GUIA DE APRENDIZAGEM 2024 9º A - História 1 BI.doc
Artigo sociologia corrigido
1. CRIMINALIZAÇÃO DA CANNABIS SATIVA
Edgar Freitas Müller1
Maria Inês Dias da Silva2
Prof. Ms. Fernanda Pamplona Ramão3
RESUMO: Este artigo explicita a evolução do ordenamento jurídico pátrio no tocante à
proibição da maconha – Cannabis Sativa - passando por uma visão histórica do uso do
cânhamo para diversos fins desde épocas remotas até o início do século passado. Após, são
elencadas as leis penais brasileiras mais significativas consoantes ao uso de entorpecentes, em
ordem cronológica a partir do período colonial e a influência de elementos externos à nossa
cultura na elaboração das mesmas, bem como os impactos no meio social. Finalmente, são
expostas as razões alegadas pelos legisladores no Brasil e nos EUA para a proibição da
maconha e demonstrados os possíveis motivos econômicos que levaram a tanto. As pesquisas
realizadas consultando autores e literatura específica tanto nacional quanto estrangeira,
permitiram concluir que, malgrado a nocividade da maconha, em escala muito maior
colaboraram os interesses ideológicos alienígenas para tornar ilícita a utilização de uma planta
conhecida pelo homem como fonte de inúmeros produtos há milênios.
PALAVRAS-CHAVE: Maconha. Cânhamo. Criminalização. História do Brasil. Drogas.
Legislação
1 INTRODUÇÃO
Nesse artigo, pretende-se verificar até que ponto a legislação brasileira coaduna com a
realidade sócio-econômica global, ao proibir a maconha até mesmo como fonte de recursos,
tolerando apenas sua produção em pequena escala, especialmente para fins científicos.4
A história da criminalização da maconha no Brasil e em boa parte do mundo mostra-se
incompleta. Há lacunas suficientes para levantar dúvidas quanto à razoabilidade dessa atitude:
fundamentada em aspectos médicos e morais acabou por esconder um terceiro elemento
pouco comentado. Afora seu efeito entorpecente a cannabis possui um potencial econômico
tão variado que estamos longe de explorá-lo em totalidade. E há indícios que isso fortaleceu a
proibição no início do século XX, conforme será demonstrado ao longo do texto.
1
Acadêmico do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel.
Acadêmico do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel.
3
Mestre em Sociologia. Professora da Disciplina de Sociologia Jurídica do Curso de Direito da UNIVEL –
Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel.
4
A Lei sobre drogas vigente (11.343/2006) prevê que a União pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita da
Cannabis, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante
fiscalização (artigo2º, Parágrafo único)
2
2. Por que se proíbe o cultivo desta planta, se foi demonstrado 5 que pode oferecer
benefícios múltiplos na área médica (aliviar os sintomas de diversos distúrbios e doenças
crônicas, como AIDS, câncer, TDAH, esclerose múltipla, náusea decorrente da quimioterapia,
doença de Crohn, glaucoma, epilepsia, insônia, enxaqueca, artrite e falta de apetite. A
maconha medicinal também é indicada para pacientes terminais, como forma de aliviar a dor
e melhorar a qualidade de vida), na fabricação de produtos essenciais, tais como papel, roupas
ou até mesmo fornecer os elementos necessários para a construção civil ou produção de
combustível?
A escassez de recursos não renováveis exige postura aberta acerca de explorarmos
fontes alternativas de energia; o cânhamo6 já foi a fonte industrial do passado, e em alguns
países, como a China, é fonte industrial do presente.
A pesquisa fundamentou-se em consulta à literatura específica, aos códices,
orientações oficiais, textos multidisciplinares e material audiovisual 7, buscando relacionar as
causas histórico-sociais da atual legislação sobre a maconha. Para tanto, o presente artigo
encontra-se estruturado em três seções. Na primeira, apresenta-se a maconha na história do
Brasil e do mundo, e seus usos. Na segunda, o processo de criminalização da planta no Brasil
e nos EUA. Por fim, são expostas as conclusões obtidas ao término da pesquisa.
2 A MACONHA NA HISTÓRIA
Os registros de utilização desta planta são tão antigos como as mais primitivas
sociedades humanas: o cânhamo se desenvolveu na Ásia Central, onde se tornou a primeira
fibra vegetal a ser cultivada (ROBINSON, 1999). Onde hoje é Taiwan foram encontradas
marcas de corda de cânhamo em utensílios de cerâmica datados de doze mil anos atrás.
Devido ao seu fácil e barato cultivo, sua qualidade, durabilidade e adaptação a quase todos os
climas terrestres, o cânhamo rapidamente tomou o lugar do papiro na fabricação de papéis,
facilitando assim o desenvolvimento e disseminação da tecnologia da escrita.
5
Mais de 25 mil produtos podem ser feitos com cânhamo, isso varia de produtos alimentícios, bio-combustível,
papel que até apresenta melhor durabilidade devido as longas fibras que ele provê e não amarela com o tempo,
assim como, há vantagens ecológicas no setor da reciclagem quando comparado ao papel provindo da madeira.
(ROBINSON, 1999).
6
Cânhamo ou cânhamo industrial é o nome que recebem as variedades da planta Cannabis e o nome da fibra
que se obtém destas, que tem, entre outros, usos têxteis
7
MACONHA, A história da; BKS Crew Productions, Vancouver, British Columbia, Canadá, 1999. DVD., e
TABU, Quebrando o; Spray Filmes – Start Cultura – Luciano Huck; São Paulo, 2011. DVD, este último com
participação tanto na elaboração do roteiro como nas entrevistas do sociólogo e ex-presidente do Brasil,
Fernando Henrique Cardoso.
3. A cannabis se propagou da China à Índia, e daí ao norte da África, (os egípcios
utilizavam fibras da planta para construção de seus monumentos) , chegando à Europa cerca
de 500 anos depois de Cristo e por fim às Américas, onde foi empregada para confeccionar
cordas e na fabricação de tintas, e suas sementes eram usadas como ração para o gado
(HANSON; VENTURELLI, 1995).
Henrique Carneiro, historiador e professor da USP, afirma que:
“A primeira referência segura que temos sobre a cannabis foi encontrada na China,
um herbário de mais de 2 mil anos antes de Cristo”. Já havia indicações, naquela
época, para o uso terapêutico, com finalidade médica. Depois, há registros na
Antiguidade Clássica do uso da fibra do cânhamo para a fabricação de vários tipos
de tecidos. Mais tarde, isso foi adaptado para os velames e para os cordames dos
navios, porque a fibra do cânhamo é a mais longa de todas as fibras vegetais, mais
do que o algodão, o linho etc. (...) Já no período moderno, temos a utilização do
papel. Na revolução gutemberguiana, de 1454 em diante, a grande fonte de
fabricação de papel vai ser o cânhamo. Todos os livros e documentos, até os
documentos oficiais e o papel-moeda, eram derivados do cânhamo. Eram fibras para
roupas, velas, cordas; papel e depois o uso do óleo.(...). todos os documentos da
História Moderna, a Constituição americana, a Declaração dos Direitos Humanos,
todos os tratados assinados depois do término das guerras, eram em papel de
cânhamo. (…). Era usado para combater males do estômago, seu óleo era muito
usado para rachaduras de pele, tinha inclusive um uso específico para seios
rachados.” (OLIVEIRA, 2013, disponível em http://revistaforum.com.br).
Na Renascença, a maconha era um dos principais produtos agrícolas da Europa: além
das páginas de papel de cânhamo dos primeiros livros impressos, os artistas pintavam em telas
feitas com suas fibras. A palavra canvas, usada em várias línguas para designar “tela”, é uma
é uma palavra inglesa que deriva do Latim cannapaceus, “feito de cânhamo”, de cannabis,
“cânhamo”: Daí dizer-se 'oil on canvas' (óleo sobre tela)'. A maioria das obras de Rembrandt,
Van Gogh, Monet, e muitos outros foram em tela de cânhamo; algumas tintas e vernizes de
maior qualidade foram produzidos a partir das sementes da
cannabis até 1930.
No século XV,
cultivado nas regiões de Bordéus e da Bretanha, na França, em Portugal e na África, o
cânhamo era destinado à confecção de cordas, cabos, velas e material de vedação dos barcos:
incluindo velame, cordas e outros materiais, havia 80 toneladas de cânhamo no barco
comandado por Cristóvão Colombo, em 1496 (ROBINSON, 1999). Em Portugal tornou-se
cultura importante à época das Grandes Descobertas, pois fornecia o material das
embarcações. Um decreto do rei D. João V, de 1656, comprova que o incentivo à produção de
maconha era uma política de Estado.8
Antes da introdução do algodão em 1820, 80% de vestuário e têxteis eram geralmente
feitos a partir desta planta. Henry Ford, grande nome da indústria mundial, fundador da
8
Regimento para a Feitoria dos linhos cânhamos da Vila de Moncorvo, 4 de Julho de 1656, Disponível em
<http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=100&id_obra=63&pagina=825> Acesso em: 01 out.
2013.
4. montagem de carros com o mesmo nome, construiu um carro usando o cânhamo como a
principal matéria-prima9, e até mesmo o motor do modelo foi projetado para operar com o
combustível gerado a partir desta planta 10. Até o início do século XX a maconha era considerada um excelente
medicamento (ROBINSON, 1999).
2.1 A Maconha no Brasil
Durante muito tempo os historiadores concordavam que os usos e a própria planta
chegaram aqui trazidas da África pelos escravos. Segundo documento oficial do governo
brasileiro, expedido pelo Ministério das Relações Exteriores em 1959, a erva teria sido
“introduzida pelos negros escravos, [em] sementes trazidas em bonecas de pano, amarradas
nas tangas” (CARLINI, 2006, p. 314). Não obstante muitos dos africanos conhecessem a
maconha e mantivessem em seus costumes a utilização do vegetal por suas propriedades
psicotrópicas e curativas, não foram os negros os únicos responsáveis pela introdução do
cultivo e consumo da planta no Brasil.
É importante observar que os navios que compunham a esquadra de Pedro Alvarez
Cabral, tinham fibras de cânhamo na composição de suas velas, cordas e até mesmo na
vestimenta da tripulação, como era uso na época. Em 1783, o Império Lusitano instalou no
Brasil a Real Feitoria do Linho-cânhamo (RFLC), uma importante iniciativa da Coroa para
cultivo da planta com fins comerciais. No século XVIII passou a ser preocupação portuguesa
o cultivo da maconha no Brasil, mas ao contrário do que poderia se esperar, considerando o
contexto a que estamos acostumados hodiernamente, a Coroa procurava incentivar a cultura
da Cannabis:
“aos 4 de agosto de 1785 o Vice-Rei (...) enviava carta ao Capitão General e
Governador da Capitania de São Paulo (...) recomendando o plantio de cânhamo
porserde interesse da Metrópole (...) remetia a porto de Santos (...) ‘dezesseis sacas
com 39 alqueires’ de sementes de maconha...” (FONSECA apud CARLINI, 2006, p.
316).
Do século XVI até meados do século XVIII, os senhores-de-engenho, expoentes
econômicos brasileiros, toleravam a utilização do fumo de cannabis e tabaco. Freyre afirma
que “não parece simples coincidência que se surpreendam tantas manchas escuras de tabaco
9
Em sua grande propriedade, Ford foi fotografado diversas vezes em seus cultivos de cânhamo. O carro,
segundo ele "criado a partir do solo”, tinha painéis de plástico de cânhamo, cuja resistência a impactos era 10
vezes mais forte que o aço. <http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/o-automovel-movido-a-biodiesel-de-henryford> Acesso em 01 de out. 2013.
10
Rudolf Diesel, inventor do motor a diesel, o desenhou para rodar com óleos de sementes vegetais. Em sua
primeira demonstração, na Feira Mundial de 1900, o motor a diesel era movido a óleo de amendoim. Seguindo o
mesmo raciocínio, Henry Ford defendia o uso do cânhamo não apenas para construir o carro, mas também como
seu combustível. (Idem, Ibidem)
5. ou de maconha entre o verde-claro dos canaviais”, sugerindo que teria havido “evidente
tolerância – quando não mais do que tolerância – para a cultura dessas plantas voluptuosas”
(FREYRE apud CARLINI, 2006, p. 316).
As primeiras fazendas e benfeitorias de maconha foram instaladas no sul do país, na
área entre os atuais municípios de Canguçu e Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul.
Passou-se a importar sementes, traduzir manuais de cultivo e produção e investir na adaptação
climática de variedades da planta. Os Hortos Botânicos Imperiais do Pará, Amazônia,
Maranhão, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia trabalhavam passaram a trabalhar
selecionando as gerações das plantas mais adaptadas e enviando relatórios sobre o seu
desempenho:
“o assunto era importante e, ao nível estratégico, interessava ao príncipe D. João, a
dois vice-reis, a dois governadores do Continente. O linho-cânhamo era para a
navegação o que hoje é o petróleo. E Portugal procurava ficar independente da
Inglaterra, daí a importância que teve o empreendimento de 1783-89”. (BENTO ,
1992, p. 35).
Assim descrevia um famoso dicionário de medicina do fim do século XIX, no Brasil:
“Contra a bronchite chronica das crianças (...) fumam-se (cigarrilhas Grimault) na
asthma, na tísica laryngea, e em todas (…) Debaixo de sua influência o espírito tem
uma tendência às idéias risonhas. Um dos seus efeitos mais ordinários é provocar
gargalhadas (...) Mas os indivíduos que fazem uso contínuo do haschich vivem num
estado de marasmo e imbecilidade” (CHERNOVIZ, 1890, p. 113).
Tudo leva a crer que muitos outros empreendimentos do tipo surgiram a exemplo da
experiência da Real Feitoria, até mesmo de iniciativa privada, e esses teriam persistido até a
proibição do cultivo da planta, na década de 1930; até ali, continuaram a ser citadas nos
compêndios médicos e catálogos de produtos farmacêuticos as propriedades terapêuticas do
extrato fluido da Cannabis:
“Hypnotico e sedativo de acção variada, já conhecido de Dioscórides e de Plínio, o
seu emprego requer cautela, cujo resultado será o bom proveito da valiosa
preparação como calmante e anti-spasmódico; a sua má administração dá às vezes
em resultados, franco delírio e allucinações. É empregado nas dyspepsias (...), no
cancro e úlcera gástrica (...) na insomnia, nevralgias, nas perturbações mentais...
dysenteria chronica, asthma, etc.”. (ARAÚJO E LUCAS, apud CARLINI, 2006, p.
9)
Durante muito tempo, desde a antiguidade, e até os primeiros anos do século XX, as
pessoas tinham uma visão da cannabis totalmente diversa da que temos hoje, ressaltando seu
uso para fins os mais variados, e curiosamente, o chamado “uso recreativo” era muito pouco
considerado.
2.2 A Maconha nos EUA
6. Os Estados Unidos, na origem da nação norte-americana, incentivaram o plantio do
cânhamo como recurso estratégico justamente para ter autonomia na produção naval. Por
ocasião de sua independência, precisavam ter acesso a todos os insumos básicos da indústria,
entre eles o cânhamo. George Washington, primeiro presidente da história dos Estados
Unidos, era um conhecido plantador de cânhamo: há vários registros em seus diários dizendo,
inclusive, que ele ia “separar as plantas fêmeas das machos”, o que mostra também que
estava interessado na obtenção da resina, porque “essa separação mantém as fêmeas
produzindo mais resina” (WASHINGTON, 1796). Havia uma extensa utilização do cânhamo
para fins econômicos nos Estados Unidos.
Em 1916, a United States Department of Agriculture 11 faz a previsão de que até 1940
todos os livros seriam impressos de cânhamo, e confirmou que um hectare de cânhamo
produz 4 vezes mais papel do que a mesma área plantada com árvores, e do processo de
extração requer um esforço entre 4 e 7 vezes menor em máquinas que resulta, por sua vez,
em menos poluição (grifo nosso); (ROBINSON, 1999). O uso psicoativo, curiosamente, não
era muito divulgado nem muito conhecido, tendo ficado quase despercebido.
No início do século XX, quando surge o papel de celulose e a fibra sintética, um
subproduto da indústria petroquímica desenvolvido pelos alemães, que depois passou para os
Estados Unidos como parte das indenizações que o Tratado de Versalhes 12 estabeleceu no fim
da Primeira Guerra Mundial, esses usos começam a perder prioridade. Passa-se a ter uma
série de restrições ao cânhamo, considerado matéria-prima concorrente.(CLARK,1929).
Contra ele começaram a ser feitas campanhas, com apoio de empresas americanas de fibras
sintéticas, (que posteriormente ligaram-se à política da época), e com Harry Aslinger 13, o
homem do (Federal Bureau of Investigation – Departamento Federal de Investigação) FBI,
responsável pelo setor de narcóticos, que vai se dedicar, durante a lei seca, a combater o
álcool, e após a década de 1930, à perseguição da maconha e de outras drogas.
11
Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, o equivalente ao nosso Ministério da Agricultura.
Assinado em 28 de junho de 1919, o Tratado de Versalhes foi um acordo de paz assinado pelos países
europeus, após o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Neste Tratado, a Alemanha assumiu a
responsabilidade pelo conflito mundial, comprometendo-se a cumprir uma série de exigências políticas,
econômicas e militares. Estas exigências foram impostas à Alemanha pelas nações vencedoras da Primeira
Guerra, principalmente Inglaterra e França. Em 10 de janeiro de 1920, a recém criada Liga das Nações (futura
ONU) ratificou o Tratado de Versalhes.(http://www.suapesquisa.com/pesquisa/tratado_de_versalhes.htm>.
Acesso em: 18 set. 2013).
13
Harry Jacob Anslinger, o homem que, sozinho, deu o tom para as atitudes americanas do século 20 para drogas,
nasceu de ascendência alemã em Altoona, Pensilvânia, 20 de maio 1892. Por 32 anos (1930-1962) foi o primeiro
Comissário do “Bureau of Narcotics.” nos EUA. (RHEMUS, Ed. Harry Jacob Anslinger. Disponível em:
<http://www.ecphorizer.com/EPS/site_page.php?page=1249&issue=83>. Acesso em: 03 out. 2013)
12
7. 3 - CRIMINALIZAÇÃO
A cultura ocidental só se preocupou com o controle de substâncias entorpecentes e
psicotrópicos a partir do início do século XX. A cocaína era vendida em farmácias na Europa,
no século XIX, como medicamento para o tratamento de: depressão, fadiga, neurastenia 14 e,
curiosamente, para curar a dependência de opiáceos15 , além de ser considerada energético.
Até então, o ópio era comercializado pela Inglaterra como forma de pagamento por
produtos, extraído das suas colônias na Índia e revendido aos chineses, representando grande
parte dos recursos externos dos ingleses. Comércio esse que trouxe drásticas consequências à
China: em 1906, cerca de um quarto da população chinesa masculina adulta era dependente
do ópio. Isso resultou na formação da Comissão do Ópio de Xangai, em 1909, com a
participação de diversos países europeus.
A criminalização da maconha nos Estados Unidos teve o seu primeiro registro em
1906, no Distrito de Columbia, com o primeiro regulamento em torno do cultivo desta
planta. Depois, Massachusetts (1911), Califórnia (1913), New York e Maine (1914), os
estados de Wyoming (1915) e do Texas (1919), Iowa , Nevada , Oregon, Washington e
Arkansas (1923), e Nebraska (1927) logo seguiram a tendência da criminalização, que
nos EUA iniciou-se em função de seu papel econômico, utilizando o uso psicoativo da
planta como pretexto para combater toda a cadeia industrial do cânhamo, principal
concorrente da fibra sintética desenvolvida pela Dupont. (MANGINO, 2013).
Mas o estopim do processo surgiu graças à William Randolph Hearst 16 que nos anos
1920 e 1930, tinha enormes plantações para a produção de papel no México, que foram
expropriadas pela Revolução Mexicana17; Hearst retaliou, iniciando uma campanha
para estigmatizar o cânhamo como “uma espécie de legado maléfico da tradição
mexicana”. (OLIVEIRA, 2013). Foi uma manobra econômico-psicológica, bem sucedida
porque a sociedade norte-americana da época aceitava quaisquer bodes expiatórios que
explicassem sua profunda crise social.
14
Um transtorno psicológico resultado do enfraquecimento do sistema nervoso central.
Substâncias derivadas do ópio, que produzem ações de insensibilidade à dor e são usados principalmente na
terapia da dor crônica e da dor aguda de alta intensidade. Produzem em doses elevadas euforia, estados
hipnóticos e dependência e alguns (morfina e heroína) são usados como droga recreativa.
16
William Randolph Hearst, que inspirou Orson Welles, em Citizen Kane, construiu o primeiro verdadeiro
império da imprensa americana . Um império que foi usando em beneficio próprio e que, na passagem do século
XIX para o século XX, fez nascer o "jornalismo amarelo", dirigido às classes trabalhadoras e apostado no
sensacionalismo.<http://expresso.sapo.pt/ascensao-e-queda-de-william-randolph-hearst> Acesso em: 28 set.
2013.
17
A Revolução Mexicana foi um grande movimento armado que começou em 1910 com uma rebelião liderada
por Francisco I. Madero contra o antigo autocrata general Porfirio Diaz. Foi a primeira das grandes revoluções
do século XX. <http://www.sohistoria.com.br>. Acesso em: 30 set. 2013.
15
8. Com o projeto apresentado no dia 8 de setembro de 1917 à Câmara dos
Representantes, e que só entraria em vigor dois anos depois, começou uma nova era na
história dos Estados Unidos, caracterizada pela proibição das bebidas alcoólicas. A lei 18 que
vigorou no país por quase 14 anos condenava "a fabricação, a venda, o transporte, a
importação e a exportação de bebidas alcoólicas em toda a área dos Estados Unidos e dos
territórios judicialmente submetidos a eles" (VALMONT,1933), resultava de uma campanha
existente desde o século XIX coadunando vários interesses, desde os setores puritanos até
Henry Ford, que viam no álcool uma forma da degradação da mão de obra e perda da
capacidade produtiva.
Com a crise de 1929, o Estado norte americano precisava arrecadar mais, e uma das
soluções encontradas foi permitir novamente o álcool. Isso acontece em 1933, e, três anos
depois, os derivados da cannabis passam a ser criminalizados. Uma das explicações
encontradas é que a máquina repressiva estatal, nessa altura um setor específico do poderoso
FBI, tornara-se ociosa e havia todo um aparato com funcionários, verbas oficiais e infraestrutura que precisava de uma justificativa para existir (HERER, 1993).
Já em 1932 o governo americano criou Uniform State Narcotic Act19 para convidar
os governos estaduais que ainda não haviam proibido a planta a aderir, sem exceção, à
campanha nacional para criminalizar o uso de maconha. De repente, os Estados Unidos, de
incentivadores e produtores de cannabis, passaram a ferrenhos opositores, promovendo a sua
proibição, punição e demonização.
3.1 – Criminalização no Brasil
Nas Ordenações Filipinas, ordenamento jurídico português, com validade no território
do Brasil Colônia, havia referência ao uso e à posse de determinadas substâncias. O título
LXXXIX determinava:
“Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender, rosalgar 20 branco, nem vermelho,
nem amarello, nem solimão, nem água delle, nem escamoneá 21, nem ópio, salvo se
for Boticário examinado, e que tenha licença para ter Botica, e usar do Officio.
18
A 18.ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos foi ratificada por 36 estados em 16 de janeiro de 1919, e
começou a valer um ano mais tarde, com o início da era da proibição. A primeira seção da emenda dizia o
seguinte:"Depois de um ano a partir da ratificação do presente artigo, a fabricação, venda ou transporte de
bebidas alcoólicas interna, a importação ou para a exportação da mesma a partir dos Estados Unidos e todos
os
territórios
sujeitos
à
sua
jurisdição
para
fins
de
bebidas
é
proibida."
<http://anosloucos.blogspot.com.br/2011/06/lei-seca.html>Acesso em 01 out. 2013
19
Ato Estatal de Uniformidade de Narcóticos.
20
Arsênico
21
Planta convolvulácea (Convolvulus scammonea, L.), cuja resina é utilizada em farmácia como purgativo.
9. E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender,
perca toda sua fazenda, ametade para nossa Câmera, e a outra para quem o accusar,
e seja degradado para África até nossa mercê.
E a mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fora, e as vender a pessoas,
que não forem Boticários.
1. E os Boticários as não vendão, nem despendão, se não com os Officiaes, que por
razão de seus Officios as hão mister, sendo porem Officiaes conhecidos per elles, e
taes, de que se presuma que as não darão á outras pessoas.
E os ditos Officiaes as não darão, nem venderão a outrem, porque dando-as, e
seguindo-se disso algum dano, haverão a pena que de Direito seja, segundo o dano
for.
2. E os Boticários poderão metter em sua mezinhas 22 os ditos materiaes, segundo
pelos Médicos, Cirurgiões, e Escriptores for mandada.
E fazendo o contrario, ou vendendo-os a outras pessoas, que não forem Officiaes
conhecidos, pola primeira vez paguem cincoenta cruzados, metade para quem
accusar, e descobrir. E pola segunda haverão mais qualquer pena, que houvermos
por bem.” (ALMEIDA,1870, p 1240).
Os primeiros documentos brasileiro conhecidos proibindo o uso da maconha no Brasil
foram posturas das Câmaras Municipais do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 1830).
O Código Penal do Império promulgado em 1830 não tratava da questão relativa às
drogas em seu texto, e o regulamento de 29 de setembro de 1851 abordava o assunto ao
regular a venda de substâncias e medicamentos e ao tratar de política sanitária. O Código
Penal de 1890, em seu artigo 159, abordava a questão relativa às drogas ao dispor : “Art. 159.
Expor á venda, ou ministrar, substâncias venenosas, sem legitima autorização e sem as
formalidades prescriptas nos regulamentos sanitários: Pena – de multa de 200$000 a
500$000”. (PIERANGELI, 2001, p. 180).
A partir de 1910, cientistas como Rodrigues Dória e Francisco Iglesias passaram a
divulgar e descrever em artigos e congressos científicos internacionais suas teorias
relacionando o comportamento “natural” das populações de origem africana com os efeitos
farmacológicos da cannabis. Segundo essa teoria, a maconha causaria em seus consumidores
“degeneração mental e moral”, “analgesia/entorpecimento”, “vício/compulsão”, “loucura,
psicose e crime”. Essas ideias em um ambiente acadêmico onde vigoravam teses eugênicas
como o auge da pesquisa antropológica.
As posições do Dr. Dória e seus seguidores sobre o que ele chamou de ‘a vingança dos
vencidos’ podem ser resumidas em um pronunciamento no Segundo Congresso Científico
Pan-americano, realizado em Washington, 1915:
“A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em
determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais
adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e
comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa,
que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areais ardentes e os desertos
sem fim de sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o
22
Receitas
10. afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva
reconstrutiva”. (DORIA, 1915, p. 16)
Esse processo da construção de um discurso científico impregnado de categorias
racistas é análogo ao ocorrido nos EUA com as populações de origem mexicana.(VIDAL,
2013). Em 1921, o Brasil se alinha às recomendações dos EUA, seu principal aliado
comercial e político, aderindo aos acordos firmados na reunião da Liga das Nações Unidas23.
Na tentativa de efetivar o combate ao crescente uso de "substâncias venenosas" no país,
editou-se em julho de 1921, sob a inspiração da Convenção de Haia de 1912, o Decreto n.º
4.294, regulamentado pelo Decreto n.º 14.969. Os dispositivos abordavam não apenas
aspectos criminais, como a cominação de pena de 1 a 4 (quatro) anos para as infrações de
venda e uso de entorpecentes, mas também medidas relativas ao controle do comércio,
necessidade de prescrição médica e normas de registro.
Essa lei previa encarceramento para os comerciantes não-autorizados, e interpretava os
consumidores como doentes, vítimas das substâncias, prevendo para eles tratamento
compulsório. Malgrado os esforços das autoridades ligadas ao aparelho de repressão estatal, o
ordenamento jurídico brasileiro em relação ao tema só voltaria a sofrer alterações na década
de 1930, quando da promulgação de uma nova constituição.
Em 1924, mais de 100 países enviaram delegações para reafirmar as discussões sobre
coca e ópio, que já vinham ocorrendo desde as reuniões de 1909. Em todas as Reuniões,
(1911, 1912 e 1921) não houve menção à cannabis, até que o representante do Egito expôs
suas inquietações sobre o que ele considerava os graves problemas e perigos do haxixe 24,
exigindo a inclusão da planta na lista de substâncias proscritas. Após muita insistência e com
apoio brasileiro, o Conselho decide formar uma subcomissão para discutir o tema, composta
por especialistas da Grã-Bretanha, Índia, França, Grécia, Egito e Brasil; este último
representado por Pedro Pernambuco Filho, discípulo do Dr. Dória, que dá sua contribuição à
história da proibição internacional da cannabis, apresentando as teses brasileiras acerca da
associação entre esta e a papoula, afirmando que, no Brasil, segundo ele e os cientistas
racistas que o orientaram, haveriam tantos problemas relacionados com a maconha entre os
23
Liga das Nações ou Sociedade das Nações era o nome de uma organização internacional criada em 1919 e auto
dissolvida em 1946 que tinha como objetivo reunir todas as nações da Terra e, através da mediação e arbitragem
entre as mesmas em uma organização, manter a paz e a ordem no mundo inteiro, evitando assim conflitos
desastrosos como o da guerra que recentemente devastara a Europa. <http://www.infoescola.com/historia/ligadas-nacoes/> Acesso em 01 out. 2013.
24
O Haxixe é uma substância extraída das folhas da Cannabis sativa, – a mesma planta usada para produzir
maconha. Porém enquanto a maconha tem 4% de THC (tetraidrocanabinol), o Haxixe concentra até
14%.<http://www.infoescola.com/drogas/haxixe/> Acesso em 28 set. 2013.
11. negros que a ‘planta da loucura’ seria mais perigosa e causaria mais danos do que o ópio no
oriente (MILLS, 2003).
Participamos da criminalização da maconha com uma dupla mentira: primeiro, porque
ela é muitíssimo menos perigosa que o ópio; segundo, porque ópio nunca foi um problema em
nosso país. Além disso, a opinião emitida em 1924 por Pernambuco em Genebra é
contraditória com as próprias pesquisas por ele realizadas, de acordo com documento oficial
do governo brasileiro :
“Ora, como acentuam Pernambuco Filho e Heitor Peres, entre outros, essa
dependência de ordem física nunca se verifica nos indivíduos que se servem da
maconha. Em centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só
referência de morte em pessoa submetida à privação do elemento intoxicante, no
caso a resina canábica. No canabismo não se registra a tremenda e clássica crise de
falta, acesso de privação (sevrage), tão bem descrita nos viciados pela morfina,pela
heroína e outros entorpecentes, fator este indispensável na definição oficial de OMS
para que uma droga seja considerada e tida como toxicomanógena”.(, 1959, p.39)
Ainda assim, ele afirmou que “os efeitos da cannabis são piores que os do ópio” “É
algo que não tem razão científica nos dias de hoje”, diz o médico Elisaldo Carlini, do Centro
Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), e membro do comitê de
peritos da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre álcool e drogas em uma entrevista
para a "Revista da Fapesp" de fevereiro de 2010 (Revista De História. Disponível em:
<http://rhbn.com.br>).
O resultado disso é que a Liga das Nações condenou a maconha. Em 1932, todas as
variantes da planta foram incluídas na lista de substâncias proscritas sob a denominação de
cannabis.
Editado em 11 de janeiro de 1932, o Decreto n.º 20.930 passou a utilizar a expressão
"substâncias tóxicas" para englobar entorpecentes como o ópio, a cocaína e a maconha, além
de atribuir ao Departamento Nacional de Saúde25 a função de classificar as substâncias
capazes de alterar comportamentos. Em seu artigo 159, a Consolidação das Leis Penais
definia de forma específica o delito de tráfico ilícito de entorpecentes:
Art. 159. Vender, ministrar, dar, trocar, ceder ou, de qualquer modo, proporcionar,
substâncias entorpecentes; propor-se a qualquer desses actos sem as formalidades
prescriptas pelo Departamento Nacional de Saúde Publica; induzir ou instigar por
actos ou por palavras o uso de qualquer dessas substâncias: Pena – de prisão cellular
por um a cinco annos e multa de 1:000$ a 5:000$000. (PIERANGELI, 2001, p. 183)
Vale ainda ressaltar que, diferentemente dos dispositivos anteriormente analisados, o
artigo 159 da Consolidação das Leis Penais, mais precisamente em seu parágrafo primeiro,
25
Criado em 1920, o Departamento Nacional de Saúde (DNS) era o responsável por uma série de serviços e
campanhas direcionados para o controle de doenças, como a febre amarela e a
malária.<http://portal.saude.gov.br/portal/saude/gestor/visualizar_texto.cfm?idtxt=417> Acesso em 01 out. 2013.
12. diferenciava do crime de tráfico de entorpecentes a conduta de ter em depósito ou sob sua
guarda substâncias tidas como tóxicas:
§ 1º. Quem for encontrado tendo comsigo, em sua casa, ou sob sua guarda, qualquer
substancia tóxica, de natureza analgésica ou entorpecente, seus saes, congêneres,
compostos e derivados, inclusive especialidades farmacêuticas correlatas, como taes
consideradas pelo Departamento Nacional de Saúde Publica, em dóse superior á
therapeutica determinada pelo mesmo Departamento, e sem expressa prescrição
medica ou de cirurgião dentista, ou quem, de qualquer forma, concorrer, para
disseminação ou alimentação do uso de alguma dessas substancias: Penas – de
prisão cellular por três a nove mezes e multa de 1:000$ a 5:000$000.
(PIERANGELI, 2001, p. 194)
Em 1938, um ano após a criação do Estado Novo, o Poder Executivo publicou o
Decreto-Lei n. 891, cujas principais contribuições ao aparelho repressor proibicionista foram:
1) regulamentação e definição das atribuições da Comissão Nacional de Fiscalização
de Entorpecentes (CNFE), criada em 1936;
2) estabelecimento de penalidades de encarceramento para condenados por uso, porte
ou plantio para consumo pessoal. A lei que concebeu a CNFE passou a dar margem para que
outras instituições fossem formadas especificamente para tratar das questões relacionadas ao
consumo e comércio das substâncias, que passaram a ser chamadas genericamente de
“entorpecentes”.
Em 1943, uma expedição científica é destacada para visitar comunidades onde se fazia
uso da maconha nos estados da Bahia, Sergipe e Alagoas, principalmente nos povoados às
margens do Rio São Francisco. Ao término da expedição um relatório é encaminhado à CNFE
alertando que a planta era cultivada e consumida principalmente entre as “classes baixas”,
mas que na Bahia, o uso também ocorria nas “classes altas”. A grande maioria dos
cultivadores visitados desconhecia a proibição da planta, que era vendida livremente por
mateiros e herboristas nas feiras livres sob a denominação de ‘fumo bravo’. O relatório então
recomendava que a CNFE promovesse uma intensa campanha mostrando os ‘malefícios do
cultivo e do uso da maconha’ e que buscasse maior articulação entre os diversos Estados da
Nação (PESQUEIRA, 2010).
Após essa primeira inspeção de campo, a CNFE promoveu o Convênio Interestadual
da Maconha, em 1946. Os trabalhos foram encerrados com a publicação do Relatório Final,
redigido por Pernambuco Filho, e com o lançamento da Campanha Nacional de Repressão ao
Uso e Comércio da Maconha.
Em 1951, o Ministério da Educação e Saúde publica a primeira edição dos trabalhos
apresentados no Convênio Interestadual da Maconha, incluindo o Relatório Final: diversos
discursos técnicos e científicos manipulados e apropriados indevidamente para justificar mais
13. de quatro décadas, o período entre os trabalhos do Dr. Dória (1915) e a 2ª edição dos
trabalhos do Convênio, dedicadas à erradicação da planta e ao controle dos hábitos das
populações que a utilizavam, principalmente pobres, negros e nordestinos.
Em 1959, a fim de conhecer os reais perigos da maconha brasileira, a Comissão
Nacional de Fiscalização de Entorpecentes resolve preparar uma revisão bibliográfica de
todas as pesquisas produzidas até o momento no Brasil, não apenas aquelas utilizadas para
justificar a repressão, e encomenda um relatório ao Dr. Décio Parreiras. Este recebe pareceres
e opiniões de técnicos das seguintes instituições: Secretaria da Agricultura de Sergipe;
Sociedade Maranhense de Agricultura; Serviço Florestal do Brasil; Ministério da Agricultura;
Instituto Vital Brasil; Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; Faculdade de Medicina do
Recife; Instituto de Pesquisas Agronômicas de Pernambuco; Hospital Juliano Moreira;
Sociedade de Medicina Legal, Criminologia e Psiquiatria da Bahia; Faculdade de Medicina de
São Paulo; Instituto Médico Legal de São Paulo; Serviço Nacional de Fiscalização da
Medicina; Sanatório Botafogo do Rio de Janeiro; Serviço de Assistência a Psicopatas de
Sergipe; Departamento Nacional de Saúde; Jardim Botânico do Rio de Janeiro e Academia
Nacional de Medicina (PARREIRAS, 1959).
O relatório serviria para embasar o posicionamento da delegação brasileira na
Convenção Única de Entorpecentes, realizada em 1961, em Nova York, no qual seria
decidido se as discussões sobre a maconha realizadas a partir da solicitação brasileira em
1924 iriam resultar ou não na proibição internacional da planta. O trabalho fez descrição das
características botânicas, farmacológicas e históricas da planta, seu uso e da produção
científica sobre esses temas no Brasil; conclui afirmando que a produção cientifica do país
não autorizava ninguém a falar em dependência ou toxicomania de maconha, termo utilizado
na época, mas no máximo em hábito. Em outras palavras, os limites entre o que é um hábito
condenado moralmente e uma dependência é por vezes definido por critérios não-científicos
mas ideológicos ou políticos. As autoridades brasileiras ignoraram completamente o relatório,
suas conclusões e recomendações.
Depois que a ONU foi criada houve a primeira Convenção Única de Entorpecentes em
1961, assinada por mais de 200 países colocando a cannabis numa lista, junto com a heroína,
como droga particularmente perigosa. Essa participação do Brasil na condenação da maconha
é confirmada em uma publicação científica brasileira :
“...já dispomos de legislação penal referente aos contraventores, consumidores ou
contrabandistas de tóxico. Aludimos à Lei n 4.296 de 06 de Julho de 1921 que
menciona o haschich. No Congresso do ópio, da Liga das Nações Pernambuco Filho
e Gotuzzo conseguiram a proibição da venda de maconha . Partindo daí deve-se
14. começar por dar cumprimento aos dispositivos do referido Decreto nos casos
especiais dos fumadores e contrabandistas de maconha”.(LUCENA, 1934, p. 55)
Além disso, a delegação brasileira em 1961 reafirma os perigos da planta exigindo
restrições equivalentes às do ópio. Em 1964 dezenas de países, inclusive o Brasil, assinam a
Convenção Única de Narcóticos, na qual a cannabis passa a constar nas listas I e IV.
No mesmo ano, o governo brasileiro ignora mais uma vez seu próprio relatório e
publica o Decreto-Lei nº 54.216, incorporando ao ordenamento interno do país os acordos
firmados na Convenção Única de 1961. Em 1968, um novo Decreto passa a estabelecer
equivalência penal entre condenados por tráfico e por uso. Mas a grande inovação seria
trazida com a lei de 1976, conhecida como Lei de Tóxicos, que passou a reunir todos os
ordenamentos jurídicos relacionados com o tema em apenas um documento, tendo vigorado
em parte até 2002, quando Fernando Henrique Cardoso sancionou a lei 10.409/2002. Seu
sucessor, Lula, em agosto de 2006, sancionou a Lei 11.343, que acabou com a pena de prisão
para os usuários de substâncias ilegais e para quem plantar pequena quantidade de maconha
para uso próprio.
4 CONCLUSÕES
À parte opiniões tendenciosas contra ou a favor da criminalização da Cannabis Sativa,
há que se considerar que o cânhamo faz parte da cultura humana desde há milhares de anos,
independentemente de posições ideológicas. É fato histórico e pertinente que se proibíssemos
todos os combustíveis fósseis e os seus derivados, bem como o corte de árvores para abastecer
as celuloses e a construção civil, de modo a inverter o efeito estufa e parar o desmatamento, o
único recurso natural conhecido, anualmente renovável, capaz de fornecer a maior parte do
papel, têxteis e alimentos do mundo, satisfazer necessidades em termos de transportes e
energia, doméstica e industrial, seria o cânhamo.
A proibição do uso de maconha levou em conta apenas os supostos efeitos tóxicos e
socialmente condenáveis, descartando todos os outros benefícios econômicos que a planta
possui. A legislação atual tanto é embasada em argumentos falaciosos que há uma tendência
natural ao redor do globo pela descriminalização da cannabis , conquanto todo estudo sério,
do ponto de vista bioquímico ou legislativo seja desconsiderado, por ser passível de
aprovação sem quaisquer restrições por defensores da legalização a todo custo, ou reprovado
sem análise por grupos que não se permitem raciocínios isentos de ideologia.
15. Frente aos argumentos e fatos expostos, e sopesados os resultados danosos do tráfico
internacional de substâncias ditas entorpecentes, que diariamente nos chegam ao
conhecimento, faz-se necessária e urgente uma discussão madura, isenta de ideias pré
concebidas,
sobre a vantagem social ou econômica de mantermos o uso, plantio e
industrialização da Cannabis Sativa como ilícito penal em nosso ordenamento jurídico. Em
uma sociedade sadia, muito embora não seja possível tolerar normas excessivamente
permissivas, tampouco é possível aceitá-las embasadas em fundamentos que não suportam
exames profundos. Se a maconha deve permanecer na ilicitude ou não, temos hoje condições
técnico científicas muito superiores às dos ilustres legisladores do início do século passado
para determiná-lo: cumpre-nos a tarefa de ao menos tentar descobrir.
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