A entrevista discute as causas internas e externas dos protestos juvenis em Angola. O sociólogo Paulo de Carvalho aponta a concentração da riqueza, corrupção e falta de cumprimento de promessas como causas internas. Ele também acredita que os governos ocidentais aproveitam as falhas dos países do Sul para desestabilizar a região, mas reconhece que os protestos têm fundamentos legítimos internos. Paulo apoia o diálogo nacional promovido pelo Presidente, mas acredita que o governo precisa fazer mais para resolver os problemas
1. Entrevista Paulo de Carvalho, sociólogo e professor
«O Ocidente
aproveita as nossas falhas»
Sociólogo e professor, o angolano Paulo de Carvalho defende
a contestação, mas não a tentativa de derrubar pela força
governos legítimos. Para ele, os governos que não aceitam
críticas não querem, de facto, corrigir-se.
CARLOS SEVERINO
Á21 Os protestos juvenis transformaram-se, desde os acontecimentos na Tunísia e noutros países do
Norte de África e Médio Oriente,
num fenómeno tendencialmente
global. Como avalia a sua repercussão em Angola?
PAULO DE CARVALHO O mundo
está a tomar novo rumo, muito rapidamente. As novas tecnologias estão a revolucionar o mundo, em todos os sentidos – repito, em todos os sentidos. Era
de esperar que isso ocorresse, mais tarde
ou mais cedo – só não se esperava que
ocorresse com tal dimensão, ao ponto
de derrubar governos de forma tão rápida. Lamentavelmente, os poderes (e o
nosso não é exceção) nem sempre estão
preparados para grandes mudanças, em
tão pouco tempo. E esse tem sido o
principal mal, que por enquanto atinge
em maior grau o Hemisfério Sul, mas
que começou também já a ocorrer na
Europa e vai alastrar-se por outros cantos, podemos estar certos.
Não há inibições de natureza cultural, porque a vontade de mudança é
cada vez maior no mundo. Portanto,
Angola não poderia estar a leste de tudo
isso. Angola faz parte «deste mundo»,
sendo mesmo um dos países de África
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com grande tradição de adaptação aos
costumes e modas vindos de fora.
Na sua opinião, as autoridades reagiram corretamente às tentativas de manifestação realizadas por certos jovens
angolanos?
As manifestações são apenas boa parte
da ponta visível do iceberg. Desde 1993
que muitos de nós temos chamado à
atenção para os erros que se vêm cometendo. Na maior parte das vezes somos
mal interpretados, quem governa prefere ouvir elogios a críticas, o que significa
estarem criadas as condições para a reivindicação. Quem governa tem de saber ouvir críticas, para corrigir a sua
atuação. Só não ouve e não aceita críticas quem não pretende corrigir-se. E o
resultado disso é, invariavelmente, o
crescimento da contestação.
Algumas vozes, em Angola e também
em outras partes do mundo, acham
que os protestos juvenis dos últimos
dois anos fazem parte de uma estratégia do Ocidente para desestabilizar
certas regiões do globo. Está de
acordo?
Claro que sim. Não podíamos, aliás,
esperar outra coisa. Quem comanda o
mundo tem de ter habilidade para
aproveitar tudo o que ocorre em seu
benefício, em benefício da sua estratégia de comando. E podemos crer que os
Estados que mexem os cordelinhos
desse comando sabem adaptar-se rapidamente às mudanças que ocorrem, tirando daí benefício. Também há manifestações na Europa, mas aí o comando
vai manejando com mais calma, pois
não interessa potenciar as já várias intenções de revolta no continente europeu. Não podemos esperar que connosco ocorra atitude idêntica.
Quanto a nós, os dependentes do
Hemisfério Sul, ou alinhamos na estratégia de quem comanda o mundo e
agimos com honestidade, ou arriscamo-nos a «perder o barco». Penso que
estamos, neste momento, muito mais
vulneráveis do que estávamos há três ou
quatro anos.
Esses protestos têm também causas
internas?
Claro que têm causas internas. O que
me parece é que a efervescência é interna e isso é depois aproveitado lá por
fora, para potenciar o desejo de revolta.
Mas a essência são mesmo causas internas, promessas que não foram feitas na
devida altura, promessas que não estão
a ser cumpridas e programas que não
são executados como deveriam. Mas eu
admito manifestações e até admito
contestação, só não sou a favor do derrube de governos legítimos, pois o poder não pode cair na rua, o exercício do
poder não pode depender da intensidade
2. JOÃO GOMES/JORNAL DE ANGOLA
dos seus males, porque de facto poderíamos estar a viver melhor. Temos de
reconhecer ter havido boas apostas depois do final da guerra, mas as pessoas
querem muito mais – e já! Começamos
a sofrer os efeitos disso. E atenção, que
por este andar será ainda pior daqui a
cinco ou dez anos.
da revolta. Sou a favor da reivindicação
e, mesmo por isso, tenho de ser contra
qualquer tipo de marcha para derrubar
este ou aquele governo. Se escolhemos a
democracia, então temos de encontrar
formas de chegar ao poder pela via
constitucional. Nenhum governo (seja
ele qual for) aceitará de ânimo leve o
seu derrube da forma como alguns
pretendem e proclamam.
A concentração
da riqueza, corrução
e falta de cumprimento
das promessas feitas
são algumas razões
para o aumento da
contestação em Angola
No caso de Angola, quais são essas
causas internas?
As causas internas são várias. Uma delas
tem a ver com prestação de contas.
Durante muito tempo, as pessoas foram dando conta da concentração da
riqueza num grupo muito pequeno de
cidadãos, numa clara guinada à direita
que pouco trouxe de vantajoso para o
partido político que governa o país.
Aquilo que se começou a fazer recentemente deveria ter começado há muito
mais tempo. Refiro-me ao boom no
acesso à instrução (e ao ensino superior), ao investimento nas instituições
estatais de saúde e à aposta (que ainda
não é nítida) na agricultura e na indústria, que são os setores que vão fomentar emprego para todos os angolanos.
A guerra foi o primeiro grande entrave
a esse projeto (que é o projeto do programa maior do MPLA), mas houve
outros entraves. E a juventude não quer
mais ouvir falar da guerra como causa
Alguns intelectuais angolanos que residem no estrangeiro acham que estão
reunidas as condições para uma revolta de larga escala no país. Está de
acordo?
Condições para revolta claro que há,
mesmo desde os tempos da guerra.
Analistas e cientistas sociais temos chamado à atenção para isso, algumas vezes
até apontando soluções para diminuir
esse mal que se alastra. E sempre que um
governante nomeia um familiar próximo, sempre que se sabe de mais um arranha-céus a favor deste ou daquele que
já tem vários e nenhum deles foi herdado, sempre que falta água nas torneiras e
que há cortes de energia elétrica depois
de milhões e milhões gastos nesses setores, sempre que abre uma cratera numa
estrada reparada há poucos meses e
sempre que ocorre uma denúncia de
corrupção sem que as competentes autoridades levem o assunto a peito, aumenta o sentimento de revolta.
Agora, se me pergunta se eu concordo com uma bandeira de revolta que
conduza à chacina de governantes, é
claro que a minha resposta tem de ser
negativa. Não podemos dizer aqui que
somos a favor da paz, mas acolá apregoarmos a revolta e a chacina. Não podemos criticar os erros dos governantes
e vir depois para a rua clamar por morte
aos governantes, para errarmos tanto
ou mais que eles.
Como avalia a iniciativa do Presidente
angolano de promover um diálogo
com a juventude à escala nacional?
Sou daqueles que consideram que todas as iniciativas de diálogo são bemÁFRICA21– OUTUBRO 2013 7
3. -vindas. É necessário dialogar com a
juventude e é mesmo indispensável
incluir nesse diálogo os muitos jovens
que não estão filiados em quaisquer
organizações. A iniciativa é bastante
boa, sendo agora necessário alargar
esse diálogo a outras franjas da sociedade, que são normalmente marginalizadas, mas que têm grande ascendente sobre a juventude e sobre outras
camadas sociais. O Presidente e os
ministros têm também de ir às universidades, dialogar com as pessoas (com
os mais jovens e com os menos jovens). Esta é uma saída, que se deve
aliar a outras soluções que referi antes.
Muitas vezes, não é preciso esperar
pela obra feita, basta demonstrar devidamente que ela está em curso. E depois é preciso mostrar que estamos todos «no mesmo barco», isto é, que as
dificuldades são para todos.
Não se tratou de uma iniciativa partidária, para esvaziar os protestos juvenis
em Angola?
Não me parece que tenha sido isso.
Todo o diálogo é favorável. Quando se
dialoga, aprende-se. Reafirmo, pois, a
necessidade de o diálogo prosseguir,
seja com jovens não enquadrados em
organizações da sociedade civil, seja
com outras franjas da sociedade. Os
governantes têm de governar para alguém, o que exige que tenham conhecimento das reais necessidades e das
expectativas dos governados.
O emprego foi apontado pelos participantes do diálogo entre as autoridades
e a juventude como o principal problema dos jovens angolanos. O que deve
fazer o governo para resolver esse
problema?
A economia angolana é extremamente débil, não se deve portanto estranhar que o emprego seja apontado
como principal problema da juventude. Para resolver este problema, tem
de deixar de se apostar preferencialmente no setor dos serviços, passando
a apostar-se na agricultura e na indústria. Angola tem de deixar de depender do petróleo, pois essa opção promove o subdesenvolvimento e não
permite a proliferação de postos de
trabalho e o fomento do emprego estável. Mas por outro lado, é preciso
deixar de criar empregos de forma
fictícia, ao nível da função pública e
empresas públicas – pois isso, de facto, vem promovendo o subemprego,
que corrói ao invés de contribuir para
o desenvolvimento das famílias e do
país. A força de trabalho excedentária
PAULO DE CARVALHO
Nasceu na cidade de Luanda em 1960. É sociólogo, com
Doutoramento em Sociologia pelo ISCTE (Lisboa). É professor titular na Universidade Agostinho Neto, tendo dirigido a
Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UAN (20052006). Foi reitor da Universidade Katyavala Bwila (20092011) e diretor do Centro de Imprensa Aníbal de Melo
(1991-1992). É editor da Revista Angolana de Sociologia
(desde 2008). É autor de oito livros de Sociologia. Entre os
prémios e menções que tem recebido, destacam-se o Prémio Nacional de Cultura e Artes na modalidade de investigação em Ciências Sociais e Humanas (Luanda, 2002) e o
Prémio Kianda de Jornalismo Económico (Luanda, 1998).
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tem mesmo de ser encaminhada preferencialmente para os setores da
agricultura e da indústria.
Quais são, para si, os outros problemas principais dos jovens angolanos?
Um dos principais problemas da juventude tem a ver com a elevada dose de
corrupção no ensino, desde o nível
básico ao superior. Aliás, isso vai-se
refletir depois no emprego dos jovens
e, também, na economia do país. Não
se pode construir um país inculcando
nas crianças e jovens que o que está
certo é o desejo de amealhar sem olhar
a meios. E é isso que se tem feito todos
estes anos, com o beneplácito de quem
dirige as várias instituições de ensino.
É tempo de dizer basta, é tempo de
apostar em qualidade.
Depois deste, há outros problemas
que afligem a juventude angolana,
como o problema da habitação e a
questão relacionada com o indispensável investimento nos dois mais importantes setores da economia: a agricultura
e a indústria. Há ainda problemas como
o crédito à atividade profissional, a
aposta na qualidade do serviço público
de saúde e a assistência social. Há muito
por fazer, mas a base deverá ser a luta
contra a improvisação, deverá ser a definição de metas e de regras, que depois
devem ser realmente cumpridas. E os
órgãos de fiscalização devem funcionar,
sem esquemas e sem compadrios.
FERNANDA OSÓRIO
O Governo deve
continuar a dialogar com
a juventude mas também
com o resto da sociedade