O documento discute memória, tempo e representação através de narrativas pessoais e obras de arte que utilizam a fotografia e o arquivo. Aborda como estas visões individuais falam da dimensão simbólica do espaço-tempo e contribuem para uma memória coletiva.
1. Portfólio Cláudia Lopes
Lembro-me de ter lido um poema lindo que falava de uma mesa e dos seus
lugares vazios. Não eram lugares por preencher, eram lugares vazios.
Lembro-me que quem o lia – apetece-me rir hoje – pensava que lugares
vazios eram o silêncio, mas não há nada mais duro que a ausência e essa não
é o silêncio.
2. Esta apresentação fala de momentos, momentos esses que definem um tempo que não é só o tempo de um
indivíduo em particular mas sim esse lugar que se estende e pertence à memória colectiva.
Importa pensar o significado de um espaço político, histórico e social que se apresenta através de narrativas
pessoais, muitas vezes autobiográficas, que utilizam a fotografia como registo de um desaparecimento evidente. A
memória é um registo contínuo daquilo que é o esquecimento.
A utilização do arquivo como forma de testemunho, de presença e representação do silêncio é um dos pontos
fundamentais das obras que se apresentam, encarando sempre o gesto de criação como um acontecimento não só
estético, mas fundamentalmente ético e político.
Toda a narração/acontecimento é um corte na realidade, é um enquadramento em que fragmentos nos revelam
pistas sobre uma ideia de um Todo que funciona precisamente por ser descontínuo.
Nunca o efémero foi tão importante para falar do Tempo como na contemporaneidade.
A construção da memória é uma ficção sobre a acção.
Importa pensar a representação da memória, em que o ficcional e o não ficcional se fundem para criar uma narrativa
possível que expõe, por oposição ao tempo acelerado que caracteriza o contemporâneo, um tempo suspenso que
procura reequacionar a relação do indivíduo com o seu espaço-tempo.
Estas visões singulares do indivíduo, ao falarem da dimensão simbólica desse espaço-tempo, confluem para a
enunciação de uma memória colectiva.
As situações apresentadas problematizam os conceitos de arquivo, de documento e de testemunho que pela criação
de narrativas individuais, pessoais ou anónimas, onde ficção e realidade coabitam um mesmo espaço de
significação, concorrem para criar uma possível memória colectiva, relativizando os conceitos de história e verdade.
Aquilo que nos faz acreditar num futuro é a certeza de pertencermos a um determinado tempo e lugar histórico,
geográfico, social, político e emocional. Contudo, numa era em que o futuro está sempre a acontecer, essa não
possibilidade de realização do presente traz-nos a evidente ruptura com a ideia de uma Memória, de um tempo em
devir que se realiza em cada um dos indivíduos.
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10. Desaparição: arquivo I, 2012
Instalação – (Museu FBAUP, Porto)
Recortes da Necrologia do jornal, “apagados” e aplicados na parede
14. O tempo da ideia (ou a ideia do tempo), 2012
Insatalação (Sputenik, the window)
Texto policopiado consecutivamente, 585 folhas A4
15. a ideia do tempo
A uma distância percorrida não corresponde uma medida exacta
de tempo, pois o tempo é medido numa outra unidade que não a
do espaço percorrido.
O que me interessa neste exercício é o tempo preciso que o
olhar demora a percorrer a ideia. O tempo da ideia. Esse tempo
não poderia, em absoluto, ser uma linha contínua que se agasta
na exacta medida em que a linha é percorrida, reduzindo-se o
infinito à progressão sem fim de instantes.
Esse tempo seria de uma outra natureza, onde a impossibilidade
de terminar o pensamento do infinito produz a infinitude da
própria ideia de instante. Cada instante seria em si o tempo,
e o tempo seria essa novidade sempre criada.
Mas existe uma impossibilidade de concretização da ideia do
tempo porque não pode a existência do tempo ser medida ainda
antes desse mesmo tempo ter sido acontecido. Porque o tempo se
constrói de memória; memória essa que já é em si uma outra
construção, alicerçada na experiência, no sonho, no desejo, na
vontade, nos sentidos e no entendimento. Este tempo tem a
duração de cada instante vivido e cada instante se derrama no
infinito desse tempo. E se por vezes sentimos que o tempo se
nos escapa por completo por entre os dedos, vezes há em que
este se arrasta como se não pudesse nunca ser acabado. Reside
porventura nesta oposição a maior questão sobre a mensuração
do tempo.
Acresce a impossibilidade última de construir o tempo da ideia
através da ideia do tempo. Porque para que o tempo da ideia se
meça é necessário que a ideia do tempo esteja já em si
concretizada em totalidade. Mas ao construir-se a ideia do
tempo haveria um espaço-tempo percorrido que não poderia ser
percorrido de novo, pois esse novo percurso seria já uma outra
ideia. E o tempo da ideia seria já a simulação desse tempo,
O tempo da ideia (ou a ideia do tempo) - texto
não o momento exacto em que a ideia, se formando no
entendimento, se pudesse mostrar.
19. o tempo a memória
Aquilo que sou hoje nunca poderá ser o que será A memória interessa, não como coisa morta, mas como algo que
amanhã; posso desejar e criar para este presente e continua em devir. Considero em devir um algo que está em trânsito
para o seu porvir, mas vivo na certeza absoluta que permanente entre planos diferenciados, mas que nunca pode ser o
não há nada que possa fazer para que o passado antes e o depois, pois aquilo que está em permanente movimento é
tivesse sido diferente. Posso sim, pensar esse um nómada, é o que acontece agora. Mas a questão reside em o agora
passado para o futuro, transformar essa angústia de não se referenciar apenas ao ponto exacto em que se encontra, pois
ter sido na fome de ainda ser e desse espaço- tempo as coisas existem porque foram criadas e para isso teve de existir
já vivido poderá brotar uma nova história um antes e as coisas existem na potência de poderem ou não poderem
ficcionada. Não importa meramente o que já foi mas o continuar a realizar-se e isso indica-nos sempre algo que está no
que desse foi ainda poderá vir a ser. adiante.
Existe um espaço de tensão entre o tempo ser o Tempo A memória (enquanto Tempo) é uma impossibilidade fenomenológica.
e as horas serem contadas em minutos, os dias serem
contados em horas, os anos contados em dias e os Quando brincava com a minha avó e imaginava que na sua cara
séculos em anos; e entre esse outro tempo, que existiam montes e vales à semelhança do sítio onde ela cresceu,
continua a ser o Tempo, mas em que as horas já não não havia como não sentir uma perda profunda quando me ela me
duram minutos e um segundo poder ter a duração do dizia que quem andou não tem mais para onde andar. E eu dizia-lhe
infinito, em que os anos poderiam ser quase que não enquanto lhe apertava os dedos das mãos, mas na verdade eu
impressões sobre o vidro da janela e com o bafo sempre conheci a minha avó já velha e roída pelo tempo.
poder desenhar neles como se não houvesse somente um Durante anos remoí essas palavras como se fossem grãos de onde se
antes e um depois. pudesse fazer farinha e dessa farinha pudesse sair algo parecido
com um pão ou um bolo. Mas dos grãos apenas nasciam mais grãos e
E que essa experiência do momento oportuno fosse o não havia forma de os poder moer e com eles moer essa perda
exacto momento em que percebesse que o ser tempo não constante.
se limita a ser contar o tempo e que a contá-lo o Esse grande absoluto de ter um caminho que se vai esgotando à
possa fazer como se não existisse uma linha óbvia medida que andamos é cruel e sempre me pareceu em criança que não
que transporta as coisas sempre em diante. deveria ser só dessa maneira. Um dia disse à minha avó que tal não
poderia ser verdade porque a Terra é redonda e por isso podíamos
andar de forma infinita. Mas da mesma forma que ela não concebia
que o Homem tivesse ido à Lua, estavam esgotados os meus
infrutíferos esforços de lhe explicar o imenso poder da gravidade.
E mesmo que ela pudesse imaginar as pessoas de pernas para o ar,
havia sempre um inultrapassável limite. Nenhum ser humano podería
aspirar a ser eterno como Deus pois seria um enorme pecado.
E enquanto a minha avó rezava para ter uma morte santa e os olhos
se lhe fechassem devagar eu cismava com um mundo ao contrário e
que as pessoas pudessem ser de forma infinita.
Cronologia (textos)
20. a palavra
o desejo
Existe um óbvio limite para o que pode
ou não poder ser explicado por palavras.
E, por um momento, permito-me admitir
que nada podería, em última instância,
ser explicado por palavras. Tudo o que
possamos conhecer advém da possibilidade
de o experienciarmos e a sensação de se
estar vivo ultrapassa qualquer forma de
linguagem.
Contudo, isto causa uma grande
perturbação na compreensão da criação do
mundo. Não no sentido literal da
formação do plano material mas sim na
definição imaterial das coisas. Até que
ponto poderá uma cadeira ser uma cadeira
se não existir a palavra cadeira?
E como poderá existir a cadeira se não
houver o pensamento da cadeira? E poderá
o pensamento acontecer sem nome?
E da mesma forma que não nos sentimos a
crescer, embora de forma óbvia isso
aconteça ao longo da nossa vida com
maior ou menor notoriedade, também não
conseguimos precisar o momento em que
pensamos. Porque realizarmos que
(à potência de ser corresponde em exacta
pensamos é já um outro acto que não
medida a potência de não ser)
aquele de termos pensado.
Cronologia (textos)
21. O olhar impossível, 2011
Instalação (Casa da Galeria, Danto Tirso)
Texto em vinil sobre parede e projecção de 1 diapositivo a
cores
22. (O OLHAR IMPOSSÍVEL)
Qual a distância concreta entre o primeiro e o último olhar? Entre ver pela primeira vez, entre gritos e choro, as
mãos suadas que seguram e a primeira palmada… e ver, num último bafo, a vida gasta, entre choro contido e as
mãos frias que seguram e são seguradas?
Qual a distância exacta entre tudo ver como se nada houvera antes e tudo ver sabendo que já se o viu e que
essas coisas vistas não são de fora, são a memória sempre a acontecer?
Há um tempo infinito entre ver tornar a ver.
Porque a cadeira onde me sento não é só uma cadeira, são todas as cadeiras e são todas as mesas e todas as
conversas e todos as palavras e todas as lembranças e todas as coisas juntas que se colam umas às outras e
não se desfazem com um meneio de cabeça e não se partem com o vento e mesmo quando durmo acontecem e
também isso é essa cadeira e nada nunca mais vai ser dessa forma profunda que é ver desse tamanho pequeno,
quando conseguíamos ver, do mesmo sítio e ao mesmo tempo, o que acontecia por cima e por baixo das mesas.
Mas no fim da vida é como se fora pequeno em grande, o corpo comido pelo tempo e foi o tempo que levou essas
memórias que agora não são peso, são os olhos mais abertos a ver o que está por dentro e não importa mais o
que pode acontecer que este já é outro lugar. Um tempo que agora pertence a outro sopro; o bafo pesado e último
traz o gosto desse momento em que se tocando o primeiro e o último olhar pudéssemos ver com um espanto
renovado a vida inteira e as coisas sempre novas, tudo o que vivi como se o sentisse pela primeira vez, não
sabendo que quem andou não tem mais para onde andar.
O olhar impossível (texto)
23. Deve e Haver, 2011
Instalação (Casa da Galeria, Santo Tirso)
Desenho na parede a lápis Viarco Olímpico e 20 fotografias 15x20 p/b
26. Portugal, 2011, 2011
Instalação (Galeria da Biblioteca de Santa Maria da Feira
Impressão digital a cores e a p/b (imagens digitalizadas de
manuais escolares antigos)
29. A avó mal comportada e avó bem comportada
Naquele dia podias ter dito e eu teria,
sem as dúvidas que hoje tenho, aceite que
existe algo para além do nosso corpo.
Mas tu eras calada e permanecias por teimosia.
Ao teu lado caminhavam os teus passos, zangados.
Tu ias pelo caminho como quem parte a lenha
para uma fogueira. Sem cuidado, quebrando os
galhos, consumidos em fogo e longos serões.
Os teus passos ainda vão zangados. Sem palavras.
Não há palavras que cheguem para explicar
aquilo que está vazio onde antes tanto havia.
Lembro com uma perfeição tal que receio ser
antes lembrança sonhada que a verdade do que
realmente foi… Tu sempre foste a avó mal
comportada; e de noite tu não rezavas como
outra avó.
Corroías a tua memória em vinho como quem
tempera as lembranças gastas e procura
dar-lhes sabor.
Quando morresses eras para ser sepultada
A avó mal comportada e a avó bem comportada, 2009 com um pipo para que não te faltasse alegria
Calcogravura (ponta-seca sobre papel) e texto no outro mundo.
dactilografado Foi assim que descobri que não é preciso
rezar a deus para se acreditar na vida eterna.
A avó mal comportada e a avó bem comportada (texto)
30. A avó mal comportada e a avó bem comportada
Não te conheço e tudo o que recordo são ficções imaginadas para que fosses
mais que um vulto pesado na minha memória consumida.
Imagino que estejas em tua casa e que o cheiro das coisas te consuma por já
não poderes nomeá-las com clareza. Como tu, tudo à tua volta envelheceu e a
doença foi tolhendo a forma das coisas até que agora é o vazio que toma o lugar
do que antes existia. E o vazio dói. Mas não o vazio de coisas que não existem
mas sim daquelas que não permaneceram. Imagino que tenhas umas mãos
velhas e usadas, e da mesma forma que os meus pés são sozinhos um com o
outro na minha cama, as tuas mãos são sozinhas uma com a outra na tua
solidão.
Sempre conheci a avó mal comportada, que insistia em calçar meias de lã
grossa nos chinelos e tinha cabelo como quem tem uma tempestade na cabeça.
Como quem não sabe o lugar próprio daquilo que sente e isso transbordasse
para fora de si. Tu eras como o túmulo das pessoas à tua volta porque sempre te
conheci pelas palavras fétidas de vinho que andavam lado a lado com a tua
presença. E o teu silêncio era teimoso contigo e insistia em ir calado para onde
fosses. E sei que não gostavas.
Tudo o que entre nós existe é esta forma de falar em que eu escrevo, sem tu
saberes, uma memória ressequida de ti. E lamento não saber mais e tudo ser
esta mentira.
Quando te amaciavam o cabelo e te compunham e te tiravam o penico de louça
que, com tanta devoção, te acompanhou toda a vida nas viagens que fizeste, tu
ficavas triste. E não era triste como quem chora, era triste como quem lamenta
ter tido asas uma vida inteira.
Quando era pequena desejava ser como a avó que dormia e falava sozinha
como quem falava com Deus.
Jesus, pensa em mim quando vou dormir e guarda a minha alma nas tuas mãos
para que, quando acorde, ela já não me pese. Rezo a ti a alma de todas as
pessoas que conheço, mortas e vivas, não sei se por esta ordem, e encomendo
os seus pecados para que sejam lavados. Na manhã seguinte tenho os pecados
limpos, mas não deixam de ser pecados.
Tinha medo daquela lista enorme de nomes que desfilava e escorria da sua boca
para a minha almofada. E eu tentava lembrar-me das Ave-marias que me
pudessem salvar daquela inundação de almas que se contorciam para caber no
meu lado da cama. E ela continuava imune ao medo imenso que eu tinha de um
dia ser apenas nome nessa lista e houvesse alguém que todas as noites rezasse
para que eu vivesse em paz, comida por vermes e pó, debaixo da terra.
A memória de um lugar é o espaço que sobra entre a existência do que
lembramos e aquilo que desejávamos ser verdade.
Entre as duas avós da mesma pessoa e a outra avó que rezava como quem
falava sozinha existia um fosso profundo que só existe quando não há nada que
Apossa preencher o lugar que ambas não ocuparam para chegar uma à outra.
avó mal comportada e a avó bem comportada,
2009
texto dactilografado
31. Preciso falar dos silêncios, 2011 (lnstalação, Galeria do IPSAR, Roma)
caderno escolar, texto dactilografado, recortes da Necrologia do Jornal de Notícias, fita-cola, mesa, cadeira, candeeiro, lista de nomes recortados
32. Preciso falar dos silêncios
Todas as histórias são feitas de silêncios que guardam fundo as palavras.
Guardam duro a memória de um algo que persiste quase ancestralmente. Penso
que fomos guardando por dentro ao longo da vida os silêncios que nos definem…
o silêncio da dor, o silêncio da ausência, o silêncio do medo, o silêncio da
vergonha. E o silêncio da morte. Quando penso nas pessoas não me consigo
furtar a estes silêncios, quase como se fossem mitos imortalizados na nossa
natureza.
Há pessoas que têm medo do silêncio dos que amam, as que receiam o silêncio
dos que odeiam. Eu tenho medo dos silêncios dos que ignoram, dos que não se
compadecem, dos que estão ausentes.
Os que nos amam têm silêncios doces, os que nos odeiam não conseguem ter
silêncios porque estão sempre pesados, mas os que estão ausentes têm sempre
um silêncio duro que caminha a par do nosso.
Faz-me pensar muito nas palavras que não dizemos e esperamos ter sempre um
tempo eterno para as dizer. Mas as pessoas partem, e deixamos de saber se nos
ouvem. Porque a vida eterna que nos prometem não parece ter palavras.
Texto presente no caderno da obra anterior
35. A sobrinha da Tia Beatriz
Quarenta e sete anos. Esta é a distância entre a infância da sobrinha da Tia Beatriz e a minha própria infância.
A minha casa, a casa dos meus olhos, a casa das paredes por mim riscadas vezes e vezes sem conta, a casa onde os sonhos foram
meus e de meus irmãos, os três sentados, as roupas inúmeras vezes cosidas e as palavras, também assim, remendadas pelas
mesmas mãos.
Antes de mim, a sobrinha da Tia Beatriz. Não conheci a Tia Beatriz mas ouvi, da boca gasta da sua sobrinha, que existiu uma Tia
Beatriz. A senhora viveu na minha casa e a sobrinha brincou nos mesmos canteiros de terra que eu, regou plantas iguais às plantas
que eu reguei, carregou pintos ao colo e também ela lhes deu nomes incompatíveis com a sua condição – as galinhas são para se
comer, tantas vezes ouvi enquanto as lágrimas me engulhavam na garganta.
Tempo emprestado
Quando penso na mesa à qual me sentava aos seis anos para jantar ainda conto cinco pratos pousados; vejo a caneca de plástico
azul que partilhava com os meus irmãos, a toalha castanha com renda banca, roída, a debruá-la, e as mãos grandes, multiplicadas,
imensas, de minha mãe.
Sou capaz de recuperar este momento milhares de vezes, de olhos abertos ou fechados, mesmo que as palavras não me cheguem
para sustentar o seu peso.
Esta presença da Pessoa sobre as coisas acontece para devolvê-las a uma outra existência, um tempo emprestado à memória e à
ruína daquilo que foi vivo. Ver é resgatar desse silêncio, ver é olhar de dentro para fora e falar de fora para dentro.
Não há nada que seja tão diverso como a natureza humana; todos somos de tamanhos e feitios diferentes,
tanto na parte de fora como na parte de dentro.
Passei muito do meu tempo a tentar perceber o que é ver. Ver realmente, para lá das camadas de pele e músculo das coisas.
Passando as veias, artérias e órgãos. Até chegar a algo parecido com uma alma. Durante esse longo processo, que há-de durar mais
que a minha vida inteira, permito-me desejar que esse ver não seja só científico ou técnico ou intelectual. E que não seja apenas com
os olhos, mas que possa usar os ouvidos, e as mãos, e a boca. E possa cheirar as coisas para as ver, e sentir-lhes o sabor em toda a
pele. Que ver seja um acto sensual, que seja para além do cérebro e da razão, mas que estes o reconheçam.
As demais palavras fomentam essa necessidade de perceber que as coisas, na sua integridade, têm de ser vistas e sentidas de todas
as formas possíveis, e até impossíveis. (Porque sonhar as coisas e para elas desejar é também vê-las.)
Textos presentes no caderno da obra
anterior
38. Tempo emprestado, 2011 (instalação, Galeria do IPSAR, Roma)
30 fotografias e letras de vinil
39. O tempo desagrega tudo, 2008 -2011
(instalação, Galeria do IPSAR, Roma)
5 textos dactilografados, 6 fotografias, fita-cola e
fotocópias das obras expostas
40. D. Alice
O tempo desagrega tudo.
O tempo manda a poeira cobrir as coisas
e parte os cântaros nas casas.
A água deixa de secar a sede, a água é
de barro e o barro é pó.
Os pés deixam de andar e os caminhos
de ser caminhados. E vem o tractor e
semeia nos carreiros e a memória esquece
o que lá existiu.
As fontes são monumentos e não dão de beber.
O tempo parte tudo e a memória esquece o que
viu.
A Dona Alice agora é uma vinha, já foi erva daninha
Alice já foi pó, antes e depois foi carne.
O tempo desagrega tudo.
O tempo desagrega tudo
O tempo desagrega tudo
41. D. Alice
As crianças eram como meninos Jesus
com um ranho contínuo a correr pelos
bibes. Sentavam-se nas pedras junto ao rio
desmanchando, sem malícia, os sapos e
rãs que encontravam.
Quando era o tempo das festas tinham
berlindes dos meninos que vinham da cidade.
Os dias passavam, sempre uns atrás dos
outros,
porque o tempo não anda ao contrário.
Quando fossem grandes iam aprender a ser
homens. As meninas continuariam
mulheres, não tinham de ir aprender.
O tempo desagrega tudo
42. D. Alice
“Apagaste essa candeia
Que estava no velador
Apagaste essa candeia
Que estava no velador
Agora vai-te deitar
Às escuras, meu amor
Agora vai-te deitar
Às escuras, meu amor.”
O tempo desagrega tudo
O tempo desagrega tudo
43. D. Alice
Quando findou o tempo, D. Alice
que já era velha, prestou as suas
e disse de sua vida.
Era nova naquele tempo e gostava de
cantar. Era moça.
“Anabela era linda e formosura
Era a moça mais bonita em todo o monte
Certa noite muito fria muito escura
Pegou na cantarinha e foi à fonte
Ao regressar a casa essa bela
Na fonte junto à azenha do moinho
Apareceu um lobo junto dela
Tapando-lhe a passagem do caminho
E os lobos nem sequer se incomodaram
Parece que eles até murmuraram
Que bela rapariga aqui passou
Se os lobos fossem homens, eu sei lá
Talvez se não pudesse arrepender
Que a tentação da carne é muito má
E há homens que são loucos por prazer.”
O tempo desagrega tudo
44. os dias de antes de ontem
Naquele tempo não nos podíamos atrasar para jantar, seis e meia em minha
casa. Meu pai chegava do seu ofício, como lhe chamava, e vinha sujo e
suado.
Antigamente chamavam-lhe arte ao acto de produzir estes objectos de uso
diário.
A água era fresca no barro, não havia frigorífico.
As coisas tinham outro sabor.
O tempo comeu a memória das coisas. Não há quem possa lembrar a
presença que
tinha o trabalho na vida das pessoas. O tempo existia para ser
permanentemente
ocupado por tarefas, obrigações e havia o prédio para cuidar.
Ao Domingo havia romaria, depois de todos os pecados perdoados nas
orações da
manhã.
O tempo desagrega tudo
45. Comunhão, 2010 Rosa Maria, 2010
Ponta-seca e Água-tinta sobre papel Ponta-seca e Água-tinta sobre papel
46.
47. Caderno a dois retratos, 2009
Instalação – Sala das máquinas da Garagem Maiauto
Desenho a giz, ponta-seca e água-tinta sobre papel
48.
49.
50. Desde pequena… ensinaram a orar por um anjo da guarda
que nos está destinado desde o primeiro ao último dia de
vida.
O anjo será tradicionalmente loiro carnudo, ocidental, criança
irrequieta brincando aos índios com Jesus, amigos desde a
infância do mundo.
A oração fala sempre da voz profunda mão funda que embala
o sono e o medo de não acordar.
Protegei-me anjo da guarda…
Deus fez-nos assim, barro dos barros, lama das lamas.
Vertebrados. Cientes da morte e tão cheios de esperança.
Cobardes.
À sua imagem e semelhança.
Odiamos porque Deus odiou e Deus é o nosso ódio dirigido.
É termos de ser perdoados a toda a hora por um Deus que
nos quis demasiado. Filhos pródigos.
Que nos prometeu a vida eterna sob o signo do Pai casmurro
e silencioso, do Filho escavado na cruz e do branco e burro
pombo que é o Espírito Santo.
E assim, Deus fez-nos ávidos de sangue, do seu filho em
sangue… do amor impossível, da redenção da carne, do seu
filho em sangue.
Corpo de Cristo, este é o sangue do meu filho.
Tomai e bebei-o!
Deus pariu a discórdia entre os homens porque os fez iguais a
seus olhos.
Se Jesus não tivesse morrido e se transformado em imagem
cravada na cruz, lenho pendurado no prego por cima da
porta, Jesus estaria no céu.
Herança, 2006
Instalação, Calçada de Monchique
Texto do catálogo da exposição 10 artistas licenciados à procura de emprego, MDF, papel autocolante, frascos de vidro, sangue animal, tecido, elástico
Calçada de Monchique, Porto
51.
52. Arquivo, 2005
Instalação – Centro Comercial Alexandre Herculano
Fotografias, cadernos, álbuns, textos, mesas e outros
objectos
54. O lugar da memória é o lugar onde as pessoas se ocupam daquilo que as faz
viver.
Há um lugar que é constantemente redefinido pelas acções de quem o ocupa.
Resistência perante a passagem do tempo.
As obras apresentadas de seguida questionam o espaço enquanto construção
colectiva, que se faz pela operacionalização das memórias e dos actos
quotidianos. Espaço público é aquele que pertence à nossa esfera de
referências, do qual partilhamos uma história e no qual somos história e
memória desses lugares. O espaço onde nos é permitido acontecer.
Importa, mais uma vez, a génese ética e política do gesto de criação, na
definição de um espaço de acção que põe em evidência as fracturas do
contemporâneo – que nos fala do resíduo, do fragmento, da periferia por
oposição a um centro, que nos narra o inexprimível, o silêncio e seus ruídos.
A efemeridade e o precário como condição do contemporâneo.
(nada permanece mais do que o tempo exacto da sua existência. Importa reflectir que
presença é essa, que se materializa e desmaterializa por evocação da memória)
56. Lembras-te de mim?, 2003
Intervenção no espaço público, Porto (Rua Duque de Loulé)
Papel autocolante, tinta em spray
Sussurrei-te… perto e sem palavras, 2004
Intervenção no espaço público, Porto
Papel autocolante, tinta em spray
57.
58. El carpio, 2004
Instalação no espaço público, El Carpio, Espanha
Cartazes da Semana Santa, papel dourado, letras decalcáveis, papel manuscrito, cola
59.
60.
61.
62. Cidade de Boas Festas, 2004
Intervenção no espaço público, Porto (Campo 24 de Agosto)
Impressão digital 3mx4m, cola
63.
64. Cidade de Boas Festas, 2004
Intervenção no espaço público, Porto (Campo 24 de
Agosto)
Impressão digital 3mx4m, cola
65. Sopa dos Pobres, 2005
Intervenção no espaço público, Porto
Cartazes, cola
66. Vivenda Silva, 2005
Intervenção no espaço público, Porto
Azulejo, tinta de vidro azul e amarela, cola
67.
68.
69. A arte é uma ferramenta para mudar o mundo, 2007
Intervenção no espaço público, Porto
Caderno de textos, stencil, tinta em spray
70. A arte é uma ferramenta para mudar o mundo, 2007
Intervenção no espaço público, Porto
Caderno de textos, stencil, tinta em spray