem privado, mas se refere a direitos
metaindividuais (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos).5
A concepção civilista de direito, de fundamentação liberal, tornou-se
hegemônica a partir do século XIX e privilegiou o direito individual como forma de
resolver conflitos sociais. Contudo, mostrou-se pouco eficiente para a resolução
3
Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 65.
4
Ibid., p. 66.
5
Ibid., p. 53.
9
de conflitos com a constituição da sociedade de massas no século XX. Não é
mais possível compor litígios exclusivamente com base na dicotomia
público/privado. Assim, o instrumental jurídico teve de amoldar-se a uma
configuração social mais complexa. E os direitos metaindividuais revelaram-se
apropriados para dirimir impasses de massa ou coletivos, especialmente após a
Segunda Guerra Mundial.6
A Constituição de 1988, elaborada nesse contexto, conferiu ao meio
ambiente o status de bem de uso comum do povo. Os interesses transindividuais
foram reconhecidos (art. 129, inc. III, CF) e regulamentados na Lei Federal
8.078/90 (art. 81, par. único, inc. I).
O art. 225 exprime a natureza jurídica do bem difuso, que tem os
atributos da indivisibilidade, não é público nem privado, mas de uso comum do
povo e essencial à qualidade de vida.
Nesse sentido, a defesa dos interesses difusos requer a utilização
de instrumental jurídico apropriado, pelo recurso às ações coletivas (como a ação
civil pública e a ação popular) e das tutelas de urgência.
Os interesses difusos apresentam três características básicas.
A primeira é a indeterminação dos titulares, uma vez que se referem
a um conjunto indeterminado de sujeitos, desde uma pequena comunidade, um
grupo étnico ou até mesmo a humanidade. A relevância jurídica do interesse não
provém “de sua afetação a um titular determinado, mas do fato do interesse
concernir a toda a coletividade ou a todo um segmento dela, justificando-se,
assim, o trato coletivo do conflito”7
.
6
Ibid., p. 52.
7
Rodolfo de Camargo Mancuso, Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, p. 94.
10
A segunda é a indivisibilidade, pois não há como cindir o bem
ambiental, que é insuscetível de usufruto em parcelas ou quotas previamente
determinadas. O bem ambiental, por ser indivisível, refere-se a “um objeto que, ao
mesmo tempo, a todos pertence, mas ninguém em específico o possui. Um típico
exemplo é o ar atmosférico”8
.
A terceira é que os titulares (indeterminados) dos interesses difusos
são ligados por circunstâncias de fato. Ou seja, interesses que não são ligados
por um vínculo jurídico básico, mas a situações de fato, contingenciais e até
mesmo repentinas e imprevisíveis. Referem-se a eventos mutáveis, na medida
em que podem surgir, desaparecer e reaparecer mais tarde.9
O bem ambiental, exemplo típico de direito difuso, não pode ser
apropriado ou tutelado apenas pelas pessoas jurídicas (de direito público ou
privado) ou pelas pessoas naturais. É nesse sentido que o Poder Público e à
coletividade são responsáveis pela sua preservação.10
Ora, se o domínio do bem ambiental não pode ser atribuído a
ninguém de modo exclusivo, não apresenta compatibilidade absoluta com o
direito de propriedade. Isso porque a Constituição não autoriza a fazer com o bem
ambiental o que o direito permite fazer com bens de natureza diversa. Não se
8
Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 55.
9
O que os caracteriza é “a circunstância de estarem num plano pré-jurídico, isto é, desvinculados
dos limites demarcados numa norma, o que enseja essa fluidez apresentada pelos interesses
difusos. No plano fático onde estão (o plano da ‘existência-utilidade’), tudo é mutável, inesgotável,
todas as posições são sustentáveis”, Rodolfo de Camargo Mancuso, Interesses difusos:
conceito e legitimação para agir, p. 149.
10
O ambiente a preservar é aquele que tem qualidade e que se converte em bem jurídico, que a
Constituição define como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Isso
“significa que esses atributos do meio ambiente não podem ser de apropriação privada mesmo
quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares. Significa que o proprietário, seja
pessoa pública ou particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer,
porque ela não integra a sua disponibilidade. (...) há elementos físicos do meio ambiente que
também não são suscetíveis de apropriação privada, como o ar, a água, que são, já por si, bens
de uso comum do povo. Por isso, como a qualidade ambiental, não são bens públicos nem
particulares. São bens de interesse público, dotados de um regime jurídico especial, enquanto
essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, assim, a um fim de interesse coletivo”. José
Afonso da Silva, Direito ambiental constitucional p. 83-84.
11
pode atribuir ao bem ambiental as mesmas prerrogativas de gozar, dispor, fruir,
destruir ou fazer tudo aquilo que seria prerrogativa do titular do domínio e, em
tese, permitido na esfera individual. Sendo bem de uso comum do povo, nada
além do direito de utilizá-lo ou desfrutá-lo é permitido, na forma e nas condições
previstas em lei.
Assim, o Poder Público é apenas gestor, e não proprietário dos bens
ambientais, atribuição que gera o dever de prestar contas sobre a utilização de
tais bens.11
1.3 Aspectos do meio ambiente
O conceito legal de meio ambiente, recepcionado pela Constituição,
está previsto na Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre
a Política Nacional de Meio Ambiente. É tratado como “o conjunto de condições,
leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,
obriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, inc. I).
Esse conceito identifica-se com o aspecto natural do meio ambiente,
embora o objeto do meio ambiente seja bem mais amplo. Integrado ao art. 225 da
Constituição Federal, adquire novas e variadas características, posto que o
11
Para Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 180, é
paradigmática a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação à prática de crime ambiental
(RE 300244-9, distribuído em 15 de março de 2001, sendo relator o Ministro Moreira Alves).
Segundo o relator, os bens ambientais não são propriedade de qualquer dos entes federados,
que, na verdade, são administradores e gestores de bens que pertencem à coletividade. Portanto,
“a Constituição Federal, ao outorgar o ‘domínio’ de alguns bens à União ou aos Estados, não nos
permite concluir que tenha atribuído a elas e a titularidade de bens ambientais. Significa dizer tão
somente que a União ou o Estado (dependendo do bem) serão seus gestores, de forma que toda
vez que alguém quiser explorar algum dos aludidos bens deverá estar autorizado pelo respectivo
ente federado, porquanto este será o ente responsável pela ‘administração’ do bem pelo dever de
prezar pela sua preservação”.
12
“objeto de proteção verifica-se em pelo menos cinco aspectos distintos
(patrimônio genético, meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho), os
quais preenchem o conceito da sadia qualidade de vida”12
.
Nesse sentido, o conceito de meio ambiente compreende todos os
recursos essenciais à vida, de modo a garantir as condições indispensáveis à
existência e manutenção da própria vida.
E o patrimônio cultural, como uma das dimensões do meio ambiente,
deve ser entendido como essencial à qualidade de vida, nos termos do art. 225 da
CF. Logo, sua tutela “é instrumental no sentido de que, através dela, o que se
protege é um valor maior: a qualidade de vida”13
.
É possível, no entanto, a identificação das dimensões (ou aspectos)
que compõem o meio ambiente: natural, artificial, cultural, do trabalho e do
patrimônio genético.
O meio ambiente natural ou físico é constituído pelos bens ou
recursos naturais que são essenciais à manutenção da vida e da sobrevivência
dos seres humanos e de outras espécies. Por exemplo, a atmosfera, as águas
interiores, superficiais e subterrâneas, o mar territorial, o solo, o subsolo, a fauna
e a flora.
No art. 225, § 1º, incs. I, III, e VII, a Constituição Federal prevê
ações de tutela específica ao ambiente natural.
O meio ambiente artificial refere-se ao espaço urbano construído,
que é formado por edificações (espaço urbano fechado) e por equipamentos
públicos (espaço urbano aberto).
12
Ibid., p. 382.
13
José Afonso da Silva, Direito ambiental constitucional, p. 70.
13
A União tem competência para instituir diretrizes para o
desenvolvimento urbano, sendo que a execução de ações nessa área é
responsabilidade dos municípios. A finalidade é ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182,
caput, CF). A Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade),
regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes
gerais da política urbana.
A fim de concretizá-las, são necessárias ações voltadas à prestação
de serviços públicos essenciais (saúde, educação, transportes), à habitação, ao
lazer, à cultura, ao trabalho e ao incentivo às atividades econômicas.
O meio ambiente cultural inclui o patrimônio edificado, histórico,
artístico, arqueológico, paisagístico e turístico. O valor a preservar é a cultura,
materializada e incorporada nos bens portadores de referência à identidade, à
ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art.
216, caput, CF).
O ambiente cultural, apesar de também ser artificial (criado pelo
homem), transcende esse aspecto, porque “agrega valores que refletem
características peculiares a uma dada sociedade, constituindo, por assim dizer,
retrato vivo de sua história e, consequentemente, espelho de sua própria
realidade”14
.
O meio ambiente do trabalho refere-se às condições internas e
externas dos locais de trabalho, porque as atividades laborais devem ser
exercidas em condições de salubridade. Os beneficiários, em termos do usufruto
14
Belize Câmara Correia, A tutela judicial do meio ambiente cultural, p. 43.
14
dos recursos ambientais (o ar e a água, por exemplo), serão tanto quem trabalha
nesses locais como a comunidade em geral.
A Constituição Federal refere-se ao ambiente do trabalho quando
inclui no rol das competências do Sistema Único de Saúde (SUS) ações de
proteção ao meio ambiente, inclusive do trabalho. Além disso, são direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais a redução dos riscos do trabalho com a
observância de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII, CF).15
O patrimônio genético tem previsão constitucional, estando disposto
no art. 225, § 1º e nos incs. II e V.
A regulamentação do tema se deu pela edição da Lei nº 9.985, de
18 de julho de 2000, pela Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001
(ainda não convertida em lei) e pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005.
A Constituição Federal protege a vida humana e de todos os seres
vivos, até mesmo na forma embrionária, “sempre em função da sadia qualidade
de vida da pessoa humana (a mulher e o homem), revelando uma vez mais a
clara posição antropocêntrica da Carta Magna”16
.
15
Ressalte-se “que a proteção do direito do trabalho é distinta da assegurada ao meio ambiente
do trabalho, porquanto esta última busca salvaguardar a saúde e a segurança do trabalhador no
ambiente onde desenvolve suas atividades. O direito do trabalho, por sua vez, é o conjunto de
normas jurídicas que disciplina as relações jurídicas entre empregado e empregador”. Celso
Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 74.
16
Ibid., p. 75.
15
1.4 Princípios do direito ambiental aplicáveis à tutela do
patrimônio cultural
Princípios são normas jurídicas que sintetizam valores expressos ou
dedutíveis do texto constitucional que fundamentam o ordenamento jurídico e
servem de parâmetro para a elaboração e a interpretação do Direito Positivo.
Os princípios do direito ambiental originam-se de documentos
elaborados em conferências e encontros internacionais e indicam o caminho “para
a proteção ambiental, em conformidade com a realidade social e os valores
culturais de cada Estado”17
.
Pode-se considerar como princípios de direito ambiental: (1) direito à
sadia qualidade de vida; (2) desenvolvimento sustentável; (3) prevenção; (4)
precaução; (5) poluidor-pagador; (6) função social da propriedade; (7)
participação; (8) solidariedade intergeracional.
Os princípios gerais também se aplicam à tutela do patrimônio
cultural, tendo em vista a concepção unitária de meio ambiente.
O direito à sadia qualidade de vida pressupõe que determinado
ambiente deve buscar o atendimento às necessidades físicas e espirituais (e
psíquicas) da população, aspectos que legitimam o usufruto dos bens culturais.
O princípio do desenvolvimento sustentável requer a adoção de
medidas que permitem o uso racional dos recursos, articulando o
desenvolvimento econômico e a preservação ambiental no interesse das
presentes e das futuras gerações.
17
Ibid., p. 27.
16
Isso significa, no caso do patrimônio edificado, a preservação de
bens protegidos, a fim de que não sejam destruídos por ações predatórias ou que
sejam usos sejam incompatíveis.
A prevenção determina que o poder público e a coletividade atuem
de forma a evitar e prevenir a ocorrência de danos, em situações já conhecidas e
previsíveis. A aplicação do princípio na esfera cultural é fundamental, uma vez
que a recuperação ou restauração de bens culturais nem sempre é viável. Os
bens culturais são únicos e a destruição do patrimônio cultural é, nesse caso,
irreversível.
O princípio da função social da propriedade aplica-se aos bens
culturais, uma vez que na legislação há meios para regulamentar o seu exercício.
Por exemplo, sobre o bem tombado recaem restrições quanto ao exercício do
direito de propriedade (uso, conservação, visibilidade, alienação), tendo em vista
a relevância cultural e social dos bens protegidos.
A participação vem a demonstrar que a sociedade civil assume o
status de parceira com os organismos estatais na tarefa de zelar pelo meio
ambiente. Trata-se da concretização do fundamento da cidadania na esfera
ambiental.
Nas questões relativas ao ambiente cultural, a participação dos
cidadãos e associações nos conselhos de preservação e em audiências públicas
é uma manifestação concreta do princípio.
A solidariedade intergeracional representa os vínculos que devem
ser estabelecidos entre as gerações presentes e as gerações futuras na utilização
do ambiente de forma sustentável. Ou seja, a utilização de instrumentos de
17
proteção é fundamental para a conservação do patrimônio cultural, de modo que
possa ser usufruído também pelas gerações futuras.
1.5 Princípios específicos da tutela ao patrimônio cultural
1.5.1 Preservação no próprio sítio e a proteção do entorno
O princípio da preservação do próprio sítio e de seu entorno
foi estabelecido pela Carta de Veneza, declaração internacional de princípios
norteadores das ações de restauro, da qual o Brasil é signatário.18
A declaração foi elaborada em maio de 1964, durante a
realização do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos
Monumentos Históricos. Nesse encontro, também foi fundado o Icomos (Conselho
Internacional de Monumentos e Sítios), organização não governamental que atua
junto à Unesco.
O art. 7º da Declaração dispõe que o monumento é
inseparável da história da qual é testemunho e do meio em que surgiu ou está
situado. Não se admite o deslocamento do monumento ou parte dele, a não ser
para salvaguardá-lo ou em razão de grande interesse nacional ou internacional
(art. 8º).
A finalidade dessas regras é conservar os vínculos do bem
cultural com a comunidade em que está situado e manter a harmonia do conjunto
em termos estilísticos. Como se afirmou, exceções são possíveis desde que a
18
Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=17575&sigla=
Institucional&retorno=paginaInstitucional>. Acesso em: 09/03/2014.
18
única hipótese de preservar o bem é retirá-lo “de seu assento original, quer para
garantir sua preservação propriamente dita, quer para inseri-lo numa política mais
adequada de valorização”19
.
1.5.2 Uso compatível com a natureza do bem
É recomendável que o bem cultural protegido tenha uso
compatível com suas características (sem esquecer que a falta de uso também é
causa de deterioração). Contudo, há situações em que um sítio arqueológico deve
permanecer intangível para não correr o risco de desaparecer. Um exemplo é o
Coliseu de Roma, que estará “fadado a ser, para sempre uma imponente ruína.
Nem seria razoável, para mantê-lo vivo, restabelecer jogos de circo ou,
adaptando-o aos tempos modernos, transformá-lo em um estádio esportivo”20
.
Ressalte-se que não é possível a determinação prévia de uso,
uma vez que um bem não é preservado pelo uso (que pode ser alterado), mas por
sua relevância cultural. O que pode e deve ocorrer é a análise da adequação de
uso.21
19
Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito
ambiental, p. 175. Por essa razão, no Egito, foram removidos antigos templos e monumentos
para a construção da represa de Assuã. Na cidade de São Paulo, um monumento em homenagem
ao arquiteto Ramos de Azevedo foi retirado de sua área original para a construção da linha norte-
sul do Metrô e remontado no campus da Cidade Universitária (USP), onde está desde 1972. Em
Curitiba, uma casa de madeira típica da arquitetura dos imigrantes poloneses, foi trasladada, pois
a ambientação original, de características rurais, não mais existia em função do processo de
urbanização na região em que estava. A mudança de local ampliou sua visibilidade ao ser
recolocada num terreno localizado na área central da cidade.
20
Roberto Marinho e Azevedo, Algumas divagações sobre o conceito de tombamento, p. 80.
21
Em função da conservação do bem, há usos adequados e inadequados. Por isso, “se
determinado imóvel acha-se tombado, sua conservação se impõe; em função disto é que se pode
coibir formas de utilização da coisa que, comprovadamente, lhe causem dano, gerando sua
descaracterização. Nesse caso, poder-se-ia impedir o uso danoso ao bem tombado, não para
determinar um uso específico, mas para impedir o uso inadequado”. Sônia Rabello de Castro, O
Estado na preservação dos bens culturais, p. 108.
19
É possível atribuir um novo uso ao bem cultural, readaptando-
o para uma finalidade que seria diversa de sua “vocação natural”. Entretanto, há
que se ter cautela e avaliar o estado de conservação do imóvel e o volume de
usuários que passarão a frequentá-lo e, em alguns casos, realizar-se um estudo
da avaliação de impacto ambiental. Não basta simplesmente declarar o bem
cultural tombado ou protegido, visto que o poder público deve assegurar-lhe um
uso compatível.22
A legislação brasileira não faz referência explícita ao princípio,
mas ele pode ser deduzido da Constituição Federal (art. 216, § 1º, c/c o art. 23,
inc. III), que impõe o dever genérico de proteção. A legislação ordinária (o art. 17
do Decreto-lei 25/37) tipifica a conduta de dano ao bem tombado, nos seguintes
termos:
Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser
destruídas, demolidas ou mutiladas, nem sem prévia autorização
especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de
cinquenta por cento do dano causado.
A responsabilidade é erga omnes, ou seja, é imputada ao
proprietário, ao possuidor e todo aquele que danificar, mutilar ou destruir um bem
protegido. Causar dano também está relacionado às hipóteses “do uso
inadequado do bem, ou até o exercício de determinadas atividades na vizinhança,
próxima ou remota, do bem tombado que lhe venham a causar prejuízo”23
.
22
Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito
ambiental, p. 179.
23
Sônia Rabello de Castro, O Estado na preservação dos bens culturais, p. 109.
20
Decisão do extinto Tribunal Federal de Recursos confirma
esse entendimento, ao determinar que uma torrefação de café localizada na
vizinhança de uma igreja tombada adquirisse novas máquinas, uma vez que os
equipamentos utilizados provocavam danos (fendas) que comprometiam a
estabilidade da construção. 24
1.5.3 Pro monumento
O princípio pro monumento está expresso na Convenção da
Unesco para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, que
define os bens que podem ser considerados para inscrição na Lista do Patrimônio
Mundial. 25
Cabe aos Estados signatários identificá-los, assumir o
compromisso de preservá-los, além de conservar os bens não incluídos nessa
lista e que, eventualmente, possam ter valor universal excepcional (art. 12 da
Convenção).
Nesse sentido, já é possível identificar na jurisprudência
nacional a chancela para “uma espécie de benefício da dúvida, ao possibilitar que
se busque no Judiciário a tutela de bens ainda não reconhecidos como culturais,
24
Tribunal Federal de Recursos – Apelação Cível nº 177 – 06.04.49 – Revista dos Tribunais, vol.
191, maio de 1951, p. 378-98.
25
Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=244>. Acesso em:
09/03/2014.
21
pelo Poder Executivo ou Legislativo”26
.
1.5.4 Fruição coletiva
O princípio pode ser deduzido do caput, do art. 215 da
Constituição Federal, segundo o qual é incumbência do Estado garantir a todos o
pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional,
além de apoiar e incentivar a valorização e difusão das manifestações culturais.
A inclusão de um bem de propriedade particular no rol do
patrimônio cultural não significa que foi transferido para o domínio público, mas
que se submete a um regime diferenciado, inclusive no que se refere ao usufruto
pela comunidade. Nesse caso, o acesso às fontes da cultura nacional é
concretizado por meio do direito de visita e pelo direito de informação.
Na legislação brasileira, não há previsão explícita do direito de
visitação a bens particulares com reconhecido valor cultural, embora essa
possibilidade já exista em outros países.27
26
É o caso da decisão exarada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Apelação cível nº
97.001063-0, de Criciúma. Relator: Des. Silveira Lenzi. J. 24-08-1999): “AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
PATRIMÔNIO CULTURAL. AUSÊNCIA DE TOMBAMENTO. IRRELEVÂNCIA. POSSIBILIDADE
DE PROTEÇÃO PELA VIA JUDICIAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 216, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. Não há qualquer exigência legal condicionando a defesa do patrimônio cultural –
artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico – ao prévio tombamento do bem, forma
administrativa de proteção, mas não a única. A defesa é possível também pela via judicial, através
de ação popular e ação civil pública, uma vez que a Constituição estabelece que ‘o Poder Público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por
meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de
acautelamento e preservação (art. 216, § 1º).” Decisão transcrita por Ana Maria Moreira
Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental, p. 184.
27
Na legislação espanhola, por exemplo, “os bens de interesse cultural (privados) podem ser
objeto de estudos por pesquisadores bem como receber visita pública por pelo menos quatro dias
por mês. Em casos especiais, a visitação pode ser substituída pelo depósito em local seguro e que
reúna condições para a exibição pública pelo período máximo de cinco meses de dois em dois
anos”, segundo Marcos Paulo de Souza Miranda, Tutela do patrimônio cultural brasileiro:
doutrina – jurisprudência - legislação, p. 32.
22
Entretanto, o Poder Judiciário já se mostra sensível à
aplicação desse direito, como se pode observar na decisão abaixo transcrita:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIVRE ACESSO E
PRESERVAÇÃO DE PATRIMÔNIO PAISAGÍSTICO, HISTÓRICO
E CULTURAL. FORTE DOS REIS MAGOS E PRAIA DO FORTE.
O direito de uso de terreno de marinha ou acrescido não
compreende o de impedir o acesso a bem público de uso especial
nele encravado nem o de restringir a fruição de bem comum do
povo (TRF – 5ª R. – AC – Apel. Cív. – 243633 – RN – Proc.
200105000047266 – 3ª T. – Rel. Des. Federal Ridalvo Costa – J.
13.5.2004).
1.5.5 Vinculação dos bens culturais
O princípio da vinculação dos bens culturais é deduzível do
art. 23, inc. IV da Constituição Federal, que dispõe sobre a competência comum
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de adotar medidas
que impeçam “a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de
outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”.
Assim, os bens culturais protegidos devem ser mantidos nos
seus locais de origem, tendo em vista a relevância para a memória e a identidade
nacional. Admite-se, contudo, a saída temporária para o exterior com a finalidade
23
de intercâmbio cultural ou científico. Por isso, a legislação veda a saída definitiva
do Brasil desses bens.28
Além disso, o país aderiu aos termos da Convenção da
Unidroit sobre bens culturais furtados ou ilicitamente exportados, que ocorreu em
Roma, no ano de 1995.29
Nesse encontro, foi redigido o documento que prevê a adoção
de medidas para refrear o comércio ilícito de bens de valor cultural reconhecido e
que também estabeleceu regras mínimas para a restituição e o retorno desses
bens a seus países de origem.30
O comércio ilícito desses bens e a pilhagem de sítios
arqueológicos provocam graves danos ao patrimônio cultural dos países, das
comunidades tribais e autóctones e ao patrimônio comum da humanidade. Os
danos, geralmente irreparáveis, são a causa da perda de informações de
natureza arqueológica, histórica e científica.
A Convenção, além disso, não aprova ou legitima o comércio
ilícito ocorrido antes de sua entrada em vigor, especialmente em períodos de
guerra ou conquista.
No entanto, essas medidas ainda se mostram ineficazes para
evitar o comércio ilícito do patrimônio cultural brasileiro com o exterior.
28
Art. 14 do Decreto-Lei nº 25, de 30-11-1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e
artístico nacional; art. 20 da Lei nº 3.924, de 26-07-1961, que dispõe sobre os monumentos
arqueológicos e pré-históricos; arts. 1º a 3º da Lei 5.471, de 10-07-1968, que dispõe sobre a
exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros.
29
Incorporada ao ordenamento jurídico nacional, nos termos do Decreto nº 3.166, de 14 de
setembro de 1999.
30
O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) é uma organização
internacional independente, cujo objetivo é estudar formas de harmonizar e coordenar o direito
privado entre os Estados e preparar a adoção de uma legislação de direito privado uniforme.
Fundada em 1926, tem sua sede em Roma, na Itália. Disponível em:
<http://www.gddc.pt/cooperacao/materia-civil-comercial/unidroit.html>. Acesso em: 09/03/2014.
24
1.5.6 Cooperação internacional
O fundamento constitucional do princípio está disposto no art.
4º, inc. IX, ao prescrever que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais
pelo princípio da cooperação entre os povos.
Na legislação ordinária, a Lei Federal 9.605/98 (Lei dos
Crimes Ambientais), dispõe no art. 77, que, com o resguardo da soberania
nacional, da ordem pública e dos bons costumes, o Governo brasileiro prestará,
na esfera do meio ambiente, a necessária cooperação a outros países, sem
quaisquer ônus, nas seguintes hipóteses: I – produção de prova; II – exame de
objetos e lugares; III – informações sobre pessoas e coisas; IV – presença
temporária da pessoa presa, cujas declarações tenham relevância para a decisão
de uma causa; V – outras formas de assistência permitidas pela legislação em
vigor ou pelos tratados de que o Brasil seja parte.
Na esfera internacional, a Convenção para a Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972) declara que é incumbência dos
signatários defender o “patrimônio cultural e natural de valor universal
excepcional, mediante a prestação de uma assistência coletiva que, sem
substituir a ação do Estado interessado, a complete eficazmente”31
.
A tutela ao patrimônio cultural requer a colaboração dos
países e de organizações internacionais, em virtude do volume dos recursos
econômicos, científicos e técnicos exigidos.
Ademais, os países que firmaram a Convenção
comprometem-se a assegurar a identificação, a proteção, a conservação, a
31
Disponível em: <http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 15/03/2014.
25
valorização e a transmissão às gerações futuras desse patrimônio. Seja com a
alocação de recursos necessários ou pela busca de assistência e cooperação
internacional no âmbito financeiro, artístico, científico e técnico.
Uma questão relacionada à aplicação do princípio diz respeito
à colaboração para impedir o comércio ilícito de bens culturais. A matéria é
disciplinada pelo Decreto nº 3.166, de 14 de setembro de 1999, que incorporou ao
ordenamento positivo a Convenção da Unidroit sobre bens culturais furtados ou
ilicitamente exportados.
1.6 O conceito de cultura
A primeira questão a enfrentar diz respeito à terminologia, pois
cultura é um vocábulo que apresenta diversos significados.
O senso comum associa cultura à atividade reservada à elite, aos
poucos que têm acesso a formas de representação (pintura, escultura, teatro,
música erudita) que não fazem parte do dia a dia da maioria da população. Nesse
sentido, cultura “é privilégio de um grupo restrito, formado por pessoas dotadas de
sabedoria, conhecimento ou capacidade para apreciar e usar esse patrimônio”32
.
Cultura também pode estar relacionada à maturidade espiritual do
indivíduo, à “formação do homem, o seu melhorar-se e refinar-se”33
.
Outro significado, influenciado pela filosofia iluminista, vê na cultura
o resultado do desenvolvimento e do progresso, como o “o conjunto dos modos
32
Eunice Ribeiro Durham. Cultura, patrimônio e preservação. In: Antonio Augusto Arantes (org.),
Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural, p. 24-25.
33
Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 209.
26
de viver e de pensar cultivados, civilizados que se costuma indicar pelo nome de
civilização”34
.
Na perspectiva antropológica, abrange tudo o que resulta da criação
humana, como objetos, saberes e realizações partilhadas pelos membros de uma
determinada sociedade. É constituída pelo trabalho humano e comportamentos
sociais, pelos valores, pela história e pelas instituições que revelam o modo de
vida, a identidade e a singularidade de um agrupamento humano.35
Sobretudo a partir de Kant (século XVIII), inicia-se a separação e
depois a oposição entre natureza e cultura, com a esfera cultural referindo-se ao
mundo do valor (o dever-ser), em contraposição ao mundo do ser (a realidade).36
Esse dualismo revelou-se falso, pois a cultura não é uma realidade
apartada da natureza; pelo contrário, o mundo natural e o mundo cultural são
duas esferas complementares da realidade. O processo de reordenação e
intervenção humana no mundo natural resulta naquilo que chamamos de cultura;
ou seja, a cultura surge e se desenvolve a partir da interação com a natureza.37
O fato é que a cultura está presente em todos os aspectos da vida
humana. Inclui tanto a produção material como a produção simbólica – as ideias,
os valores, as instituições, a religião, a arte, as crenças, as leis, os usos e
34
Ibid., p. 209-210. Não civilizado é o membro de uma sociedade primitiva ou atrasada, não
civilizada, portanto. O vocábulo civilização também pode ser empregado com o sentido de fase,
estágio ou evolução de uma determinada sociedade ou cultura, não como oposição entre
sociedades primitivas e sociedades evoluídas. Ibid., p. 132-133.
35
Ibid., p. 212-213.
36
Marilena Chauí, Natureza, cultura, patrimônio ambiental. In: Ana Lúcia Duarte Lanna (org.),
Meio ambiente: patrimônio cultural da USP, p. 49.
37
Para Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 28, natural é “uma expressão técnica
para indicar os elementos que são apresentados aos homens sem a sua participação intencional,
quer para o seu aparecimento, quer para o seu desenvolvimento, dizemos que formam aquilo que
nos é ‘dado’, o ‘mundo natural’, ou puramente natural. ‘Construído’ é o termo que empregamos
para indicar aquilo que acrescentamos à natureza, através do conhecimento de suas leis visando
a atingir determinado fim.”
27
costumes, as normas de comportamento, o modo de vestir e os hábitos
alimentares.
A cultura, entretanto, não é constituída tão somente pelo trabalho de
modificação da natureza realizado pelo homem, uma vez que os bens naturais
normalmente estão catalogados no patrimônio cultural, como no caso das
florestas e paisagens naturais.
Assim é que o Decreto-Lei nº 25/37, norma que foi recepcionada
pela Constituição de 1988 com o status de lei ordinária, inclui entre os bens que
integram o patrimônio histórico e artístico nacional os monumentos naturais (art.
1º, caput), bem como os sítios e paisagens de feição notável, dotados pela
natureza ou transformados pela ação humana (art. 1º, § 2º).
Alguns bens foram tombados com esse fundamento legal: o Morro
do Pão de Açúcar (Rio de Janeiro, RJ, em 1973), a Serra do Curral (Belo
Horizonte, MG, em 1960), as grutas do Lago Azul e Nossa Senhora Aparecida
(Bonito, MS, em 1978), a Gruta do Mangabeira (Ituaçu, BA, em 1962).38
É a Lei Fundamental que estabelece os critérios para a seleção dos
bens que serão incorporados ao patrimônio cultural. É por isso que na perspectiva
unitária de meio ambiente adotada pela Constituição os bens naturais podem ser
incorporados ao patrimônio cultural oficialmente reconhecido, visto que o art. 216
não faz qualquer restrição nesse sentido. É o que ocorreu no caso do Parque
Nacional da Serra da Capivara (São Raimundo Nonato, PI), que foi tombado em
1993, e do Morro do Pai Inácio (Palmeiras, BA), tombado em 2000).39
38
Todos os bens citados estão incluídos no Livro Arqueológico, etnográfico e paisagístico do Iphan.
Disponível em: <http://www.iphan.gov.br/ans/>. Acesso em: 05/02/2014.
39
Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=3263>. Acesso em:
20/05/2014.
28
Na esfera cultural, a dimensão simbólica é marcante. Dessa forma,
não se pode entender a cultura limitada a um enfoque utilitário e econômico, mas
pelo uso, pelo significado e pela capacidade de usufruir os bens culturais de uma
forma específica.40
Por isso, os bens culturais exercem diferentes funções na sociedade
e incorporam significações e valores relacionados a uma identidade coletiva,
definida em termos nacionais, regionais ou locais.41
De outra parte, o acesso à cultura por parte de grupos e classes
sociais é diferenciado. Em regra, as classes dominantes impõem seus padrões,
dirigem a produção cultural e usufruem dos bens culturais de maneira privilegiada.
A apropriação diferenciada dos elementos culturais é utilizada como forma de
identificação de determinados segmentos sociais, o que implica o
desenvolvimento de padrões estéticos e morais também diferenciados em
oposição a outros.42
Como elemento fundamental da civilização, o patrimônio ambiental
(natural e cultural) merece ser protegido. Enquanto o patrimônio natural é a
garantia de sobrevivência física da humanidade, o patrimônio cultural é a garantia
da sobrevivência social dos povos, como produto e testemunho de sua vida.43
40
Para Eunice Ribeiro Durham, a “cultura é uma elaboração humana que não apenas satisfaz as
necessidades materiais, mas satisfaz também outras necessidades. Aliás, muito do que
chamamos de cultura não tem nenhuma utilidade prática, e isso em todos os povos existentes na
terra. Boa parte deles gasta uma quantidade enorme de tempo para produzir objetos que são
economicamente inúteis, mas que são esteticamente satisfatórios, que são instrumentos para o
estabelecimento de relações entre as pessoas”. Eunice Ribeiro Durham, Cultura, patrimônio e
preservação. In: Antonio Augusto Arantes (org.), Produzindo o passado: estratégias de
construção do patrimônio cultural, p. 29. A autora cita como exemplos de expressões culturais
sem utilidade prática as pinturas corporais dos indígenas e os enfeites de bolos de casamento e
de aniversários.
41
Maria Cecília Londres Fonseca, O patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação no Brasil, p. 42.
42
Eunice Ribeiro Durham, patrimônio e preservação. In: Antonio Augusto Arantes (org.).
Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural, p. 31-32.
43
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Bens culturais e sua proteção jurídica, p. 16-17.
29
1.7 O conceito de patrimônio cultural
O patrimônio cultural é constituído por bens materiais (tangíveis) e
bens imateriais (intangíveis), sejam públicos ou privados.
No patrimônio material (tangível), estão os imóveis (casas, edifícios,
conjuntos urbanos, praças, igrejas), as cidades históricas, museus, objetos
(armas, ferramentas, louça, peças de decoração), as obras de arte (pintura,
escultura, artesanato, tapeçaria, monumentos), os documentos, joias, roupas,
móveis, sítios arqueológicos e paleontológicos, além dos bens ambientais
(bosques, matas, reservas de água). Ou seja, inclui coisas, objetos, artefatos e
construções adquiridas do meio ambiente ou produzidas pela ação e pelo
conhecimento adquirido.
O patrimônio imaterial (intangível) se expressa por meio da língua,
da gastronomia, do folclore, dos costumes, das tradições, das lendas, da música,
do teatro, das danças, das celebrações, das festas, das crenças, dos ritos, das
rezas, dos saberes.
Os bens materiais são corpóreos, têm forma, ocupam lugar no
espaço e são tangíveis (podem ser tocados, são palpáveis). É a partir de um
suporte44
específico que os bens materiais são criados e reconhecidos como tais.
Um quadro, por exemplo, é uma obra que requer uma tela, na qual está contida
uma representação pictórica.
Já os bens imateriais existem independentemente da forma ou do
suporte para existir ou se manifestar. É o caso de uma obra musical, que pode ser
44
Suporte é a peça em que algo é fixado; é qualquer coisa cuja finalidade é dar sustento; é a base
física de qualquer material (papel, plástico, madeira, tecido, filme ou fita magnética), na qual se
registram informações impressas, manuscritas, fotografadas ou gravadas. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa. Disponível em: <www.uol.com.br/biblioteca>. Acesso em: 05/03/2014.
30
propagada por meio de uma gravação em CD ou por outros meios (suportes). É
reconhecida como manifestação cultural a partir da ideia, qualidade ou sentimento
(aspectos imateriais) que desperta nas pessoas e não pelo meio como chega aos
receptores.
Isso não significa que os bens imateriais sejam meras abstrações,
mesmo porque é necessário que algum tipo de suporte para que se expressem e
sejam percebidos. Seria mais apropriado, em termos da relativa imaterialidade
desses bens, o uso da expressão patrimônio intangível, ao expressar o efêmero e
o transitório, que não se corporifica em produtos duráveis.45
A natureza jurídica de bens de uso comum do povo não converte os
bens culturais em bens fora do comércio, a não ser que façam parte do domínio
público. Entretanto, são gravados com restrições, tais como a autorização dos
órgãos de preservação para executar reformas ou para construir na área
envoltória de bens tombados, o direito de preferência do Estado para adquirir
bens culturais colocados à venda e as limitações impostas para a exportação
desses bens.
Um bem cultural pode ser desprovido de qualquer expressão
econômico. É o caso das ruínas históricas.
Quanto à titularidade, os bens culturais podem ser de domínio
público ou domínio privado e os titulares podem ser pessoas físicas ou jurídicas.
45
Maria Cecília Londres Fonseca. Para além da pedra e cal. In: Regina Abreu, Mário Chagas,
Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 68. Segundo a autora, talvez “o melhor
exemplo para ilustrar a especificidade do que se está entendendo por patrimônio imaterial – e
assim diferenciá-lo, para fins de preservação, do chamado patrimônio imaterial – seja a arte dos
repentistas. Embora a presença física dos cantadores e de seus instrumentos seja imprescindível
para a realização do repente, é a capacidade de os atores usarem, de improviso, as técnicas de
composição dos versos, assim como sua agilidade, como interlocutores, em responder à fala
anterior, que produz, a cada ‘performance’, um repente diferente. Nesse caso, estamos no
domínio do aqui e agora, sem possibilidade, a não ser por meio de algum registro audiovisual, de
perpetuar esse momento”.
31
No entanto, seja qual for o titular, o bem é considerado de interesse público, pois
se destina à fruição de todos os membros da comunidade.
Uma peculiaridade em relação aos bens culturais, sejam materiais
ou imateriais, é que sempre apresentam um componente imaterial, intangível46
. O
que distingue um bem cultural é a referência a evocações, representações,
lembranças, isto é, sentidos e significados, que são atributos imateriais.47
Nesse sentido, a constituição e a preservação do patrimônio cultural
é uma prática social em que se debate o que preservar, como fazê-lo e se
determina o significado e a relevância das manifestações culturais presentes na
sociedade. São questões controvertidas, pois se referem ao aspecto cultural do
processo político e mobilizam os mais diversos segmentos sociais na afirmação
de direitos, na relação da sociedade com sua cultura.48
46
Vale dizer, “por mais materiais que sejam, existe neles uma grandeza imaterial que é justamente
o que os faz culturais. A razão cultural da obra de arte não está no suporte nem nas tintas, mas na
imaterialidade, complexa deles criada. Uma casa, beleza natural, objeto ou instrumento tem valor
cultural não pelo material com o qual estão construídos, mas pelo que evocam, seja um estilo, um
processo tecnológico ou um fato histórico. A última casa de adobe de uma região não será
preservada por ser de adobe, mas porque, sendo de adobe e última, é uma referência a um
processo construtivo, portanto cultural”. Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Bens culturais e
sua proteção jurídica, p. 48.
47
Os bens culturais tangíveis “configuram-se a partir da conjugação de saberes, de técnicas, de
trabalhos, de valores e de elementos da natureza. Quando, sobre determinado artefato, incide, por
algum motivo, uma ação preservacionista, disposta a enquadrá-lo na categoria de patrimônio
cultural, é para essa conjugação complexa que essa ação está apontando. Em outros termos, a
preservação dos denominados ‘bens culturais tangíveis’ busca e assenta sua justificativa não na
materialidade dos objetos, e sim nos saberes, nas técnicas, nos valores, nas funções e nos
significados que representam e ocupam na vida social. Assim, é possível sustentar que aquilo que
se quer preservar como patrimônio cultural não são os objetos, mas seus sentidos e significados;
ou seja, aquilo que confere sentido ao bem tangível é intangível”. Mário Chagas, O pai de
Macunaíma e o patrimônio espiritual. In: Regina Abreu e Mário Chagas (org.), Memória e
patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 98-99.
48
O “interesse pela ‘defesa do passado’ conjuga-se, a meu ver, com a construção do ambiente
(lugar e território) onde se desenvolvem modos de vida diferenciados, muitas vezes contraditórios
entre si. Por essa razão, esse processo se estrutura em torno de intensa competição e luta política
em que grupos sociais diferentes disputam, por um lado, espaços e recursos naturais e, por outro
(o que é indissociável disso), concepções ou modos particulares de se apropriarem simbólica e
economicamente deles”. Antonio Augusto Arantes (org.), Produzindo o passado: estratégias de
construção do patrimônio cultural, p. 9.
32
A construção do patrimônio cultural, portanto, desvincula-se da
concepção abstrata e homogênea de cultura, que ignora a história e os processos
sociais na constituição dos valores.49
1.7.1 A origem e a evolução do conceito de patrimônio
cultural
No final do século XVIII, surge a ideia de preservação do
patrimônio cultural por influência do movimento iluminista. Disseminar o saber e
democratizar a experiência estética fazem parte do projeto filosófico e político do
Iluminismo50
.
A Revolução Francesa exerceu papel pioneiro na obra de
constituição de um patrimônio cultural, ainda que as ações dos diversos governos
revolucionários mostrem-se contraditórias, seja por falta de preparo e experiência
para governar, seja por conta dos conflitos ideológicos nas fileiras revolucionárias,
inclusive no que se refere à questão do patrimônio cultural.
De início, os revolucionários conviveram com o incêndio de
igrejas, a destruição de estátuas e o saque de castelos – a chamada destruição
ideológica realizada pelo povo, que procurava eliminar tudo o que lembrasse o
Ancién Regime, como os bens e símbolos do clero, da nobreza e da realeza. Isso
49
A preservação vista como prática social leva a “um processo de interpretação da cultura como
produção não apenas material, mas também simbólica, portadora, no caso dos patrimônios
nacionais, ‘de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade’ (...). Mesmo quando a iniciativa parte do Estado, esses valores precisam ser aceitos e
constantemente reiterados pela sociedade, a partir de critérios que variam no tempo e no espaço”
[Maria Cecília Londres Fonseca, Para além da pedra e cal. Regina Abreu, Mário Chagas (org.),
Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 69.
50
Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 89.
33
ocorreu num período de vácuo jurídico, especialmente marcado pela agitação
social e pela instabilidade política.
O poder revolucionário também pode ser responsabilizado
pela onda de vandalismo. Chegou ao ponto de estimulá-la, com a edição de
normas que autorizaram a destruição ideológica que se seguiu à fuga do rei
deposto, em 1792.51
O roubo, a pilhagem e o reaproveitamento de materiais para
reformas ou novas construções também serviram a finalidades econômicas e
privadas. O Estado francês tirou proveito disso ao apropriar-se de bens para
subvencionar despesas militares.52
Mesmo com tantas contradições, os governos revolucionários
foram pioneiros na adoção de medidas que favorecem a preservação do
patrimônio cultural. Assim, o Estado passa a adotar medidas para preservar e
valorizar os bens representativos da nação, com toda sua riqueza, diversidade e
independentemente de sua origem.53
O governo apropriou-se dos bens da Igreja Católica e da
nobreza. Instituiu uma comissão de monumentos para inventariá-los,
responsabilizar-se pelo acautelamento e pela definição de regras para sua
gestão. Esse acervo foi reunido em quatro grandes museus e abertos à visitação
pública.54
51
Ibid., p. 108.
52
Ibid., p. 106-107.
53
Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito
ambiental, p. 33.
54
Foram criados, em 1791, o Museu da República (atual Museu do Louvre), onde é reunida a
maioria das obras durante a Revolução, o Museu da História Natural, o Museu de Monumentos
Franceses (História Nacional) e o Museu de Artes e Ofícios (artesanato, cerâmica e estudos
etnográficos), de acordo com Reinaldo Dias, Turismo e patrimônio cultural: recursos que
acompanham o crescimento das cidades, p. 70. Também foi significativo o aumento de museus
pela Europa. No final do século XVIII, foram criados, por exemplo, o Museu Britânico, em Londres,
e o Museu Pio Clementino, em Roma. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 89.
34
Sob a influência francesa e com a ascensão da burguesia ao
poder, outros países europeus passaram a adotar medidas similares.55
A ação pioneira dos governos revolucionários antecipou a
política e os procedimentos adotados pelos governos franceses no século XIX,
como a criação da primeira Comissão dos Monumentos Históricos. O Estado
assumiu a proteção aos monumentos históricos (edificações) e ao acervo cultural,
atuação vinculada ao projeto de consolidação da Nação. Os monumentos
históricos foram tratados como símbolos que exaltam o orgulho e o sentimento
nacionais.
O patrimônio histórico e artístico vinculou-se ao Estado,
entendido como o representante dos interesses gerais da nação. A preservação
tornou-se uma atividade sistemática e ao interesse cultural foram agregados um
interesse político e uma justificativa ideológica. Nesse contexto, a preservação do
patrimônio cultural exerce algumas funções simbólicas56
:
 Reforço da noção de cidadania, com a identificação de
bens que não são de exclusiva posse privada, mas propriedade de todos os
cidadãos, utilizados em nome do interesse público. O Estado atua como guardião
e gestor desses bens;
 Os bens representativos da nação são identificados, ou
seja, a nação é demarcada no tempo e no espaço. O patrimônio cultural permite
55
A legislação francesa durante muito tempo serviu de referência, inicialmente na Europa, depois
pelo resto mundo. Em 1830, Guizot criou o cargo de Inspetor dos Monumentos Históricos, cuja
função era determinar o tombamento dos bens que deveriam fazer parte do patrimônio histórico.
Em 1887, foi promulgada a primeira lei sobre os monumentos históricos. Alterada em 1913, ainda
hoje é o texto de referência de proteção ao patrimônio. Essa lei criou o Serviço dos Monumentos
Históricos, órgão estatal dotado de uma poderosa infraestrutura administrativa e técnica. Ibid., p.
145 e 148.
56
Maria Cecília Londres Fonseca, O patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação no Brasil, p. 59.
35
que se torne visível e concreta a entidade ideal que é a nação, que também é
simbolizada por obras criadas expressamente com essa finalidade (bandeiras,
hinos, calendário, alegorias e obras de artistas plásticos). A necessidade de
proteger esse patrimônio comum reforça a coesão nacional;
 Esses bens são vistos como documentos, como provas
materiais das versões oficiais da história nacional, que ajudar a construir o mito de
origem da nação e uma versão da ocupação do território, com o objetivo de
legitimar as ações dos detentores do poder;
 A conservação desses bens – que é onerosa,
complexa e muitas vezes contraria a interesses – é justificada por seu alcance
pedagógico, a serviço da instrução dos cidadãos.
A criação do patrimônio cultural nacional permitiu o
fortalecimento do Estado, que encarna a ideia de Nação. Se cada classe social
instituísse seus próprios símbolos e definisse sua maneira de relacionar-se com o
tempo, o espaço, o invisível e o sagrado, os conflitos sociais não poderiam ser
controlados pela classe dominante nem pelo Estado. Assim, o primeiro símbolo
constituído pelo Estado é exatamente a Nação, que se torna objeto de cultos
cívicos. A partir disso, são catalogados os bens e instituídos os acontecimentos
nacionais, cujo valor não é avaliado pela materialidade, mas pela força simbólica
“e com eles o patrimônio cultural e ambiental e as instituições públicas
encarregadas de guardá-los, conservá-los e exibi-los.”57
A burguesia em ascensão tinha necessidade de fortalecer os
Estados Nacionais e se valeu dos símbolos associados à cultura. A valorização
do monumento excepcional, portanto, traduz um sentimento de orgulho nacional,
57
Mário Chagas, O pai de Macunaíma e o patrimônio espiritual. In: Regina Abreu e Mário Chagas
(org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 54.
36
visando à legitimação e o reconhecimento do Estado como representante da
Nação.58
No decorrer do século XIX, outros fatores contribuíram para a
valorização do patrimônio cultural.
A conservação e a restauração de bens recebeu o tratamento
de disciplina autônoma, a partir de descobertas científicas (no campo da física e
da química), das invenções de novas técnicas, além dos progressos da história da
arte e da arqueologia.
Ao criar uma nova civilização, a Revolução Industrial
representou uma ruptura traumática da história das sociedades. Transformou o
ambiente e alterou o relacionamento das pessoas com o meio em que viviam e
trouxe a consciência de que o patrimônio cultural poderia desaparecer se medidas
protetivas não fossem adotadas. Ou seja, “o monumento histórico inscreve-se sob
o signo do insubstituível; os danos que ele sofre são irreparáveis, sua perda
irremediável.”59
Desse modo, a opção por uma forma de progresso que ao
mesmo tempo destrói e reconstrói deveria ser compensada por ações que
mantivessem de pé os vestígios, as lembranças, a tradição, o passado digno de
ser preservado, representado pelos monumentos históricos. Daí a necessidade de
instituir um conjunto de normas para preservá-los.
Uma determinada concepção de patrimônio público perdurou
ao longo de todo o século XIX e boa parte do século XX, com uma regra básica:
somente poderiam estar associados à ideia de patrimônio os bens que
58
Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito
ambiental, p. 36-37.
59
Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 136.
37
apresentassem as características de monumentalidade, singularidade e
excepcionalidade.
Os bens culturais do passado tornaram-se objeto de culto e
de admiração pelo seu valor como obras de arte. Museus foram concebidos como
depositários de bens excepcionais e de coisas antigas. Espaços culturais que
passaram a ser frequentados, sobretudo, pelas camadas cultas, por intelectuais e
por aqueles diretamente vinculados às práticas de preservação (museólogos,
arquitetos, restauradores, historiadores), uma vez que o patrimônio situava-se no
domínio da cultura erudita e identificado com as elites.
O patrimônio cultural ficava, assim, circunscrito a períodos
históricos marcados por episódios militares e personagens emblemáticos, quase
sempre limitados à preservação de edifícios e monumentos públicos ou religiosos
e que representavam os interesses sociais dominantes.60
1.7.2 A ampliação do conceito de patrimônio cultural
Ao longo do século XX, a concepção elitista e restrita de
patrimônio cultural foi contestada e superada do ponto de vista conceitual, ao se
mostrar incapaz de lidar com a pluralidade e a complexidade da sociedade. Uma
suposta homogeneidade social era a justificativa para que a importância cultural
de determinados segmentos sociais fosse ignorada, como se não existissem ou
não tivessem contribuído para a formação da identidade nacional.
60
Pedro Paulo A. Funari; Sandra C. A. Pelegrini; Gilson Rambelli (orgs.), Patrimônio cultural e
ambiental: questões legais e conceituais, p. 9.
38
Nessa concepção, a política preservacionista atribui aos bens
patrimoniais características “de naturalidade, prestígio, sacralidade e consenso.”61
A ideia de naturalidade faz com que o patrimônio seja
“ideologicamente concebido como algo dotado de uma força originária, evidente e
legítima.”62
Seu prestígio tem origem em um passado ideal, constituído
por grupos sociais que se valem do “artifício da supremacia de um olhar culto, que
se contrapõe às ideias de ignorância dos fatos do passado e de incapacidade no
reconhecimento artístico de certas obras humanas.”63
A aura de sacralidade é uma abordagem do bem patrimonial
como algo inquestionável. O caráter consensual remete à suposta
“representatividade universal do patrimônio (como se ele não fosse objeto de
apropriações diversas por grupos diferentes).”64
Especialmente a partir da década de 1960, as concepções
dominantes são questionadas em relação ao distanciamento entre as instituições
de preservação e a população, além dos critérios de seleção dos bens que
constituíam o patrimônio cultural. Esse processo repercutiu na própria noção de
patrimônio cultural.65
A Carta de Veneza representou uma mudança de paradigma,
ao incluir na concepção de monumento histórico não apenas a criação
61
Cíntia Nigro Rodrigues, Territórios do patrimônio: tombamentos e participação social na
cidade de São Paulo, p. 18.
62
Ibid., p. 18.
63
Ibid., p. 18.
64
Ibid., p. 18.
65
Ibid., p. 18-19. Segundo a autora, as contestações surgem principalmente em função do grande
distanciamento entre as instituições de preservação e a população. Seja pela não participação
direta e efetiva da população nas decisões formuladas pelos órgãos de preservação, seja pelo
questionamento sobre quais bens deveriam ser selecionados para constituir o patrimônio cultural
Ibid., p. 19.
39
arquitetônica isolada, mas o meio em que está situado (urbano ou rural), que dá
testemunho de uma cultura particular.66
Ora, a centralidade do monumento isolado contribuiu para a
destruição de construções que no seu conjunto haviam constituído um ambiente
autêntico e representativo, “o que ocorreu, por exemplo, com a Catedral de Notre
Dame de Paris, cujas edificações medievais circundantes foram destruídas para
dar-lhe destaque.”67
Além disso, a Carta de Veneza atribuiu valor não só às
grandes criações, mas também às obras modestas que tenham adquirido com o
tempo uma significação cultural.
A Declaração de Amsterdã, documento que resultou do
Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu (1975), ressaltou a importância
da população na preservação do patrimônio cultural. Nesse sentido, a atividade
de preservação não deve ficar circunscrita aos especialistas, mas incluir a
coletividade, que deve ser informada, discutir e participar da tomada de
decisões.68
A ampliação da noção de patrimônio cultural pode ser
observada em três aspectos: tipológico, cronológico e geográfico.69
Tipológico, uma vez que o patrimônio passa a incluir os bens
culturalmente significativos, sejam os considerados monumentais e as obras
modestas da era medieval ou moderna (urbanas ou rurais), além dos edifícios da
era industrial, especialmente dos séculos XIX e XX.
66
A Carta de Veneza é o documento com as resoluções do II Congresso Internacional de
Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos (Icomos), realizado na cidade italiana entre 25 e
31 de maio de 1964. Disponível em: <www.iphan.org.br/cartas_patrimoniais>. Acesso em:
11/09/2010.
67
Danilo Fontenele Sampaio Cunha, Patrimônio cultural: proteção legal e constitucional, p.
80.
68
Disponível em: <www.iphan.org.br/cartas_patrimoniais>. Acesso em: 13/11/2011.
69
Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 15.
40
Cronológico, o que significa incorporar, além das obras do
passado, os produtos da era industrial e do presente.
Geográfico, uma vez que as políticas de conservação
ultrapassaram os limites europeus ou dos territórios sob seu domínio, o que
acaba por abranger praticamente o mundo todo.
Contudo, a ambiguidade e a contradição são as marcas da
preservação do patrimônio cultural. Assim, em após a Primeira e, sobretudo, após
a Segunda Guerra Mundial, destruiu-se e se conservou em escalas inigualáveis
em comparação a períodos históricos anteriores.
A eliminação deu-se em nome da defesa da propriedade
privada nos moldes liberais, as alegações de que é impossível preservar todo o
patrimônio cultural e que a conservação esteriliza a criação e a inovação, o que
serviu de justificativa para a “destruição progressista” a serviço de uma inovação
cultural e da modernização técnica, amplificadas pela especulação imobiliária.
Nessa época, surgem os primeiros documentos internacionais
voltados à proteção do patrimônio cultural. Em 1931, foram elaboradas as duas
Cartas de Atenas, documentos que resultaram de encontros promovidos pela
Sociedade das Nações e pelos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna), respectivamente.
A Conferência de Atenas, promovida pela Sociedade das
Nações, propõe normas e condutas em relação à preservação e conservação de
edificações, de aplicação e caráter internacional, para garantir a perpetuação das
características históricas dos monumentos.
No encontro, foram abordados as doutrinas e princípios gerais
da proteção, administração, valorização e legislação dos monumentos históricos,
41
a utilização de materiais de restauração, a deterioração de monumentos, as
técnicas de conservação e colaboração internacional, além de deliberações
específicas sobre a restauração dos monumentos da Acrópole, em Atenas.70
A Conferência de Atenas realizada pelos CIAM mostra a
preocupação com o rápido crescimento urbano, mas apresenta uma noção de
patrimônio restrito e seletivo. Ou seja, no “âmbito das cidades, o paradigma da
preservação se torna o monumento excepcional, isolado, testemunho de um
passado reinventado à luz das exigências do presente.”71
Ressalte-se que o papel desempenhado pelos CIAM em
relação ao patrimônio cultural recebeu críticas, pois suas concepções teriam dado
o suporte teórico que levou à mutilação de cidades, destruiu edifícios de prestígio
e antigas referências urbanas em nome de uma arquitetura funcional e atemporal,
isto é, desvinculada de referências históricas. Defendia-se abertamente a
destruição ou demolição de monumentos antigos, em nome da necessária
renovação de setores urbanos.
Na França, por exemplo, os últimos vestígios da arquitetura
da Belle Époque (período da cultura europeia que vai do final do século XIX até o
início da Primeira Guerra Mundial) forma eliminados.72
O Plan Voisin, de Le Corbusier (1925), que não foi
implementado, tinha como foco a destruição da velha Paris, poupando apenas
alguns monumentos de maneira aleatória, para nela erguer arranha-céus para
uma cidade de negócios. Essas propostas radicais de setores do modernismo
inspiraram a destruição de parcela significativa do patrimônio cultural depois da
70
Encontro promovido pela Sociedade das Nações, onde só participaram nações europeias.
Disponível em: <www.iconomos.org.br/cartadeatenas1931.pdf>. Acesso em: 11/09/2010.
71
Cíntia Nigro Rodrigues, Territórios do patrimônio: tombamentos e participação social na
cidade de São Paulo, p. 21.
72
Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 9 e 16.
42
Segunda Guerra Mundial, nos países do Magreb e do Oriente Próximo e
justificaram a destruição ou a adulteração dos bairros muçulmanos na Tunísia, na
Síria ou no Irã.73
O fato é que, mesmo com ambiguidades, a preservação foi
alçada à categoria de mentalidade e dogma que poucos tentam questionar. Seja
porque a conservação de objetos remete a um passado comum que contribui para
conformar identidades ou pelo fato de diversos grupos socais e suas
manifestações culturais, inclusive de um passado cada vez mais próximo, terem
sido incorporadas ao patrimônio cultural em ritmo cada vez mais acelerado,
especialmente a partir dos anos de 1960.
1.7.3 As diferenças na abordagem do patrimônio cultural
na Modernidade e na Pós-Modernidade
O tema do patrimônio cultural é abordado de maneiras
diferentes na Modernidade e na Pós-Modernidade.
O projeto da Modernidade destaca-se no século XVIII, como
expressão do ideário iluminista e associado à ideia de progresso e de ruptura com
a tradição. O Iluminismo revela-se, sobretudo, como “um movimento secular que
procurou desmistificar e dessacralizar o conhecimento e a organização social
para liberar os seres humanos dos seus grilhões.”74
A emancipação viria por meio de uma organização social,
fundada na igualdade e na liberdade e de modos racionais de pensamento, que
73
Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 16 e 126.
74
David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural,
p. 23.
43
libertaria o ser humano da opressão, dos conflitos, da ignorância e dos mitos. As
artes e as ciências iriam promover o controle das forças naturais, eliminado a
escassez e as necessidades materiais, além de promover o progresso moral, a
justiça e até mesmo a felicidade dos seres humanos.
O conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológico,
além disso, expressavam a capacidade, a inteligência e criatividade do homem
que o habilitavam a se tornar o sujeito dominador da história, da natureza e do
universo.75
O projeto da Modernidade era revolucionário, ambicioso e
com contradições internas que poderiam tornar-se insolúveis. É o caso da
liberdade econômica na esfera individual, que, muitas vezes, é incompatível com
a igualdade, com a justiça e até mesmo com a liberdade.
Essas contradições explicariam por que algumas de suas
metas ou promessas foram cumpridas, enquanto outras não. Os excessos foram
justificados como desvios fortuitos e os déficits como temporários, mas resolúveis
por uma maior e melhor utilização dos recursos materiais, intelectuais e
institucionais da modernidade.76
A Pós-Modernidade resulta de novas formas de organização e
de produção econômica (como as alterações no modo de produção do
capitalismo e a nova divisão global do trabalho), de novos hábitos sociais e de
mudanças culturais. O Pós-Modernismo é a forma cultural dominante da
75
Eduardo Subirats, A cultura como espetáculo, p. 36-37.
76
Boaventura de Sousa Santos, Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política
na transição paradigmática (v. 1. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência), p. 50-51.
44
sociedade pós-industrial, que reflete as transformações do capitalismo tardio ou
globalização, denominação que o consagrou.77
As condições políticas, econômicas e tecnológicas para a
globalização começaram a ser preparadas nos anos de 1950. Surgiram novos
produtos e novas tecnologias (inclusive na mídia), o que permitiu que se
lançassem as bases para um novo sistema econômico mundial. Na esfera
cultural, a produção estética da nova geração dos anos de 1960, entra em
confronto com o Modernismo. Foi absorvida e está integrada à produção de
mercadorias em geral, pois atende ao anseio do mercado por novidades,
inovação estética e experimentalismo.78
A expressão capitalismo tardio não significa o colapso ou o
fim do capitalismo, mas de transformação e continuidade. Hoje, o sistema
capitalista é diferente do antigo imperialismo, marcado pela rivalidade entre as
potências. Suas características são: (I) a organização das empresas
transnacionais; (II) a nova divisão internacional do trabalho, com a transferência
da produção para áreas do Terceiro Mundo; (III) a nova dinâmica vertiginosa de
transações financeiras e das bolsas de valores; (IV) o desenvolvimento das novas
tecnologias, que reduziram o custo do trabalho; (V) a crise do trabalho
tradicional.79
77
Segundo Frederic Jameson, professor de literatura nos Estados Unidos de orientação marxista,
capitalismo, é uma expressão criada por Ernest Mandel. Refere-se ao terceiro estágio do sistema
capitalista em que vivemos, conhecido como globalização. A periodização de Mandel é a seguinte:
capitalismo de mercado, capitalismo monopolista ou imperialista e capitalismo multinacional.
Frederic Jameson utiliza-se da terminologia capitalismo pós-industrial. Pós-modernismo: a lógica
cultural do capitalismo tardio, p. 22-24 e 62-63.
78
Ibid., p. 23 e 30.
79
Ibid., p. 22 e 24.
45
Os princípios que estruturam o projeto da Modernidade são
superados ou, pelo menos, contestados. A maioria dos autores afirma que
vivemos na era da Pós-Modernidade. 80
O primeiro traço da Pós-Modernidade é o enfraquecimento do
Estado-Nação, em vista do intenso processo de globalização, especialmente a
partir dos anos de 1980. A globalização econômica, reforçada pela revolução
tecnológica, logrou êxito em integrar os mercados e trouxe desdobramentos nos
âmbitos institucionais e jurídicos. A autoridade do Estado contemporâneo foi
abalada, com repercussões nas estruturas jurídicas e nas ações do Estado
Liberal (século XIX) e do Estado Social (século XX).
O modelo econômico de inspiração social-democrata do pós-
guerra começa a ser desmontado nos países desenvolvidos. O sistema jurídico-
político foi posto em xeque e “os principais atores não são estados-nações
democraticamente controlados, mas conglomerados financeiros não eleitos”.81
É um período marcada pela contestação das diversas
vertentes que contribuíram para construir a ideia de Modernidade (Iluminismo,
Idealismo e Materialismo). Rejeitam-se as metanarrativas, isto é, as
interpretações teóricas de aplicação pretensamente universal, típicas da
Modernidade. Não há mais razão de ser para esquemas interpretativos
“totalizantes”, como os produzidos por Marx ou Freud.82
Passa-se a desconfiar das visões de mundo fundamentadas
no racionalismo, na crença do progresso linear, nas verdades absolutas, em
80
É o caso de Zygmunt Bauman, David Harvey, Andreas Huyssen, Manuel Castells, Frederic
Jameson, Eduardo Subirats, Teixeira Coelho. Jürgen Habermas é uma das poucas exceções, ao
contestar a exaustão das ideias que deram origem ao projeto da modernidade, que ainda poderia
ser completado.
81
Zygmunt Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, p. 61.
82
David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural,
p. 49-50.
46
ordens sociais ideais. E, especialmente, no papel atribuído à filosofia e à ciência
como guias da humanidade na elaboração e construção dessa ordem racional e
emancipatória.
Voltando à questão do patrimônio cultural, gostemos ou não
de nosso passado, o tempo não pode ser abolido e até agora não há exemplos de
começos absolutos, como gostaria o pensamento utópico expresso na
Modernidade por diversas correntes de pensamento. E mesmo o rompimento
“com o passado não significa abolir sua memória nem destruir seus
monumentos”.83
Portanto, a regra é que “indivíduos e sociedades não podem
preservar e desenvolver sua identidade senão pela duração e pela memória.”84
De maneira surpreendente para muitos, o culto à memória se
manifestou como uma das preocupações culturais e políticas centrais das
sociedades ocidentais no final do século XX. A reverência ao passado contradiz a
ênfase dada ao futuro, característica da Modernidade nas primeiras décadas do
século XX. O fenômeno era (e é) acompanhado da comercialização bem sucedida
da memória por parte da indústria cultural. O passado vende mais que o futuro.85
Alguns exemplos desse fenômeno são observados na Europa
e nos Estados Unidos. A restauração historicizante de velhos centros urbanos, de
cidades e paisagens inteiras; a moda retrô; a literatura memorialística; o grande
número de remakes no cinema; o aumento do número de documentários de
83
Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 113. Por isso, os revolucionários russos, “que,
depois de 1917, conservaram intacta a cidade-símbolo do poder dos czares, São Petersburgo,
assim como seus palácios, onde o povo soviético vinha desfilar ritualmente diante dos
testemunhos de sua história e dos tesouros acumulados pelos soberanos, fundadores da nação”
Ibid., p. 113.
84
Ibid., p. 112-113.
85
Andreas Huyssen, Seduzidos pela memória, p. 24.
47
televisão, incluindo, nos Estados Unidos, um canal totalmente voltado para
história, o History Channel.86
A reavaliação do passado, acompanhada do medo no futuro,
num tempo em que a crença no progresso da Modernidade está profundamente
abalada, seria uma das causas desse culto à memória. A consciência temporal da
Modernidade no Ocidente procurou garantir o futuro, enquanto a consciência
temporal do final do século XX procura assumir a responsabilidade pelo passado,
como o Holocausto, os presos políticos desaparecidos na América Latina e o
apartheid na África do Sul.87
A Modernidade é vista como algo que enfraquece as tradições
e a velocidade das inovações técnicas, científicas e culturais, que lhes são
características, é um fenômeno que acaba por gerar instabilidade e sensação de
desordem. Nesse contexto, a memória e a musealização compensam essa perda
de estabilidade e de identidade cultural do homem moderno. Oferecem proteção
em face da “nossa profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o
contínuo encolhimento dos horizontes de tempo e de espaço.”88
É claro que a existência ou a perda de um passado melhor,
dos bons tempos, é mais sonho que plausível, pois a representação de um
passado ideal é mais forte que a realidade. É difícil glorificar o passado,
especialmente no século XX, com duas Guerras Mundiais, a Grande Depressão,
o totalitarismo (estalinismo e o nazismo), os genocídios, as limpezas étnicas, os
milhões de refugiados, as ditaduras e as crescentes desigualdades sociais e
econômicas.89
86
Ibid., p. 4.
87
Ibid., p. 17-18.
88
Ibid., p. 28.
89
Ibid., p. 31.
48
O futuro global, com sua negação de tempo, espaço e lugar,
gera desconfiança e nos voltamos às práticas de memória em busca de
conforto.90
De outra parte, Françoise Choay observa que o culto ao
patrimônio cultural é uma moda, que serve aos desígnios da indústria cultural.
Além disso, é irracional quando se volta ao “passadismo encantatório”, ideal que
nunca existiu. Teria, assim, “uma função defensiva, que garantiria a recuperação
de uma identidade ameaçada.”91
Portanto, segundo Choay, há de se repensar as práticas de
preservação. O patrimônio cultural deixaria de ser uma relíquia e objeto de um
culto irracional e o desafio posto é o de articular espaços destinados à habitação
com qualidade de vida, além de integrar o patrimônio cultural no quotidiano, isto
é, nas ações de planejamento urbano de competência do Poder Público.
Na Pós-Modernidade, observa-se também um fenômeno que,
aparentemente, contradiz o objetivo inicial das políticas de constituição do
patrimônio cultural. Dirigidas pelo Estado, tinham a pretensão de manter e
reafirmar as tradições e a identidade nacional. Identidade que necessita de
referências culturais para se legitimar e aglutinar a população em torno da ideia
de nação.
Ocorre que no mundo globalizado, o fluxo transnacional de
culturas, pessoas, informação e capital coloca em xeque essa política oficial,
havendo nesse sentido um questionamento dos traços supostamente comuns e
homogêneos que conformariam a identidade nacional.
90
Ibid., p. 36.
91
Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 241.
Tutela do Patrimônio Cultural em São Paulo
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Tutela do Patrimônio Cultural em São Paulo

  • 1. ANTONIO JOSÉ MOGADOURO A TUTELA AO PATRIMÔNIO CULTURAL E OS PROCESSOS DE INTERVENÇÃO URBANA ADOTADOS NA CIDADE DE SÃO PAULO MESTRADO EM DIREITO UNIMES/Santos 2015
  • 2. ANTONIO JOSÉ MOGADOURO A TUTELA AO PATRIMÔNIO CULTURAL E OS PROCESSOS DE INTERVENÇÃO URBANA ADOTADOS NA CIDADE DE SÃO PAULO Dissertação apresentada à banca examinadora da Universidade Metropolitana de Santos, como exigência para obtenção do título de Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, sob orientação da professora doutora Márcia Cristina de Souza Alvim. UNIMES/Santos 2015
  • 3.
  • 4. Dedico aos amigos Gilberto Tanos Natalini, Henrique Sebastião Francé, Edson Domingues e Élcita Ravelli. Aos meus pais, Francisco da Cruz Mogadouro (in memoriam) e Cecília Rosa Cordeiro Mogadouro. A Teresa Cristina Mogadouro, minha irmã, e a Chokem Roberto Miyagi, meu cunhado. Sem esquecer de Rosa Cruzato e Marco Antônio Cruzato, meus cunhados. E Lúcia Helena Cruzato, minha querida companheira.
  • 5. Agradeço à minha orientadora Márcia Alvim, pela confiança. Agradeço a ajuda de Walter Pires e de Lia Mayumi, servidores do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Eventuais falhas, omissões ou erros devem ser atribuídos exclusivamente ao autor.
  • 6. RESUMO Este trabalho tem como objetivo discutir as políticas públicas de preservação do patrimônio cultural na cidade de São Paulo, ao tentar compreender seu impacto e a participação das três esferas de governo e da sociedade civil na sua formulação e implementação. Esse patrimônio é analisado sob a ótica ambiental, como uma de suas dimensões, e a importância que desempenhou na constituição da identidade nacional. Procura-se analisar a repercussão das políticas federais de preservação no contexto local, desde os primórdios na década de 1930, até as transformações econômicas, sociais e políticas experimentadas pelo Brasil no processo de urbanização e no contexto da globalização. Palavras-chave: Patrimônio cultural. Políticas federais de preservação. Identidade nacional. Urbanização. Globalização.
  • 7. ABSTRACT This paper aims to discuss the public policy of preservation of cultural heritage in the city of São Paulo, to try to understand its impact and the participation of the three spheres of government and civil society in its formulation and implementation. This heritage is analyzed from the environmental point of view, as one of its dimensions, and the importance it played in the formation of national identity. Looking to analyze the impact of the preservation of federal policies on local contexts, from the very beginning in the 1930s, to the economic, social and political transformations experienced by Brazil in the urbanization process and the context of globalization. Keywords: Cultural heritage. Federal preservation policies. National identity. Urbanization. Globalization.
  • 8. SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................1 1. O PATRIMÔNIO CULTURAL..............................................................................5 1.1 Meio ambiente e patrimônio cultural..............................................................5 1.2 A natureza jurídica do bem ambiental ...........................................................8 1.3 Aspectos do meio ambiente ........................................................................11 1.4 Princípios do direito ambiental aplicáveis à tutela do patrimônio cultural ....15 1.5 Princípios específicos da tutela ao patrimônio cultural ................................17 1.5.1 Preservação no próprio sítio e a proteção do entorno ..........................17 1.5.2 Uso compatível com a natureza do bem...............................................18 1.5.3 Pro monumento ....................................................................................20 1.5.4 Fruição coletiva.....................................................................................21 1.5.5 Vinculação dos bens culturais...............................................................22 1.5.6 Cooperação internacional .....................................................................24 1.6 O conceito de cultura...................................................................................25 1.7 O conceito de patrimônio cultural ................................................................29 1.7.1 A origem e a evolução do conceito de patrimônio cultural....................32 1.7.2 A ampliação do conceito de patrimônio cultural....................................37 1.7.3 As diferenças na abordagem do patrimônio cultural na Modernidade e na Pós-Modernidade......................................................................................42 1.7.4 Os acordos internacionais.....................................................................49 1.7.5 Turismo e consumo cultural de massa..................................................53 2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A TUTELA DO PATRIMÔNIO CULTURAL...56 2.1 Competências em matéria de cultura ..........................................................57 2.2 O conteúdo do patrimônio cultural brasileiro ...............................................60 2.3 Seleção e gestão dos bens culturais ...........................................................63 2.4 A proteção ao patrimônio cultural como direito fundamental.......................66 2.4.1 As dimensões dos direitos fundamentais..............................................69 2.4.2 Direitos culturais como direitos de terceira dimensão...........................73 2.5 O compromisso com a sadia qualidade de vida ..........................................75 2.6 O Sistema Nacional de Cultural (SNC)........................................................76 2.7 O Plano Nacional de Cultura (PNC) ............................................................80
  • 9. 2.8 Os instrumentos de tutela ao patrimônio cultural.........................................80 3. A TRAJETÓRIA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL .................................................................................................................93 3.1 A criação do Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan)...............................................................................................93 3.2 A fase heroica............................................................................................102 3.3 A fase moderna .........................................................................................108 3.3.1 A consultoria internacional e o apoio técnico da Unesco....................112 3.3.2 O Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH) .....................................................................................................................115 3.3.3 O Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) ............................118 3.3.4 A unificação dos órgãos federais de preservação com o sistema Sphan/FNPM ...............................................................................................123 3.3.5 O Programa Monumenta ....................................................................128 3.3.6 O Plano de Aceleração do Crescimento das Cidades Históricas (PAC- CH) ..............................................................................................................128 4. A POLÍTICA DE ACAUTELAMENTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CIDADE DE SÃO PAULO...................................................................................131 4.1 A atuação do Sphan/Iphan em São Paulo.................................................133 4.2 Os órgãos de preservação do patrimônio cultural de São Paulo...............138 4.2.1 A atuação do Conpresp no contexto das políticas de planejamento urbano..........................................................................................................141 4.3 As ações de revitalização executadas na Cidade de São Paulo nas décadas de 1970 e 1980................................................................................................152 4.3.1 O Plano de Revitalização do Centro ...................................................160 4.3.2 O Projeto Luz Cultural.........................................................................163 4.3.3 A gestão de Jânio Quadros.................................................................167 4.4 As intervenções no Centro de São Paulo na década de 1990 ..................169 4.4.1 O governo de Luíza Erundina .............................................................178 4.4.2 A Associação Viva o Centro................................................................180 4.4.3 A cultura, o mercado e as transformações urbanas na década de 1990 .....................................................................................................................183 4.4.4 O Projeto Luz Cultural.........................................................................184
  • 10. 4.4.5 O Programa de Preservação e Recuperação do Patrimônio Histórico Urbano (Monumenta)...................................................................................185 4.4.6 O Programa Monumenta em São Paulo .............................................192 CONCLUSÃO .....................................................................................................200 REFERÊNCIAS...................................................................................................207
  • 11. 1 INTRODUÇÃO O patrimônio cultural é constituído por bens de valor histórico e estético e desempenha um papel fundamental para a conformação da identidade dos indivíduos e dos grupos sociais. A identidade cultural é um patrimônio comum constituído pela história, pela língua, pelas artes, pelas festas, pela religião, pela culinária, pelas tradições e por outras formas de expressão. É um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, inseridos num processo dinâmico e contínuo de construção de significados. O patrimônio cultural, ao incorporar-se na memória social, contribui para solidificar os laços que ligam as pessoas com o lugar em que vivem. A partilha de experiências consolida o sentimento de identidade e o vincula a um destino comum. Por isso, a memória é uma construção social e registra o processo de apropriação e de identificação com o espaço e as relações estabelecidas a partir desse reconhecimento. Daí a importância da preservação do patrimônio cultural, uma vez que não se pode prescindir de experiências anteriores representadas pelas referências culturais e pelos valores que incorporam e expressam. A memória desempenha funções políticas e sociais, mas é sempre parcial. Os grupos ou classes sociais, a partir de suas percepções da realidade, determinam o que é digno de ser perpetuado, o que é considerado relevante para constituir o patrimônio cultural. Portanto, o trabalho de identificação, proteção e gestão desse patrimônio é essencialmente político.
  • 12. 2 No caso do Brasil, apesar dos avanços, o núcleo do patrimônio cultural ainda é constituído por bens vinculados à elite política, econômica, intelectual e religiosa. Por isso, é imperativo buscar a efetivação dos direitos fundamentais inseridos na Constituição Federal, inclusive os direitos culturais, expressamente reconhecidos (art. 215) a todos os grupos sociais que constituem a sociedade brasileira e que contribuíram para a sua formação (art. 216). Este trabalho tem como foco o patrimônio cultural edificado e não o estudo de todas as expressões que constituem o fenômeno cultural. No capítulo 1, os bens culturais são analisados como uma das dimensões do meio ambiente, mais precisamente, do meio ambiente cultural. Ou seja, tratado como direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida (Constituição Federal, art. 225, caput) no sentido de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, CF). Daí ser necessária a implementação de políticas públicas que tornem viável o usufruto desse direito, para as presentes e para as futuras gerações. Nesse capítulo, também são abordados os conceitos de cultura e de patrimônio cultural e a forma como foram tratados ao longo do tempo. O capítulo 2 trata das competências em matéria de cultura dos entes que compõem a Federação (União, Estados e Município). Também se discute a seleção, o conteúdo e a gestão do patrimônio cultural como um direito fundamental. Além disso, são arrolados os meios de tutela previstos no ordenamento jurídico, que, com a entrada em vigor da Constituição de 1988 incorporou outros instrumentos, além do consagrado instituto do tombamento.
  • 13. 3 O capítulo 3 analisa a trajetória da preservação do patrimônio cultural no Brasil, a partir do governo de Getúlio Vargas, especialmente no período de 1937 a 1945. Nessa fase, são notáveis os esforços do regime de construir e consolidar uma ideia de Nação. Verifica-se que o trabalho dos intelectuais modernistas, aliados do governo nessa empreitada, é essencial para definir as políticas de constituição, preservação e gestão do patrimônio cultural. O aparato jurídico e burocrático que dá suporte à política de preservação resulta na criação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o atual Iphan), a autarquia federal que recebeu a tarefa de executar a política de preservação cultural. Com a edição do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, o Sphan recebeu a competência para estabelecer os critérios de preservação, tendo no tombamento o principal meio para concretizar suas ações. Será demonstrado que a ampliação da concepção de patrimônio, tanto no âmbito internacional como no contexto nacional, levou a alterações conceituais que influenciaram as ações do órgão federal de preservação, especialmente a partir da segunda metade da década de 1960, e que foram incorporadas pela Constituição de 1988. Por conta da ampliação desse conceito, que deixa de ser exclusivamente o monumento construído excepcional, as questões patrimoniais passam a fazer parte dos processos de planejamento urbano e são grandes os questionamentos em torno do uso social do patrimônio, sobretudo a partir dos anos de 1970.
  • 14. 4 O capítulo 4 expõe um quadro das políticas de acautelamento do patrimônio cultural no Brasil e em São Paulo. A partir de 1995, a atuação do Ministério da Cultura passou a ganhar maior relevância, o que não significou necessariamente a busca pela efetivação dos direitos culturais assegurados pela Constituição Federal. Assim, em projetos formulados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), especialmente o Programa Monumenta, foram implementadas ações voltadas para a recuperação do patrimônio edificado, norteadas fundamentalmente por questões econômicas e não pela busca da valorização cultural e da inclusão social. Como se verá, a relação do patrimônio cultural com as ações de planejamento conduzidas pelo poder público é caracterizada por interesses conflitantes entre os diferentes setores da sociedade na disputa pelos territórios ou espaços urbanos. Apesar disso, essas políticas são implementadas em nome do interesse geral, do bem comum e formalmente expressam concepções ditas modernas e sustentáveis.
  • 15. 5 1. O PATRIMÔNIO CULTURAL 1.1 Meio ambiente e patrimônio cultural O patrimônio cultural é uma das dimensões do meio ambiente, ou seja, trata-se do meio ambiente cultural ou patrimônio cultural. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à sadia qualidade de vida, como dispõe a Constituição Federal (art. 225, caput). Assim, o usufruto de uma vida saudável é uma forma de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, CF). Nesse sentido, a efetividade desses objetivos é aferida pela implementação de políticas públicas que tornem viável a preservação do meio ambiente saudável, para as presentes e para as futuras gerações. O ambiente ecologicamente equilibrado consagrou-se como direito fundamental. É patrimônio a ser tutelado pelo poder público (no âmbito legislativo, administrativo e judicial) e pelos entes federados, aos quais a Constituição Federal atribuiu competências na área ambiental (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). À coletividade (pessoas físicas e associações) também é atribuído o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo (art. 225, caput, CF). A qualidade de vida e o bem-estar dependem da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente os direitos previstos no art. 5º e os direitos sociais inseridos no art. 6º da Constituição: educação, saúde, trabalho, moradia,
  • 16. 6 lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Além disso, a Constituição reconhece o direito à cultura (art. 215) e protege o patrimônio cultural brasileiro e todas as suas manifestações (art. 216). Compreendido de forma unitária (integral ou holística), o meio ambiente não se limita apenas ao aspecto natural. Incorpora todos os aspectos que garantam o meio ambiente equilibrado e a sadia qualidade de vida, tal como dispõe o caput do art. 225 da Lei Fundamental. Ou seja, “tudo o que cerca (e condiciona) o homem em sua existência e o seu desenvolvimento na comunidade a que pertence e na interação com o ecossistema que o cerca”1 . A Constituição de 1988 consagra ao tema da cultura os artigos 215 e 216. O art. 215 garante a todos o direito ao exercício dos direitos culturais, o acesso às fontes da cultural nacional, além do apoio e incentivo a valorização e difusão das manifestações culturais. O art. 216, caput, define o patrimônio cultural como conjunto dos bens materiais e imateriais que são portadores de referências à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileiro. No parágrafo 1º, há uma relação exemplificativa dos instrumentos de preservação: inventário, registro, vigilância, tombamento e desapropriação. A Constituição é precisa ao utilizar-se da expressão patrimônio cultural, entendida de maneira ampla e como gênero, sendo espécies o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, paleontológico, etnográfico, turístico, além do patrimônio imaterial. Portanto, é uma “concepção abrangente de todas as 1 Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores, p. 35.
  • 17. 7 expressões simbólicas da memória coletiva, constitutiva da identidade de um lugar, uma região e uma comunidade”2 . Apesar disso, em outros pontos da Constituição são mantidas expressões antigas e imprecisas, que confundem gênero com espécies. Vejamos. A ação popular pode ser ajuizada em caso de ameaça ou lesão ao patrimônio histórico e cultural (art. 5º, inc. LXXIII). É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a proteção aos “documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (art. 23, inc. III) e, no inc. IV, para as “obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”. Há referência à competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre a “proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (art. 24, inc. VII). A responsabilidade por dano compreende bens e direitos de valor “artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico” (art. 24, inc. VIII). O art. 30, inc. IX, dispõe sobre a competência dos Municípios para promover o acautelamento do “patrimônio histórico-cultural”. 2 José Afonso da Silva, Ordenação constitucional da cultura, p. 101. De outra parte, patrimônio cultural brasileiro “é expressão jurídica que abrange não só o patrimônio cultural estabelecido pela União, mas também o estabelecido pelos Estados e Municípios. Se a Constituição falasse em patrimônio cultural nacional, então poder-se-ia entender que ela só estivesse mencionando o patrimônio cultural organizado pelo Governo Federal. A leitura do § 216 ajuda a esclarecer essa temática”.
  • 18. 8 1.2 A natureza jurídica do bem ambiental O direito ambiental tem como objetivo a satisfação das necessidades humanas, ao colocar em relevo o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 3º, inc. III, CF). A dignidade, nesse sentido, permeia a interpretação e a aplicação das normas constitucionais e da legislação ordinária, o que demonstra a opção antropocêntrica que confere ao ser humano “uma posição de centralidade em relação ao nosso sistema de direito positivo”3 . Entretanto, há que se compatibilizar esse postulado com a defesa da vida em todas as formas, como prescreve o art. 3º da Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Isso é viável, porque o direito ambiental protege todas as formas de vida, mas a vida que não seja humana só merece tutela quando “sua existência implique garantia da sadia qualidade de vida do homem, uma vez que numa sociedade organizada este é destinatário de toda e qualquer norma”4 . A tradicional divisão entre bens públicos e particulares, de cunho civilista, não se aplica ao bem ambiental, incluído em nova categoria instituída pela Lei Fundamental, que são os bens de uso comum do povo. Uma terceira espécie de bem, que não é público e nem privado, mas se refere a direitos metaindividuais (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos).5 A concepção civilista de direito, de fundamentação liberal, tornou-se hegemônica a partir do século XIX e privilegiou o direito individual como forma de resolver conflitos sociais. Contudo, mostrou-se pouco eficiente para a resolução 3 Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 65. 4 Ibid., p. 66. 5 Ibid., p. 53.
  • 19. 9 de conflitos com a constituição da sociedade de massas no século XX. Não é mais possível compor litígios exclusivamente com base na dicotomia público/privado. Assim, o instrumental jurídico teve de amoldar-se a uma configuração social mais complexa. E os direitos metaindividuais revelaram-se apropriados para dirimir impasses de massa ou coletivos, especialmente após a Segunda Guerra Mundial.6 A Constituição de 1988, elaborada nesse contexto, conferiu ao meio ambiente o status de bem de uso comum do povo. Os interesses transindividuais foram reconhecidos (art. 129, inc. III, CF) e regulamentados na Lei Federal 8.078/90 (art. 81, par. único, inc. I). O art. 225 exprime a natureza jurídica do bem difuso, que tem os atributos da indivisibilidade, não é público nem privado, mas de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida. Nesse sentido, a defesa dos interesses difusos requer a utilização de instrumental jurídico apropriado, pelo recurso às ações coletivas (como a ação civil pública e a ação popular) e das tutelas de urgência. Os interesses difusos apresentam três características básicas. A primeira é a indeterminação dos titulares, uma vez que se referem a um conjunto indeterminado de sujeitos, desde uma pequena comunidade, um grupo étnico ou até mesmo a humanidade. A relevância jurídica do interesse não provém “de sua afetação a um titular determinado, mas do fato do interesse concernir a toda a coletividade ou a todo um segmento dela, justificando-se, assim, o trato coletivo do conflito”7 . 6 Ibid., p. 52. 7 Rodolfo de Camargo Mancuso, Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, p. 94.
  • 20. 10 A segunda é a indivisibilidade, pois não há como cindir o bem ambiental, que é insuscetível de usufruto em parcelas ou quotas previamente determinadas. O bem ambiental, por ser indivisível, refere-se a “um objeto que, ao mesmo tempo, a todos pertence, mas ninguém em específico o possui. Um típico exemplo é o ar atmosférico”8 . A terceira é que os titulares (indeterminados) dos interesses difusos são ligados por circunstâncias de fato. Ou seja, interesses que não são ligados por um vínculo jurídico básico, mas a situações de fato, contingenciais e até mesmo repentinas e imprevisíveis. Referem-se a eventos mutáveis, na medida em que podem surgir, desaparecer e reaparecer mais tarde.9 O bem ambiental, exemplo típico de direito difuso, não pode ser apropriado ou tutelado apenas pelas pessoas jurídicas (de direito público ou privado) ou pelas pessoas naturais. É nesse sentido que o Poder Público e à coletividade são responsáveis pela sua preservação.10 Ora, se o domínio do bem ambiental não pode ser atribuído a ninguém de modo exclusivo, não apresenta compatibilidade absoluta com o direito de propriedade. Isso porque a Constituição não autoriza a fazer com o bem ambiental o que o direito permite fazer com bens de natureza diversa. Não se 8 Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 55. 9 O que os caracteriza é “a circunstância de estarem num plano pré-jurídico, isto é, desvinculados dos limites demarcados numa norma, o que enseja essa fluidez apresentada pelos interesses difusos. No plano fático onde estão (o plano da ‘existência-utilidade’), tudo é mutável, inesgotável, todas as posições são sustentáveis”, Rodolfo de Camargo Mancuso, Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, p. 149. 10 O ambiente a preservar é aquele que tem qualidade e que se converte em bem jurídico, que a Constituição define como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Isso “significa que esses atributos do meio ambiente não podem ser de apropriação privada mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares. Significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra a sua disponibilidade. (...) há elementos físicos do meio ambiente que também não são suscetíveis de apropriação privada, como o ar, a água, que são, já por si, bens de uso comum do povo. Por isso, como a qualidade ambiental, não são bens públicos nem particulares. São bens de interesse público, dotados de um regime jurídico especial, enquanto essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, assim, a um fim de interesse coletivo”. José Afonso da Silva, Direito ambiental constitucional p. 83-84.
  • 21. 11 pode atribuir ao bem ambiental as mesmas prerrogativas de gozar, dispor, fruir, destruir ou fazer tudo aquilo que seria prerrogativa do titular do domínio e, em tese, permitido na esfera individual. Sendo bem de uso comum do povo, nada além do direito de utilizá-lo ou desfrutá-lo é permitido, na forma e nas condições previstas em lei. Assim, o Poder Público é apenas gestor, e não proprietário dos bens ambientais, atribuição que gera o dever de prestar contas sobre a utilização de tais bens.11 1.3 Aspectos do meio ambiente O conceito legal de meio ambiente, recepcionado pela Constituição, está previsto na Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente. É tratado como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, obriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, inc. I). Esse conceito identifica-se com o aspecto natural do meio ambiente, embora o objeto do meio ambiente seja bem mais amplo. Integrado ao art. 225 da Constituição Federal, adquire novas e variadas características, posto que o 11 Para Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 180, é paradigmática a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação à prática de crime ambiental (RE 300244-9, distribuído em 15 de março de 2001, sendo relator o Ministro Moreira Alves). Segundo o relator, os bens ambientais não são propriedade de qualquer dos entes federados, que, na verdade, são administradores e gestores de bens que pertencem à coletividade. Portanto, “a Constituição Federal, ao outorgar o ‘domínio’ de alguns bens à União ou aos Estados, não nos permite concluir que tenha atribuído a elas e a titularidade de bens ambientais. Significa dizer tão somente que a União ou o Estado (dependendo do bem) serão seus gestores, de forma que toda vez que alguém quiser explorar algum dos aludidos bens deverá estar autorizado pelo respectivo ente federado, porquanto este será o ente responsável pela ‘administração’ do bem pelo dever de prezar pela sua preservação”.
  • 22. 12 “objeto de proteção verifica-se em pelo menos cinco aspectos distintos (patrimônio genético, meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho), os quais preenchem o conceito da sadia qualidade de vida”12 . Nesse sentido, o conceito de meio ambiente compreende todos os recursos essenciais à vida, de modo a garantir as condições indispensáveis à existência e manutenção da própria vida. E o patrimônio cultural, como uma das dimensões do meio ambiente, deve ser entendido como essencial à qualidade de vida, nos termos do art. 225 da CF. Logo, sua tutela “é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a qualidade de vida”13 . É possível, no entanto, a identificação das dimensões (ou aspectos) que compõem o meio ambiente: natural, artificial, cultural, do trabalho e do patrimônio genético. O meio ambiente natural ou físico é constituído pelos bens ou recursos naturais que são essenciais à manutenção da vida e da sobrevivência dos seres humanos e de outras espécies. Por exemplo, a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, o mar territorial, o solo, o subsolo, a fauna e a flora. No art. 225, § 1º, incs. I, III, e VII, a Constituição Federal prevê ações de tutela específica ao ambiente natural. O meio ambiente artificial refere-se ao espaço urbano construído, que é formado por edificações (espaço urbano fechado) e por equipamentos públicos (espaço urbano aberto). 12 Ibid., p. 382. 13 José Afonso da Silva, Direito ambiental constitucional, p. 70.
  • 23. 13 A União tem competência para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, sendo que a execução de ações nessa área é responsabilidade dos municípios. A finalidade é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182, caput, CF). A Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana. A fim de concretizá-las, são necessárias ações voltadas à prestação de serviços públicos essenciais (saúde, educação, transportes), à habitação, ao lazer, à cultura, ao trabalho e ao incentivo às atividades econômicas. O meio ambiente cultural inclui o patrimônio edificado, histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico. O valor a preservar é a cultura, materializada e incorporada nos bens portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216, caput, CF). O ambiente cultural, apesar de também ser artificial (criado pelo homem), transcende esse aspecto, porque “agrega valores que refletem características peculiares a uma dada sociedade, constituindo, por assim dizer, retrato vivo de sua história e, consequentemente, espelho de sua própria realidade”14 . O meio ambiente do trabalho refere-se às condições internas e externas dos locais de trabalho, porque as atividades laborais devem ser exercidas em condições de salubridade. Os beneficiários, em termos do usufruto 14 Belize Câmara Correia, A tutela judicial do meio ambiente cultural, p. 43.
  • 24. 14 dos recursos ambientais (o ar e a água, por exemplo), serão tanto quem trabalha nesses locais como a comunidade em geral. A Constituição Federal refere-se ao ambiente do trabalho quando inclui no rol das competências do Sistema Único de Saúde (SUS) ações de proteção ao meio ambiente, inclusive do trabalho. Além disso, são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a redução dos riscos do trabalho com a observância de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII, CF).15 O patrimônio genético tem previsão constitucional, estando disposto no art. 225, § 1º e nos incs. II e V. A regulamentação do tema se deu pela edição da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, pela Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 (ainda não convertida em lei) e pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. A Constituição Federal protege a vida humana e de todos os seres vivos, até mesmo na forma embrionária, “sempre em função da sadia qualidade de vida da pessoa humana (a mulher e o homem), revelando uma vez mais a clara posição antropocêntrica da Carta Magna”16 . 15 Ressalte-se “que a proteção do direito do trabalho é distinta da assegurada ao meio ambiente do trabalho, porquanto esta última busca salvaguardar a saúde e a segurança do trabalhador no ambiente onde desenvolve suas atividades. O direito do trabalho, por sua vez, é o conjunto de normas jurídicas que disciplina as relações jurídicas entre empregado e empregador”. Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 74. 16 Ibid., p. 75.
  • 25. 15 1.4 Princípios do direito ambiental aplicáveis à tutela do patrimônio cultural Princípios são normas jurídicas que sintetizam valores expressos ou dedutíveis do texto constitucional que fundamentam o ordenamento jurídico e servem de parâmetro para a elaboração e a interpretação do Direito Positivo. Os princípios do direito ambiental originam-se de documentos elaborados em conferências e encontros internacionais e indicam o caminho “para a proteção ambiental, em conformidade com a realidade social e os valores culturais de cada Estado”17 . Pode-se considerar como princípios de direito ambiental: (1) direito à sadia qualidade de vida; (2) desenvolvimento sustentável; (3) prevenção; (4) precaução; (5) poluidor-pagador; (6) função social da propriedade; (7) participação; (8) solidariedade intergeracional. Os princípios gerais também se aplicam à tutela do patrimônio cultural, tendo em vista a concepção unitária de meio ambiente. O direito à sadia qualidade de vida pressupõe que determinado ambiente deve buscar o atendimento às necessidades físicas e espirituais (e psíquicas) da população, aspectos que legitimam o usufruto dos bens culturais. O princípio do desenvolvimento sustentável requer a adoção de medidas que permitem o uso racional dos recursos, articulando o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental no interesse das presentes e das futuras gerações. 17 Ibid., p. 27.
  • 26. 16 Isso significa, no caso do patrimônio edificado, a preservação de bens protegidos, a fim de que não sejam destruídos por ações predatórias ou que sejam usos sejam incompatíveis. A prevenção determina que o poder público e a coletividade atuem de forma a evitar e prevenir a ocorrência de danos, em situações já conhecidas e previsíveis. A aplicação do princípio na esfera cultural é fundamental, uma vez que a recuperação ou restauração de bens culturais nem sempre é viável. Os bens culturais são únicos e a destruição do patrimônio cultural é, nesse caso, irreversível. O princípio da função social da propriedade aplica-se aos bens culturais, uma vez que na legislação há meios para regulamentar o seu exercício. Por exemplo, sobre o bem tombado recaem restrições quanto ao exercício do direito de propriedade (uso, conservação, visibilidade, alienação), tendo em vista a relevância cultural e social dos bens protegidos. A participação vem a demonstrar que a sociedade civil assume o status de parceira com os organismos estatais na tarefa de zelar pelo meio ambiente. Trata-se da concretização do fundamento da cidadania na esfera ambiental. Nas questões relativas ao ambiente cultural, a participação dos cidadãos e associações nos conselhos de preservação e em audiências públicas é uma manifestação concreta do princípio. A solidariedade intergeracional representa os vínculos que devem ser estabelecidos entre as gerações presentes e as gerações futuras na utilização do ambiente de forma sustentável. Ou seja, a utilização de instrumentos de
  • 27. 17 proteção é fundamental para a conservação do patrimônio cultural, de modo que possa ser usufruído também pelas gerações futuras. 1.5 Princípios específicos da tutela ao patrimônio cultural 1.5.1 Preservação no próprio sítio e a proteção do entorno O princípio da preservação do próprio sítio e de seu entorno foi estabelecido pela Carta de Veneza, declaração internacional de princípios norteadores das ações de restauro, da qual o Brasil é signatário.18 A declaração foi elaborada em maio de 1964, durante a realização do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos. Nesse encontro, também foi fundado o Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), organização não governamental que atua junto à Unesco. O art. 7º da Declaração dispõe que o monumento é inseparável da história da qual é testemunho e do meio em que surgiu ou está situado. Não se admite o deslocamento do monumento ou parte dele, a não ser para salvaguardá-lo ou em razão de grande interesse nacional ou internacional (art. 8º). A finalidade dessas regras é conservar os vínculos do bem cultural com a comunidade em que está situado e manter a harmonia do conjunto em termos estilísticos. Como se afirmou, exceções são possíveis desde que a 18 Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=17575&sigla= Institucional&retorno=paginaInstitucional>. Acesso em: 09/03/2014.
  • 28. 18 única hipótese de preservar o bem é retirá-lo “de seu assento original, quer para garantir sua preservação propriamente dita, quer para inseri-lo numa política mais adequada de valorização”19 . 1.5.2 Uso compatível com a natureza do bem É recomendável que o bem cultural protegido tenha uso compatível com suas características (sem esquecer que a falta de uso também é causa de deterioração). Contudo, há situações em que um sítio arqueológico deve permanecer intangível para não correr o risco de desaparecer. Um exemplo é o Coliseu de Roma, que estará “fadado a ser, para sempre uma imponente ruína. Nem seria razoável, para mantê-lo vivo, restabelecer jogos de circo ou, adaptando-o aos tempos modernos, transformá-lo em um estádio esportivo”20 . Ressalte-se que não é possível a determinação prévia de uso, uma vez que um bem não é preservado pelo uso (que pode ser alterado), mas por sua relevância cultural. O que pode e deve ocorrer é a análise da adequação de uso.21 19 Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental, p. 175. Por essa razão, no Egito, foram removidos antigos templos e monumentos para a construção da represa de Assuã. Na cidade de São Paulo, um monumento em homenagem ao arquiteto Ramos de Azevedo foi retirado de sua área original para a construção da linha norte- sul do Metrô e remontado no campus da Cidade Universitária (USP), onde está desde 1972. Em Curitiba, uma casa de madeira típica da arquitetura dos imigrantes poloneses, foi trasladada, pois a ambientação original, de características rurais, não mais existia em função do processo de urbanização na região em que estava. A mudança de local ampliou sua visibilidade ao ser recolocada num terreno localizado na área central da cidade. 20 Roberto Marinho e Azevedo, Algumas divagações sobre o conceito de tombamento, p. 80. 21 Em função da conservação do bem, há usos adequados e inadequados. Por isso, “se determinado imóvel acha-se tombado, sua conservação se impõe; em função disto é que se pode coibir formas de utilização da coisa que, comprovadamente, lhe causem dano, gerando sua descaracterização. Nesse caso, poder-se-ia impedir o uso danoso ao bem tombado, não para determinar um uso específico, mas para impedir o uso inadequado”. Sônia Rabello de Castro, O Estado na preservação dos bens culturais, p. 108.
  • 29. 19 É possível atribuir um novo uso ao bem cultural, readaptando- o para uma finalidade que seria diversa de sua “vocação natural”. Entretanto, há que se ter cautela e avaliar o estado de conservação do imóvel e o volume de usuários que passarão a frequentá-lo e, em alguns casos, realizar-se um estudo da avaliação de impacto ambiental. Não basta simplesmente declarar o bem cultural tombado ou protegido, visto que o poder público deve assegurar-lhe um uso compatível.22 A legislação brasileira não faz referência explícita ao princípio, mas ele pode ser deduzido da Constituição Federal (art. 216, § 1º, c/c o art. 23, inc. III), que impõe o dever genérico de proteção. A legislação ordinária (o art. 17 do Decreto-lei 25/37) tipifica a conduta de dano ao bem tombado, nos seguintes termos: Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cinquenta por cento do dano causado. A responsabilidade é erga omnes, ou seja, é imputada ao proprietário, ao possuidor e todo aquele que danificar, mutilar ou destruir um bem protegido. Causar dano também está relacionado às hipóteses “do uso inadequado do bem, ou até o exercício de determinadas atividades na vizinhança, próxima ou remota, do bem tombado que lhe venham a causar prejuízo”23 . 22 Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental, p. 179. 23 Sônia Rabello de Castro, O Estado na preservação dos bens culturais, p. 109.
  • 30. 20 Decisão do extinto Tribunal Federal de Recursos confirma esse entendimento, ao determinar que uma torrefação de café localizada na vizinhança de uma igreja tombada adquirisse novas máquinas, uma vez que os equipamentos utilizados provocavam danos (fendas) que comprometiam a estabilidade da construção. 24 1.5.3 Pro monumento O princípio pro monumento está expresso na Convenção da Unesco para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, que define os bens que podem ser considerados para inscrição na Lista do Patrimônio Mundial. 25 Cabe aos Estados signatários identificá-los, assumir o compromisso de preservá-los, além de conservar os bens não incluídos nessa lista e que, eventualmente, possam ter valor universal excepcional (art. 12 da Convenção). Nesse sentido, já é possível identificar na jurisprudência nacional a chancela para “uma espécie de benefício da dúvida, ao possibilitar que se busque no Judiciário a tutela de bens ainda não reconhecidos como culturais, 24 Tribunal Federal de Recursos – Apelação Cível nº 177 – 06.04.49 – Revista dos Tribunais, vol. 191, maio de 1951, p. 378-98. 25 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=244>. Acesso em: 09/03/2014.
  • 31. 21 pelo Poder Executivo ou Legislativo”26 . 1.5.4 Fruição coletiva O princípio pode ser deduzido do caput, do art. 215 da Constituição Federal, segundo o qual é incumbência do Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, além de apoiar e incentivar a valorização e difusão das manifestações culturais. A inclusão de um bem de propriedade particular no rol do patrimônio cultural não significa que foi transferido para o domínio público, mas que se submete a um regime diferenciado, inclusive no que se refere ao usufruto pela comunidade. Nesse caso, o acesso às fontes da cultura nacional é concretizado por meio do direito de visita e pelo direito de informação. Na legislação brasileira, não há previsão explícita do direito de visitação a bens particulares com reconhecido valor cultural, embora essa possibilidade já exista em outros países.27 26 É o caso da decisão exarada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Apelação cível nº 97.001063-0, de Criciúma. Relator: Des. Silveira Lenzi. J. 24-08-1999): “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PATRIMÔNIO CULTURAL. AUSÊNCIA DE TOMBAMENTO. IRRELEVÂNCIA. POSSIBILIDADE DE PROTEÇÃO PELA VIA JUDICIAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 216, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Não há qualquer exigência legal condicionando a defesa do patrimônio cultural – artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico – ao prévio tombamento do bem, forma administrativa de proteção, mas não a única. A defesa é possível também pela via judicial, através de ação popular e ação civil pública, uma vez que a Constituição estabelece que ‘o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação (art. 216, § 1º).” Decisão transcrita por Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental, p. 184. 27 Na legislação espanhola, por exemplo, “os bens de interesse cultural (privados) podem ser objeto de estudos por pesquisadores bem como receber visita pública por pelo menos quatro dias por mês. Em casos especiais, a visitação pode ser substituída pelo depósito em local seguro e que reúna condições para a exibição pública pelo período máximo de cinco meses de dois em dois anos”, segundo Marcos Paulo de Souza Miranda, Tutela do patrimônio cultural brasileiro: doutrina – jurisprudência - legislação, p. 32.
  • 32. 22 Entretanto, o Poder Judiciário já se mostra sensível à aplicação desse direito, como se pode observar na decisão abaixo transcrita: ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIVRE ACESSO E PRESERVAÇÃO DE PATRIMÔNIO PAISAGÍSTICO, HISTÓRICO E CULTURAL. FORTE DOS REIS MAGOS E PRAIA DO FORTE. O direito de uso de terreno de marinha ou acrescido não compreende o de impedir o acesso a bem público de uso especial nele encravado nem o de restringir a fruição de bem comum do povo (TRF – 5ª R. – AC – Apel. Cív. – 243633 – RN – Proc. 200105000047266 – 3ª T. – Rel. Des. Federal Ridalvo Costa – J. 13.5.2004). 1.5.5 Vinculação dos bens culturais O princípio da vinculação dos bens culturais é deduzível do art. 23, inc. IV da Constituição Federal, que dispõe sobre a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de adotar medidas que impeçam “a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”. Assim, os bens culturais protegidos devem ser mantidos nos seus locais de origem, tendo em vista a relevância para a memória e a identidade nacional. Admite-se, contudo, a saída temporária para o exterior com a finalidade
  • 33. 23 de intercâmbio cultural ou científico. Por isso, a legislação veda a saída definitiva do Brasil desses bens.28 Além disso, o país aderiu aos termos da Convenção da Unidroit sobre bens culturais furtados ou ilicitamente exportados, que ocorreu em Roma, no ano de 1995.29 Nesse encontro, foi redigido o documento que prevê a adoção de medidas para refrear o comércio ilícito de bens de valor cultural reconhecido e que também estabeleceu regras mínimas para a restituição e o retorno desses bens a seus países de origem.30 O comércio ilícito desses bens e a pilhagem de sítios arqueológicos provocam graves danos ao patrimônio cultural dos países, das comunidades tribais e autóctones e ao patrimônio comum da humanidade. Os danos, geralmente irreparáveis, são a causa da perda de informações de natureza arqueológica, histórica e científica. A Convenção, além disso, não aprova ou legitima o comércio ilícito ocorrido antes de sua entrada em vigor, especialmente em períodos de guerra ou conquista. No entanto, essas medidas ainda se mostram ineficazes para evitar o comércio ilícito do patrimônio cultural brasileiro com o exterior. 28 Art. 14 do Decreto-Lei nº 25, de 30-11-1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional; art. 20 da Lei nº 3.924, de 26-07-1961, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos; arts. 1º a 3º da Lei 5.471, de 10-07-1968, que dispõe sobre a exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros. 29 Incorporada ao ordenamento jurídico nacional, nos termos do Decreto nº 3.166, de 14 de setembro de 1999. 30 O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) é uma organização internacional independente, cujo objetivo é estudar formas de harmonizar e coordenar o direito privado entre os Estados e preparar a adoção de uma legislação de direito privado uniforme. Fundada em 1926, tem sua sede em Roma, na Itália. Disponível em: <http://www.gddc.pt/cooperacao/materia-civil-comercial/unidroit.html>. Acesso em: 09/03/2014.
  • 34. 24 1.5.6 Cooperação internacional O fundamento constitucional do princípio está disposto no art. 4º, inc. IX, ao prescrever que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da cooperação entre os povos. Na legislação ordinária, a Lei Federal 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), dispõe no art. 77, que, com o resguardo da soberania nacional, da ordem pública e dos bons costumes, o Governo brasileiro prestará, na esfera do meio ambiente, a necessária cooperação a outros países, sem quaisquer ônus, nas seguintes hipóteses: I – produção de prova; II – exame de objetos e lugares; III – informações sobre pessoas e coisas; IV – presença temporária da pessoa presa, cujas declarações tenham relevância para a decisão de uma causa; V – outras formas de assistência permitidas pela legislação em vigor ou pelos tratados de que o Brasil seja parte. Na esfera internacional, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972) declara que é incumbência dos signatários defender o “patrimônio cultural e natural de valor universal excepcional, mediante a prestação de uma assistência coletiva que, sem substituir a ação do Estado interessado, a complete eficazmente”31 . A tutela ao patrimônio cultural requer a colaboração dos países e de organizações internacionais, em virtude do volume dos recursos econômicos, científicos e técnicos exigidos. Ademais, os países que firmaram a Convenção comprometem-se a assegurar a identificação, a proteção, a conservação, a 31 Disponível em: <http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 15/03/2014.
  • 35. 25 valorização e a transmissão às gerações futuras desse patrimônio. Seja com a alocação de recursos necessários ou pela busca de assistência e cooperação internacional no âmbito financeiro, artístico, científico e técnico. Uma questão relacionada à aplicação do princípio diz respeito à colaboração para impedir o comércio ilícito de bens culturais. A matéria é disciplinada pelo Decreto nº 3.166, de 14 de setembro de 1999, que incorporou ao ordenamento positivo a Convenção da Unidroit sobre bens culturais furtados ou ilicitamente exportados. 1.6 O conceito de cultura A primeira questão a enfrentar diz respeito à terminologia, pois cultura é um vocábulo que apresenta diversos significados. O senso comum associa cultura à atividade reservada à elite, aos poucos que têm acesso a formas de representação (pintura, escultura, teatro, música erudita) que não fazem parte do dia a dia da maioria da população. Nesse sentido, cultura “é privilégio de um grupo restrito, formado por pessoas dotadas de sabedoria, conhecimento ou capacidade para apreciar e usar esse patrimônio”32 . Cultura também pode estar relacionada à maturidade espiritual do indivíduo, à “formação do homem, o seu melhorar-se e refinar-se”33 . Outro significado, influenciado pela filosofia iluminista, vê na cultura o resultado do desenvolvimento e do progresso, como o “o conjunto dos modos 32 Eunice Ribeiro Durham. Cultura, patrimônio e preservação. In: Antonio Augusto Arantes (org.), Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural, p. 24-25. 33 Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 209.
  • 36. 26 de viver e de pensar cultivados, civilizados que se costuma indicar pelo nome de civilização”34 . Na perspectiva antropológica, abrange tudo o que resulta da criação humana, como objetos, saberes e realizações partilhadas pelos membros de uma determinada sociedade. É constituída pelo trabalho humano e comportamentos sociais, pelos valores, pela história e pelas instituições que revelam o modo de vida, a identidade e a singularidade de um agrupamento humano.35 Sobretudo a partir de Kant (século XVIII), inicia-se a separação e depois a oposição entre natureza e cultura, com a esfera cultural referindo-se ao mundo do valor (o dever-ser), em contraposição ao mundo do ser (a realidade).36 Esse dualismo revelou-se falso, pois a cultura não é uma realidade apartada da natureza; pelo contrário, o mundo natural e o mundo cultural são duas esferas complementares da realidade. O processo de reordenação e intervenção humana no mundo natural resulta naquilo que chamamos de cultura; ou seja, a cultura surge e se desenvolve a partir da interação com a natureza.37 O fato é que a cultura está presente em todos os aspectos da vida humana. Inclui tanto a produção material como a produção simbólica – as ideias, os valores, as instituições, a religião, a arte, as crenças, as leis, os usos e 34 Ibid., p. 209-210. Não civilizado é o membro de uma sociedade primitiva ou atrasada, não civilizada, portanto. O vocábulo civilização também pode ser empregado com o sentido de fase, estágio ou evolução de uma determinada sociedade ou cultura, não como oposição entre sociedades primitivas e sociedades evoluídas. Ibid., p. 132-133. 35 Ibid., p. 212-213. 36 Marilena Chauí, Natureza, cultura, patrimônio ambiental. In: Ana Lúcia Duarte Lanna (org.), Meio ambiente: patrimônio cultural da USP, p. 49. 37 Para Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 28, natural é “uma expressão técnica para indicar os elementos que são apresentados aos homens sem a sua participação intencional, quer para o seu aparecimento, quer para o seu desenvolvimento, dizemos que formam aquilo que nos é ‘dado’, o ‘mundo natural’, ou puramente natural. ‘Construído’ é o termo que empregamos para indicar aquilo que acrescentamos à natureza, através do conhecimento de suas leis visando a atingir determinado fim.”
  • 37. 27 costumes, as normas de comportamento, o modo de vestir e os hábitos alimentares. A cultura, entretanto, não é constituída tão somente pelo trabalho de modificação da natureza realizado pelo homem, uma vez que os bens naturais normalmente estão catalogados no patrimônio cultural, como no caso das florestas e paisagens naturais. Assim é que o Decreto-Lei nº 25/37, norma que foi recepcionada pela Constituição de 1988 com o status de lei ordinária, inclui entre os bens que integram o patrimônio histórico e artístico nacional os monumentos naturais (art. 1º, caput), bem como os sítios e paisagens de feição notável, dotados pela natureza ou transformados pela ação humana (art. 1º, § 2º). Alguns bens foram tombados com esse fundamento legal: o Morro do Pão de Açúcar (Rio de Janeiro, RJ, em 1973), a Serra do Curral (Belo Horizonte, MG, em 1960), as grutas do Lago Azul e Nossa Senhora Aparecida (Bonito, MS, em 1978), a Gruta do Mangabeira (Ituaçu, BA, em 1962).38 É a Lei Fundamental que estabelece os critérios para a seleção dos bens que serão incorporados ao patrimônio cultural. É por isso que na perspectiva unitária de meio ambiente adotada pela Constituição os bens naturais podem ser incorporados ao patrimônio cultural oficialmente reconhecido, visto que o art. 216 não faz qualquer restrição nesse sentido. É o que ocorreu no caso do Parque Nacional da Serra da Capivara (São Raimundo Nonato, PI), que foi tombado em 1993, e do Morro do Pai Inácio (Palmeiras, BA), tombado em 2000).39 38 Todos os bens citados estão incluídos no Livro Arqueológico, etnográfico e paisagístico do Iphan. Disponível em: <http://www.iphan.gov.br/ans/>. Acesso em: 05/02/2014. 39 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=3263>. Acesso em: 20/05/2014.
  • 38. 28 Na esfera cultural, a dimensão simbólica é marcante. Dessa forma, não se pode entender a cultura limitada a um enfoque utilitário e econômico, mas pelo uso, pelo significado e pela capacidade de usufruir os bens culturais de uma forma específica.40 Por isso, os bens culturais exercem diferentes funções na sociedade e incorporam significações e valores relacionados a uma identidade coletiva, definida em termos nacionais, regionais ou locais.41 De outra parte, o acesso à cultura por parte de grupos e classes sociais é diferenciado. Em regra, as classes dominantes impõem seus padrões, dirigem a produção cultural e usufruem dos bens culturais de maneira privilegiada. A apropriação diferenciada dos elementos culturais é utilizada como forma de identificação de determinados segmentos sociais, o que implica o desenvolvimento de padrões estéticos e morais também diferenciados em oposição a outros.42 Como elemento fundamental da civilização, o patrimônio ambiental (natural e cultural) merece ser protegido. Enquanto o patrimônio natural é a garantia de sobrevivência física da humanidade, o patrimônio cultural é a garantia da sobrevivência social dos povos, como produto e testemunho de sua vida.43 40 Para Eunice Ribeiro Durham, a “cultura é uma elaboração humana que não apenas satisfaz as necessidades materiais, mas satisfaz também outras necessidades. Aliás, muito do que chamamos de cultura não tem nenhuma utilidade prática, e isso em todos os povos existentes na terra. Boa parte deles gasta uma quantidade enorme de tempo para produzir objetos que são economicamente inúteis, mas que são esteticamente satisfatórios, que são instrumentos para o estabelecimento de relações entre as pessoas”. Eunice Ribeiro Durham, Cultura, patrimônio e preservação. In: Antonio Augusto Arantes (org.), Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural, p. 29. A autora cita como exemplos de expressões culturais sem utilidade prática as pinturas corporais dos indígenas e os enfeites de bolos de casamento e de aniversários. 41 Maria Cecília Londres Fonseca, O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, p. 42. 42 Eunice Ribeiro Durham, patrimônio e preservação. In: Antonio Augusto Arantes (org.). Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural, p. 31-32. 43 Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Bens culturais e sua proteção jurídica, p. 16-17.
  • 39. 29 1.7 O conceito de patrimônio cultural O patrimônio cultural é constituído por bens materiais (tangíveis) e bens imateriais (intangíveis), sejam públicos ou privados. No patrimônio material (tangível), estão os imóveis (casas, edifícios, conjuntos urbanos, praças, igrejas), as cidades históricas, museus, objetos (armas, ferramentas, louça, peças de decoração), as obras de arte (pintura, escultura, artesanato, tapeçaria, monumentos), os documentos, joias, roupas, móveis, sítios arqueológicos e paleontológicos, além dos bens ambientais (bosques, matas, reservas de água). Ou seja, inclui coisas, objetos, artefatos e construções adquiridas do meio ambiente ou produzidas pela ação e pelo conhecimento adquirido. O patrimônio imaterial (intangível) se expressa por meio da língua, da gastronomia, do folclore, dos costumes, das tradições, das lendas, da música, do teatro, das danças, das celebrações, das festas, das crenças, dos ritos, das rezas, dos saberes. Os bens materiais são corpóreos, têm forma, ocupam lugar no espaço e são tangíveis (podem ser tocados, são palpáveis). É a partir de um suporte44 específico que os bens materiais são criados e reconhecidos como tais. Um quadro, por exemplo, é uma obra que requer uma tela, na qual está contida uma representação pictórica. Já os bens imateriais existem independentemente da forma ou do suporte para existir ou se manifestar. É o caso de uma obra musical, que pode ser 44 Suporte é a peça em que algo é fixado; é qualquer coisa cuja finalidade é dar sustento; é a base física de qualquer material (papel, plástico, madeira, tecido, filme ou fita magnética), na qual se registram informações impressas, manuscritas, fotografadas ou gravadas. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: <www.uol.com.br/biblioteca>. Acesso em: 05/03/2014.
  • 40. 30 propagada por meio de uma gravação em CD ou por outros meios (suportes). É reconhecida como manifestação cultural a partir da ideia, qualidade ou sentimento (aspectos imateriais) que desperta nas pessoas e não pelo meio como chega aos receptores. Isso não significa que os bens imateriais sejam meras abstrações, mesmo porque é necessário que algum tipo de suporte para que se expressem e sejam percebidos. Seria mais apropriado, em termos da relativa imaterialidade desses bens, o uso da expressão patrimônio intangível, ao expressar o efêmero e o transitório, que não se corporifica em produtos duráveis.45 A natureza jurídica de bens de uso comum do povo não converte os bens culturais em bens fora do comércio, a não ser que façam parte do domínio público. Entretanto, são gravados com restrições, tais como a autorização dos órgãos de preservação para executar reformas ou para construir na área envoltória de bens tombados, o direito de preferência do Estado para adquirir bens culturais colocados à venda e as limitações impostas para a exportação desses bens. Um bem cultural pode ser desprovido de qualquer expressão econômico. É o caso das ruínas históricas. Quanto à titularidade, os bens culturais podem ser de domínio público ou domínio privado e os titulares podem ser pessoas físicas ou jurídicas. 45 Maria Cecília Londres Fonseca. Para além da pedra e cal. In: Regina Abreu, Mário Chagas, Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 68. Segundo a autora, talvez “o melhor exemplo para ilustrar a especificidade do que se está entendendo por patrimônio imaterial – e assim diferenciá-lo, para fins de preservação, do chamado patrimônio imaterial – seja a arte dos repentistas. Embora a presença física dos cantadores e de seus instrumentos seja imprescindível para a realização do repente, é a capacidade de os atores usarem, de improviso, as técnicas de composição dos versos, assim como sua agilidade, como interlocutores, em responder à fala anterior, que produz, a cada ‘performance’, um repente diferente. Nesse caso, estamos no domínio do aqui e agora, sem possibilidade, a não ser por meio de algum registro audiovisual, de perpetuar esse momento”.
  • 41. 31 No entanto, seja qual for o titular, o bem é considerado de interesse público, pois se destina à fruição de todos os membros da comunidade. Uma peculiaridade em relação aos bens culturais, sejam materiais ou imateriais, é que sempre apresentam um componente imaterial, intangível46 . O que distingue um bem cultural é a referência a evocações, representações, lembranças, isto é, sentidos e significados, que são atributos imateriais.47 Nesse sentido, a constituição e a preservação do patrimônio cultural é uma prática social em que se debate o que preservar, como fazê-lo e se determina o significado e a relevância das manifestações culturais presentes na sociedade. São questões controvertidas, pois se referem ao aspecto cultural do processo político e mobilizam os mais diversos segmentos sociais na afirmação de direitos, na relação da sociedade com sua cultura.48 46 Vale dizer, “por mais materiais que sejam, existe neles uma grandeza imaterial que é justamente o que os faz culturais. A razão cultural da obra de arte não está no suporte nem nas tintas, mas na imaterialidade, complexa deles criada. Uma casa, beleza natural, objeto ou instrumento tem valor cultural não pelo material com o qual estão construídos, mas pelo que evocam, seja um estilo, um processo tecnológico ou um fato histórico. A última casa de adobe de uma região não será preservada por ser de adobe, mas porque, sendo de adobe e última, é uma referência a um processo construtivo, portanto cultural”. Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Bens culturais e sua proteção jurídica, p. 48. 47 Os bens culturais tangíveis “configuram-se a partir da conjugação de saberes, de técnicas, de trabalhos, de valores e de elementos da natureza. Quando, sobre determinado artefato, incide, por algum motivo, uma ação preservacionista, disposta a enquadrá-lo na categoria de patrimônio cultural, é para essa conjugação complexa que essa ação está apontando. Em outros termos, a preservação dos denominados ‘bens culturais tangíveis’ busca e assenta sua justificativa não na materialidade dos objetos, e sim nos saberes, nas técnicas, nos valores, nas funções e nos significados que representam e ocupam na vida social. Assim, é possível sustentar que aquilo que se quer preservar como patrimônio cultural não são os objetos, mas seus sentidos e significados; ou seja, aquilo que confere sentido ao bem tangível é intangível”. Mário Chagas, O pai de Macunaíma e o patrimônio espiritual. In: Regina Abreu e Mário Chagas (org.), Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 98-99. 48 O “interesse pela ‘defesa do passado’ conjuga-se, a meu ver, com a construção do ambiente (lugar e território) onde se desenvolvem modos de vida diferenciados, muitas vezes contraditórios entre si. Por essa razão, esse processo se estrutura em torno de intensa competição e luta política em que grupos sociais diferentes disputam, por um lado, espaços e recursos naturais e, por outro (o que é indissociável disso), concepções ou modos particulares de se apropriarem simbólica e economicamente deles”. Antonio Augusto Arantes (org.), Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural, p. 9.
  • 42. 32 A construção do patrimônio cultural, portanto, desvincula-se da concepção abstrata e homogênea de cultura, que ignora a história e os processos sociais na constituição dos valores.49 1.7.1 A origem e a evolução do conceito de patrimônio cultural No final do século XVIII, surge a ideia de preservação do patrimônio cultural por influência do movimento iluminista. Disseminar o saber e democratizar a experiência estética fazem parte do projeto filosófico e político do Iluminismo50 . A Revolução Francesa exerceu papel pioneiro na obra de constituição de um patrimônio cultural, ainda que as ações dos diversos governos revolucionários mostrem-se contraditórias, seja por falta de preparo e experiência para governar, seja por conta dos conflitos ideológicos nas fileiras revolucionárias, inclusive no que se refere à questão do patrimônio cultural. De início, os revolucionários conviveram com o incêndio de igrejas, a destruição de estátuas e o saque de castelos – a chamada destruição ideológica realizada pelo povo, que procurava eliminar tudo o que lembrasse o Ancién Regime, como os bens e símbolos do clero, da nobreza e da realeza. Isso 49 A preservação vista como prática social leva a “um processo de interpretação da cultura como produção não apenas material, mas também simbólica, portadora, no caso dos patrimônios nacionais, ‘de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade’ (...). Mesmo quando a iniciativa parte do Estado, esses valores precisam ser aceitos e constantemente reiterados pela sociedade, a partir de critérios que variam no tempo e no espaço” [Maria Cecília Londres Fonseca, Para além da pedra e cal. Regina Abreu, Mário Chagas (org.), Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 69. 50 Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 89.
  • 43. 33 ocorreu num período de vácuo jurídico, especialmente marcado pela agitação social e pela instabilidade política. O poder revolucionário também pode ser responsabilizado pela onda de vandalismo. Chegou ao ponto de estimulá-la, com a edição de normas que autorizaram a destruição ideológica que se seguiu à fuga do rei deposto, em 1792.51 O roubo, a pilhagem e o reaproveitamento de materiais para reformas ou novas construções também serviram a finalidades econômicas e privadas. O Estado francês tirou proveito disso ao apropriar-se de bens para subvencionar despesas militares.52 Mesmo com tantas contradições, os governos revolucionários foram pioneiros na adoção de medidas que favorecem a preservação do patrimônio cultural. Assim, o Estado passa a adotar medidas para preservar e valorizar os bens representativos da nação, com toda sua riqueza, diversidade e independentemente de sua origem.53 O governo apropriou-se dos bens da Igreja Católica e da nobreza. Instituiu uma comissão de monumentos para inventariá-los, responsabilizar-se pelo acautelamento e pela definição de regras para sua gestão. Esse acervo foi reunido em quatro grandes museus e abertos à visitação pública.54 51 Ibid., p. 108. 52 Ibid., p. 106-107. 53 Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental, p. 33. 54 Foram criados, em 1791, o Museu da República (atual Museu do Louvre), onde é reunida a maioria das obras durante a Revolução, o Museu da História Natural, o Museu de Monumentos Franceses (História Nacional) e o Museu de Artes e Ofícios (artesanato, cerâmica e estudos etnográficos), de acordo com Reinaldo Dias, Turismo e patrimônio cultural: recursos que acompanham o crescimento das cidades, p. 70. Também foi significativo o aumento de museus pela Europa. No final do século XVIII, foram criados, por exemplo, o Museu Britânico, em Londres, e o Museu Pio Clementino, em Roma. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 89.
  • 44. 34 Sob a influência francesa e com a ascensão da burguesia ao poder, outros países europeus passaram a adotar medidas similares.55 A ação pioneira dos governos revolucionários antecipou a política e os procedimentos adotados pelos governos franceses no século XIX, como a criação da primeira Comissão dos Monumentos Históricos. O Estado assumiu a proteção aos monumentos históricos (edificações) e ao acervo cultural, atuação vinculada ao projeto de consolidação da Nação. Os monumentos históricos foram tratados como símbolos que exaltam o orgulho e o sentimento nacionais. O patrimônio histórico e artístico vinculou-se ao Estado, entendido como o representante dos interesses gerais da nação. A preservação tornou-se uma atividade sistemática e ao interesse cultural foram agregados um interesse político e uma justificativa ideológica. Nesse contexto, a preservação do patrimônio cultural exerce algumas funções simbólicas56 :  Reforço da noção de cidadania, com a identificação de bens que não são de exclusiva posse privada, mas propriedade de todos os cidadãos, utilizados em nome do interesse público. O Estado atua como guardião e gestor desses bens;  Os bens representativos da nação são identificados, ou seja, a nação é demarcada no tempo e no espaço. O patrimônio cultural permite 55 A legislação francesa durante muito tempo serviu de referência, inicialmente na Europa, depois pelo resto mundo. Em 1830, Guizot criou o cargo de Inspetor dos Monumentos Históricos, cuja função era determinar o tombamento dos bens que deveriam fazer parte do patrimônio histórico. Em 1887, foi promulgada a primeira lei sobre os monumentos históricos. Alterada em 1913, ainda hoje é o texto de referência de proteção ao patrimônio. Essa lei criou o Serviço dos Monumentos Históricos, órgão estatal dotado de uma poderosa infraestrutura administrativa e técnica. Ibid., p. 145 e 148. 56 Maria Cecília Londres Fonseca, O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, p. 59.
  • 45. 35 que se torne visível e concreta a entidade ideal que é a nação, que também é simbolizada por obras criadas expressamente com essa finalidade (bandeiras, hinos, calendário, alegorias e obras de artistas plásticos). A necessidade de proteger esse patrimônio comum reforça a coesão nacional;  Esses bens são vistos como documentos, como provas materiais das versões oficiais da história nacional, que ajudar a construir o mito de origem da nação e uma versão da ocupação do território, com o objetivo de legitimar as ações dos detentores do poder;  A conservação desses bens – que é onerosa, complexa e muitas vezes contraria a interesses – é justificada por seu alcance pedagógico, a serviço da instrução dos cidadãos. A criação do patrimônio cultural nacional permitiu o fortalecimento do Estado, que encarna a ideia de Nação. Se cada classe social instituísse seus próprios símbolos e definisse sua maneira de relacionar-se com o tempo, o espaço, o invisível e o sagrado, os conflitos sociais não poderiam ser controlados pela classe dominante nem pelo Estado. Assim, o primeiro símbolo constituído pelo Estado é exatamente a Nação, que se torna objeto de cultos cívicos. A partir disso, são catalogados os bens e instituídos os acontecimentos nacionais, cujo valor não é avaliado pela materialidade, mas pela força simbólica “e com eles o patrimônio cultural e ambiental e as instituições públicas encarregadas de guardá-los, conservá-los e exibi-los.”57 A burguesia em ascensão tinha necessidade de fortalecer os Estados Nacionais e se valeu dos símbolos associados à cultura. A valorização do monumento excepcional, portanto, traduz um sentimento de orgulho nacional, 57 Mário Chagas, O pai de Macunaíma e o patrimônio espiritual. In: Regina Abreu e Mário Chagas (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, p. 54.
  • 46. 36 visando à legitimação e o reconhecimento do Estado como representante da Nação.58 No decorrer do século XIX, outros fatores contribuíram para a valorização do patrimônio cultural. A conservação e a restauração de bens recebeu o tratamento de disciplina autônoma, a partir de descobertas científicas (no campo da física e da química), das invenções de novas técnicas, além dos progressos da história da arte e da arqueologia. Ao criar uma nova civilização, a Revolução Industrial representou uma ruptura traumática da história das sociedades. Transformou o ambiente e alterou o relacionamento das pessoas com o meio em que viviam e trouxe a consciência de que o patrimônio cultural poderia desaparecer se medidas protetivas não fossem adotadas. Ou seja, “o monumento histórico inscreve-se sob o signo do insubstituível; os danos que ele sofre são irreparáveis, sua perda irremediável.”59 Desse modo, a opção por uma forma de progresso que ao mesmo tempo destrói e reconstrói deveria ser compensada por ações que mantivessem de pé os vestígios, as lembranças, a tradição, o passado digno de ser preservado, representado pelos monumentos históricos. Daí a necessidade de instituir um conjunto de normas para preservá-los. Uma determinada concepção de patrimônio público perdurou ao longo de todo o século XIX e boa parte do século XX, com uma regra básica: somente poderiam estar associados à ideia de patrimônio os bens que 58 Ana Maria Moreira Marchesan, A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental, p. 36-37. 59 Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 136.
  • 47. 37 apresentassem as características de monumentalidade, singularidade e excepcionalidade. Os bens culturais do passado tornaram-se objeto de culto e de admiração pelo seu valor como obras de arte. Museus foram concebidos como depositários de bens excepcionais e de coisas antigas. Espaços culturais que passaram a ser frequentados, sobretudo, pelas camadas cultas, por intelectuais e por aqueles diretamente vinculados às práticas de preservação (museólogos, arquitetos, restauradores, historiadores), uma vez que o patrimônio situava-se no domínio da cultura erudita e identificado com as elites. O patrimônio cultural ficava, assim, circunscrito a períodos históricos marcados por episódios militares e personagens emblemáticos, quase sempre limitados à preservação de edifícios e monumentos públicos ou religiosos e que representavam os interesses sociais dominantes.60 1.7.2 A ampliação do conceito de patrimônio cultural Ao longo do século XX, a concepção elitista e restrita de patrimônio cultural foi contestada e superada do ponto de vista conceitual, ao se mostrar incapaz de lidar com a pluralidade e a complexidade da sociedade. Uma suposta homogeneidade social era a justificativa para que a importância cultural de determinados segmentos sociais fosse ignorada, como se não existissem ou não tivessem contribuído para a formação da identidade nacional. 60 Pedro Paulo A. Funari; Sandra C. A. Pelegrini; Gilson Rambelli (orgs.), Patrimônio cultural e ambiental: questões legais e conceituais, p. 9.
  • 48. 38 Nessa concepção, a política preservacionista atribui aos bens patrimoniais características “de naturalidade, prestígio, sacralidade e consenso.”61 A ideia de naturalidade faz com que o patrimônio seja “ideologicamente concebido como algo dotado de uma força originária, evidente e legítima.”62 Seu prestígio tem origem em um passado ideal, constituído por grupos sociais que se valem do “artifício da supremacia de um olhar culto, que se contrapõe às ideias de ignorância dos fatos do passado e de incapacidade no reconhecimento artístico de certas obras humanas.”63 A aura de sacralidade é uma abordagem do bem patrimonial como algo inquestionável. O caráter consensual remete à suposta “representatividade universal do patrimônio (como se ele não fosse objeto de apropriações diversas por grupos diferentes).”64 Especialmente a partir da década de 1960, as concepções dominantes são questionadas em relação ao distanciamento entre as instituições de preservação e a população, além dos critérios de seleção dos bens que constituíam o patrimônio cultural. Esse processo repercutiu na própria noção de patrimônio cultural.65 A Carta de Veneza representou uma mudança de paradigma, ao incluir na concepção de monumento histórico não apenas a criação 61 Cíntia Nigro Rodrigues, Territórios do patrimônio: tombamentos e participação social na cidade de São Paulo, p. 18. 62 Ibid., p. 18. 63 Ibid., p. 18. 64 Ibid., p. 18. 65 Ibid., p. 18-19. Segundo a autora, as contestações surgem principalmente em função do grande distanciamento entre as instituições de preservação e a população. Seja pela não participação direta e efetiva da população nas decisões formuladas pelos órgãos de preservação, seja pelo questionamento sobre quais bens deveriam ser selecionados para constituir o patrimônio cultural Ibid., p. 19.
  • 49. 39 arquitetônica isolada, mas o meio em que está situado (urbano ou rural), que dá testemunho de uma cultura particular.66 Ora, a centralidade do monumento isolado contribuiu para a destruição de construções que no seu conjunto haviam constituído um ambiente autêntico e representativo, “o que ocorreu, por exemplo, com a Catedral de Notre Dame de Paris, cujas edificações medievais circundantes foram destruídas para dar-lhe destaque.”67 Além disso, a Carta de Veneza atribuiu valor não só às grandes criações, mas também às obras modestas que tenham adquirido com o tempo uma significação cultural. A Declaração de Amsterdã, documento que resultou do Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu (1975), ressaltou a importância da população na preservação do patrimônio cultural. Nesse sentido, a atividade de preservação não deve ficar circunscrita aos especialistas, mas incluir a coletividade, que deve ser informada, discutir e participar da tomada de decisões.68 A ampliação da noção de patrimônio cultural pode ser observada em três aspectos: tipológico, cronológico e geográfico.69 Tipológico, uma vez que o patrimônio passa a incluir os bens culturalmente significativos, sejam os considerados monumentais e as obras modestas da era medieval ou moderna (urbanas ou rurais), além dos edifícios da era industrial, especialmente dos séculos XIX e XX. 66 A Carta de Veneza é o documento com as resoluções do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos (Icomos), realizado na cidade italiana entre 25 e 31 de maio de 1964. Disponível em: <www.iphan.org.br/cartas_patrimoniais>. Acesso em: 11/09/2010. 67 Danilo Fontenele Sampaio Cunha, Patrimônio cultural: proteção legal e constitucional, p. 80. 68 Disponível em: <www.iphan.org.br/cartas_patrimoniais>. Acesso em: 13/11/2011. 69 Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 15.
  • 50. 40 Cronológico, o que significa incorporar, além das obras do passado, os produtos da era industrial e do presente. Geográfico, uma vez que as políticas de conservação ultrapassaram os limites europeus ou dos territórios sob seu domínio, o que acaba por abranger praticamente o mundo todo. Contudo, a ambiguidade e a contradição são as marcas da preservação do patrimônio cultural. Assim, em após a Primeira e, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, destruiu-se e se conservou em escalas inigualáveis em comparação a períodos históricos anteriores. A eliminação deu-se em nome da defesa da propriedade privada nos moldes liberais, as alegações de que é impossível preservar todo o patrimônio cultural e que a conservação esteriliza a criação e a inovação, o que serviu de justificativa para a “destruição progressista” a serviço de uma inovação cultural e da modernização técnica, amplificadas pela especulação imobiliária. Nessa época, surgem os primeiros documentos internacionais voltados à proteção do patrimônio cultural. Em 1931, foram elaboradas as duas Cartas de Atenas, documentos que resultaram de encontros promovidos pela Sociedade das Nações e pelos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), respectivamente. A Conferência de Atenas, promovida pela Sociedade das Nações, propõe normas e condutas em relação à preservação e conservação de edificações, de aplicação e caráter internacional, para garantir a perpetuação das características históricas dos monumentos. No encontro, foram abordados as doutrinas e princípios gerais da proteção, administração, valorização e legislação dos monumentos históricos,
  • 51. 41 a utilização de materiais de restauração, a deterioração de monumentos, as técnicas de conservação e colaboração internacional, além de deliberações específicas sobre a restauração dos monumentos da Acrópole, em Atenas.70 A Conferência de Atenas realizada pelos CIAM mostra a preocupação com o rápido crescimento urbano, mas apresenta uma noção de patrimônio restrito e seletivo. Ou seja, no “âmbito das cidades, o paradigma da preservação se torna o monumento excepcional, isolado, testemunho de um passado reinventado à luz das exigências do presente.”71 Ressalte-se que o papel desempenhado pelos CIAM em relação ao patrimônio cultural recebeu críticas, pois suas concepções teriam dado o suporte teórico que levou à mutilação de cidades, destruiu edifícios de prestígio e antigas referências urbanas em nome de uma arquitetura funcional e atemporal, isto é, desvinculada de referências históricas. Defendia-se abertamente a destruição ou demolição de monumentos antigos, em nome da necessária renovação de setores urbanos. Na França, por exemplo, os últimos vestígios da arquitetura da Belle Époque (período da cultura europeia que vai do final do século XIX até o início da Primeira Guerra Mundial) forma eliminados.72 O Plan Voisin, de Le Corbusier (1925), que não foi implementado, tinha como foco a destruição da velha Paris, poupando apenas alguns monumentos de maneira aleatória, para nela erguer arranha-céus para uma cidade de negócios. Essas propostas radicais de setores do modernismo inspiraram a destruição de parcela significativa do patrimônio cultural depois da 70 Encontro promovido pela Sociedade das Nações, onde só participaram nações europeias. Disponível em: <www.iconomos.org.br/cartadeatenas1931.pdf>. Acesso em: 11/09/2010. 71 Cíntia Nigro Rodrigues, Territórios do patrimônio: tombamentos e participação social na cidade de São Paulo, p. 21. 72 Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 9 e 16.
  • 52. 42 Segunda Guerra Mundial, nos países do Magreb e do Oriente Próximo e justificaram a destruição ou a adulteração dos bairros muçulmanos na Tunísia, na Síria ou no Irã.73 O fato é que, mesmo com ambiguidades, a preservação foi alçada à categoria de mentalidade e dogma que poucos tentam questionar. Seja porque a conservação de objetos remete a um passado comum que contribui para conformar identidades ou pelo fato de diversos grupos socais e suas manifestações culturais, inclusive de um passado cada vez mais próximo, terem sido incorporadas ao patrimônio cultural em ritmo cada vez mais acelerado, especialmente a partir dos anos de 1960. 1.7.3 As diferenças na abordagem do patrimônio cultural na Modernidade e na Pós-Modernidade O tema do patrimônio cultural é abordado de maneiras diferentes na Modernidade e na Pós-Modernidade. O projeto da Modernidade destaca-se no século XVIII, como expressão do ideário iluminista e associado à ideia de progresso e de ruptura com a tradição. O Iluminismo revela-se, sobretudo, como “um movimento secular que procurou desmistificar e dessacralizar o conhecimento e a organização social para liberar os seres humanos dos seus grilhões.”74 A emancipação viria por meio de uma organização social, fundada na igualdade e na liberdade e de modos racionais de pensamento, que 73 Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 16 e 126. 74 David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural, p. 23.
  • 53. 43 libertaria o ser humano da opressão, dos conflitos, da ignorância e dos mitos. As artes e as ciências iriam promover o controle das forças naturais, eliminado a escassez e as necessidades materiais, além de promover o progresso moral, a justiça e até mesmo a felicidade dos seres humanos. O conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológico, além disso, expressavam a capacidade, a inteligência e criatividade do homem que o habilitavam a se tornar o sujeito dominador da história, da natureza e do universo.75 O projeto da Modernidade era revolucionário, ambicioso e com contradições internas que poderiam tornar-se insolúveis. É o caso da liberdade econômica na esfera individual, que, muitas vezes, é incompatível com a igualdade, com a justiça e até mesmo com a liberdade. Essas contradições explicariam por que algumas de suas metas ou promessas foram cumpridas, enquanto outras não. Os excessos foram justificados como desvios fortuitos e os déficits como temporários, mas resolúveis por uma maior e melhor utilização dos recursos materiais, intelectuais e institucionais da modernidade.76 A Pós-Modernidade resulta de novas formas de organização e de produção econômica (como as alterações no modo de produção do capitalismo e a nova divisão global do trabalho), de novos hábitos sociais e de mudanças culturais. O Pós-Modernismo é a forma cultural dominante da 75 Eduardo Subirats, A cultura como espetáculo, p. 36-37. 76 Boaventura de Sousa Santos, Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática (v. 1. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência), p. 50-51.
  • 54. 44 sociedade pós-industrial, que reflete as transformações do capitalismo tardio ou globalização, denominação que o consagrou.77 As condições políticas, econômicas e tecnológicas para a globalização começaram a ser preparadas nos anos de 1950. Surgiram novos produtos e novas tecnologias (inclusive na mídia), o que permitiu que se lançassem as bases para um novo sistema econômico mundial. Na esfera cultural, a produção estética da nova geração dos anos de 1960, entra em confronto com o Modernismo. Foi absorvida e está integrada à produção de mercadorias em geral, pois atende ao anseio do mercado por novidades, inovação estética e experimentalismo.78 A expressão capitalismo tardio não significa o colapso ou o fim do capitalismo, mas de transformação e continuidade. Hoje, o sistema capitalista é diferente do antigo imperialismo, marcado pela rivalidade entre as potências. Suas características são: (I) a organização das empresas transnacionais; (II) a nova divisão internacional do trabalho, com a transferência da produção para áreas do Terceiro Mundo; (III) a nova dinâmica vertiginosa de transações financeiras e das bolsas de valores; (IV) o desenvolvimento das novas tecnologias, que reduziram o custo do trabalho; (V) a crise do trabalho tradicional.79 77 Segundo Frederic Jameson, professor de literatura nos Estados Unidos de orientação marxista, capitalismo, é uma expressão criada por Ernest Mandel. Refere-se ao terceiro estágio do sistema capitalista em que vivemos, conhecido como globalização. A periodização de Mandel é a seguinte: capitalismo de mercado, capitalismo monopolista ou imperialista e capitalismo multinacional. Frederic Jameson utiliza-se da terminologia capitalismo pós-industrial. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 22-24 e 62-63. 78 Ibid., p. 23 e 30. 79 Ibid., p. 22 e 24.
  • 55. 45 Os princípios que estruturam o projeto da Modernidade são superados ou, pelo menos, contestados. A maioria dos autores afirma que vivemos na era da Pós-Modernidade. 80 O primeiro traço da Pós-Modernidade é o enfraquecimento do Estado-Nação, em vista do intenso processo de globalização, especialmente a partir dos anos de 1980. A globalização econômica, reforçada pela revolução tecnológica, logrou êxito em integrar os mercados e trouxe desdobramentos nos âmbitos institucionais e jurídicos. A autoridade do Estado contemporâneo foi abalada, com repercussões nas estruturas jurídicas e nas ações do Estado Liberal (século XIX) e do Estado Social (século XX). O modelo econômico de inspiração social-democrata do pós- guerra começa a ser desmontado nos países desenvolvidos. O sistema jurídico- político foi posto em xeque e “os principais atores não são estados-nações democraticamente controlados, mas conglomerados financeiros não eleitos”.81 É um período marcada pela contestação das diversas vertentes que contribuíram para construir a ideia de Modernidade (Iluminismo, Idealismo e Materialismo). Rejeitam-se as metanarrativas, isto é, as interpretações teóricas de aplicação pretensamente universal, típicas da Modernidade. Não há mais razão de ser para esquemas interpretativos “totalizantes”, como os produzidos por Marx ou Freud.82 Passa-se a desconfiar das visões de mundo fundamentadas no racionalismo, na crença do progresso linear, nas verdades absolutas, em 80 É o caso de Zygmunt Bauman, David Harvey, Andreas Huyssen, Manuel Castells, Frederic Jameson, Eduardo Subirats, Teixeira Coelho. Jürgen Habermas é uma das poucas exceções, ao contestar a exaustão das ideias que deram origem ao projeto da modernidade, que ainda poderia ser completado. 81 Zygmunt Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, p. 61. 82 David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural, p. 49-50.
  • 56. 46 ordens sociais ideais. E, especialmente, no papel atribuído à filosofia e à ciência como guias da humanidade na elaboração e construção dessa ordem racional e emancipatória. Voltando à questão do patrimônio cultural, gostemos ou não de nosso passado, o tempo não pode ser abolido e até agora não há exemplos de começos absolutos, como gostaria o pensamento utópico expresso na Modernidade por diversas correntes de pensamento. E mesmo o rompimento “com o passado não significa abolir sua memória nem destruir seus monumentos”.83 Portanto, a regra é que “indivíduos e sociedades não podem preservar e desenvolver sua identidade senão pela duração e pela memória.”84 De maneira surpreendente para muitos, o culto à memória se manifestou como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais no final do século XX. A reverência ao passado contradiz a ênfase dada ao futuro, característica da Modernidade nas primeiras décadas do século XX. O fenômeno era (e é) acompanhado da comercialização bem sucedida da memória por parte da indústria cultural. O passado vende mais que o futuro.85 Alguns exemplos desse fenômeno são observados na Europa e nos Estados Unidos. A restauração historicizante de velhos centros urbanos, de cidades e paisagens inteiras; a moda retrô; a literatura memorialística; o grande número de remakes no cinema; o aumento do número de documentários de 83 Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 113. Por isso, os revolucionários russos, “que, depois de 1917, conservaram intacta a cidade-símbolo do poder dos czares, São Petersburgo, assim como seus palácios, onde o povo soviético vinha desfilar ritualmente diante dos testemunhos de sua história e dos tesouros acumulados pelos soberanos, fundadores da nação” Ibid., p. 113. 84 Ibid., p. 112-113. 85 Andreas Huyssen, Seduzidos pela memória, p. 24.
  • 57. 47 televisão, incluindo, nos Estados Unidos, um canal totalmente voltado para história, o History Channel.86 A reavaliação do passado, acompanhada do medo no futuro, num tempo em que a crença no progresso da Modernidade está profundamente abalada, seria uma das causas desse culto à memória. A consciência temporal da Modernidade no Ocidente procurou garantir o futuro, enquanto a consciência temporal do final do século XX procura assumir a responsabilidade pelo passado, como o Holocausto, os presos políticos desaparecidos na América Latina e o apartheid na África do Sul.87 A Modernidade é vista como algo que enfraquece as tradições e a velocidade das inovações técnicas, científicas e culturais, que lhes são características, é um fenômeno que acaba por gerar instabilidade e sensação de desordem. Nesse contexto, a memória e a musealização compensam essa perda de estabilidade e de identidade cultural do homem moderno. Oferecem proteção em face da “nossa profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o contínuo encolhimento dos horizontes de tempo e de espaço.”88 É claro que a existência ou a perda de um passado melhor, dos bons tempos, é mais sonho que plausível, pois a representação de um passado ideal é mais forte que a realidade. É difícil glorificar o passado, especialmente no século XX, com duas Guerras Mundiais, a Grande Depressão, o totalitarismo (estalinismo e o nazismo), os genocídios, as limpezas étnicas, os milhões de refugiados, as ditaduras e as crescentes desigualdades sociais e econômicas.89 86 Ibid., p. 4. 87 Ibid., p. 17-18. 88 Ibid., p. 28. 89 Ibid., p. 31.
  • 58. 48 O futuro global, com sua negação de tempo, espaço e lugar, gera desconfiança e nos voltamos às práticas de memória em busca de conforto.90 De outra parte, Françoise Choay observa que o culto ao patrimônio cultural é uma moda, que serve aos desígnios da indústria cultural. Além disso, é irracional quando se volta ao “passadismo encantatório”, ideal que nunca existiu. Teria, assim, “uma função defensiva, que garantiria a recuperação de uma identidade ameaçada.”91 Portanto, segundo Choay, há de se repensar as práticas de preservação. O patrimônio cultural deixaria de ser uma relíquia e objeto de um culto irracional e o desafio posto é o de articular espaços destinados à habitação com qualidade de vida, além de integrar o patrimônio cultural no quotidiano, isto é, nas ações de planejamento urbano de competência do Poder Público. Na Pós-Modernidade, observa-se também um fenômeno que, aparentemente, contradiz o objetivo inicial das políticas de constituição do patrimônio cultural. Dirigidas pelo Estado, tinham a pretensão de manter e reafirmar as tradições e a identidade nacional. Identidade que necessita de referências culturais para se legitimar e aglutinar a população em torno da ideia de nação. Ocorre que no mundo globalizado, o fluxo transnacional de culturas, pessoas, informação e capital coloca em xeque essa política oficial, havendo nesse sentido um questionamento dos traços supostamente comuns e homogêneos que conformariam a identidade nacional. 90 Ibid., p. 36. 91 Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, p. 241.