Este trabalho analisa um texto que introduz uma antologia de contos eslovenos contemporâneos traduzida para o inglês. O discurso identifica fortemente a língua e literatura eslovenas com a construção da identidade nacional eslovena, exaltando o poeta romântico France Prešeren como idealizador da nação. A análise busca compreender o significado atual desse discurso num contexto em que a Eslovênia precisa se integrar internacionalmente.
A palavra como alicerce da nação 21.02.12 - creative commons
1. UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
ÁREA DE LITERATURAS, ARTES E CULTURAS
A PALAVRA COMO ALICERCE DA NAÇÃO
A afirmação e valorização da língua na
construção discursiva da identidade eslovena
Silvia Valencich Frota
MESTRADO EM CULTURA E COMUNICAÇÃO
2012
2. UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
ÁREA DE LITERATURAS, ARTES E CULTURAS
A PALAVRA COMO ALICERCE DA NAÇÃO
A afirmação e valorização da língua na
construção discursiva da identidade eslovena
Silvia Valencich Frota
Tese orientada pelo Prof. Doutor Carlos A. M. Gouveia
MESTRADO EM CULTURA E COMUNICAÇÃO
2012
8. Acredito que uma tese de mestrado seja o primeiro passo para o ingresso em um novo
universo, repleto de oportunidades, mas também de indefinições. Nesse processo, o papel do
orientador é fundamental. Agradeço ao meu orientador por seu interesse e sua disponibilidade,
pelas leituras e revisões sucessivas e cuidadosas deste trabalho, pelo aprendizado. Admiro sua
habilidade em conciliar a tarefa da orientação com o estímulo intelectual e a liberdade
necessários à realização de um trabalho como este, respeitando sempre as diferenças de
percepção e as minhas capacidades e limitações.
vii
10. Resumo
Este trabalho propõe uma reflexão sobre o papel da língua e da literatura na construção
discursiva das identidades nacionais a partir do estudo de caso da Eslovênia. Com esse objetivo,
é analisado um texto da autoria de Mitja Čander e Aleš Šteger, que serve de introdução ao livro
Angels Beneath the Surface: a Selection of Contemporary Slovene Fiction, editado por Tom
Priestly. Trata-se de uma antologia de contos eslovenos, publicada em inglês, em 2008, que
reúne textos escritos entre 1990 e 2005.
O ponto de partida consiste numa breve discussão a respeito das novas perspectivas
adotadas pelas atuais teorias sobre os nacionalismos, especialmente a partir do final da segunda
metade do século XX. Adota-se a perspectiva da construção discursiva das identidades, entre
elas, a identidade nacional. A opção metodológica incide sobre as possibilidades e ferramentas
oferecidas pela análise do discurso, especialmente pela Linguística Sistêmico-Funcional.
O discurso identitário esloveno, que se depreende da análise do texto, caracateriza-se
por uma forte associação entre a criação e preservação de uma identidade nacional e a
afirmação e valorização da língua e da literatura eslovenas. Exemplo disso é a exaltação da
figura do poeta romântico France Prešeren (1800-1849), apontado como um dos grandes
artífices da língua e defensor da ideia nacional. O Dia da Cultura, também chamado de Dia de
Prešeren, é considerado feriado nacional e comemorado no aniversário da morte do poeta, no
dia 8 de fevereiro.
O recurso à língua comum como elemento fundante de uma pretensa identidade
nacional não é novo, nem exclusivo da Eslovênia. Ainda assim, ele assume novos significados
em face do cenário atual, em que a conquista de visibilidade internacional e a efetiva integração
da Eslovênia na União Européia ganham prioridade na agenda do país.
Palavras-Chave: Análise do Discurso, Eslovênia, Identidade Nacional, Língua,
Literatura
ix
12. Abstract
In this paper, we propose an analysis about the role of language and literature in the
discoursive construction of national identities based on Slovenia’s study case. To reach this
target, we analyse a text signed by Mitja Čander and Aleš Šteger introducing the book intitled
Angels Beneath the Surface: a Selection of Contemporary Slovene Fiction, edited by Tom
Priestly. It’s a collection of Slovene short prose, published in English, in 2008, gathering texts
written between 1990 and 2005.
We start with a brief discussion about the new perspectives presented by the nowadays
theories about nationalisms, especially those arisen in the second half of the 20 th century. Then
we clarify our affiliation to the discoursive constructions of identities perspective – among
them, the national ones – and adopt the discoursive analisys as the theory and methodology of
this study, especially the Systemic Functional Linguistics.
Based on the analysis of the text, Slovene indentity discourse is marked by a strong
association between national identity creation and preservation and the affirmation and
evaluation of language and literature. One example of that is the exaltation of France Prešeren
(1800-1849), the romantic poet considered the inventor of the national language and a great
defender or the national idea. Culture’s Day, also named Prešeren’s Day, is considered a
national Holliday and is cellebrated in the poet’s death anniversary.
The appeal to language as a founding element of an intended national identity is not
new or exclusive of Slovenia. Still, it gets new meanings face the actual scenario where the
needs of international visibility and efective integration in European Union seem to be a
demand for Slovenia.
Keywords: Discourse Analysis, Language, Literature, National Identity, Slovenia
xi
14. Índice
1. Introdução 1
2. Os ‘novos’ nacionalismos do século XXI 7
3. A construção discursiva da identidade nacional 23
4. O texto em análise: aspectos de textualização 35
5. O texto em análise: aspectos de representação 49
6. Confluências: representação, discurso e identidade 71
7. Conclusão 83
8. Referências 89
9. Anexo1 93
10. Anexo 2 103
xiii
16. Índice de Quadros
Quadro 1 – Incidências de slovene no texto 53
Quadro 2 – Incidências de slovene por categoria 53
Quadro 3 – Incidências de slovene na categoria Língua 54
Quadro 4 – Incidências de slovene nas categorias Estado e Sociedade 54
Quadro 5 – Incidências de termos que remetem à Eslovênia e/ou à ideia de nação 56
Quadro 6 – Incidências de literature no texto 57
Quadro 7 – Incidências de literature modificada por um adjetivo 57
Quadro 8 – Incidências de literary no texto 58
Quadro 9 – Incidências de literature e de literary no texto 58
Quadro 10 – Incidências de literary por categoria 59
Quadro 11 – Registros de Slovenia ou Literature no papel de atores sociais 61
Quadro 12 – Registros de escritores identificados e não identificados 62
Quadro 13 – Incidência dos processos relacionais no texto 65
Quadro 14 – Incidência dos processos relacionais identificativos e atributivos 67
Quadro 15 – Incidência dos processos relacionais identificativos no texto 67
Quadro 16 – Incidência dos processos relacionais atributivos no texto 68
xv
20. A relação entre língua e identidade há muito suscita o interesse de quem se proponha
observar a sociedade em que vivemos. Desde a antiguidade que a língua surge como recurso de
identificação ou diferença, afinal, de acordo com a versão bíblica, foi com a multiplicação das
línguas e a consequente incapacidade de comunicação entre os homens que Deus teria punido
os responsáveis pela construção da famosa torre de Babel.
Com o desenvolvimento dos meios e tecnologias de comunicação e o simultâneo
avanço do processo de globalização, o universo humano se ampliou e modificaram-se os
desafios inerentes à necessidade de troca e contato entre as pessoas. Nesse cenário, a mesma
língua que possibilita a comunicação entre um certo grupo de pessoas, constrange o espaço no
qual estas atuam. A mesma língua que separa é a que une, aproximando aqueles que se
entendem por meio dela e diferenciando-os dos demais.
Neste trabalho, interessa observar a relação entre língua e identidade nacional. Num
cenário global marcado pela multiplicação dos contatos e por disputas e conflitos ‘entre’ e
‘intra’ nações, o discurso de associação entre língua e identidade nacional é recorrente. É esse o
caso da Eslovênia, uma das ex-repúblicas iugoslavas, que conquistou sua independência em
1991.
O discurso de emancipação nacional da Eslovênia é fortemente embasado na afirmação
e valorização de uma língua e literatura nacionais. A língua eslovena, e a cultura a ela
associada, serve de prova e origem de uma identidade nacional. Com a adesão à União
Europeia, em 2004, a Eslovênia viu-se frente a um novo desafio, o da integração num universo
marcado por uma ainda maior pluralidade de línguas e nações.
O discurso esloveno de aparente vinculação entre língua e identidade não é novo, nem
exclusivo. Ainda no século XIX, as unificações alemã e italiana foram, em parte, devedoras
dele. Como entender, no entanto, a longevidade desse discurso face às teorias atuais sobre o
nacionalismo, que reiteradamente questionam essa relação? Mais do que isso, qual será o
significado desse discurso hoje, uma vez que o contexto no qual ele se insere é bastante distinto
daquele vivenciado por France Prešeren (1800-1849), poeta romântico apontado como um dos
principais idealizadores da nação eslovena, na primeira metade do século XIX?
Uma possível abordagem para essas questões é assumir como ponto de partida que o
3
21. discurso carrega uma série de significados nem sempre evidentes, nem sempre intencionais.
Repetimos como nosso o discurso alheio muitas vezes sem nos darmos conta disso. Outro modo
de dizer o mesmo é recorrer à forte carga ideológica dos discursos, lembrando que um dos
mecanismos por meio do qual a ideologia opera é o da naturalização. Ao se naturalizar um
discurso, deixa-se de questioná-lo. Sem questionamento, há poucas oportunidades de mudança.
Claro que é possível abordar essas questões a partir de muitas outras perspectivas. A
questão da identidade no contexto da modernidade tardia suscita muitos questionamentos. Num
cenário marcado pelo acirramento da mobilidade, em sentido amplo, e pela velocidade das
transformações, seja no campo social, seja no campo tecnológico, e em que o paradigma da
descontrução parece vigorar, nada pode permanecer o mesmo. Perdem-se antigas referências e
é necessário substitui-las. Mas tais discussões, por mais interessantes que sejam, estão além
do âmbito deste trabalho.
Se não há nada de substancialmente novo no discurso que vincula certa língua a certa
identidade nacional, talvez a novidade resida na maneira como percebemos esse discurso hoje e
no modo como muitas vezes o encontrarmos impregnado em nossa própria fala. Nesse sentido,
a análise crítica do discurso tem muito a contribuir, à medida que revela esses conflitos no
interior dos discursos.
Com menos de 2 milhões de habitantes e ocupando um território de pouco mais de 20
mil Km2, a Eslovênia não se impõe pelo tamanho ou pela força. A língua, razão e símbolo de
sua identidade nacional, ao mesmo tempo em que promove a união entre as pessoas ‘da
fronteira para dentro’, separa a Eslovênia do contexto internacional em que ela precisa se
integrar. Nesse sentido, o recurso à afirmação e valorização da língua na construção discursiva
da identidade eslovena precisa ser reavaliado. Com esse objetivo e a título de exemplo e
hipótese de trabalho, será analisada a introdução a uma coletânea de contos de autores
eslovenos contemporâneos (Priestly, 2008), traduzida para a língua inglesa e publicada em
2008, nos Estados Unidos (vd. Anexo1).
O ponto de partida será uma breve reflexão sobre o desenvolvimento dos nacionalismos
na Europa para então se destacar as teorias da segunda metade do século XX, que provocaram
grande mudança na percepção sobre o tema, reconhecendo um caráter inventivo e/ou
imaginado à ideia de nação (vd. Anderson, 1983; Gellner, 1964; Hobsbawm, 1990). Esse é o
foco do primeiro capítulo, onde também é discutido o papel das línguas na construção da
identidade nacional em face das questões trazidas pela modernidade tardia, assim como o
discurso das novas nações, ou seja, aquelas surgidas a partir do final do século XX, como é o
caso da Eslovênia.
4
22. Assumindo como pressuposto que as identidades se constroem pela via discursiva, será
analisado o discurso esloveno de construção da sua identidade nacional. Esse é o tema em
destaque no segundo capítulo, que se inicia com o desenvolvimento do paradigma da
identidade como construção para, a seguir, abordar alguns dos conceitos básicos que orientam a
análise crítica do discurso. Em linhas gerais, apresenta-se a metodologia de análise que será
adotada, destacando-se o arcabouço de ferramentas e possibilidades oferecido pela linguística
sistêmico-funcional.
No capítulo 3, inicia-se efetivamente a análise do texto. Os critérios definidos nessa
etapa circunscrevem-se ao âmbito da textualização. A introdução é tomada em seu conjunto e
as estratégias de apresentação do texto e de conquista do leitor são destacadas e analisadas, sem
se perder de vista a função que a introdução se propõe desempenhar, ou seja, a de apresentar
uma coletânea de textos de autores eslovenos contemporâneos a um público de língua inglesa.
O recurso a referências espaciais para apresentar a Eslovênia ao leitor, especialmente a partir da
utilização de coordenadas geográficas, também é avaliado. Por fim, o texto é apresentado e
discutido em função de sua divisão e organização em blocos, onde determinados episódios e
personagens da história da Eslovênia e do desenvolvimento de sua língua e literatura são ora
destacados, ora suprimidos.
No capítulo 4, prossegue-se à análise do texto, mas, dessa vez, são os aspectos de
representação que ganham destaque. O ponto de partida consiste na indentificação das palavras
mais utilizadas na introdução e na observação dos seus respectivos significados no interior dos
grupos nominais de que fazem parte. A seguir, são identificadas as passagens do texto em que
língua/literatura, por um lado, e Eslovênia/nação, por outro, desempenham o papel de atores
sociais, aplicando-se, com essa finalidade, uma análise de sua agenciação. Por fim, o foco da
análise se volta para a identificação dos processos relacionais e sua classificação em
identificativos ou atributivos, para melhor compreender as representações construídas ao longo
do texto.
Esta Tese se encerra com uma reflexão sobre os novos significados que o discurso
identitário esloveno parece assumir no contexto atual, marcado pela necessidade de integração
na União Europeia e de conquista de visibilidade no âmbito internacional. Os desafios
enfrentados pela Eslovênia, e por boa parte dos países que hoje fazem parte da União Europeia,
passam por evitar que a mesma língua que é considerada um dos fatores básicos de identidade
nacional se transforme em barreira nesse processo de internacionalização.
5
23. Os novos nacionalismos do século XXI
(Capítulo 1)
Introdução
Nações e nacionalismos: uma perspectiva histórica
A invenção da nação: os discursos da modernidade
Nações tardias: novas nações, velhos nacionalismos
Síntese
25. Os novos nacionalismos do século XXI
Introdução
Nos últimos 20 anos, o mapa do mundo foi redesenhado inúmeras vezes para dar vazão
ao surgimento de novas nações, muitas delas decorrentes da desintegração do conjunto de
países que formavam a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou a
Iugoslávia não-alinhada ao comunismo de Moscou. Se, a princípio, tal fato não representa nada
de novo na história do século XX, especialmente em função das redefinições relacionadas ao
contexto das duas grandes guerras, como entender esse movimento hoje, à luz das questões
apresentadas pelo estudo dos nacionalismos, em que se apregoa o fim da era das nações
(Hobsbwawm, 1990) e em que a Europa se encontra em processo de união e de busca de
identidades transnacionais?
Se é verdade que nação, nacionalismo e identidade nacional são atualmente expressões
recorrentes, é preciso lembrar que nem sempre foi assim. A ideia de nação é relativamente
recente e firma-se apenas a partir do final do século XVIII, significativamente marcada pelos
movimentos sociais que culminaram na declaração de independência dos Estados Unidos da
América, em 1776, e na revolução francesa, em 1789 (Anderson, 1983: 192).
Para melhor compreender os contornos contemporâneos da expressão identidade
nacional e no pressuposto de sua redefinição em nossa modernidade tardia (Giddens, 1991),
neste capítulo, parte-se de uma breve reflexão sobre o desenvolvimento do conceito de nação
desde o século XIX e especialmente ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI,
discutindo-se alguns dos conceitos de nacionalismo e identidade nacional relevantes para o
trabalho.
Os discursos da modernidade, em especial os decorrentes do processo de globalização e,
de certo modo em resposta a ele, o de afirmação e valorização de uma suposta cultura nacional,
servem de baliza para uma reflexão sobre a questão dos nacionalismos em que se explora a
relação entre identidade e um certo modo de vida único, homogêneo e exclusivo sintetizado
de modo abstrato no conceito de cultura nacional. Nesse processo, o papel dos sistemas de
ensino e de valorização de uma língua nacional ganha destaque, quer como ícone de uma dada
cultura quer como fator de viabilidade para o processo de comunicação.
9
26. A Palavra como Alicerce da Nação
Por fim, aborda-se a questão das nações tardias, destacando-se algumas das
características gerais que marcam os discursos desses novos países. Em geral, consistem em
uma reapropriação do passado e na afirmação de uma identidade nacional homogênea e
incontestável. Em comum, esses novos países se apresentam como velhas nações centenárias
caracterizadas, de modo geral, pela existência de uma língua e cultura próprias e originais ,
que agora conquistam o reconhecimento, embora tardio, do seu caráter nacional.
Nações e nacionalismos: uma perspectiva histórica
A ideia de nacionalismo, em seus contornos atuais, tem as suas raízes no século XVIII,
com Rousseau, Herder, Fichte e Korais, os quais, ao lado de Mazzini, são considerados os „pais
fundadores‟ de teorizações cujos conceitos centrais giram em torno de três valores: autonomia,
unidade e identidade (vd. Hutchinson & Smith, 1994: 11). Foi no século XIX, no entanto, que o
nacionalismo desempenhou papel fulcral. Daí autores como Bagehot, citado por Hobsbawm
(1990: 1), identificarem esse período como a era do apogeu dos nacionalismos.
Na perspectiva europeia, as revoluções de 1848 a chamada “primavera dos povos”
com forte apelo nacionalista, ao lado da unificação italiana, em 1861, e alemã, em 1871, servem
de medida para a importância e valorização da ideia de nação e nacionalismo nesse momento,
independentemente dos seus significados.
É nesse período que Renan (1882: 17) profere sua célebre conferência sobre a nação, a
qual caracteriza como um princípio espiritual, ou seja, uma ideia abstrata, um valor: “a nation is
a soul, a spiritual principle”. A nação representaria um valor suficientemente forte para unir
pessoas e mobilizá-las ao sacrifício: “A nation is a grand solidarity constituted by the sentiment
of sacrifices which one has made and those that one is disposed to make again” (ibidem).
Partindo desse princípio, o autor considera que o único critério válido para definição de
uma nação seria o seu desejo de permanecer unida: “The desire of nations to be together is the
only real criterion that must always be taken into account” (Renan, 1882: 17). Trata-se,
portanto, de uma escolha livre e coletiva, sempre renovada, numa espécie de “plebiscito” diário
(ibidem).
A clara distinção entre Estado e nação, que transparece da definição de Renan, não
impede, no entanto, que tais conceitos sejam cada vez mais apresentados em conjunto. Com a
sobreposição das noções de Estado e nação, patriotismo e nacionalismo também se confundem.
O Estado garantidor da vida social e a ideia de nação que com ele se identifica formam um
10
27. Os novos nacionalismos do século XXI
amálgama. Defender o Estado-nação significa defender um status quo, uma realidade social,
um modo de vida e, em alguma medida, defender os nossos interesses contra os interesses de
outros.
É ainda no século XIX que o papel da língua no desenvolvimento dos nacionalismos
ganha relevância. Embora, de acordo com Anderson (1983: 196), até o final do século anterior
a existência de uma língua comum não fosse frequentemente associada ao sentimento de
pertença nacional, essa situação começa a se modificar a partir do século seguinte,
especialmente no que diz respeito às chamadas “línguas de imprensa” (print-languages).
Com o desenvolvimento da tipografia e de um mercado cada vez mais baseado na
produção em massa e no incentivo à circulação de mercadorias, as possibilidades de produção
em série e de comercialização de livros e jornais se multiplicam e ganham relevância como
atividade econômica. A escolha de uma entre as várias línguas disponíveis como sendo aquela
em que determinado material será produzido, ou seja, como uma língua de imprensa, representa
vantagens para os indivíduos que forem aptos a se expressar por via dela e desvantagens para os
demais. Além da língua ou dialeto locais, agora é preciso que o indivíduo seja capaz de se
comunicar nessa outra língua para fazer parte de um novo e importante mercado consumidor,
que, impulsionado pela lógica do capitalismo, cada vez mais se amplia. A promoção de uma
língua local à categoria de língua de imprensa implica, portanto, o alargamento do número de
falantes e do espaço geográfico em que é praticada.
As línguas de imprensa rapidamente passam a ser associadas ao processo de formação
de uma consciência nacional (Anderson, 1983: 44 et passim). Tais línguas permitem a
reprodução e disseminação de ideias por um território alargado, ao mesmo tempo em que
estabelecem espaços comuns de troca e comunicação numa língua distinta tanto do latim
quanto das línguas orais – “(…) they created unified fields of exchange and communication
below Latin and above the spoken vernaculars” – e conferem uma nova “fixidez” à língua,
promovendo, assim, novas línguas de poder, distintas das línguas de administração.
As línguas de imprensa, dessa forma, promovem uma nova solidariedade, agora
ampliada, pois não dependem mais do contato direto entre as pessoas, como no caso das línguas
orais, e podem ser disseminadas pela reprodução em massa e circulação física do material
impresso. O âmbito de circulação da língua de imprensa, ou seja, a definição dos contornos
desses “campos unificados de trocas e comunicação”, permite, mais uma vez, que se coloque
em funcionamento um mecanismo de identificação e diferença.
Por fim, a configuração das línguas de imprensa como línguas de poder distintas das
línguas de administração permite que se estabeleça um novo equilíbrio de forças, o qual, a
11
28. A Palavra como Alicerce da Nação
princípio, favorece as comunidades locais e suas respectivas elites que mantêm contato
permanente, em detrimento, muitas vezes, dos centros de poder localizados em territórios
distantes.
O desmantelamento dos impérios otomano e austro-húngaro, no início do século XX, e
a eclosão das duas grandes guerras que abalaram a conjuntura mundial compõem esse cenário
de confronto, ajustes, criação e redefinição de territórios nacionais ou de Estados-nação em que
o mapa da Europa é redesenhado. Nas décadas seguintes, fortalecem-se, em relação de
oposição, dois grandes blocos: o dos países de regime comunista e o dos países de regime
capitalista. É nesse período que o nacionalismo ganha outra roupagem, especialmente a partir
dos trabalhos de Gellner, Anderson e Hobsbawm. Em comum, esses autores partilham a ideia
de nação como uma espécie de ficção ou criação – uma comunidade inventada, para Gellner
(1964: 62), ou uma comunidade imaginada, para Anderson (1983: 6).
Mas a nação como comunidade imaginada só se torna possível a partir do
desenvolvimento de um sistema educativo ampliado (Hobsbawm, 1990), que permite a partilha
de um substrato comum valores, princípios, história, representações, interpretações por um
número alargado de pessoas. Permite, em alguma medida, a ampliação da comunidade que se
imagina como una e homogênea, projetando uma imagem coletiva, partilhada por todos. Nesse
processo, a língua mais uma vez desempenha papel essencial e indissociável do
desenvolvimento desse sistema ampliado de ensino, de bases nacionais. A existência de uma
língua comum, que permita a comunicação entre os indivíduos, é condição de viabilidade do
sistema ao mesmo tempo em que este se encarrega de difundir o ensino e utilização dessa
língua.
A relação entre língua, comunicação e identidade é analisada por Deutsch (1966: 27),
que explora o viés da comunicação, numa perspectiva funcionalista, associando o partilhar de
uma identidade nacional à capacidade de comunicação efetiva entre as pessoas pertencentes a
uma comunidade ampliada, em contrapartida às barreiras de comunicação que surgem no
contato com pessoas de comunidades distintas: “Membership in a people essentially consists in
wide complementary of social communication. It consists in the ability to communicate more
effectively, and over a wider range of subjects, with members of one large group than with
outsiders”.
O papel da língua, no entanto, não se esgota em seu potencial de comunicação. Mesmo
no interior dos sistemas de ensino, ela assume outras funções. Um sistema educativo
estruturado em torno de uma língua comum estimula a associação entre essa mesma língua e
um conjunto de crenças e valores, de modos de pensar e de viver, permitindo, assim, a
12
29. Os novos nacionalismos do século XXI
construção e disseminação de uma determinada identidade. Dizendo de outra forma, atua na
construção e difusão das diferentes línguas e discursos dos nacionalismos.
O desenvolvimento de um sistema educativo também está nas bases da ideia de
tradição, um dos recursos fundamentais à criação e perpetuação das identidades nacionais.
Parte-se do discurso da tradição, entendida como uma prática antiga que se perpetua pela
repetição numa dada comunidade, um costume continuado e carregado de sentido, que atesta a
existência de uma história comum e de uma memória partilhada e é, de certa forma, indicador
de uma mesma origem. A tradição, nesse sentido, carrega uma grande carga de concretude. Daí,
talvez, seu forte apelo como fator de comunhão e identidade.
O discurso da tradição é frequentemente entretecido com o discurso da identidade
nacional. Em alguma medida, a ideia de nação se fundamenta na partilha de tradições comuns.
Mas o que Hobsbawm (1983: 77) destaca em seu estudo sobre o nacionalismo é que as hoje
valorizadas tradições nacionais são criações. Para o autor, a invenção da tradição resultaria da
conjugação de três fatores preponderantes: o desenvolvimento de um sistema secular de
educação primária equiparável à igreja, a invenção de cerimônias públicas e a construção em
massa de monumentos públicos (Hobsbawm, 1983: 77-78). A formulação do autor explicita o
papel não só da educação, mas de um sistema educativo, no processo de invenção das tradições,
que, em alguma medida, alimentarão a imaginação de futuras nações.
O caráter inventivo da tradição também transparece da definição proposta por Giddens
(1994: 61), em que esta é apresentada como um “meio de organização da memória colectiva”.
Por trás da expressão “organização”, é possível encontrar o mesmo mecanismo de seleção e
descarte, já referido por Anderson em sua definição de nação como comunidade imaginada.
Talvez por esse motivo as tradições surjam no discurso da modernidade sempre com carga
positiva. As práticas negativas, que precisam ser extirpadas, esquecidas, apagadas, sublimadas,
em geral não ganham o rótulo de tradição.
Independentemente da amplitude do papel que se pretenda reconhecer para a existência
de uma língua nacional, para o desenvolvimento de um sistema nacional de educação ou para a
partilha de tradições comuns no processo de desenvolvimento das identidades nacionais, não se
pode negar a importância desses elementos para a compreensão das discussões atuais sobre os
nacionalismos.
Para Hobsbawm (1990: 169), o período que vai das grandes guerras até o final do século
XX marca uma mudança significativa no ideário do nacionalismo. Se ele surge como força
propulsora da história até a primeira metade do século passado, isso não acontece na atualidade,
o que não significa dizer que os nacionalismos não estejam presentes e se façam sentir nos dias
13
30. A Palavra como Alicerce da Nação
de hoje. Parece mais razoável interpretar a declaração acima como indicativa de uma mudança
no papel desempenhado pelos nacionalismos.
Independentemente do desenvolvimento dos conceitos de nação e nacionalismo, parece
haver, no entanto, um ponto de ruptura nessa cronologia. Hobsbawm (1990: 4) ilustra bem esse
movimento ao listar, na introdução do seu livro, algumas das obras que considera relevantes
para a compreensão do tema, estabelecendo, assim, um claro recorte na produção anterior –
“the number of works genuinely illuminating the question (…) is larger in the period 1968-88
than for any earlier period of twice that length” (itálicos acrescentados). Anderson (1983/2005)
demonstra a mesma preocupação ao registrar, no prefácio à segunda edição do seu livro, sua
própria seleção de trabalhos.
Sejam quais forem as referências citadas por Anderson e Hobsbawm, o que importa é
que estas parecem indicar não só uma ruptura no modo de pensar a questão dos nacionalismos
como também uma mudança do movimento em si, do papel dos nacionalismos após as duas
grandes guerras. Anderson (1983: xii), ao comentar a proliferação de obras sobre o tema nas
últimas décadas do século XX, dá razão à afirmação de Hobsbawm de que a era do
nacionalismo teria chegado ao fim: “Hobsbawm has had the courage to conclude from this
scholarly explosion that the age of nationalism is near its end: Minerva‟s owl flies at dusk”.
A invenção da nação: os discursos da modernidade
A rigor, afirmar que a era dos nacionalismos, nos moldes vivenciados entre os séculos
XIX e meados do XX, teria chegado ao fim, não significa decretar o fim dos nacionalismos
propriamente ditos. Pode-se dizer, no entanto, que os nacionalismos que experimentamos hoje
têm características próprias e, talvez, desempenhem funções distintas daquelas que marcaram o
período anterior. Parte dessas mudanças deve-se ao contexto atual, marcado pelo processo de
globalização e pela concorrência dos vários discursos de valorização da diversidade cultural.
A configuração de sistemas globais de diversas naturezas, em especial política e
econômica, delineia um cenário rico em interligações e interdependências. As empresas se
fundem em grandes grupos financeiros e econômicos que atuam em diversos segmentos de
mercado e áreas geográficas. Os Estados se associam, criando organizações em âmbito
internacional, estabelecendo vínculos entre eles, mais ou menos estreitos, mais ou menos
firmes, mais ou menos duradouros. As línguas se misturam e confundem, transportadas por um
sistema de comunicação em rede, ramificado, capaz de vencer distâncias em segundos.
14
31. Os novos nacionalismos do século XXI
Nesse cenário, a extensão e os limites dos territórios nacionais ganham novos
contornos. A mobilidade e circulação de bens, pessoas e serviços evidenciam a porosidade das
fronteiras e intensificam os contatos entre pessoas que falam línguas diferentes, adotam
costumes distintos, possuem uma escala de valores própria, podem ver o outro como estranho.
São pessoas nascidas em territórios diferentes, educadas em sistemas de ensino variados, com
crenças religiosas e morais específicas, história e memória coletiva próprias.
Nesse ambiente de contato, mistura e choque, é mais uma vez posto em ação um
mecanismo de identificação e diferença. Por um lado, a multiplicação de contatos parece acirrar
a percepção da diferença, por outro, e em sentido inverso, permite a criação de identidades
ampliadas, transnacionais, como as de gênero, profissão, religião entre outras. É nesse contexto
que se pretende inserir a questão da identidade nacional, como um dos recursos adotados nesse
jogo de contraposições.
Um dos significados imediatos da expressão identidade nacional talvez ainda seja a
referência a uma origem comum, quer em função da hereditariedade, quer em função da fixação
num dado território ao longo do tempo. O Estado-Nação expressão disseminada no século
XX ao qual o indivíduo está ligado pelo nascimento, por sua história, língua, cultura ou
mesmo pela via da auto-identificação seria o vértice dessa comunidade. Parte-se do pressuposto
de que a partilha desses elementos implicaria necessariamente uma identidade comum.
O nacionalismo, em suas várias facetas, invariavelmente estabelece um elo entre o
indivíduo e a nação com a qual se identifica. É a natureza dessa identificação que agora é posta
em causa. Se antes o pressuposto era de que a identidade nacional implicava necessariamente a
comunhão de valores, história, memória, modo de vida e cultura, em sentido amplo, agora essa
identificação inata, natural, autêntica e verdadeira é questionada.
Não é preciso ir muito longe nesse jogo de identificações e diferenças para constatar a
ausência da homogeneidade suposta. Num mesmo Estado nacional, os hábitos e costumes das
pessoas variam não só em função da geografia, como também dos credos, do status financeiro,
da classe social, da língua ou mesmo da história pessoal entre tantos outros fatores. Embora ter
a mesma nacionalidade de alguém não conduza a uma identidade necessária, seja em que
sentido for, a referência a um certo caráter nacional é recorrente. O apelo a essa identidade, ao
fator nacional, como sendo um vínculo que se estabelece entre aqueles que partilham uma certa
nacionalidade, é extremamente sedutor, quase irresistível.
A crença nessa identidade, que não precisa de prova ou confirmação e é dotada de forte
carga de espontaneidade, é uma das principais características da identidade nacional. Segundo
Anderson (1983: 4), o fator nacional e o nacionalismo seriam “artefactos culturais” especiais
15
32. A Palavra como Alicerce da Nação
que produziriam a nação, definida pelo autor como sendo uma “comunidade política
imaginada”, ao mesmo tempo “limitada e soberana” “it is an imagined political community –
and imagined as both inherently limited and sovereign” (ibidem: 6).
Respeitados os diferentes posicionamentos, o caráter imaginado da nação surge como
um substrato comum. O nacionalismo como produto da nação, como resultado da partilha de
valores comuns, histórias, memórias, territórios, laços sanguíneos e afetivos, é superado pela
ideia de criação e novidade. “Nationalism is not the awakening of nations to
self-consciousness: it invents nations where they do not exist (...)” (Gellner, 1964: 62). Para
Gellner (1983: 64), não são as nações que promovem o nacionalismo, mas sim o nacionalismo
que inventa as nações.
Não significa isto dizer que as nações sejam criações arbitrárias, resultantes da fantasia
de grupos determinados, produzidas artificialmente no processo de disputa por controle e poder
inerentes ao tecido social. O nacionalismo se vale de práticas existentes, mas, a partir de um
vasto território delas, ele seleciona e recorta. Escolhe as práticas que deseja lembrar e descarta
aquelas que deseja esquecer: “Admittedly, nationalism uses the pre-existing, historically
inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very selectively, and it
most often transforms them radically” (Gellner, 1983: 64).
Daí a crítica de Anderson (1983: 6) à definição, adotada por Gellner, de nação como
invenção. Esse termo reforçaria, na opinião de Anderson, a compreensão equivocada de que a
nação e o nacionalismo seriam construções arbitrárias, sem qualquer relação com o contexto em
que surgem. Por esse motivo, Anderson opta pelo termo “imaginada” para definir a nação.
Apesar disso, o produto final desse processo inventivo, seja qual for, resulta numa
espécie de ilusão coletiva. O verniz que o protege é o da homogeneidade, antiguidade,
predestinação. Como num truque de mágica em que o ilusionista faz desaparecer um
monumento público com centenas de metros de altura e dezenas de toneladas sob o testemunho
das câmeras de TV e uma audiência de milhares de telespectadores, a referência a uma
nacionalidade, isto é, a utilização do rótulo “nacional” faz desaparecer diferenças e cria
semelhanças. Ao contrário do primeiro truque, no entanto, esse é de ação continuada.
Respeitando-se as diferenças de posicionamento, pode-se dizer que as teorias sobre os
nacionalismos da segunda metade do século XX até hoje têm em comum a valorização dos
conceitos de identidade e de cultura. A identidade que se estabelece entre aqueles que
consideram pertencer a uma dada nacionalidade cria um „nós‟ ampliado, capaz de envolver
milhões de pessoas, sobrepondo-se a critérios usualmente utilizados como distintivos, seja
faixa etária, gênero, classe social, religião, profissão entre tantos outros.
16
33. Os novos nacionalismos do século XXI
Embora a diferença se faça sentir na alteridade, no contato com o outro, importa lembrar
que o sujeito nacional também se constrói dentro do território do Estado-Nação. Esse sujeito
nacional é referido no discurso político, jurídico e social incessantemente. Esse „macro-sujeito‟
que não representa exatamente ninguém, não corresponde a um único indivíduo, é assumido
como representante de todos. Em sentido contrário, para ser reconhecido como nacional, ou
mesmo para se auto-reconhecer como nacional, é preciso fazer um esforço para corresponder
ou se identificar com esse modelo.
Nações tardias: novas nações, velhos nacionalismos
Usando uma expressão que, em tempos, já foi utilizada em relação à unificação alemã e
italiana do final do século XIX, boa parte das atuais nações tardias, que surgiram entre o final
do século XX e o início do atual, têm em comum a exiguidade do território e um discurso
nacional fortemente embasado na afirmação e valorização de uma língua e cultura nacionais,
características já destacadas por Hobsbawm (1990) ao se referir aos nacionalismos da segunda
metade do século XX. No processo a favor do reconhecimento de suas respectivas identidades,
resgatam uma história milenar, um passado compartilhado de lutas, sofrimentos e sacrifícios
em prol do bem maior: a afirmação do seu caráter nacional.
Numa perspectiva histórica, a novidade do conceito de nação e nacionalismo é apagada
em favor de um passado justificador da demanda atual, como revela a seguinte afirmação de
Hobsbawm (1983: 76): “modern nations and all their impedimenta generally claim to be the
opposite of novel, namely rooted in the remotest antiquity, and the opposite of constructed,
namely human communities so „natural‟ as to require no definition other than self-assertion”.
A afirmação de uma língua comum implica solidariedade, que se prolonga não só no
espaço territorial da nação mas também no tempo, através de gerações, graças à fixidez e
estabilidade que se tornam possíveis com a conversão de uma certa língua em língua de
imprensa. Essa característica, como alerta Anderson (1983: 196), será bastante útil ao discurso
de afirmação nacional que procura atestar a sua antiguidade, pois encontra na longevidade das
línguas um forte argumento a seu favor: “once one starts thinking about nationality in terms of
continuity, few things seem as historically deep-rooted as languages, for which no dated origins
can ever be given”.
Ao contrário da Alemanha e da Itália dos finais do século XIX, no entanto, as atuais
nações tardias surgem num contexto diverso, caracterizado por uma nova organização da
17
34. A Palavra como Alicerce da Nação
sociedade, em rede, como propõe Castells (1997: xxix), cuja forma é resultante da “revolução
das tecnologias de informação” e da “reestruturação do capitalismo”. Esse novo modelo
acentua a interdependência entre os diferentes Estados, que não mais prescindem de fazer parte
de organismos internacionais. O próprio conceito de soberania é posto em causa, uma vez que a
independência político-econômica parece não ser mais possível no exíguo território nacional.
Billig (1995: 133) reproduz o discurso corrente, para criticá-lo logo a seguir, ao descrever o
jogo de forças opostas que pressionam as fronteiras do Estado-Nação de fora para dentro a
globalização e de dentro para fora a valorização das diferenças regionais e a ameaça de
fragmentação do território em novas unidades nacionais. “The result is that the sovereignty of
the nation-state is collapsing under pressure from global and local forces. Economic necessities
are compelling states to surrender parts of their sovereignty to supra-national organizations”
(ibidem: 133).
A virtualização do real, o esbatimento das fronteiras, o aumento da mobilidade, a
formação de grandes grupos internacionais políticos, econômicos, sociais que caracterizam
a atualidade, modificam a própria noção de fronteira. Agora não mais prejudicam ou bloqueiam
a passagem de bens e pessoas, mas regulam, definem critérios e selecionam, determinam o
nível de porosidade. Nesse contexto, a mediação e a negociação ganham preeminência sobre o
controle e a repressão.
O caso da Europa é bastante ilustrativo do cenário atual. Em algum momento das
últimas décadas, o próprio conceito de Europa perdeu parte do seu significado e tornou-se
problemático, impreciso. Mais do que a discussão sobre o que seria a identidade europeia, os
próprios limites da Europa se esvanecem confundidos entre a delimitação geográfica do
continente e as fronteiras estabelecidas pelo projeto que se intitula de União Europeia.
Tudo isso só encontra sentido nos tempos atuais, em que a chamada modernidade tardia
parece dissolver as estruturas sólidas que sustentavam a sociedade, imprimindo velocidade e
movimento e exigindo um novo senso de equilíbrio e alguma sensibilidade. A mobilidade
crescente e a multiplicação de contatos parecem acentuar a percepção da identidade e da
diferença; ao mesmo tempo, desafiam a definição e a perpetuação de uma identidade única, seja
ela qual for. Nesse panorama, a apropriação de uma dada linguagem e da cultura a ela associada
atua como uma espécie de bálsamo contra as angústias do mundo contemporâneo e suas
indefinições à medida que se reveste da ilusão da essência. Essa língua materna que nos é dada,
e não escolhida, promove o estabelecimento de uma identificação imediata e dificilmente
questionada, derivando dessas características a sua força e estabilidade, num mundo em
18
35. Os novos nacionalismos do século XXI
movimento contínuo e acentuado de mudança. A língua e sua cultura surgem como referências
seguras num mundo em estado perpétuo de transformação.
O discurso recorrente e repetitivo da identidade nacional parece ser, em alguma medida,
a tentativa de resgate de uma identificação segura em meio a incerteza que caracteriza a
sociedade contemporânea. O caminho trilhado com maior frequência é o do apego e da
identificação a uma cultura nacional conceito suficientemente amplo e abstrato para
acomodar as mais variadas práticas e, sobretudo, o discurso ilusionista da homogeneidade.
Numa sociedade em que o papel de consumidor muitas vezes se sobrepõe ao papel do
cidadão e que oferece uma gama enorme e variada de identidades que o indivíduo ou grupo
pode escolher e descartar, vestir e despir a todo momento uma espécie de mercado-livre de
identidades (Billig, 1995: 134) , a língua-cultura surge como contraponto a essas identidades
voláteis “the culture in which one has been taught to communicate becomes the core of one‟s
identity” (Gellner, 1983: 69).
O discurso atual, sob a bandeira da globalização, é o da fragmentação e fortalecimento
dos processos de internacionalização em quaisquer de suas naturezas - política, econômica,
social e, em alguma medida, cultural. É o que afirma Billig (1995: 132): “the processes of
globalization, which are diminishing differences and spaces between nations, are also
fragmenting the imagined unity within those nations”. As novas nações, mal alcançam a
independência, lançam-se numa nova batalha por um lugar ao sol na ordem global.
Como resultado desse movimento, surgem novas identidades e uma pluralidade de
narrativas (Billig, 1995: 133), que, muitas vezes, competem entre si. Nesse cenário, a
identidade nacional se afirma como uma dessas narrativas ou, na acepção de Bhabha (1990:
300), a nação se apresenta como uma estratégia narrativa sempre em processo de construção:
“Counter-narratives of the nation that continually evoke and erase its totalizing boundaries
both actual and conceptual disturb those ideological manoeuvres through which „imagined
communities‟ are given essentialist identities”.
O espaço criado pela multiplicidade de narrativas e sua inconclusão permite que a ideia
de nação se revista de diferentes identidades simultaneamente, acomodando assim não só as
semelhanças – estratégia em que se baseia a abordagem essencialista da ideia de nação – mas
também as diferenças. A identidade nacional se liberta das suas amarras e permite margem de
manobra para evitar conflitos e acolher a diferença.
Mais do que desvendar um programa político responsável pelo planejamento e
desenvolvimento de uma dada identidade, interessa observar como ela se constrói e se modifica
19
36. A Palavra como Alicerce da Nação
incessantemente no tecido social, num processo colaborativo – ora consciente ora não – no qual
tomam parte governo, academia, religião, sociedade e tantos outros agentes.
Abandonada a visão essencialista da nação, dos nacionalismos e da identidade nacional,
é preciso refletir sobre os processos que viabilizam essa identidade: “Culture is not a matter of
race. It is learned, not carried in our genes” (Kuper, 1999: 227). Embora o fim da era dos
nacionalismos já tenha sido declarado, o espraiamento do discurso nacional e sua capacidade de
mobilização atestam a relevância da ideia de nação e de identidade nacional na sociedade
contemporânea. A forte presença dos símbolos nacionais no mundo moderno, incorporados ao
cotidiano de forma quase imperceptível, constitui apenas um dos exemplos da força dessa
identidade ainda hoje.
Síntese
Uma breve retrospectiva histórica das reflexões sobre os nacionalismos a partir do
século XIX até a atualidade é suficiente para ressaltar a pluralidade de abordagens adotadas e
destacar alguns dos elementos intrinsecamente relacionados ao tema. O impacto provocado
pelo capitalismo, associado ao desenvolvimento das línguas de imprensa e à criação de línguas
nacionais, o desenvolvimento de um sistema ampliado de educação e o recurso a um conjunto
de práticas aqui representadas pelo conceito de tradição para justificar uma espécie de caráter
nacional são alguns dos elementos considerados relevantes para este trabalho.
O cenário atual, caracterizado pelo processo de globalização e pela crescente
mobilidade de pessoas, intensifica o contato com o outro e coloca em relevo um mecanismo de
identificação e diferença essencial para a construção e percepção identitárias. A identidade
nacional, assim como a identificação de e com uma cultura nacional, surgem como discursos
recorrentes, muitas vezes explícitos, outras, naturalizados pelas diferentes estratégias
narrativas. O papel da língua, quer como ícone de uma dada cultura, quer como meio
catalisador do processo de comunicação, desponta como elemento essencial a esse processo.
O preconizado fim da era dos nacionalismos traduz-se em uma nova percepção da
questão na sociedade atual, onde estes parecem se revestir de novas características e
desempenhar funções sociais diferentes daquelas realizadas pelos nacionalismos do século
XIX. Corrobora essa afirmação a assiduidade dos discursos de afirmação, valorização e
discriminação nacional que se repetem no dia-a-dia em todos os âmbitos da vida social.
Conflitos armados, disputas econômicas, competições esportivas, campanhas de marketing que
20
37. Os novos nacionalismos do século XXI
transformam a nação em marca, tensões provocadas pelos movimentos migratórios, cenários de
exclusão e inclusão, preconceitos e discriminação são apenas alguns dos exemplos.
No contexto atual, onde o caráter imaginado da nação é destacado e explicitado como
construção, a criação das nações tardias, que se tornaram independentes entre o final do século
XX e os dias de hoje, serve de ponto de partida para uma reflexão sobre as novas roupagens que
os nacionalismos adotam em face da contemporaneidade. Esse processo de construção
discursiva das identidades nacionais será discutido a seguir, assumindo como ponto de partida
as perspectivas adotadas pela análise crítica do discurso.
21
38. A construção discursiva das identidades nacionais
(Capítulo 2)
Introdução
A construção discursiva das identidades nacionais
O discurso de afirmação nacional da Eslovênia
A análise crítica do discurso
Síntese
40. A construção discursiva das identidades nacionais
Introdução
No domínio dos processos de construção identitária, a partir do momento em que se
entende a identidade nacional como uma entre as múltiplas narrativas identitárias possíveis e se
reconhece seu caráter imaginado, o indivíduo ganha certa autonomia. Em vez de objeto de uma
dada identidade, assume-se como sujeito, pois cabe a ele, em alguma medida, a definição dessa
história.
Neste capítulo, será explicitada a adoção de uma perspectiva construtivista, baseada no
discurso, para se pensar os processos por meio dos quais essas identidades podem ser
construídas e transformadas. Daí que neste trabalho se analise o discurso como forma de
mediação entre o indivíduo e a sociedade ou como modo de representação ou construção de
cenários e situações que se pretendem reais.
A construção discursiva das identidades nacionais será o tema principal das reflexões
realizadas, que partirão da análise de três paradigmas: o da identidade nacional como herança, o
da identidade nacional como aprendizado e o da identidade nacional como construção. Este
último modelo será o adotado ao longo deste trabalho.
Nesse contexto, o processo de construção identitária das nações tardias será analisado,
em especial no que se refere aos discursos que relacionam a afirmação e valorização de uma
língua e cultura nacionais com a existência incontestável de uma dada identidade. O caso da
Eslovênia, uma das repúblicas que formavam a ex-Iugoslávia, será destacado. A Eslovênia
declarou-se independente em 1991; conta, portanto, com pouco mais de 20 anos de existência
oficial como Estado-nação. No ano seguinte, em 1992, iniciou o processo de adesão à União
Européia, consolidado em 2004.
A seguir, será apresentada e discutida a opção metodológia que permeará toda esta
reflexão: a análise crítica do discurso e, em seu âmbito, a abordagem proposta pela linguística
sistêmico-funcional. A relação de interdependência entre o sistema linguístico e o sistema
social, o discurso como manifestação de e disputa pelo poder, o papel das ideologias, as
macro-funções da linguagem serão alguns dos temas em análise.
25
41. A Palavra como Alicerce da Nação
A construção discursiva das identidades nacionais
É possível refletir sobre a questão da identidade nacional a partir de diversas
abordagens, como ilustra a multiplicidade de trabalhos disponíveis sobre o tema. Definindo
como ponto de partida desta reflexão o viés dos estudos culturais (vd. Hall, 1997), propõe-se o
desenvolvimento de três paradigmas: o da identidade nacional como herança, o da identidade
nacional como aprendizado e o da identidade nacional como construção (vd. Kuper, 1999, e
Tann, 2010).
A identidade nacional como herança pressupõe algo inato, um conjunto de
características que seria herdado ao se nascer num determinado país e que induziria a um certo
comportamento ou modo de pensar e sentir o mundo. Todo ser humano carregaria esses dados
em seus genes e pouco poderia fazer para escapar à ação deles. Mais do que uma visão
essencialista, trata-se de uma visão determinista das identidades, na qual o indivíduo assume o
papel de objeto dessa suposta identidade nacional: ao invés de agir sobre ela, sofreria sua ação.
Aceitar a visão determinista implica, em algum grau, acreditar que todos os indivíduos
de uma certa nacionalidade partilham um dado conjunto de características das quais não podem
fugir, estando, assim, condicionados a comportamentos específicos. Esses pressupostos não
condizem com a diversidade que vivenciamos no dia a dia entre indivíduos pertencentes a uma
só nação. Parece difícil, portanto, defender esse posicionamento à luz das sociedades modernas
e da ausência de homogeneidade suposta.
No que diz respeito à identidade nacional como aprendizado, ela traz consigo a noção de
que as identidades são ensinadas. Não nascem com o indivíduo, mas este, desde o início do seu
processo de socialização, aprende a se comportar de uma dada maneira, a pensar e a sentir de
acordo com um modelo pré-estabelecido. Mesmo sem dar-se conta desse processo de
aprendizagem e mesmo que esse aprendizado não seja dirigido ou intencional, o indivíduo
assume como própria a identidade que lhe é ensinada.
Para seguir por essa linha de raciocínio, seria necessário aceitar a existência de um
modelo, de um modo de ser nacional, ou seja, de uma maneira específica de se identificar como
indivíduo pertencente e intrinsecamente vinculado a uma dada nação. Esse modelo claro e
definido seria replicado em todo o território nacional por meio de um poderoso sistema de
ensino, que englobaria não apenas as instituições de educação pública e privada, mas também o
ambiente social de forma mais alargada.
Uma breve tentativa de descrever com clareza esse modelo é suficiente para verificar
sua impossibilidade. Embora seja possível traçar imagens estereotipadas do que seria essa
26
42. A construção discursiva das identidades nacionais
identidade nacional, tais esboços não passam de caricaturas, são incapazes de dar conta de toda
a diversidade que caracteriza os diferentes modos de ser em sociedade. Claro que, com essa
afirmação, não se pretende negar ou diminuir a relevância do sistema educativo na construção
de representações individuais ou coletivas. Reconhecer, no entanto, o papel decisivo do sistema
educativo no processo pelo qual a nação é imaginada, como foi feito, aliás, no primeiro
capítulo, não significa atribuir-lhe a autoria de uma nação real.
A impossibilidade de se descrever em minúcias um dado caráter nacional, aplicável ao
conjunto de indivíduos, não esvazia, no entanto, a força desses estereótipos. Embora, à partida,
não seja possível descrever o que seria tal caráter, a referência ao mesmo e a sua presença,
direta e indireta, em discursos, símbolos, imagens – em sentido amplo, no imaginário nacional
– é recorrente.
Passando ao terceiro paradigma, o da identidade nacional como construção, verifica-se
que ele parte do pressuposto de que a identidade não é dada nem aprendida, mas sim construída
e desconstruída repetida e incessantemente no contato com o outro. Não significa dizer que
haveria um conjunto de identidades prévias, pré-formatadas, que seriam chamadas a se
manifestar numa dada situação. Pelo contrário, as identidades seriam construídas no âmbito de
um processo relacional e durariam o tempo exato de duração desse processo.
Nesse contexto, as identidades são recursos dos quais o indivíduo se vale para defender
ou conquistar uma posição (vd. Tann, 2010). O discurso, como forma de mediação entre os
indivíduos e entre estes e o mundo ao redor, é um dos recursos utilizados para construir essas
identidades e será essa a abordagem utilizada no âmbito deste trabalho.
A noção de discurso aqui assumida é a elaborada por Foucault, que situa o discurso
como forma de organização de significados. Gouveia (2001: 337), referindo-se a esse conceito,
afirma: “o discurso se refere aos modos, quase sempre linguísticos, mas não exclusivamente
linguísticos, de organizar o significado, aos sistemas de poder/conhecimento (pouvoir/savoir)
em que assumimos posições de sujeito”.
A ideia de construção discursiva das identidades permite acomodar a multiplicidade de
narrativas, como propõe Bhabha (1990), e sua incompletude, seu estado de permanente
transformação. Ao mesmo tempo, atribui ao indivíduo o papel de sujeito ao longo desse
processo, pois é ele quem constrói esses diversos discursos a partir dos elementos dos quais
dispõe.
Cada indivíduo participa simultaneamente de diversos grupos sociais, no âmbito dos
quais ora constrói sua identidade entre-pares, ora seleciona e retira elementos para construir
outras versões de identidade. Ele dispõe de uma grande variedade de fontes das quais se vale no
27
43. A Palavra como Alicerce da Nação
processo de criação de suas múltiplas identidades, de forma mais ou menos consciente, de
acordo com o contexto e com a situação (Cillia, 1999: 17).
Adotar a visão construtivista e assumir o indivíduo como sujeito não significa, no
entanto, afirmar que ele age com liberdade total, ao seu bel-prazer. Há uma série de elementos
que conformam, constrangem e alimentam esse processo de construção, como a história de
vida, os hábitos e costumes adquiridos desde a infância, o processo de socialização, os
temperamentos. Os sistemas de comunicação, em geral, desempenham papel importante nesse
processo, dada sua capacidade de selecionar e disseminar informação, assim como os sistemas
de educação, com seus valores e princípios, e os sistemas de crença religiosa, entre outros.
De forma invisível e insistente, o caráter nacional imprime sua marca no cotidiano, via
meios de comunicação, via proliferação dos símbolos nacionais, via marketing ou mesmo nas
conversas do dia a dia. O contato com o outro funciona como uma espécie de gatilho a disparar
o mecanismo de identificação e diferença, onde um certo estereótipo nacional é chamado a agir
sempre que necessário.
A imagem nacional é desenhada a partir dos discursos cruzados de diversas fontes,
sejam elas oficiais ou não. As dificuldades surgem quando alguns desses discursos são
assimilados como essência e tomados como uma espécie de fato consumado e não mais como
discurso-opção. À medida que algumas dessas narrativas se cristalizam, intensificam-se os
choques e embates entre elas e tantas outras versões contraditórias.
É importante frisar que a perspectiva da construção discursiva não se confunde com a
ideia do discurso como modo de representação de uma ou várias identidades. Longe de se
caracterizar como forma de materialização de uma dada identidade pré-existente, o discurso
determina o período de vigência dessa identidade, que nasce e morre com ele. Ela não existe
antes ou fora do discurso; pelo contrário, começa e acaba com ele, sendo construída e
reconstruída vezes sem conta, sem nunca ser exatamente a mesma.
Pode-se pensar a natureza da construção discursiva das identidades, entre elas as
nacionais, como sendo relacional e processual (vd. Tann, 2010). É relacional à medida que se
constrói em relação de comparação com o outro, seja em busca de semelhanças ou de
diferenças – o próprio conceito de identidade não faz sentido senão num contexto plural. É
processual à medida que se constrói ao longo da dilação do tempo, a partir de peças que se
interligam, montando uma engrenagem, e que só em conjunto podem produzir como resultado a
ideia de identidade.
Como decorrência do caráter processual, é possível ainda pensar a identidade como
efêmera, múltipla e mutável, estabelecendo-se um paralelo com o universo jurídico. É efêmera
28
44. A construção discursiva das identidades nacionais
porque termina com a conclusão daquela interação processual; é múltipla porque concorrem
para o desenvolvimento do processo uma pluralidade de variáveis; e é mutável porque passível
de transformação a partir do controle dessas mesmas variáveis.
A questão que surge, no entanto, é que o paradigma da construção discursiva das
identidades não parece refletir o discurso corrente, que desconsidera a pluralidade e a
efemeridade das identidades a favor da adoção dos conhecidos e propagados estereótipos
nacionais, que imprimem marca significativa nas sociedades de hoje. O indivíduo surge, mais
do que condicionado, subordinado a essa identidade estereotipada, ora por vontade própria,
numa espécie de autorreconhecimento, ora por não conseguir dela escapar. Tanto quanto o
discurso político ou midiático, o discurso do dia a dia é extremamente marcado pelo caráter
nacional, seja no âmbito das relações de consumo, de apreciações de contornos culturais ou
mesmo de um programa explícito de marketing nacional.
Essa aparente contradição pode, talvez, ser melhor compreendida a partir do
reconhecimento do conteúdo ideológico das identidades, assumindo, neste caso, que a
ideologia se traduz por “sistemas de pensamento, de valores e crenças (...) que denotam um
ponto de vista particular sobre o real, uma construção social da realidade, independentemente
de aspirarem ou não à preservação ou à mudança da ordem social” (Gouveia, 2001: 338).
A comunidade imaginada como nação tem sua própria linguagem de pertença nacional
(Bhabha, 1999: 293) e é construída e disseminada pelo discurso, em especial pelas narrativas de
afirmação e valorização de uma cultura nacional (Cillia, 1999: 22). Moldada a partir de uma
multiplicidade de fontes, entre elas o Estado, as instituições políticas e econômicas, as redes de
ensino, a mídia, as associações de interesses diversos ou mesmo o indivívuo, a identidade
nacional se realiza no universo variado e difuso das práticas sociais, das quais resultam as
condições materiais e sociais às quais o indivíduo está sujeito. Nesse processo, a prática
discursiva, como uma forma especial de prática social, desempenha papel essencial na
percepção e disseminação das identidades nacionais (ibidem: 29-30).
O discurso de afirmação nacional da Eslovênia
No processo de construção discursiva das identidades nacionais uma série de elementos
podem ser utilizados, alguns de forma recorrente, sendo a existência e partilha de uma língua
nacional um exemplo deles. Veja-se o caso da Eslovênia, que obteve sua independência da
então Iugoslávia em 1991 e, logo no ano seguinte, em 22 de maio de 1992, teve sua adesão à
29
45. A Palavra como Alicerce da Nação
União Europeia aceita, num processo que foi concretizado em 2004. Com um território de
pouco mais de 20 mil km2 e cerca de 2 milhões de habitantes, a Eslovênia possui mais de 40
dialetos (Kmecl, 2005: 3), mas utiliza como um dos argumentos para afirmar e, em certa
medida, justificar sua existência como nação a existência e valorização de uma língua nacional.
De acordo com o discurso oficial esloveno, as bases dessa língua teriam sido lançados no século
X, com os “Brižinski spomeniki” (ou “Manuscritos Freising”), que teriam sido os primeiros
textos escritos em esloveno (ibidem: 19), sendo a emancipação à língua de cultura conquistada
no século XIX, especialmente a partir do trabalho do poeta France Prešeren (1800-1849), ícone
da nação eslovena, alçado à categoria de herói nacional.
Em pouco mais de 20 anos de existência oficial como Estado-nação, a Eslovênia
empenha-se em afirmar sua viabilidade num mundo globalizado e de forte competição entre
nações, num cenário em que a exclusividade de sua cultura nacional desempenha papel de
destaque. O projeto nacional esloveno, independentemente da construção da sua imagem
intramuros, implica a divulgação desse caráter para o mundo, especialmente junto aos países
que integram a União Européia, bloco do qual faz parte. Nesse contexto, a língua eslovena
surge simultaneamente como símbolo de unidade nacional e obstáculo à integração
internacional, num aparente estado de tensão. Ao mesmo tempo em que a Eslovênia concentra
esforços na valorização e proteção da sua língua nacional, precisa, em alguma medida, abrir
mão dela em favor de uma língua global de comunicação e acesso internacional.
Entre as estratégias de unificação possíveis em favor da construção de uma identidade
coletiva, duas parecem ganhar destaque: a padronização, “baseada num referencial padrão
partilhado”, e a simbolização, baseada na “construção de símbolos de identificação coletiva”
(Ramalho e Resende, 2011: 29). A existência de uma língua nacional responde a ambas as
estratégias simultaneamente, quer na condição de código ou padrão de comunicação
compartilhado, quer na condição de símbolo de identidade nacional.
Se, a partir da perspectiva construtivista, as identidades são construídas no diálogo com
o outro, de acordo com Kuper (1999: 235), é preciso ter em mente que elas são vivenciadas de
outro modo, numa espécie de autodescoberta que implica a identificação com os outros e,
especialmente, a participação em identidades de natureza coletiva, como, por exemplo, a
identidade nacional: “The inner self finds its home in the world by participating in the identity
of a collecvitivy (for example, a nation, ethnic minority, social class, political or religious
movement)”.
No caso da Eslovênia, a afirmação e a valorização da sua língua surgem como fator de
identificação e critério para participação em uma cultura nacional, independentemente das
30
46. A construção discursiva das identidades nacionais
práticas linguísticas vivenciadas dentro das fronteiras do país. Como afirma Kmecl (2005: 4),
não sem antes destacar a exiguidade do território esloveno, que pode ser atravessado de Leste a
Oeste em cerca de três horas, a compreensão recíproca nem sempre é uma realidade: “it is quite
possible that a Slovene from the east will not be able to understand a Slovene from the west,
while a Slovene living in the central part will comprehend neither, and vice versa”.
Uma vez estabelecida a opção por uma visão construtivista das identidades nacionais,
baseada no discurso, e introduzido o caso da Eslovênia, passa-se a uma breve reflexão sobre a
metodologia a ser adotada, neste caso, a análise crítica do discurso e, em especial, as
teorizações e ferramentas oferecidas pela Linguística Sistêmico-Funcional (LSF).
A análise crítica do discurso
A análise crítica do discurso tem como fundamento o pressuposto de que a linguagem
está intrinsecamente ligada à estrutura social, configurando-se simultaneamente em elemento
estruturante e consequência dessa estruturação (Gouveia, 2009). A relação entre texto e
contexto, ou entre discurso e prática social, é de tal natureza que, a partir do conhecimento de
um, é possível apreender o outro, ou seja, representam um viés diferente de um mesmo objeto.
Dentro do escopo da análise crítica do discurso podem ser encontradas várias teorias,
abordagens e modelos que se distinguem entre si (Resende, 2009: 11). Não há uma única versão
da teoria geral, mas sim várias, o que garante sua consistência e lhe atribui maior elasticidade e
riqueza com a multiplicidade das perspectivas.
A abordagem adotada neste trabalho segue a proposta de Fairclough, que atribui ao
texto a capacidade de provocar “efeitos causais sobre as pessoas (crenças, atitudes), as ações, as
relações sociais e o mundo material”, efeitos esses que seriam “mediados pela construção de
significado” (Fairclough apud Resende, 2009: 23). Nessa versão da análise crítica do discurso,
a vida social é compreendida como um “sistema aberto”, que se realiza num mundo social
“constituído de redes de práticas articuladas” (Resende, 2009: 30).
A análise crítica do discurso oferece os meios necessários para se perceber de que modo
a linguagem é utilizada para a construção e perpetuação de discursos, valores e visões de
mundo que, embora representem os interesses de alguns e sejam resultado de escolhas
determinadas, são assimilados como sendo universais e incontornáveis, transformando-se,
assim, num eficiente mecanismo de produção e reprodução das ideologias (Resende, 2009:
47-78). Essa estratégia de universalização caracteriza a disputa pelo poder, que consiste na
31
47. A Palavra como Alicerce da Nação
“luta pela instauração, sustentação e universalização de discursos particulares” (Ramalho e
Resende, 2011: 25).
Ao lado da estratégia de universalização e num mesmo sentido, opera a naturalização,
que implica em transformar uma determinada construção social em algo considerado normal e
assumido como certo ou garantido (Holliday, 1999: 251), ou seja, como senso-comum. De
acordo com Gouveia (2001: 341-2), é tarefa da análise crítica “relacionar o micro-evento
(discursivo) com a macro-estrutura (social) e desnaturalizar o que foi naturalizado, ou seja, o
que foi dissociado dos interesses da classe ou grupo social particular que o gerou”.
Uma vez reconhecida a forte carga ideológica das práticas discursivas, as quais “pelo
modo como representam a realidade e posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a
reproduzir relações de poder desiguais” (Gouveia, 2001: 340), importa ressaltar que, no âmbito
deste trabalho, entende-se a ideologia “não como uma imagem distorcida do real, uma ilusão,
mas como parte do real social, um elemento criativo e constitutivo das nossas vidas enquanto
seres sociais” (ibidem: 338-9).
Dentro do arcabouço de metodologias e abordagens oferecido pela análise crítica do
discurso, a perspectiva adotada neste trabalho é a da linguística sistêmico-funcional. De acordo
com essa teoria, a linguagem desempenha uma pluralidade de outros papéis, além da função de
comunicação, dos quais os mais importantes seriam a função ideacional, a função interpessoal e
a função textual.
Na vertente ideacional, e de acordo com Gouveia (2009: 15), a linguagem serve “para
darmos conta da nossa experiência do mundo, seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da
nossa própria consciência, interno a nós próprios”. Na vertente interpessoal, a linguagem é
utilizada “para estabelecermos e mantermos relações sociais uns com os outros, para
desempenharmos papéis sociais, incluindo os comunicativos, como ouvinte e falante”. Na
vertente textual, a linguagem “providencia-nos a possibilidade de estabelecermos relações
entre partes de uma mesma instância de uso da fala, entre essas partes e a situação particular de
uso da linguagem”, criando, assim, uma série de outras possibilidades de construção de sentido
e relevância.
A linguística sistêmico-funcional opera simultaneamente como uma “teoria geral do
funcionamento da linguagem humana” e um “modelo de análise textual” (Gouveia, 2009: 14),
que será aquele adotado no âmbito deste trabalho. A língua é entendida como “uma realidade
fundamentalmente social, concretizada na materialidade discursiva dos textos e da interação
verbal” (ibidem: 17).
A língua como realidade social, condicionada e condicionante dessa realidade,
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48. A construção discursiva das identidades nacionais
representa uma possibilidade de acesso a esta. Como afirma Gouveia (2009: 25-6), “a relação
entre um texto e o seu contexto, é de tal forma motivada que, a partir de um contexto, será
possível prever os significados que serão ativados e as características linguísticas potenciais
mais previsíveis para as codificar em texto” e vice-versa.
É ao nível do discurso que as questões culturais, às quais a percepção de uma certa
identidade nacional está intrisecamente relacionada, são melhor compreendidas (Holliday,
1999: 252), embora a equiparação da nação com a ideia de uma cultura em grande escala e
homogênea esteja no cerne do desenvolvimento do próprio conceito de nação no cenário
europeu: “Equating nation with homogeneous ideas of large culture also supported the
conceptual development of European nations themselves” (ibidem: 243).
Nesse processo de construção discursiva, que se faz e refaz incessantemente, não só a
ideia de cultura é elaborada, mas também o passado é trazido ao presente, em especial na
reconstrução da história nacional. O embate entre várias narrativas possíveis, das quais umas
emergem e outras são apagadas, revela a relação de poder que se estabelece entre os diversos
grupos: “Power comes visibly into play as soon the various narratives of the past are confronted
with each other and elites select one of the competing narratives and naturalise it as the „past‟
(what „really‟ happened)” (Martin e Wodak, 2003: 8). As estratégias de universalização e
naturalização são, mais uma vez, postas em prática. O mesmo se dá no processo de construção
das identidades nacionais: “Pasts are rearranged, transformed, recontextualized, substituted,
mystified or totally changed” (ibidem, 2003: 11).
Síntese
É possível refletir sobre a questão da identidade nacional a partir de uma pluralidade de
abordagens de acordo com o viés adotado: seja o da antrolopogia, da sociologia, da psicologia,
da história entre outros. Neste capítulo, foi explicitada a opção pela abordagem dos estudos
culturais (vd. Hall, 1997), a partir da adoção de uma visão construtivista, que entende as
identidades como uma espécie de tomada de posição construída no âmbito da prática discursiva
(vd. Tann, 2010).
No esforço de compreensão do processo de construção das identidades nacionais, e do
papel da língua dentro dele, optou-se pela análise do caso da Eslovênia, que será tomada como
referência ao longo deste trabalho.
A metodologia definida foi a da análise crítica do discurso, cuja fundamentação foi
33
49. A Palavra como Alicerce da Nação
discutida em contornos bastante gerais neste capítulo. Dentre as ferramentas disponíveis no
âmbito da análise crítica do discurso, optou-se pelo portfólio desenvolvido pela linguística
sistêmico-funcional.
A seguir, serão esclarecidos os critérios de análise efetivamente adotados e será
realizada a análise da introdução a uma coletânea de contos eslovenos de autores
contemporâneos, traduzidos para o inglês, publicados com o objetivo de divulgar a literatura
eslovena no cenário internacional.
34
50. Análise do texto: aspectos de textualização
(Capítulo 3)
Introdução
Estratégias de atração e convencimento
Introdução à Eslovênia via coordenadas geográficas
Descrição e organização geral do texto
Síntese
52. Análise do texto: aspectos de textualização
Introdução
Neste capítulo, será apresentado e discutido o texto selecionado para análise: a
introdução do livro Angels Beneath the Surface – A Selection of Contemporary Slovene
Fiction (Priestly, 2008). Nesta primeira abordagem, serão privilegiados os aspectos de
textualização, destacando-se a função desempenhada pelo texto e sua organização geral.
Importa analisar a introdução em seu conjunto, antes de focar pontos específicos, para extrair
do texto o maior número de significados possíveis.
O primeiro ponto abordado diz respeito às estratégias adotadas pelos autores da
introdução para cativar o leitor e atribuir credibilidade ao texto: por um lado, o humor, como
recurso para promover a aproximação e criar empatia com o leitor; por outro, o
distanciamento, como recurso para construir a ilusão de imparcialidade e conquistar, assim,
maior credibilidade.
A seguir, o foco de atenção recairá sobre o critério adotado logo no início do texto
para a apresentação da Eslovênia: o das referências geográficas. É a posição da Eslovênia no
mapa do mundo, ou seja, a localização e delimitação de suas fronteiras, que surge como a
primeira opção dos autores para introduzir o país. A contraposição entre Leste e Oeste,
bastante frequente no texto, também será considerada neste estudo.
Por fim, a introdução em análise será apresentada em sua integralidade por meio da
descrição dos seis diferentes blocos que a constituem. Os recortes cronológicos e históricos
serão destacados, de modo a proporcionar ao leitor uma ideia da lógica que rege a
organização do texto e a sua fragmentação para construção de um todo coeso, orgânico e
consistente.
A partir da análise da introdução de acordo com os três critérios acima indicados,
pretende-se identificar se, e em que medida, o discurso esloveno de construção da sua
identidade nacional a partir da afirmação e valorização de uma língua e literatura nacionais
está presente. Mais do que isso, busca-se compreender de que maneira esse discurso se realiza
ao longo do texto.
37
53. A Palavra como Alicerce da Nação
Estratégias de atração e convencimento
Antes de mais nada, é preciso ter em conta que o texto em análise se apresenta como
introdução a uma antologia de contos escritos por autores eslovenos contemporâneos e
traduzidos para a língua inglesa. Todas as histórias foram criadas no período que vai de 1990
um ano antes da independência da Eslovênia e 2005 um ano após a entrada do país na
União Européia.
A introdução, elaborada em inglês, é assinada por Mitja Čander, editor e crítico
literário, e Aleš Šteger, poeta e também crítico literário, ambos eslovenos. O objetivo
explícito e mais óbvio é o de apresentar aquela seleção de contos e, mais especificamente, a
literatura eslovena contemporânea. O menos óbvio, no entanto, mas logo percebido nas
primeiras linhas do texto, parece ser a apresentação de um país:
Oh, Slovenia, Yeah, right. Hungarians to the north, Italians to the south. No, that can’t be
right. Try again: Croatians to the north, Romanians to the South. And Ukraine to the west. Or
is it Slovakia? Or Slavonia, rather? Bosnia, perhaps? Yes, that’s it. Bosnia to the west.
Germany in the heart. And Russia, far, far away. [Linhas 1 a 5]
O ponto de partida é a assunção de uma grande dose de desconhecimento da Eslovênia
por parte dos leitores. A definição das fronteiras é o critério escolhido para uma primeira
introdução a esse país de fronteiras fugidias e confusas, como se a Eslovênia fosse uma
espécie de território perdido ou imaginado.
A opção pelo registro de humor na abertura do texto surge como um convite à leitura e
parece assumir a dupla função de fator de atração do leitor, pela via da empatia, e de
facilitador de entrada para esse pedaço de mundo semidesconhecido. Também reflete um
certo grau de informalidade e jovialidade, que podem ser associados à juventude, ou seja, à
nova geração de autores apresentados. Esse mesmo tom é retomado no encerramento do texto:
Still, if you, dear distant reader, alone or in pairs, manage to find us there, in the nowhere, to
the west of Bosnia, to the left of Italy, we hope you will enjoy the reading. [Linhas 274 a 277]
O recurso ao humor não se restringe, no entanto, à apresentação da Eslovênia, ele é
estendido à caracterização do povo esloveno, como se vê nas passagens abaixo:
For historians of a biological bent, Slovenes could easily serve as somewhat bizarre proof that
even the small not only survive physically; sometimes they are rewarded for their
persistence, fanaticism, and incestuous nature: the reward being a state of their own (itálicos
acrescentados). [Linhas 8 a 11]
38
54. Análise do texto: aspectos de textualização
During the long centuries without independence, despite the downdraft of history and a
permanent cultural inferiority, The Slovene language became recognized as the common
sacred emblem of its stubborn and often narrow-hearted speakers (itálicos acrescentados).
[Linhas 21 a 24]
As características atribuídas aos eslovenos dificilmente seriam tomadas como
positivas: fanatismo, natureza incestuosa, teimosia e mesquinhez. Mas são elas que, aliadas à
persistência, conduzem à recompensa final: um Estado próprio. A opção pelo humor pode
justificar, em parte, a atribuição de qualidades negativas na caracterização do povo esloveno,
mas é possível fazer outras leituras. Por fanatismo, pode-se ler fé religiosa; por natureza
incestuosa, pode-se ler identidade étnica; por teimosia, pode-se ler persistência; por
mesquinhez, pode-se entender o desejo de um Estado próprio, ou seja, a construção de uma
identidade e de uma consciência nacionais.
O humor surge carregado de uma boa dose de ironia e autocrítica, evidenciando um
olhar reflexivo, que revela a conexão dos autores com o tema tratado a Eslovênia ,
conexão esta que logo será substituída por uma linguagem de distanciamento. Um bom
exemplo desse tom irônico pode ser encontrado na passagem abaixo, que destaca um certo
isolamento físico do país, seja pela existência de muralhas naturais, numa referência aos
Alpes, seja pela exiguidade da costa marítima, de pouco mais de 46 km:
High, uncrossable Alps throwing deep shadows, and the navy in the Slovene sea adding up to
three boats, one of them being a rubber dinghy. [Linhas 5 a 7]
Outro recurso utilizado pelos autores na abertura e no encerramento da introdução é o
da interpelação do leitor. Ao longo de todo o desenvolvimento do texto eles não aparecem;
afastam-se da narrativa e assim atribuem à história que contam uma aparência de verdade,
como se narrassem fatos incontroversos, e não uma versão de tais acontecimentos. Os dados
oferecidos no texto surgem como fatos concretos e incontestáveis. A imparcialidade dos
autores que, embora sendo eslovenos, falam da Eslovênia e dos eslovenos como se não
fizessem parte desse grupo dá o tom de veracidade e credibilidade. Ao mesmo tempo, a não
identificação dos autores como nacionais ameniza o eventual caráter ufanista do texto, de
celebração da identidade eslovena, fortalecendo, assim, o discurso.
Tanto o humor como a interpelação e o distanciamento consistem em estratégias
diferentes de abordagem, embora complementares. Se o humor e a interpelação direta do
leitor destacam-se como abordagens de conquista e pretendem cativar pela proximidade e
empatia, numa espécie de apelo emocional, o afastamento dos autores procura convencer pelo
distanciamento: afastam-se do leitor, agora cativo, para dar credibilidade ao texto.
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55. A Palavra como Alicerce da Nação
Introdução à Eslovênia via coordenadas geográficas
As referências à posição geográfica da Eslovênia, quer pela indicação de países ou
regiões vizinhas ou próximas, quer pela contraposição entre Leste e Oeste, nesses casos
muitas vezes com acepção político-econômica, é recorrente na introdução. Na abertura do
texto, é uma constante. Toda essa passagem é construída em função dessas contraposições:
Hungria, Croácia, Ucrânia, Eslováquia, Eslavônia, Bósnia, Alemanha, Rússia. A tal fato
soma-se a ausência de referência direta à Iugoslávia ou aos Bálcãs, que poderiam, a princípio,
ser as referências mais imediatas do leitor.
Se o ponto de partida da introdução é a assunção de desconhecimento do leitor em
relação à Eslovênia, apesar do tom de humor, a referência às fronteiras nacionais podem
remeter a memórias de conflito e tensão entre países, especialmente na região dos Bálcãs, em
função do histórico de violência ainda recente.
A Alemanha aparece no coração da Eslovênia e a Rússia, muito distante (vd. citação
supra, na página 38), num aparente movimento de aproximação com a Europa, aliado à
possível lembrança de um passado comum, e de distanciamento da Rússia e, indiretamente,
do seu passado comunista ideia que parece reforçada pela não menção à Iugoslávia,
conforme referido acima.
Logo a seguir, ainda no início do texto, há mais três ocorrências de passagens que
utilizam as referências geográficas para caracterizar e individualizar a Eslovênia. A primeira é
genérica, associando o surgimento do Estado esloveno a mudanças no mapa da Europa em
função de uma onda pós-comunista:
The Slovene state arose from the wave of post-Communist changes on the map o Europe.
[Linhas 11-12]
A segunda, com conotação cultural, situa a Eslovênia no ponto de intersecção entre
diferentes culturas (germânica, românica e húngara), enquanto a terceira contrapõe o país às
demais nações eslavas, posicionando e, simultaneamente, diferenciando a Eslovênia como a
mais ocidental dessas nações:
Historically Slovenes had stopped on the crowded crossroads between the Germanic,
Romance, and Hungarian worlds to become the westernmost branch of Slavic nations.
[Linhas 14-17]
Aqui, pela primeira vez, a Iugoslávia e os Bálcãs são referidos, mas apenas no
contexto da independência da Eslovênia e após esta ter sido mencionada , valorizando,
40
56. Análise do texto: aspectos de textualização
assim, o presente, marcado pela autonomia e liberdade, pela afirmação da nação e não por
uma referência ao seu passado de ausência de autonomia.
Na menção à posição da Eslovênia como ponto de encontro entre culturas distintas, o
referencial geográfico é indireto, mas se faz sentir. Tem-se uma ideia mais clara da
localização da Eslovênia no mapa, assim como da riqueza cultural que resulta da
convergência das influências de culturas distintas, representadas por países como a Alemanha,
a Itália e a Hungria. Ao mesmo tempo, a Eslovênia só tem a ganhar com a associação da sua
história à de nações já reconhecidas.
Outra mensagem que parece estar subentendida é o da vocação do país para a
mediação cultural, característica bastante valorizada hoje no cenário internacional e
diretamente relacionada às questões de estabilidade política e de manutenção da paz. Em
documento intitulado “Slovenia entering to EU – April 2004”, produzido pelo departamento
de relações públicas da Eslovênia à época da entrada do país na União Europeia, esse
potencial de mediação é destacado quer como uma contribuição da Eslovênia para a União
Europeia, quer como um compromisso assumido com o futuro (vd. The Government Public
Relations and Media Office of Slovenia).
Por fim, ao reconhecer-se como a nação eslava mais ocidental, a Eslovênia não só
reforça seu movimento de aproximação com o ocidente cujo fato político mais marcante
talvez seja a adesão à União Européia em 2004 como acentua o seu processo de
diferenciação das demais nações eslavas. Reconhece a origem comum e, exatamente por
conta disso, busca a diferenciação como forma de fortalecer sua própria identidade.
Talvez essa necessidade de afastamento e diferenciação em relação às demais nações
eslavas seja o mais contundente desses movimentos. Ao se aproximar de um outro distante,
aqui representado pela União Européia, a identidade nacional eslovena é realçada pela
diferença. Já no contato com o próximo, nesse caso com as nações eslavas, essa diferença
corre o risco de se esvanecer. Nesse contexto, o suposto afastamento da Eslovênia em relação
ao mundo eslavo talvez faça ainda mais sentido, considerando-se a necessidade de
diferenciação como parte do processo de construção de sua identidade nacional.
Ao longo do texto, verificam-se também quatro registros envolvendo, de forma direta
ou não, a contraposição entre a Europa ocidental e a Europa oriental. No primeiro deles, a
Iugoslávia é posicionada entre uma e outra:
Having overcome the 1948 dispute with Stalin, Yugoslavia engaged in finding a middle course
between the East and the West... [Linhas 134-135]
41
57. A Palavra como Alicerce da Nação
Em outro momento, a menção à Europa ocidental surge num contexto de tentativa de
aproximação e relativização das barreiras:
Despite certain restrictions, from the middle of the 1960s on, Slovene authors had virtually
no lack of information concerning contemporary literary trends in Western Europe. [Linhas
137-139].
A mensagem geral que se depreende das citações acima é, mais uma vez, a de
diferenciação e afastamento entre o regime comunista adotado pelo mundo soviético e aquele
vivido na Iugoslávia. De modo geral, parece sugerir que o regime iugoslavo tenha sido mais
brando, menos opressor.
Em duas outras passagens, os autores indiretamente situam a Iugoslávia como parte
das nações do chamado bloco do Leste ao referirem-se a ela como “other Eastern bloc
nations/countries” (linhas 135 e 159).
Essa questão representa um ponto de conflito que reside na inclusão ou não da então
Iugoslávia no grupo de países referidos como o bloco do Leste. Pelo registro do texto, os
autores do prefácio parecem assumir essa participação, pois, ao se referirem aos outros países
do bloco de Leste, subentende-se que a Iugoslávia fazia parte desse grupo. Em sentido
contrário, alguns autores consideram que apenas os países alinhados com a URSS fariam
parte desse bloco, o que excluiria a Iugoslávia.
Ao final da introdução, como já referido, é retomado o discurso de abertura, com uma
nova tentativa de identificação da Eslovênia com suas sempre fugidias coordenadas
geográficas, perdida entre a Bósnia e a Itália: “in the nowhere, to the west of Bosnia, to the
left of Italy” (linhas 275 e 276).
Descrição e organização geral do texto
O texto está dividido em seis blocos de tamanhos desiguais. Com exceção dos dois
primeiros, que servem de apresentação do país sem que a literatura seja mencionada uma
única vez, os demais traçam um breve painel da história da Eslovênia e da sua literatura, em
ordem cronológica, com destaque para grandes acontecimentos políticos.
O primeiro bloco, ou seja, a abertura do texto, representa uma tentativa de
aproximação dos autores em direção ao leitor, caracterizada pelo uso de interjeições e de
interpelações, simulando a fala direta, como já mencionado. Do segundo bloco em diante, o
tom assumido pelos autores é de distanciamento, quer do leitor, a quem não mais se dirigem
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