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S. F. ARSKY

O Evangelho
Segundo Maria(*)

(*) Maria, nome latino derivado do hebraico Miryam ou do aramaico
Maryam.
Livro 1
“Recebe este escrito para que saibas
como preservar os livros.
E deverá colocá-los em ordem
ungí-los com óleo de cedro
e guardá-los em vasos de barro no lugar indicado”.
TESTAMENTO DE MOISÉS

“Embora muita coisa seja estranha
demais para se acreditar,
nada é estranho demais
que não possa ter acontecido”.
THOMAS HARDY
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PALESTINA, ANO 46 D.C.

O mês de Sivan(1) estava chegando ao fim e a hora décima já havia terminado há algum tempo. O pôr do Sol chegaria logo, não iria se demorar para
que, logo depois dele, a província da Galileia fosse submergida em completa
escuridão. O grupo de quatro pessoas, uma mulher e três homens, todos ofegantes e suados, apressou o passo para sair do compacto bosque formado por
terebinto, que, escorrendo pela casca grossa das árvores, brilhava toda vez que
captava um pouco da luz que filtrava por entre a ramagem. Nos dias anteriores houve vezes em que a estrada se mostrara hostil. No começo, depois que
largara a região, ás margens do Yam, e passaram pelas desgastadas pedras
da estrada romana que margeava o lago de Kineret(2) e penetravam na fértil
planície, ziguezagueando por entre plantações e hortos até chegarem ao pé de
uma montanha, num esplendido vale. A estrada então se enfiou pelas pedras,
margeada por paredões verticais e nus, ás vezes de um tom dourado e cansativo
por causa do sol inclemente que neles batia e, outras vezes, de um triste arroxeado furta-cor porque o caminho se entortava numa curva pronunciada, com a
sombra banhando as rochas. A mesma via tortuosa e estreita que margeava o
desfiladeiro ao pé do vale, obrigando os viajantes a atravessarem passagens
difíceis, íngremes e pedregosas, aclíves pronunciados que dificultavam a mar(1) Sivan corresponde aproximadamente aos meses de Maio-Junho. O calendário judeu é
do tipo lunar e consiste de 12 meses calculados de acordo com a lua. Seguindo ao costumes
bíblicos os meses são contados a partir de Nisan. São os seguintes: 1-Nisan 2-Iyyar 3-Sivan
4-Tamuz 5-Av 6-Elul &-Tishri 8-Chishvan 9-Kislev 10-Teveret 11-Shevat 12-Adar.
(2) Lago de Kineret, ou Mar da Galiléia.

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cha, mergulhava, em certos trechos, numa mataria cerrada e selvagem, envolvendo-os num calor opressivo. O bafo quente do local obrigava os poros a segregar um suor abundante, que colava parte da roupa á pele e escorria pelo rosto e
pelo corpo. Depois das rochas e penhascos veio a planície outra vez, agora
coberta de arbustos baixos e robustos que margeavam a estrada de terra socada por milhares de pés peregrinos que por ali passaram durante muitos anos.
Encontraram aldeias pobres e laboriosas durante a jornada, passaram por
camponeses vestidos com túnicas grosseiras cingindo os rins, cabeças protegidas por panos coloridos, trabalhando nos campos entre palmeiras que balançavam ao vento. O terreno do caminho havia continuado pedregoso, batido, mas
invadido por uma vegetação rasteira, fazendo com que o viajante desavisado
tropeçasse no emaranhado que cobria o chão. Ás vezes, olivais verde azulados
dominavam o cenário que margeava o caminho, e se perdiam no horizonte com
suas enormes árvores retorcidas, a galharia rugosa se projetando para o céu.
Outras vezes, trigais ondulantes e dourados coloriam o caminho, sobressaindose no terreno avermelhado. Mesmo quando o caminho estreito se transformava
em uma estrada larga, ainda o caminhante sofria os efeitos de um leito erodido, esburacado e mal-tratado.
Durante o trajeto os viajantes encontraram algumas das muitas caravanas que cruzavam diariamente a Palestina, em direção à Síria e Fenícia.
Elas passavam ocupando toda a largura da estrada, esparramando-se pelas
margens e invadindo os campos circunvizinhos. Deslocavam-se lentamente, preguiçosos, sem pressa, atropelando os que vinham em sentido contrário. Eram
grandes comboios de homens, mulheres e crianças, dromedários, búfalos de
grandes chifres, cabras, asnos e mulas, todo este conglomerado exalando um
odor acre e forte misto de cheiro de animais e suor. Grandes carretas seguiam
os comboios, com suas rodas de madeira gemendo na estrada, puxadas por
bois vigorosos. Sacolejavam barulhentas pelos buracos da estrada ou cheias
de mulheres com rosto oculto por longos véus e crianças ruidosas, ou carregadas
de mercadorias acondicionadas em grandes cestas de vime, tonéis de madeira,
ânforas de barro e fardos. Assim que a caravana acabava de passar, deixava
atrás de si uma imensa nuvem de pó que sufocava os andarilhos, provocando
tosse e mal estar.
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Quando os viajantes penetraram na sombra acolhedora do bosque, embora ainda houvessem pedras e aclives dificultando a jornada, o caminho pareceu
abrandar-se. Talvez fosse a atmosfera tranquila, o odor da resina dos terebintos, a sombra das copas acolhedoras, os raios de luz filtrando-se obliquamente através da ramagem, os troncos seculares que abrigavam mas não oprimiam. Mesmo suados e ofegantes, os viajantes sabiam que estavam muito próximos do seu destino, a aldeia de Nazaré. Felizmente Iavé havia sido misericordioso e os havia poupado dos desagradáveis encontros com as rudes patrulhas romanas, com seus soldados desafiadores que gostavam de ultrajar e insultar os judeus viajantes.
Os quatro marcharam por mais meia hora pelo mesmo caminho que cortava o bosque e descia uma encosta suave. De repente, o bosque se abriu e avistaram lá embaixo a aldeia aninhada no exuberante verde que cobria várias colinas a seu redor, um tapete de vegetação que refletia levemente o resto de luz
daquele dia. Tinham finalmente chegado ao fim da jornada e não passariam
aquela noite ao relento. A mulher, cansada e abatida, apoiou-se no homem que
parecia ser jovem, de cabelos encaracolados. Procurando auxílio para vencer
os últimos passos, deixou o bosque e olhou a vila. Não tinha mais a juventude
que deixa as pessoas se sujeitarem a uma exaustiva viagem a pé, como a que
tinha feito, embora já fosse uma viajante experimentada, mas uma força de
vontade férrea tinha se manifestado nela a fim de executar aquele empreendimento. O homem jovem amparou-a, segurou sua trouxa de viagem, ajudando-a a
transpor os poucos metros que faltavam para que ela pudesse contemplar a
aldeia. Fora uma penosa travessia desde as margens do mar de Tiberíades,
onde estava parada há alguns meses.
Contemplando Nazaré, falou com voz cansada e ofegante:
— Vamos descansar um pouco, por favor. Acho que temos algum tempo
antes que escureça. Os outros concordaram e sentaram-se na relva, depositando
suas bagagens no chão e procurando recobrar as forças.
Ismael, o mais baixo do grupo não ficou muito tempo estirado no chão ao
lado dos companheiros. Era pequeno e ruivo, com pernas grossas e batatudas
escondidas sob a túnica pobre e escura, de cor indefinida, já desbotada pelo
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uso, cingida por uma corda amarrada à cintura. Duas pontas de tamanhos
diferentes caiam ao longo da sua vestimenta. Ismael era um monge terapeuta,
originário de um mosteiro essênio no Monte Carmelo, na Galileia. Viajava
constantemente, parando muito pouco nos lugares onde passava pois, como terapeuta externo, cabia-lhe a missão de viajar sempre e entregar-se franca e totalmente à prática da caridade ao próximo, ajudando os necessitados, curando
enfermos, consolando aflitos e, no meio da prática de tais virtudes, espalhando
as luzes das verdades espirituais de sua Fraternidade.
Contudo, a viagem que Ismael estava empreendendo naquele momento de
sua vida, colocava-o fora de suas atribuições normais e rotineiras. Era também
um sábio que falava e sabia escrever em várias línguas, além do aramaico. Era
mestre na língua dos romanos, dos gregos, dos fenícios, dos egípcios, dos celtas,
dos árabes com seus vários dialetos e manejava com perícia os vários alfabetos,
as letras mais difíceis, os símbolos mais complicados.
Ismael era o único filho de uma família cujo chefe era descendente do
ramo de Davi. Era de Betânia, na Judeia e, ainda criança, viu sua mãe
definhar em cima de uma enxerga e morrer. A lei judaica estabelecia que o pai
de Ismael poderia se casar novamente, um arranjo que seria satisfatório para
ele e a nova esposa, e dava ao pequeno órfão uma mãe. Mas, o pai de Ismael
não era um judeu ortodoxo comum. Pertencia a uma Fraternidade essênia(3) que
frequentava muitas vezes ao ano. Por isso, nem mesmo quis ir ao templo e
exercer o direito que lhe cabia como um viúvo descendente de Davi e pai de
família, de trazer de lá uma mulher para sua casa. Ele tinha a função de
(3) Fraternidade essênia — seita religiosa no final do período do Segundo Templo. Sob o
ponto de vista religioso, tinham crenças e costumes próprios. Acreditavam na imortalidade
da alma, na recompensa e na punição mas não acreditavam na ressurreição física. Levavam
uma vida comunal abstêmia e se opunham à escravidão e à propriedade privada, eram, na
sua maioria, celibatários e tinham na agricultura sua ocupação principal. Opunham-se a
sacrifícios de animais e só ofertavam flores e óleos. Havia um período de iniciação de 3 anos
para os noviços que, depois de admitidos juravam não revelar os segredos da seita. Nada se
sabe a respeito deles depois da destruição do Segundo Templo. A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto poderá elucidar fatos com o cristianismo nascente. Já há algumas publicações e estudos feitos sobre estes documentos que ainda estão sendo analisados.

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hospedeiro dentro da comunidade espiritual em que ingressara, e a que pertencia, cabendo-lhe a tarefa de dispor para que os terapeutas externos, em suas
eternas perambulações, tivessem boas acomodações quando visitassem Betânia. Providenciava uma cama decente e refeições fartas durante a estadia deles. Assim, como viúvo, preferiu dedicar-se às suas tarefas e abdicar de uma
nova esposa. Levou o filho Ismael até o mosteiro do Monte Carmelo, numa
penosa viagem em que o pequeno teve que seguí-lo à pé com seus passos curtos.
Lá Ismael havia sido entregue como aprendiz e assim foram cortados de um
só golpe, todos os laços que prendiam o menino a sua gente.
Nos primeiros anos de sua iniciação, havia ficado praticamente isolado
a fim de esquecer as regras e procedimentos sociais da sociedade judaica. Aos
poucos, a medida que crescia, foi-se integrando na vida austera da comunidade
monástica e adotado pelos monges que acabaram de criá-lo.
Ali cresceu Ismael, se inteirando de todos os conhecimentos essênios, de
sua filosofia de vida. Os monges viviam afastados do mundo, enclausurados
nos mosteiros, haviam vários por toda a nação. Discordavam abertamente do
clero judaico que, segundo eles, havia distorcido os ensinamentos de Moisés.
Fariseus ou Saduceus, todos eram combatidos pelos monges e pelos integrantes da Ordem Essênia.
Os monges essênios postulavam o domínio das paixões, seguiam a escola
pitagórica e eram celibatários convictos. Mas, nas comunidades fora dos mosteiros, homens e mulheres conviviam em vida familiar, com regras para o matrimônio e educação dos filhos. Aí eram pacifistas mas, quando necessário, sabiam lutar, e eram hostis às autoridades romanas e aos que compactuavam com
ela. O povo essênio vivia em comunidades, juntos, e possuíam tudo em comum.
Quanto aos judeus, também viviam em função das Leis Mosaicas(4) mas
elas eram habilmente manejadas pela classe sacerdotal que exercia grande
influência na vida da nação. Ortodoxos, fariseus e céticos saduceus guiavam e
(4) Leis Mosaicas — código de leis dado ao seu povo pelo patriarca Moisés.

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manobravam o povo, que não se afastava de sua grande devoção aDeus. Criando
dentro das nações da Fraternidade do mosteiro do Monte Carmelo, à Ismael foi destinada uma função muito especial. Os essênios eram grandes praticantes da medicina e tinham entre eles o equivalente judaico dos ascetas de Alexandria conhecidos como terapeutas. Também chamados terapeutas, Ismael
tornou-se um deles e exercia um intercâmbio direto com o mundo exterior. Desde pequeno havia demonstrado dons especiais e grande interesse nas artes médicas. Por isso, aos doze anos foi consagrado como servidor da Fraternidade
num ritual simples e cheio de simbolismo, durante uma reunião em que lavou as
mãos numa bacia de louça branca, afirmando assim o compromisso de jamais
sujá-las com atos indignos. Depois da ablução, o neófito Ismael comprometeu-se com palavras, pedindo também o auxílio divino para o cumprimento de
seus propósitos, postando-se em frente de uma lâmpada. Daquele dia em diante, Ismael, com a permissão da Ordem, passou a usar o gesto que o tornaria
conhecido como monge, cerrando a mão direita, com o braço levantado, e apontando o indicador para o céu.
Começou sua aprendizagem nas artes mágicas de curar, no conhecimento
de ervas e substâncias, nas técnicas médicas. Depois de servir alguns anos
dentro do mosteiro, provando ser digno de pertencer à Fraternidade, numa
cerimônia simples, lavou o rosto, além das mãos e selou definitivamente seu
compromisso de usar seus sentidos conforme as regras do mosteiro do Monte
Carmelo. Passou então a servir seu semelhante no mundo exterior.
Por toda a Palestina, pessoas ligadas a essa Fraternidade abrigavam
e proviam os monges em suas andanças. Todos sabiam da existência dos Mosteiros e dos homens simples e virtuosos, que guardavam a Lei, que se vestiam de
branco, não bebiam vinho, não comiam carne e não se deitavam com mulheres.
Também todos conheciam as cidades essênias perto do Mar Morto,
onde os homens não eram celibatários mas eram zelosos guardiães da Lei e
muito virtuosos e pios.

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SÃO PAULO, 1987

O salão do Museu de Arqueologia da USP, o Museu do Homem,
como é chamado, fica no terceiro andar de um dos muitos prédios do
campus. É uma sala bem iluminada, com compridas estantes de vidro.
Por causa da luz do sol, as persianas precisam ser abaixadas logo
depois das dez horas da manhã para evitar, principalmente, que os
artefatos indígenas fabricados com penas e palhas, se desbotem. As
vitrines são muito bem arrumadas, com cartões fornecendo informações de cada item ao visitante e extremamente limpas. A faxineira pernambucana que cuida da limpeza, uma mulher pequena e franzina,
funcionária tempo integral, gosta de manter tudo na mais perfeita ordem e limpeza.
O museu é muito pequeno. O salão de exibição, o depósito, a sala
de classificação e de limpeza de peças, a sala do arquivo, a sala de
administração com seu banheiro particular e outro pequeno banheiro.
Nunca houve verba para ampliá-lo, e pode-se dizer que a existência
dele é um luxo dentro do departamento.
Em setembro de 1987, três funcionários cuidavam do Museu: a
faxineira pernambucana, um rapaz negro de corpo atlético e Míriam
Weissmann diplomada pelo Curso de História da Universidade.
Míriam Weissmann, com especialização e mestrado em Povos Orientais, levava sozinha o museu. O rapaz negro vivia em permanente
licença para tratamento de saúde, apesar de seu corpo atlético, a faxineira pernambucana pouco conseguia fazer além de limpar. Depois
que terminou o seu mestrado e sua tese de doutoramento, ela não
quis se dedicar à carreira docente. Não que lhe faltassem convites.
Um antigo professor, Tito Lubonski, orientou-a durante a preparação
— 10 —
de sua tese e fez vários convites para que ela iniciasse a carreira no
seu departamento, como assistente. Míriam rejeitou a oferta. Não era
aquilo que ela queria e, se ficasse comprometida com uma carreira
universitária, seus sonhos teriam que ser esquecidos. Optou, na época pensou que fosse temporário, pelo cargo de funcionária da USP,
encostada devido seu curriculum no Museu de Antropologia onde cumpria o horário de trabalho exigido. Desanimada, via que o temporário
estava se virando permanente e, que a oportunidade esperada e sonhada por ela estava se tornando uma quimera.
Era quase meio dia, hora do almoço, num dia quente da primavera paulistana, um clima já de quase verão, embora a estação estivesse
ainda longe. Míriam levantou-se da escrivaninha onde estivera sentada nas últimas duas horas, planejando uma exposição de peças do
Alto Xingu para o saguão da Agência Butantã do Banespa. Levantou
os braços, espreguiçando-se, e calçou o tênis regata que tinha tirado
dos pés enquanto trabalhava. Era uma moça pequena, baixinha e rechonchuda, sem ser gorda. Tinha os cabelos cortados bem curtos e,
os cachos com reflexo dourados emolduravam um rosto redondo de
olhos azuis escondidos atrás de óculos de aros escuros, nariz pequeno e lábios carnudos que pareciam muito macios. Parecia uma menininha embora já tivesse chegado aos trinta e quatro anos. Míriam nunca havia sido casada. Nem tampouco havia amigado, juntado ou vivido na companhia de algum homem. Tivera um caso de amor ardente e
mal-resolvido, ainda pendente, com um assistente da cadeira de Antropologia Cultural, casado e sem a mínima vontade se separar da
mulher e dos filhos. Até aquela tarde de primavera que mais parecia
verão ela só estava seriamente comprometida com seus livros e sua
vida intelectual. Os homens não se sentiam atraídos por ela e ela não
fazia nem um pouco de esforço para atraí-los. Se fosse vaidosa poderia ser considerada uma garota atraente mas as roupas que usava
eram sempre de baixa qualidade, muito simples, quase sempre jeans,
camiseta e tênis, sempre sem um pingo de maquilagem que poderia
esconder as sardas e realçar sua boca e seus olhos. Seus óculos de
armação escura já estavam pendurados no nariz há mais de cinco anos
e eram os únicos que ela tinha. Míriam gastava tudo o que ganhava,
praticamente todo o seu salário, em livros. Importados ou comprados
nos sebos onde era assídua frequentadora, em inglês, francês, alemão ou italiano, eles eram a coisa mais importante de sua vida. Não
havia mais lugar para estocá-los dentro, de sua casa, estavam por todos os lados, em todos os cômodos.
— 11 —
Depois de uma boa espreguiçada, Míriam passou um pente nos
cabelos e gritou:
— Raimunda!
A faxineira se materializou na frente dela, pronta para atendê-la.
Raimunda adorava a moça, a patroa, como a chamava. Trabalhavam
juntas há cinco anos naquele lugar sossegado e sem muito movimento o que lhes dava a oportunidade de muita conversa e longas confidências, troca de conselhos e alguma ajuda mútua.
— Pronto, D. Míriam, já sei, vai almoçar.
— Vou indo. Hoje vou sair do campus para variar um pouco. Não
agüento mais a comida daqui.
— Porque a Senhora não vai num tal de vegetariano que tem lá
na Teodoro? Ouvi dizer que é danado de bom. Comida fina.
É uma boa ideia, concordou Míriam. É. Acho que vou para lá.
Qualquer coisa é bom para variar e ficar livre da comida horrível do
Biafra.
—

O restaurante do campus, onde comiam os alunos, professores e
funcionários tinha sido apelidado de Biafra em homenagem aos africanos desnutridos e realmente fazia juz ao nome.
Raimunda declarou com evidente satisfação:
— Pode ir sossegada, D. Míriam. Eu tomo conta de tudo daqui.
A faxineira não comia em restaurante. O salário pequeno e cinco
filhos em casa para alimentar obrigavam-na comer uma marmita fria
sempre com os mesmos ingredientes como recheio: arroz, feijão, farinha e ovo frito. Ás vezes ela variava, geralmente logo depois de receber o contra-cheque, com umas finas rodelas de tomate e uma ou duas
folhas de alface que murchavam abafadas dentro do recipiente fechado. Quando Míriam tinha sua carteira mais recheada e podia fazer-lhe
uma gentileza, pagava um comercial com carne para a faxineira. Também trazia sempre de casa sobras do jantar para reforçar a marmita
de Raimunda.
Míriam saiu do prédio com as alças da bolsa atravessadas no corpo e tomou o ônibus na avenida. O campus da universidade foi desfilando para os seus olhos, alegrando-a, mesmo conhecendo cada pedaço dele, cada árvore, cada prédio, cada flor. Era um belo lugar, mui— 12 —
to agradável. Avenidas amplas ladeadas por arbustos e flores bem
cuidadas, bosques aprazíveis, cada prédio dentro de um jardim, sem
muros, o verde do campus brilhando sob a luz do sol do meio dia. Não
foi difícil encontrar o restaurante. Estava bem cheio, era hora de almoço de todo o comércio e dos escritórios que lotam os prédios daquelas
redondezas, mas havia vagas nas mesas. O sistema usado era simples. Na entrada recebia-se um tíquete para ser pago na saída e podia-se escolher o prato da preferência na mesa fria onde saladas verdes e coloridas esperavam que o freguês se servisse em outra mesa
especial, um rechaud, acomodando os diversos pratos quentes, sem
nenhum tipo de carne.
Com um prato bem sortido na mão, Míriam olhou para o lado esquerdo. Lá estavam as janelas dando para a rua, escancaradas, deixando entrar uma leve brisa junto com o ruído dos carros e ônibus. Sentado sob uma janela aberta para a rua, estava o Professor Tito Lubonski,
atrás de um enorme prato de folhas verdes.
— Posso sentar-me aqui, Professor? — perguntou Míriam chegando-se perto dele.
— Que prazer, Míriam Weissmann, minha ex-aluna predileta. Façame companhia, respondeu Tito.
— Enjoei do Biafra. Vim experimentar a comida daqui. É um pouco distante mas, se valer a pena, fico freguesa.
— É boazinha. Dá para agüentar se agente não vier todos os dias.
Há outro do tipo pelas redondezas.
Míriam sentou-se em frente do homem com seu prato variado.
Tito era um homem de meia idade, calvo, muito magro. Trabalhava na
universidade há muitos anos como professor do Departamento de História Antiga, e era detentor de muitos diplomas de cursos feitos no
exterior. Passara uns anos na Sorbonne dando aulas como professor
convidado e tinha algumas fama dentro da comunidade universitária.
Era pessoa simples e modesta apesar da imensa bagagem cultural
que trazia com ele. Falava e mastigava ao mesmo tempo:
— Tenho tido propostas de trabalho fora do Brasil, mas vou ficar
por aqui mesmo.
— Ouvi dizer que o Senhor vai para o Departamento de Publicações, para a Imprensa Universitária. É verdade? perguntou ela.
— 13 —
— Verdade, respondeu sem parar de comer. Começo amanhã a
chefiar a coisa por lá. Quero publicar só coisa boa, nada do lixo que
vem sendo impresso nestes últimos tempos.
— Parabéns, professor, cumprimentou ela com sinceridade. Tenho certeza que fará um trabalho maravilhoso.
— É, falou Tito, vou tentar fazer possível. Gosto disso.
E emendou, trocando de assunto:
— Como vai o seu trabalho no museu?
— Uma merda. Não agüento mais manusear cacos de cerâmica,
pena de cocar de índio, esqueleto de urna funerária. O Senhor sabe
que não é isso que eu queria para mim.
— Bem, disse ele, foi descoberto um sítio arqueológico em Araraquara. Parece que um fazendeiro passou o trator por uma área nunca
plantada e desenterrou uma urna funerária. Se você quiser pode ir
trabalhar lá.
Míriam bebeu um gole de suco e demorou para responder.
— Esquece. Já tive muitas oportunidades de desenterrar cacarecos indígenas. Não quero mais.
Ela tentou mudar de assunto mas a conversa foi-se esvaziando e
os dois continuaram comendo em silêncio, cada um mergulhado nos
seus próprios pensamentos. Levantaram-se mais de uma vez para
encher os pratos. O assunto parecia definitivamente esgotado quando
o Professor perguntou de repente:
— Míriam, o que você acha de trabalhar de verdade onde sempre
você desejou, em Israel? Escavações...
— Tá falando sério? É o que sonhei fazer toda minha vida. Porque
o Senhor está falando nisso? Acha que tenho chance?
Ela falou de pressa, sem tomar fôlego, parecendo estar sendo
sacudida por uma onda de entusiasmo.
— Calma, mocinha, riu Tito, há uma chance sim.
Míriam segurou as mãos dele:
— Como, por favor, me diga como. Penso nisso desde menina.
— 14 —
Ele continuou rindo da aflição dela.
— Eu sei que você deseja isso, mas deixe-me contar, calma.
Ela suspirou, endireitou o corpo procurando prestar atenção.
— Estou ouvindo, bem comportada, mestre. Pode seguir adiante
e demonstrar o que tem escondido no fundo do baú.
— A ideia não me ocorreu agora, disse Tito. Eu já havia prensado
nisso, mas a correria, a empolgação do novo trabalho na imprensa,
me fez deixar de lado outros problemas, mesmo sabendo que o seu
real interesse é a Palestina. Bem, há dois dias recebi uma carta de um
amigo meu, da Inglaterra, que esta indo para Israel.
— E daí? perguntou Míriam.
— Daí que pensei em você porque ele está com um enorme subsídio e financiamento para colocar em andamento uma escavação que
está parada, desativada ou ainda não começou, não sei bem ao certo,
creio que perto de um lugar chamado Bherfar’ham. Acho que entre
Bhefar’ham e Kfar Hassidi.
— Tenho lido muito a respeito de escavações feitas em Israel,
comentou Míriam. Todas elas estão sob comando de arqueólogos pagos por judeus americanos cheios dos dólares. Não li nada a respeito
de escavação parada ou para começar.
— Bem, parece que esse tell nada tem a ver com os tempos de
Cristo, o que está sepultado é um enigma, disse Tito sem dar muita
atenção ás palavras dela. A carta que recebi...
Míriam interrompeu o Professor:
— Li alguma coisa recentemente, notícia muito pequena, a respeito da descoberta de ruínas bíblicas do Porto de Kefar Naum. A seca
da região foi tão grande que fez com que o Mar da Galileia recuasse.
Nas escavações na beira dele só haviam encontrado vestígios da época bizantina. Agora vão mergulhar e achar o resto mais antigo da cidade. É disso que o Senhor está falando?
— Claro que não. Você não prestou atenção? disse Tito. É outra
escavação. Mas vão jogar muito dinheiro nela. Aliás estão despejando
dinheiro em Israel, dólares. Toda Israel fervilha de sítios arqueológicos
em atividade.
— 15 —
— Em compensação, meu caro Professor Tito, quando acham um
sambaqui por aqui ele se perde por falta de verbas. Tratores arrancam
o calcário para vender como adubo. Os cofres públicos são fechados
para nós e não há investimentos particulares para qualquer atividade
arqueológica. A de Araraquara, é uma exceção...
— Pois é, concordou Tito, você tem toda razão. Também, você já
ouviu falar de índio milionário que queira achar vestígios de seus antepassados? Você sabe que são os judeus milionários americanos que
estão financiando e despejando dólares na velha Palestina.
— Por isso fico com os meus livros, minhas revistas que recebo
do Instituto Central de Relações Culturais de Jerusalém — tenho uma
amiga lá que me manda todas — e fico esperando uma oportunidade
pra me mandar pra fora.
— Bem, vamos voltar ao nosso assunto anterior, disse Tito cruzando os talheres e os braços em cima da mesa. Posso escrever para
Mark Eitelberg e pedir que arranje um lugar para você na equipe que
está formando. Quero um curriculum seu em inglês, pode arranjar?
— Claro, respondeu ela. Já tenho pronto esperando uma chance.
Mas como entrarei em contato com o seu amigo e porque ele vai me
colocar no projeto?
— Bom, vamos por partes. Você terá que encontrá-lo em Londres
caso tudo seja acertado. E se agüentar por lá até que comece o trabalho em Israel, dentro de quatro meses eu acho.
— Eles, ou a fundação que está financiando o projeto mandariam
um adiantamento, para a passagem, custos de viagem, manutenção,
o Senhor sabe...
— Suponho que não, respondeu Tito. Você terá um mês e meio
para providenciar a quantia necessária para suas despesas.
— Não dá. Sou dura. Não tenho um puto dum tostão guardado e
ganho uma mixaria na merda da universidade.
Tito soltou uma gargalhada gostosa. A franqueza da moça sempre fora um ponto a favor dela.
— Você tem um tempinho para vender seus cacarecos, arranjar
um financiador, sei lá. Não vai precisar de tanto assim. Uns cinco mil
— 16 —
dólares, eu acho...
— Falar é fácil, retrucou Míriam. Ah! Me esqueci de meu velho pai
judeu. Todo judeu velho tem dinheiro escondido. Quando eu ficar velha terei uma pilha de ouro ou de dólares.
Os dois riram da piadinha.
— Bem, continuou Tito, Mark Eitelberg é meu amigo há muitos
anos. Depois da guerra éramos crianças judias sobreviventes do holocausto. Eu vim para o Brasil morar com uma velha tia que me acolheu,
ele seguiu para a América. De lá para a Inglaterra. Mas temos mantido
contato todos estes anos, nos visitando-os sempre. Quando fiquei na
França nos encontrávamos sempre. A mulher dele foi irmã de minha
mulher, o que nos torna meio parentes além de tudo. Foi, porque morreu de câncer há algum tempo. Se eu advogar em sua causa, o que
não é favor nenhum pois conheço sua capacidade, seu preparo, tenho
certeza que ele me atenderá.
— Bem, Professor Tito, aceito sua oferta. Vamos esperar e pagar
para ver. Agradeço por querer me tirar das mão dos índios e me jogar
para os hebreus. Afinal, é de lá que eu vim...
— Ora Míriam, assim que eu tiver em mãos o seu curriculum, mando a carta. E ficaremos aguardando a resposta.
Raimunda levou a papelada de Míriam para Tito Lubonski, já no
prédio da imprensa. A arqueóloga não pensou mais no assunto. Não
pensou, embora o desejasse muito, que aquela proposta, surgida entre duas garfadas de legumes, pudesse se concretizar. Almejava mais
do que nunca sair do quotidiano sem sentido em que se via metida até
o pescoço, para trabalhar naquilo que sonhava fazer e estava se preparando para fazer desde que era criança. Para falar a verdade, desde
o dia que conhecera o Rabino Abraham Jacobinsky.
Também Abraham Jacobinsky nunca pode esquecer, enquanto
foi vivo, a menina curiosa que, sentada á porta de entrada de seu apartamento, espionava a mudança que estava acontecendo no mesmo

— 17 —
andar em que ela morava.

—3—

PALESTINA, ANO 46 D.C.

Ismael, o monge terapeuta, foi o primeiro do grupo dos viajantes a se
levantar, a fim de examinar sua bagagem. Não trazia roupas além daquilo
que levava no corpo. Mas, sua bagagem era preciosa, constituindo-se de uma
coleção de rolos de pergaminhos preparados por ele mesmo.
Eram feitos de pele de cordeiro cuja preparação sempre era trabalhosa,
exigindo uma técnica especial trazida da região de Pérgamo. Os vários rolos
que Ismael transportava estavam bem acondicionados e protegidos, bem enrolados em panos, tendo sido preparados em Cafarnaum, com muitos dias de trabalho, para que ficassem firmes e perfeitos. As peles de cordeiros tinham sido
cuidadosamente raspadas, com muita delicadeza para não se romperem ocasionando buracos na peça e garantissem a qualidade superior da escrita. Depois,
tinham sido secadas ao sol, sem que ficassem curtidas, viradas de um lado para o
outro, cuidadosamente esticadas para que não se enrugassem. Esta operação foi
ajudada por um tempo seco e estável, bem ensolarado e, depois de alguns dias
de paciente trabalho, as peles estavam bem secas para serem friccionadas com
pó de gesso e polida com pedra-pomes.
Depois dele foi a vez da mulher levantar-se. Ela afastou o véu da cabeça deixando a cabeleira farta e grisalha exposta à leve brisa. O rosto levemente moreno mostrava-se extraordinariamente jovem pela idade que possuía. Contemplou a aldeia com tanta emoção que seus olhos se umedeceram. O talhe
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esguio de sua figura contrastava com o azul suave do céu sem nuvens. Usava
uma túnica clara e singela, muito suja na barra pela poeira do caminho percorrido, cingida por uma estreita faixa azul na altura da cintura. Sobre os ombros
levava um véu combinando com a cor da faixa, também simples, sem bordas
trabalhadas, de fazenda compacta, sem transparência.
O homem jovem, de cabelos encaracolados, percebeu a emoção que dela
se apossou e, levantando-se, foi até ela colocando as mãos em seus ombros.
Ela, percebendo a presença dele controlou-se engolindo em seco.
— João, disse para ele, gostaria de tomar um gole de água.
João abaixou-se e pegou o odre de pele de cabra, bem curtido. A água
estava fresca embora o recipiente tivesse viajado colado ao corpo do homem.
Várias camadas de breu forravam-no por dentro, conservando-o impermeável e
mantendo a água a uma temperatura adequada para o consumo dos viajantes.
O odre foi passado às mãos da senhora que, destampando-o, deixou jorrar o resto do líquido para umedecer os lábios e saciar a sede.
— É o resto de água potável. Ainda bem que estamos chegando comentou João.
— Obrigada, meu amigo, ela agradeceu entregando o odre. És um bom
homem. Tens me ajudado e me apoiado nesses anos difíceis.
João, filho de Zebedeu de Cafarnaum não era tão jovem quanto parecia.
Tinha o rosto estreito e enormes olhos que deixavam aparecer um temperamento
arrebatado. Fanático e sombrio acompanhava aquela mulher seguindo-a com
devoção e fidelidade há muitos anos. Acompanhava-a a cada passo, seguindo-a
como um cão fiel, bebendo suas palavras e amando-a como um filho dedicado.
Outro rapaz, ainda quase criança, levantou-se e segurou a mão dela. Era
Nehemias, neto da falecida mulher que fora a primeira esposa de seu marido.
Ciumento ele falou:
— Ora minha avó, parece que eu de nada valho.
— Não fale assim. Tu tens sido minha tranquilidade e facilitou muito
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as coisas para mim.
— Então vamos indo vó. Ainda temos uma boa pernada até tua casa,
disse o rapaz.
Os quatro caminhantes começaram a descida do lado oriental do Monte
Nebi, em direção à aldeia assentada numa das encostas do Vale de Jezrael. O caminho que seguiam era suave e bem cuidado, como se mãos humanas o
tivessem aplainado. Era coberto de sedosa vegetação verde claro que bordava
a brancura calcária do chão poeirento, cercado de vegetação luxuriante que
atestava a fertilidade do vale. Não era o único caminho em direção ao aglomerado de casas baixas e brancas que formavam a cidadezinha. A base do
Monte Nebi era contornada por mais dois caminhos além daqueles que estavam seguindo os quatro viajantes. Partiam, um para Séforis e outro, para
Jafa em direção ao mar. Todos eles eram bem cuidados e cercados de propriedades agrícolas que atestavam a fertilidade da terra.
Por isso mesmo, estando situado numa rota próspera, o povoado de Nazaré era privilegiado quanto a sua localização e meios de comunicação com
toda a região. Seus caminhos bem cuidados, de calcário branco, atraíam os
visitantes que chegavam de todas as partes, interessados na produção agrícola
do fértil vale. Caravaneiros, comerciantes, intermediários, compradores e vendedores, falando línguas diferentes e de costumes diferentes por ali passavam,
vindos desde a vizinha região de Samaria, da distante Pereia, de Tabor, de
Magdala, Caná e Tiberiades. As vezes vinham caravanas de Damasco ou
de Jerusalém que ali perto acampavam, enchendo as pousadas e dando má
fama ao povoado. Além do aramaico, diversas línguas eram faladas na aldeia. Ali mercadejavam o azeite, a oliva, o mel; ali vendiam-se cestos e esteiras trançadas produzidas pelos artesãos nazarenos; uma infinidade de outros
produtos como lentilha, trigo e cevada eram trocados e vendidos pelos produtores. O comércio era uma atividade febril e fanática.
Os quatro viajantes podiam ver nitidamente as milhares de videiras escoradas com estacas de madeira, rodeando a vila, descendo das encostas das
várias colinas em degraus, desafiando os aclives. Marchando lentamente e be— 20 —
bendo com os olhos a deslumbrante e luxuriante paisagem verde, atravessavam a
região. Camponeses que cuidavam de uma bela plantação de palmeiras ao pé do
Monte Nebi, colhendo frutos para a preparação do mel, largaram os cestos no
chão para dar as boas vindas aos viajantes peregrinos.
— Bem vinda senhora Miryam. A paz esteja convosco, cumprimentaram-na os camponeses.
A medida que foram caminhando a cena foi se repetindo. Amigos empenhados em seus afazeres diários daquele fim de tarde, muitos já recolhendo
seus cestos, enxadas e instrumentos, pararam suas atividades para cumprimentar Miryam, e muitos acompanharam-na até a entrada da vila. O cortejo foi
engrossando até que os últimos metros do caminho foram vencidos e as primeiras casas da aldeia foram alcançadas.
A aldeia era composta por um ajuntamento de casas plantadas entre
duas ruas estreitas, sem calçadas, sem pavimentação, cobertas por cascalho.
No centro delas corria uma valeta com profundidade suficiente para que as
águas servidas e pluviais escorressem sem maiores problemas, fazendo com que
o ar ficasse impregnado com cheiro de esgoto. Crianças descalças, vestidas
com túnicas curtas e sujas, largaram seus folguedos infantis e pararam para
seguir o cortejo.
Miryam sentia-se cansada, mas estava feliz com o calor da amizade que
irradiava os semblantes daquela gente simples, com as boas vindas recebidas
em palavras e flores. Sentia-se querida no meio de seu povo e por isso estava
contente.
As casas de Nazaré feitas de blocos e sem ornamentos eram simples
como as ruas. A natureza farta e generosa, favorável aos frutos, fragrâncias e
flores servia como enfeite para a cidade. Muitas vezes o cheiro das flores era
tão intenso que mascarava o odor exalado pelo esgoto. Palmeiras se agitavam, no fundo dos quintais, acenando amigavelmente para os quatro viajantes e
para o cortejo, enquanto serviam de sombra para as pessoas que ainda trabalhavam sob ela ou faziam a última refeição do dia. Algumas casas tinham
suas entradas protegidas por toldos de fortes cores e berrantes tons, outras
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tinham entradas ajardinadas por esfuziantes canteiros de papoulas de um vermelho cor de sangue, cravos de todas as cores e matizes, narcisos e jacintos
azuis. Alguns muros eram forrados por trepadeiras que por eles subiam, deixando seus cachos de flores balançar sobre a cabeça dos passantes. Naquele
entardecer do fim do mês de Sivam toda a aldeia era um festival de cores e o
cortejo que seguia Miryam de Nazaré, Ismael, João Zebedeu e Neemias
era um festival da mais pura alegria e amizade.
Não haviam ainda atravessado a metade da cidade quando chegaram ao
poço. Naquele horário, quase no fim da tarde ao redor do poço da aldeia se
amontoava um grande número de pessoas. Jovens, meninos, mulheres e velhos,
carregando bilhas, vasilhames de cobre luzidio, jarros vidrados cor de cerâmica vermelha, se aglomeravam, em volta do poço que abastecia a cidadezinha.
Tagarelavam discutiam, trocavam informações enquanto esperavam a vez de
encher os recipientes.
No meio do povo aglomerado, cerca de cinquenta pessoas, João Zebedeu avistou um homem que falava inflamado, de olhos muito brilhantes, vestindo
uma túnica escura sobre a qual levava um manto listado de cores indefinidas
pelo uso. Reconheceu Tiago Zebedeu, seu irmão, que pensava estar em Jerusalém, há muito tempo. Era diferente de João, apenas o brilho inusitado dos
olhos de ambos poderia acusar o parentesco. Gigantesco, Tiago era robusto,
encorpado e tinha a barriga proeminente. Usava grande barba que se confundia com seus cabelos escuros, longos e encaracolados, seu nariz adunco se
projetando maciço e saliente. Falava sem parar despejando palavras umas
atrás das outras para alguns ouvintes, enquanto movimentava os braços em gestos amplos e nervosos.
Havia na figura do homem agigantado um mistério indefinível, um ar de
grandeza que se fazia notar na sua voz possante, nas sua fala simples, ora de
uma brandura e uma doçura sem igual, ora de uma veemente ferocidade. Os
olhos, brilhantes e escuros irradiavam uma paixão infinita. A marca do exagero estava gravada nele. Palavras contundentes jorravam de seu coração misturadas a um sentimento ilimitado de bondade, piedade e fé.
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João parou, apertou o braço de Miryam, avisando-a que alguma coisa
estava acontecendo. Apontou o irmão:
— É Tiago. Ele está aqui. Pensei que estivesse com Pedro e Matias
em Jerusalém.
Tiago avistou o grupo se aproximando da fonte e parou de falar, olhando-o fixamente, as mãos paradas no ar, imóvel por um instante. Depois, abrindo caminho entre as pessoas paradas à sua frente, conseguiu se aproximar dos
recém chegados. Sem dizer uma palavra parou em frente deles abraçando João
carinhosamente. Beijou as faces do irmão dois beijos estalados e ruidosos,
fechando os olhos para gozar aquele momento de reencontro. Os filhos de Trovão estavam mais uma vez juntos e era hora de celebrar e agradecer ao Senhor
por permitir que seus passos se reencontrassem outra vez. Só então, despertou
daquele encantamento momentâneo e o cumprimentou:
— Shalom! A paz esteja contigo, meu irmão João.
Virando-se para Miryam que, com Ismael e Neemias, pacientemente
esperavam ao lado que acabasse de transbordar a emoção dos irmão, repetiu a
saudação. Abraçou a amiga, mãe de seu Mestre, e deixou que as lágrimas
corressem livremente pela barba negra.
— Pensei que nunca mais iria vê-la, Senhora, disse comovido.
— Ora, Tiago, retrucou Miryam. Os caminhos do Senhor são numerosos. Enquanto Ele permitir nossas vidas se entrelaçarão, ainda que por momentos fugazes, e nossos destinos se cruzarão.
— Louvado seja o Senhor Deus que permitiu a este pobre homem contemplar mais uma vez a mãe de seu Mestre.
— Louvado seja Deus, repetiram em coro todos os que assistiam a cena.

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SÃO PAULO, 1964

Míram vivia com os pais, desde que nascera, num modesto apartamento da Rua da Graça, no Bom Retiro, bairro de São Paulo na
época povoado por judeus. Ela e sua irmã Judite cresceram e fizeram
seus primeiros amigos nas ruas daquele bairro comercial onde as lojas, pequenas indústrias de confecção de roupas e malharias se misturava aos pequenos prédios de três andares. Os judeus bem sucedidos na vida, judeus que frequentavam a Hebraica e o Guarujá, judeus
cujos filhos estudavam no Rio Branco e no Bandeirantes, não queriam
o Bom Retiro para viver, embora muitos deles tivessem ainda negócios no bairro. Saiam para os bairros residenciais dos Jardins, misturando-se aos goim e com eles convivendo na mais profunda harmonia
e integração.
A Rua José Paulino, a Rua a Graça, a rua Júlio Conceição, fervilhavam o dia inteiro — compradores, mulheres em busca de uma pechincha, varejistas para fazerem suas encomendas, sacoleiras que compravam ás dúzias, com bom desconto, para revender de porta em porta. Ao lado desta população flutuante, desfilavam homens barbudos
vestidos de preto, com grandes e pequenos chapéus, homens com
uma mecha de cabelo comprido enrolado na orla, homens com kipás(4)
bordados. Lado a lado, o iídiche e o hebraico eram ouvidos de uma
ponta do bairro à outra. A escola pública, na Rua dos Italianos, tinha
setenta e cinco por cento de jovens judeus sentados nas carteira gas(4) kipá — solidéu usado pelos homens.

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tas pelo uso. Professores e funcionários cristãos trabalhavam lado a
lado com colegas judeus.
No entardecer das sextas-feiras o Shabbath(5) começava na maioria dos lares do bairro, de acordo com as regras sagradas observadas
desde os tempos antigos, mas no dia seguinte, aos sábados, grande
parte do comércio abria as portas até o meio dia, de acordo com a lei
do país. Apenas os mais ortodoxos mantinham suas portas abaixadas
respeitando o repouso de acordo com a lei dos judeus. Contudo, a
maioria das máquinas de costura e das malharias martelavam nas
fabriquetas nas mãos de operários católicos, umbandistas e evangélicos. Depois do meio dia as portas de todas as lojas comerciais abaixavam-se, os balconistas e as operárias lotavam os ônibus que passavam pela Rua José Paulino ou dirigiam-se para a Estação da Luz,
para tomar o trem para os subúrbios. As ruas do bairro iam se esvaziando de carros e de pessoas, dando um toque de Shabbath ao bairro, numa atmosfera de descanso e de sossego que só iria terminar
com o fim do domingo. Mas apesar de tudo, o Bom Retiro nunca teve
as características de um gueto. Era apenas um dos bairros pobres
de grande atividade comercial de São Paulo, habitado em sua grande maioria por israelitas, que viviam e comerciavam lado a lado com
cristãos. Sinagogas e igrejas coexistem ali até hoje, sem maiores consequências.
Míriam e Judite tinham permissão para sair uma vez por semana
pelas ruas do bairro com outras crianças. Por isso conheciam cada
pedaço do bairro, cada loja, cada fábrica, cada esquina e cada praça,
as igrejas dos cristãos, a Politécnica, tudo até os limites permitidos
pelos pais. Havia áreas estritamente proibidas como as Ruas Aimorés
e Itaboca, antigas ruas de confinamento de prostitutas, o Jardim da
Luz, o Pátio da Estação Ferroviária. O belo jardim da Luz, perdido para
os moradores do bairro, que dele nem se aproximavam, era ponto de
(5) Shabbath o dia de repouso, guardado semanalmente desde pouco antes do por do sol de
sexta-feira até depois do cair da noite no sábado. Nos Dez Mandamentos e em geral no
Pentateuco o Shabbath é enfatizado como dia de repouso completo e abstenção do trabalho. O versículo de Isaías (58:13)-2 chama o Shabbat um deleite, e o santo dia do Senhor
digno de honra mostra que, para homenagear este dia, todos, pobres e ricos, devem participar
dele, desde os preparativos, devem vestir roupas limpas para recebê-lo com a mesa posta e
luzes acesas. O Shabbath é iniciado com a dona de casa acendendo um candelabro; a
melhor comida é servida, embora ela não possa ser preparada durante o Shabbat. O culto
nas sinagogas incluem a leitura da Torah e dos Profetas e pelo estudo das leis.

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prostitutas, vadios e ladrões e passadores de maconha, bêbados e
marginais. Ali transitava esse tipo de gente, o dia inteiro, não permitindo que casais de namorados se sentassem sob as árvores frondosas
para arrulhar seus amores em paz. Proibida de frequentar este ponto
do bairro, Míriam, toda vez que podia, passava horas amoitada atrás
de um poste ou uma banca de jornais do outro lado da calçada, firmando os olhos, procurando ver o proibido, louca para saber o que se
passava entre as frondosas árvores do jardim. Ela era assim, curiosa,
irreverente, feliz quando conseguia descobrir o mundo com suas próprias pernas. Por isso não sossegou enquanto não provou um pedaço
de carne de porco e não se sentiu em pecado, nem tampouco morreu,
embora passasse três dias esperando que Deus fosse tirar sua vida
como castigo.
A vida de Míriam Weissmann poderia ser dividida em duas partes
distintas, antes do Rabino e depois do Rabino.
Quando era muito pequena o melhor dia da semana era o Domingo. Neste dia especial o pai colocava toda a família dentro do volkswagen vermelho e dirigia para lugares divertidos de São Paulo onde ela
podia ver coisas diferentes e maravilhosas. O lugar que ela mais gostava de visitar era o zoológico da Água Funda onde os macacos mais
engraçados do mundo viviam soltos, deslumbrando e divertindo os visitantes com suas cambalhotas e caretas. Era também delicioso passear no horto florestal no meio de velhas e enormes árvores e á beira
do lago, onde a família se sentava no gramado para comer o lanche
que D. Naomi havia preparado e acondicionado numa cesta. Ela e Judite corriam entre as árvores e deitavam-se no gramado para tomar
sol. No verão acordavam muito cedinho e o pai descia a Serra do Mar,
todos com seus maiôs sob uma roupa leve, para passarem o dia na
Praia Grande ou no Gonzaga. Faziam enormes castelos na areia, rodeados de túneis e estradas, e se refrescavam nas ondas enquanto o
pai e a mãe as vigiavam debaixo de um enorme guarda-sol colorido.
Depois comiam enormes fatias de melancia, fartos sanduíches e ostras frescas.
Muitas vezes os passeios dominicais eram feitos em companhia
de amigos da família e faziam comboios de carros cheios de crianças
e cestas com iguarias que eram divididas na hora do almoço. Nos domingos de chuva apareciam os amigos para almoçar a deliciosa comida que D. Naomi preparava, lotando o apartamento da Rua da Graça.
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Durante a semana a melhor hora do dia era depois que o pai chegava da loja. Ele se sentava em frente da televisão depois do jantar
para assistir os programas de gente grande e, enquanto Judite, maior
do que ela, se sentava no tapete, ela se encarapitava no colo dele, ali
se aninhando e se sentindo protegida enquanto apertava Salomé com
força de encontro ao peito. Salomé tinha sido propriedade da irmã mais
velha, mas Judite não gostava de bonecas e havia cortado muito rente
os lindos cachinhos loiros e pintado os lábios rosados e entreabertos
dela com uma feia cor azul de uma esferográfica. Mas para Míriam,
Salomé era linda e confortadora. Dormia com ela todas as noites, lavava com sabonete seus velhos vestidos desbotados, costurava para
ela novos trajes com retalhos coloridos e cuidava dela como se ela
fosse a coisa mais preciosa de sua vida. Com ela conversava e para
ela contava seus segredos mais íntimos como fez no dia em que roubou o batom que Judite comprara às escondidas da mãe na Drogaria
Farmaluz, escondendo-o no corpo dela. Só Salomé sabia dos segredos dela e mantinha-se fiel e calada.
No colo do pai, com Salomé apertada num braço, ficava quietinha, sentindo o cheiro gostoso do desodorante lavanda que ele usava
há anos, passando a mão e acariciando suavemente os sinais que ele
tinha gravados no antebraço esquerdo. Ali ficava até adormecer e ser
colocada na cama.
Também gostava do Shabbath, embora um pouco menos do que
os domingos porque era um dia de muitas proibições. Gostava desse
dia porque o pai ficava em casa com a família e não se importava com
a loja que ficava por conta de um empregado de confiança. Neste dia
ele levava a família à sinagoga. Ela era vestida com sua melhor roupa
e ficava com D. Naomi e Judite junto com muitas mulheres para ver os
homens, ouvir lindos cânticos e preces, assistir o desenrolar do pergaminho amarelo onde as palavras de Deus estavam escritas. Depois
iam para casa e lá ficavam, a mãe com eles, livre das tarefas domésticas, distribuindo a comida preparada na véspera. Adorava ver as velas acesas no lindo menorá(6) de prata, em lugar de honra. Seu pai lhe
contava lindas histórias da Bíblia, de Raquel e Lia, das águas do Mar
(6) Menorá — candelabro. A menorá dourada de sete braços era uma característica mais
importante do Tabernáculo e dos Templos. Era um símbolo do judaísmo e está freqüentemente representada em túmulos e monumentos.

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Vermelho se abrindo para os filhos de Israel, de Daniel na cova dos
leões, do poderoso Sansão. Também adorava o fim do ano que para
ela significava Natal dos cristãos e o Papai Noel de barbas brancas e
roupa vermelha que ficava andando pela Rua José Paulino, tocando
um sino prateado e convidando a todos os transeuntes para comprar
presentes. Felipe sempre arrumava um presente surpresa para suas
meninas no dia de Natal, mesmo que sua piedosa esposa discordasse
deste gesto. Elas ficavam loucas para que o velho santo cristão se
lembrasse delas, fascinadas com os enfeites das vitrines, com os pinheirinhos lindamente decorados com bolas e galões brilhantes. Felipe lembrava-se de sua infância na Alemanha quando seu pai proibia
qualquer manifestação dos filhos em relação às festas cristãs, ignorando as comemorações do Natal e do Ano Novo, e os ovos de Páscoa. Lembrava-se das vezes que ficara com o nariz colado nos vidros
das lojas durante horas, devorando com os olhos o colorido dos enfeites e das guloseimas, querendo ser cristão nem que fosse só naquela
época do ano. Na casa de Míriam o Natal cristão era comemorado
com presentes. Felipe não teve coragem de negar as suas crianças as
delícias cristãs do país em que viviam, em que Papai Noel passeava
pelas calçadas prometendo brinquedos. Houve um ano em que o menorá de prata coexistiu pacificamente com um pinheirinho de bolas
vermelhas, lindamente enfeitado, mas para a piedosa D. Naomi, aquilo foi demais e o fato não se repetiu para a tristeza das criança.
Míriam tinha onze anos quando o Rabino Abraham Jacobinsky
chegou mudando sua vidinha. No principio Felipe e Naomi foram contra a aproximação com o novo vizinho, pois desconfiavam daquele tipo
de judeu que diziam ser fanáticos e que iam de encontro as ideias
mais liberais deles.
Aos onze anos Míriam era uma menina miúda e tinha mais semelhança com um menino do que com uma futura senhorita. Calças compridas de brim escuro com alças, cheia de bolsos, pulôver azul marinho e um boné que escondi os cabelos encaracolados faziam parte da
indumentária preferida da menina. Mascando chicletes, ela observou
o vai-e-vem dos carregadores que subiam e desciam a escadaria que
saia do pequeno vestíbulo. Uma lâmpada fraca de 60 watts iluminava
parcamente o espaço que dava para a escadaria e levava para o saguão principal do prédio. A mudança do apartamento vizinho, vago há
tanto tempo, havia chamado a atenção dela. Já Judite não se importa— 28 —
va com estes acontecimentos. Ela já não zanzava com outras crianças
e nem se importava com o que acontecia no prédio, pois, três anos
mais velha que Míriam, se achava uma mulher feita e vivia ás voltas
com namoricos e festinhas, onde podia exibir lindos vestidos e o corpo
desenvolvido que tanto agradava a rapaziada.
A mudança que estava sendo transportada para aquele andar era
muito estranha, aos olhos da menina observadora. Em primeiro lugar
a porta do apartamento vago estava fechada, ninguém abria para colocar para dentro o que subia pela escada. Segundo, porque tinha poucos móveis amontoados para entrar, apenas uma cama de solteiro com
seu colchão, estantes e pacotes e caixotes de vários tamanhos e formatos, com rótulos enormes onde estava estampado o nome Abraham
Jacobinsky e um endereço. Os móveis pareciam novinhos em folha,
mas os pacotes pareciam velhos. Duas malas grandes, velhas e esfoladas, amarradas com grossas correias de couro, esperavam ao lado
da porta de entrada. Alguns engradados traziam a inscrição “this side
up” que Míriam logo traduziu, pois cursava o terceiro ano da União
Cultural Brasil-Estados Unidos e não perdia a oportunidade de aplicar
seus conhecimentos de inglês.
Quando já havia uma grande quantidade de caixotes, móveis e
embrulhos atulhando o pequeno hall, os carregadores pararam de subir e descer as escadas e sentaram onde puderam ficar esperando
alguém, conversando.
— Ainda falta um bocado lá embaixo e não chegou ninguém para
abrir a porta, comentou um carregador.
— Vai ser o diabo se a gente tiver que descer com tudo isso de
volta, resmungou um velho operário.
Míriam ficou curiosa:
— Como é que vocês subiram com tudo isto sem ter lugar pra
colocar? Olha como vocês deixaram a entrada da minha casa.
— Era pra deixar aqui, ir adiantando o serviço, enquanto o dono
chega, explicou o primeiro.
Os trabalhadores nem chegaram a acabar o cigarro que começaram a fumar. O som de passos na escadaria avisou-os que alguém
subia em direção àquele último andar. Um homem muito grande, pare— 29 —
ceu á Míriam que era o maior ser humano que ela tinha posto os olhos
em cima, um gigante para ela, subiu o último degrau e tentou esgueirar-se entre o amontoado de coisas que lotava o pequeno espaço. Era
alto e imponente e vestia um casaco preto e longo que não conseguia
esconder a massa de seu corpo. Os pés imensos enfiados em lustrosas botinas negras mal encontrava espaço para pisar. Uma enorme
barba negra, salpicada por muitos fios brancos, caia-lhe no peito, escondendo o colarinho e a camisa e debruçando-se sobre a lapela do
casacão abotoado. A barba farta dava-lhe um ar de imponente dignidade e combinava com o nariz adunco e os dois olhos cor de azeviche
que ficavam sob espessa sobrancelha. Os olhos movimentavam-se
constantemente, não perdendo um detalhe sequer de tudo o que via,
examinando a criança encostada na parede. Tinha um chapéu também escuro de abas redondas que escondia a testa e uma calvície
pronunciada.
Míriam se impressionou com as mãos dele. Elas saiam de repente de dentro da escuridão da manga, grandes e poderosas como duas
enormes mariposas, os dedos muito alvos, a pele que podia ser vista,
de brancura marmórea, as costas cobertas por chumaços de pelo escuro e grosso.
Aquele homem estranho e grande conseguiu transpor com seus
sapatos número 45 a barreira de móveis e caixotes e abriu a porta do
apartamento 31. A claridade que veio de dentro, através dos vitrôs que
davam para a rua, deixou a silhueta dele delineada no vão da porta,
mostrando o impressionante poder de seu corpo. Os carregadores se
animaram imediatamente, começando a enfiar para dentro o que estava depositado no pequeno hall. Depois, desceram os três lances de
escada atrás do restante dentro do caminhão de mudanças estacionado na frente do prédio. Enquanto isto o homem de preto, sem ao menos tirar o magnífico chapéu, começou a abrir os caixotes e pacotes,
como se estivesse procurando alguma coisa. Míriam, curiosa, aproximou-se da porta aberta. Livros, montanhas de livros, começaram a
sair dos misteriosos pacotes e para serem amontoados de encontro
ás paredes da sala, desocupando os caixotes que os carregadores
transportavam de volta ao caminhão. Aos poucos, sem temer o grande
gigante vestido de preto, Míriam foi se aproximando dele, ajudando a
empilhar o que ele desembalava. Ele fingiu não notar a menina mas
agiu como se tudo fosse natural, aceitando a ajuda dela. Deu-lhe uns
— 30 —
oito anos e pensou que fosse um menino. Nenhuma palavra foi pronunciada entre os dois. Os carregadores iam e vinham perguntando
de vez em quando onde deviam ser colocados os objetos transportados. Ele não falava. Se limitava a fazer gestos apontando na direção.
— Você é mudo? perguntou Míriam não agüentando mais o silêncio. Onde está o resto da família? Não tem criança?
A resposta foi uma gargalhada imensa, o som dela enchendo o
apartamento e saindo pela janela.
— É mudo? Ou não é? tornou a perguntar.
— Não, não ser, falou de vagar medindo as palavras. Falar muito
mal o português e gostar de silêncio.
— Você sabe inglês? Pode falar em inglês. Eu entendo tudo e sei
falar um pouquinho. Ou alemão, ou em iídich(7), ela desandou a falar
jogando para fora todas as palavras que estavam represadas dentro
dela.
Contou como aprendera o alemão com o pai exigente e o iídiche
em casa, o português na escola e com os amigos, que era muito boa
em português, do curso da União Cultural onde ia sozinha de ônibus
duas vezes por semana. Quando ela tomou fôlego, parando por um
instante, ele aproveitou a brecha:
— Precisar aprender português mais bem. Preferir falar para
aprender.
— Pois eu vou ensinar você, prometeu ela. É fácil, muito fácil.
Agora, quem é você? Meu nome é Míriam Weissmann e eu moro no
32.
— Então você ser menina mulher. Lógico... respondeu ele. Eu
Rabino Abranham Jacobinsky. Ele não parou de remexer os caixotes
para conversar com ela. Continuava desempacotando seus livros.
— Um Rabino de verdade? Um Rabino sábio?
(7) Iídche — língua falada pela maioria dos judeus da Europa na Idade Média. Formada de
quatro componentes principais: hebraico, loez (francês e italianos antigos) alemão e elementos eslavos. O alemão medieval do Reno Médio foi o componente mais importante. 85%
do vocabulário e da estrutura gramatical básica provem do alemão. Desde a sua formação
(1000 a 1250) a língua evoluiu muito e, depois da segunda guerra mundial e o extermínio de
judeus, o número de pessoas que fala o iídche ficou bastante reduzido.

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— De verdade, real. Mas o que ser sábio?
— A wise man, respondeu ela. Sá-bi-o.
— Ah, a wise man. Eu procurar ser sá-bi-o.
— Ai meu Deus! — exclamou a menina. Vou precisar ensinar todas as conjugações verbais para você. Vai me dar um trabalhão!
Ele olhou para ela divertido. Achou-a diferente e engraçada.
— Onde está o resto de sua família? perguntou ela.
— Ser só. Não ter família, ele respondeu sério enquanto mexia
nos seus pacotes.
— Vamos cuidar de você Rabino. Vou ensinar você falar português direitinho.
Ele se comoveu:
— Obrigado, pequena Míriam. Já tinha começado a gostar daquela menina miúda e engraçada.
— Obrigado uma ova! Você vai melhorar o meu inglês e me ensinar um pouco da sua sabedoria, disse ela e saiu correndo com um
volto-mais-tarde, deixando-o imaginar o que seria “uma ova”.
— Preciso contar em casa que um Rabino sábio, acho que até um
homem santo é nosso vizinho e tem lindos cachos no cabelo.
O Rabino Jacobinsky e Míriam Weissmann tinham acabado de
iniciar um relacionamento que duraria enquanto o Rabino vivesse, uma
amizade sólida e cheia de carinho que encantaria encheria a vida dele
de alegrias.

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PALESTINA, ANO 46 D.C.

A noite já começava a cair. Os tons avermelhados do poente estavam
sendo combinados pelo azul acinzentado que logo seria escuro e algumas estrelas pálidas já podiam ser vistas povoando o céu. Miryam precisou abrir o seu
caminho para poder andar os últimos passos que a separavam de sua casa.
Percebendo a aproximação rápida da noite com a escuridão tão temida, o
povo foi se dispersando e se recolhendo em suas moradias. Os mais medrosos
apressavam o passo para não serem colhidos pela negrura onde imperavam os
espíritos do mal.
Os quatro viandantes alcançaram finalmente a casa de Miryam onde os
candeeiros de azeite já brilhavam, projetando luzes bruxuleantes dentro da escuridão dos cômodos. A casa, construída de blocos de argamassa, liga de
cal e barro amassado era simples e pobre mas, tinha a porta de entrada aberta, hospitaleira e generosa. Tiago e João foram os primeiros a entrar e a
cumprimentar Rute, filha de Miryam, e seus filhos Rebeca de onze anos,
Rubens e Efraim, gêmeos de nove anos. Rute manejava habilmente um panelão fumegante que balangava numa trempe localizada dentro de uma lareira
pedras, no lado esquerdo da sala.
A porta de entrada era baixa, sem segurança e com sua folha de madeira
tosca sem pintura abria para o jardim, com canteiros de flores coloridas e
legumes plantados em fileiras. Para dentro dava acesso a dois aposentos bem
espaçosos mas sem paredes divisórias. Os ambientes eram divididos por cortinas e apenas uma abertura interna se destacava nas paredes caiadas, servindo
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de comunicação com uma oficina de carpinteiro, principal ofício dos homens da
família. Não havia janelas, apenas uma grande rótula no teto para deixar
entrar os restos da claridade do sol que se espalhava sobre o chão de terra
batida. O teto era rústico, com numerosas vigas robustas se entrecruzando.
O mobiliário era simples e reduzido. Somente ao lado da parede de
entrada, dois baús de cipreste ricamente entalhados se destacavam. Serviam de
assento e de guarda-roupa, armazenando lençóis, cobertores e edredões. Ao
lado deles, um tear e vasos de barro cheios de azeite. No centro da sala e ao
lado do fogo, uma enorme mesa de cedro do Líbano, robusta e simples rodeada de bancos tocos e gastos, todos enegrecidos pelo uso constante e pela fumaça de lenha que queimava na lareira.
O lado de fora era espaçoso. Além do jardim com flores e hortaliças,
um quintal rodeava a casa. Um cômodo que servia de dispensa, onde os grãos
eram armazenados em cestos de vime de diversos tamanhos e formatos, onde as
ânforas repletas de azeitonas, alcaparras curtidas, azeite, onde os figos secos
e passas eram pendurados em cachos. Era o único atestado de fartura da
família.
A voz de João Zebedeu tirou Rute de seus afazeres e fez com que as
crianças interrompessem suas brincadeiras. Cumprimentou a dona de casa, o
cumprimento usual de todo o povo da Galileia:
— A paz esteja contigo!
Rute correu para abraçar a velha mãe e o sobrinho que seguiam os dois
Zebedeus porta a dentro. Mãe e filha olharam-se por um instante, toda a
ternura dos olhos de Miryam se derramaram sobre a figura da jovem e esbelta
filha caçula. Rute era parecida com a mãe, bela, a pele levemente amorenada, olhos ternos, cabelos longos presos por um lenço branco, alguns cachos
rebeldes, encaracolados escapando pelos lados, de uma cor de avelã dourada
que brilhava sob a luz dos candeeiros de azeite.
— Mãe, que alegria poder abraçá-la mais uma vez! Dizem que os
caminhos estão cada vez mais que nunca cheios de malfeitores que assaltam e
matam. Que bom estar com a Senhora outra vez, sã e salva.
— Tantas quantas o Senhor permitir, minha Rute querida, falou Miryam abraçando-a. Deus seja louvado, estamos aqui novamente juntas. Conse— 34 —
guimos fazer uma ótima viagem e, com a proteção do Senhor, todos os malfeitores foram afastados ao nosso caminho. E, além disso, não vim sozinha. Trago
comigo meu fiel João, seu sobrinho Nehemias e meu amigo Ismael. Eles me
escoltaram com carinho e dedicação. Nehemias está voltando para a casa de
seu pai e Ismael é um monge que está aqui a meu pedido a fim de executar uma
tarefa.
— Sejam todos bem-vindos, disse Rute e virando-se para o estranho,
Ismael, acrescentou:
— Minha casa é tua casa.
Rute, filha caçula de Miryam, enviuvara muito cedo e morava com a
mãe, cuidando da casa também na ausência dela. Antes de Amós, seu falecido marido, ter morrido numa infeliz queda de uma íngreme ribanceira onde
tentava reunir umas cabras que tinham fugido do cercado para invadir uma
plantação bem cuidada e viçosa de lentilhas, Rute morava com a família na
estrada para Naum, logo depois da vila. Amós possuía uma herdade de bom
tamanho onde criava cabras em cercados especiais e cultivava lentilhas e oliveiras. As cabras também eram usadas para mover um moinho onde as azeitonas
dos olivais eram trituradas e transformadas em precioso azeite que escoava por
um canal de pedra e enchia as ânforas de barro vidrado. A produção conseguida era trocada por mercadores por bens de interesse para Amós e sua família.
A morte prematura de Amós obrigou Rute a pedir auxílio a seu meio-irmão
Judá para tocar a propriedade e conseguir o sustento dos filhos.
Com a chegada dos hóspedes inesperados Rute apressou-se para o panelão, para aumentar a refeição pois o número de pessoas famintas havia crescido.
Os hóspedes, sem fazer cerimônia acomodaram-se onde quiseram, Ismael, arriando sua preciosa carga e acomodando-se num dos bancos, com Nehemias, a
seu lado. Nehemias iria primeiro provar da hospitalidade de Rute e de sua
saborosa cozinha para depois seguiu para a casa de seu velho pai.
Miryam dirigiu-se a Tiago Zebedeu, ansiosa por saber das novidades,
pondo o cansaço de lado:
— Pensava que estivesses em Jeruzalém. Em Cafarnaum. Todos acham
que estás lá, junto a Tiago, Pedro e Matias, pregando a verdade do Rei— 35 —
no de Deus. Desejo notícias de meu filho Tiago, a quem não vejo há cinco
anos.
Tiago Zebedeu respondeu em voz baixa.
— As coisas não andam boas por lá, Senhora Miryam. Estamos sendo implacavelmente perseguidos pelos sacerdotes. Os esbirros do Sinédrio(9)
estão por toda a parte, nos perseguindo e nos espionando até em sonhos. Tiago,
seu filho, o irmão do Senhor, está em Qumran. Houve um ataque dos soldados
de Anás, o sumo-sacerdote, contra um lugar de oração e ele foi ferido e levado a
Jericó. De lá ele se refugiou em Qumran junto aos nossos irmãos essênios. Estamos esperando que volte para Jerusalém a fim de ouvirmos suas orientações.
Simão Pedro está pensando em abandonar a pregação em Jerusalém e viajar
para Antióquia, onde poderá pregar a verdade aos gentios(10).
— Meu irmão Tiago Zebedeu, respondeu Miryam, achas que estarás
a salvo aqui entre nós? Há um templo também aqui e um feroz sacerdote
saduceu que não hesitará em sacrificá-lo caso te tornes inoportuno.
— Eu sei que o perigo está em toda parte de nossa nação. Vim aqui para
vê-la, Senhora, e juntar forças para continuar minha missão junto a meu povo,
em Jerusalém. Daqui seguirei para Cafarnaum rever a casa de meu pai. Não
sabia que a mãe do Mestre estava lá, pensei encontrá-la aqui e já pensava em
partir quando a vi chegando.
Tiago Zebedeu continuou a falar, sua voz crescendo o tom até se tornar
forte e robusta, enchendo o ambiente acanhado. Miryam deixou-o falar e todos
ficaram muito atentos para saber o que havia acontecido naqueles tempos que se
seguiram à morte do Mestre.
— A situação está se tonando cada vez mais perigosa. Nos primeiros
anos parecia-nos tudo mais fácil. O perigo não nos assustava tanto. Parecía(8) Sinédrio — constitui, na literatura rabínica, na assembléia de 71 eruditos que funcionava
tanto como órgão legislador como Supremo Tribunal. Antes do Ano 70, o Sinédrio se reunia
na Sala de Pedra Talhada de Templo, com várias atribuições, entre elas a proclamação da
Lua Nova, a declaração do ano bissexto, decisões de crimes contra o Estado e de questão
religiosas.
(9) Gentios — para os hebreus todos os povos que não professassem a religião de Iavé,
considerados pagãos.

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mos revigorados, fortes e confiantes. Constantemente nos lembrávamos do dia
em que havíamos sido consagrados pelo Mestre, um a um, na casa da sogra de
Simão Pedro. Infelizmente, como todos já sabem, ficamos todos juntos apenas por algum tempo. Agora passamos por momentos de grande dor, muita
angústia e amarga perseguição. As proféticas palavras do Mestre estão se
cumprindo. Mas ele nos garantiu que o Senhor não nos abandonaria, que nunca
estaríamos desamparados. Não sei o que está acontecendo com André, com o
Zelote, com Bartolomeu de Naum, ou com Felipe. Há algum tempo não os
vejo, Bons tempos aqueles em que seguíamos o Mestre por todas as partes,
sem que ninguém nos importunasse. A tantos lugares o seguíamos! Visitamos
tantas cidades distantes, onde os homens valem menos que as bestas do campo!
Agora, Senhora, vim buscar energia e renovar minha inspiração junto à mãe de
meu Mestre.
João não se conteve. Histérico, levantou os braços para o céu numa louca invocação, exigindo justiça divina. As crianças, assustadas, começaram a
chorar com o trovejar das palavras que jorraram de sua boca:
— Deus de Israel, Deus dos exércitos! Abra o coração dos hipócritas com uma faca para que os escorpiões e cobras que lá se alojam possam sair
à luz do dia e sejam mortos pelo homem de fé! Oh! Deus de Israel! Mande
seu fogo para destruir os nossos inimigos! Malditos sejam aqueles que impedem a propagação da Boa Nova, das palavras de nosso Mestre.
Miryam colocou as mãos nos ombros de João.
— Calma, meu amigo. Suas palavras são cheias de sinceridade, mas já
há muito tempo, sabemos que as ideias de meu filho encontrariam a oposição
dos homens. Sempre que um profeta se levanta para ajudar os homens, é apedrejado até a morte.
Ela parou por um instante, olhando aqueles homens à sua frente e eles
nada disseram. Ela continuou:
— Temo por meu filho Tiago. Sei que meus filhos pertencem ao Senhor e
a seus desígnos, mas mesmo assim, temo por ele. Ele viveu em intimidade com seu
irmão Jesus e conhece todos seus ensinamentos, podendo falar por ele. Foi um
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filho muito chegado, sempre me comunicando tudo o que se passava com ele e com
todos os que seguiam Jesus, mas há tantos anos não o vejo!
A Senhora abaixou os olhos deixando uma lágrima escorrer. Depois
virou-se para o Zebedeu, e, olhando-o demoradamente nos olhos, disse:
— Obrigada pelas notícias meu irmão.
— Sinto não ter melhores, Senhora. Mas Tiago estava vivo em Qumran.
— Então ele está a salvo, pensou Miryam, mas não disse nada.
Tiago Zebedeu continuou:
— Nossos espíritos se enriqueceram como o mestre quis, a fim de que
pudéssemos seguir e enfrentar sozinhos as maldades humanas. Mas, às vezes,
é preciso que um homem como eu, mesmo amparado pelo Senhor, venha respirar
o ar puro e tranquilo que rodeia a mãe do Mestre.
Alisando a barba negra onde já apareciam alguns fios brancos, Tiago
Zebedeu fez uma pausa breve. E prosseguiu:
— O Sinédrio não nos dá paz. Aonde quer que nos reunamos, lá está ele,
com a mão forte de Roma, nos prendendo e nos vigiando, nos expulsando e nos
ameaçando. Ele tem mil olhos que vigiam a cada minuto nosso passos e nossas
ações. Há divergências entre nós pois estamos inquietos com os falsos mestres
que brotam da terra a cada momento, com seus ensinamentos que nos confundem.
Acontecimentos estranhos e enigmáticos nos perturbam. Um homem chamado
Saulo perseguiu a nossa gente, entrando até pelas casas e arrastando homens e
mulheres para o cárcere. Destruiu e matou a mando dos romanos durante muito
tempo. Depois se disse arrependido e juntou-se a uma comunidade nossa por três
anos. Se diz convertidos mas discute com os nossos, parecendo que não se mantém
leal às nossas leis. Há muitas brigas e discussões e estamos confundidos. Às
vezes, ao tentar compreender ou ouvir tais novos ensinamentos, parece-me ouvir a
voz do Mestre dizendo: “Os outros tomam caminhos errados, são cegos conduzindo cegos. Só os que seguem meu caminho nunca cairão no abismo e entrarão no
reino de Deus”. Sabemos que a verdade triunfará e que precisamos ser pacientes
embora, muitas vezes, nossos corações sejam dominados pelo desespero.
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Depois do desabafo, Tiago Zebedeu parou de falar, cansado. Os outros continuaram em silêncio, mesmo João que mal continha a ira. As crianças
tinham parado de brincar, atentas ao desenrolar do discurso daquele veemente
pescador de almas. Isaias quebrou em silêncio, perguntando:
— Quem chefia os seguidores do Mestre?
Tiago Zebedeu retomou seu discurso, agora mais brando:
— Quando interpelamos o Mestre perguntando-lhe: “Senhor, sabemos
que nos deixará. Quem será nosso chefe depois de sua partida?” Ele nos respondeu: “Ireis para Jerusalém com Tiago, meu irmão, por causa de quem o
céu e a terra passarão a existir”. Tiago, agora que o Mestre nos deixou, é o
mais importante, é conhecido e chamado por todos de Tiago, o Justo. Fala
com a autoridade do conhecimento e sabe transmitir as palavras e o pensamento
do Mestre. Ele não bebe vinho, não se alimenta de animais, não se banha,
suas roupas são de linho e tem permissão para entrar no lugar mais santo do
templo. É o mais piedoso entre os piedosos e por estar sempre orando a Deus,
seus joelhos são duros como os de um camelo.
Miryam cerrou os olhos ao ouvir sobre seu filho Tiago. Deus lhe havia
revelado o nascimento de seu primogênito Jesus, mas nada sabia da santidade
de Tiago. Havia dado dois filhos ao Deus de que era serva e agradecia a
Ele por ter sido escolhida.
Isaías, curioso, continuou com suas perguntas.
— Como fazem para pregar em Jerusalém? Sabemos algumas coisas mas
gostaríamos de ouvir as notícias pela boca de um discípulo do Mestre Jesus.
— Criamos uma congregação, vivendo todos como o fazem o povo essênio, como nos ensinou Jesus. Tiago viveu em Qumran, como o Mestre. Assim
todos nós que cremos estarmos sempre juntos e tudo o que possuímos é bem
comum. Diariamente estamos no Templo, orando e ouvindo e partilhamos o
pão em reuniões nas casas, ou qualquer lugar. Todos os que desejam seguir os
ensinamentos que podemos transmitir e o nosso modo de vida, nos procuram. O
que podemos dar é amor. Ensinar o amor e a fé. E a esperança de um futuro
junto a Deus. Mas as nossas congregações sempre foram implacavelmente
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perseguidas. E estão sendo desagregadas. Tivemos notícias que outras comunidades iguais, em outros lugares onde estão os romanos com suas espadas, foram destruídas, havendo mortos e feridos. Mas, sempre que somos destruídos,
mesmo que nos encontremos exauridos e temerosos, desanimados e sem forças,
sentimos o Mestre nos animando, dando-nos cada vez mais a fé. Tiago o justo
com sua fé inabalável nos mantém unidos, mesmo com as corrente contrárias e
as correntes dissidentes que no ameaçam destruir e matar a nossa fé. Agora
interrompemos por uns tempos nosso trabalho em Jerusalém. Logo Tiago estará de volta para lá e nos reuniremos novamente, sob seu comando. Pedro
pensa em ir pregar para os gentios e Saulo, agora chamado Paulo, virá de
Antióquia para se juntar a nós. Esperamos que agora Paulo, o que tanto nos
perseguiu, não se afaste da Lei e cultue o Senhor Deus segundo as palavras
do Mestre Jesus, sem provocar controvérsias.
Miryam então se manifestou:
— Você confirmou o que eu já havia ouvido, a perseguição que Roma e o
Sinédrio movem contra os seguidores de meu filho primogênito. Mas agora
estou chegando de uma cansativa viagem e preciso me alimentar e descansar.
Depois vamos orar e pedir ao Senhor para proteger o seu povo e para permitir
que a verdade sobre o reino de Deus possa ser propagada.
— Senhor, pensou, nada mudou. Não sabem nada e continuam os mesmos. Mas seja feita a vossa vontade, ó Deus de Israel, se é esse o vosso
desejo. Que as coisas sigam o seu curso conforme foi determinado.
Depois destes breves pensamentos, Miryam virou-se para sua filha Rute:
— Minha filha, preciso lavar-me. O pó da estrada, depois desta longa
caminhada, seca minha pele e maltrata meus pés.
— Mãe, respondeu Rute, Rebeca irá ajudá-la. É criança mas sabe
cumprir com suas obrigações.
Rebeca, ouvindo a mãe, levantou-se do chão, uma menina de dez anos
vestindo uma túnica rústica.
— Venha, avó, disse, tomando-a pela mão como se ela fosse uma criança. Levou-a para trás da cortina onde ficava a parte interna da casa. Uma
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lamparina de azeite bruxuleava, deixando ver muito pouco antes que os olhos se
acostumassem com a semi-escuridão. O dia já se findava e a pouca luz que
entrava na casa pela rótula do teto já se havia ido. As cortinas esticadas
numa corda rústica eram feitas de cobertas grossas, acizentadas e serviam
para dividir o ambiente. Sobre as camas de grossas tiras de couro cruzadas,
estendiam-se algumas peles de camelo e carneiro, que também revestiam o chão
nú, de terra batida, proporcionando uma atmosfera aconchegante para aquela
parte da casa. Encostada na parede, apertada entre duas enxergas uma mesinha baixa e tosca sustentava uma bacia de barro, funda e larga.
Assim que atravessou as cortinas uma enxurrada de recordações tomou
conta da velha senhora. Rebeca não se deu conta, em nenhum momento, dos
sentimentos emocionais que dominavam o rosto da avó, indo e vindo de um lado
para o outro, a menina sentia-se importante com o trabalho. Sentia-se honrada
por ser tão jovem e já encarregada de cuidar para que a avó, que voltava depois
de uma prolongada ausência, tivesse conforto e se sentisse em casa.
Miryam procurou controlar-se.
— Estou velha mesmo, pensou. Tudo está me afetando, todos os velhos
lugares, os velhos objetos, tudo me faz lembrar alguma coisa. Preciso deixar
essas bobagens de lado para não machucar meu velho coração.
— Pode buscar a água, Rebeca, disse em voz alta afastando de si
qualquer pensamento que não fosse o de se livrar do pó da estrada.
Enquanto Rebeca se dirigia para o outro lados da cortina, Miryam
deixou o véu cair no chão. Depois, tirou a túnica empoeirada e suja pela cabeça, deixando-a cair a seus pés. Seu corpo ficou cingido apenas por uma espécie
de tanga de tecido mais fino, que passava por entre as pernas e era presa na
cintura por um cordão.
Rebeca, transportando a água tépida numa enorme ânfora que mal podia
carregar, despejou-a cuidadosamente numa bacia de barro, procurando não
respingar as peles que cobriam o chão. Em seguida deu para a avó um pequeno
tablete amarelado que tirou da dobra da manga de sua túnica.
Miryam ajoelhou-se sobre a túnica suja junto à bacia de água limpa e,
com suas mãos, molhou o rosto, os seios e as axilas. Rebeca, atrás dela,
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segurou a vasta cabeleira grisalha, torcendo-a e levando-a para o alto, a fim
de que a parte de trás do pescoço não fosse esquecida. O tablete amarelado
foi esfregando na pele umedecida que se cobriu de uma leve espuma perfumada.
Inclinando-se novamente sobre a água, toda a espuma foi removida por vigorosa lavagem e Miryam estava pronta para secar o corpo. Prestativa, Rebeca
soltou a cabeleira e com um pedaço de pano quadrado, muito alvo que esperava
sobre uma das camas, secou-lhe toda a pele molhada, encostando delicadamente as mãos no corpo da senhora. Miryam estendeu as mãos quando Rebeca lhe apresentou um vidrinho cheio de óleo perfumado. A menina derramou
umas gotas que Miryam passou suavemente pelo corpo e nas axilas antes de
vestir a túnica branca, rigorosamente alva, sentando-se em seguida sobre a pele
lanosa que cobria uma das enxergas. Rebeca deu-lhe um lenço azul que ela
colocou na cabeça, escondendo parte da cabeleira.
— Agora vamos tirar as sandálias, avó, disse Rebeca. Teus pés devem estar cansados e doloridos. Eles merecem um bom tratamento depois de
terem carregado teu corpo por tanto tempo.
A menina arregaçou a túnica da avó até os joelhos e depois colocou a
mesma bacia de água que havia servido para lavar Miryam. Sumiu por uns
instantes para o outro lado da cortina, surgindo quase imediatamente para
jogar mais água quente dentro da água já servida. Ajoelhou-se e com presteza
tomou o pé direito da avó com suas mãos, desatando-lhe a sandália, pois sabia
que se começasse seu trabalho com o esquerdo atrairia maus augúrios e espíritos
malignos. Com cuidado, desenrolou as tiras de couro de cabra que haviam
marcado profundamente as pernas de Miryam e repetiu a mesma operação com
o outro pé.
Marcados pelas correntes de couro, levemente, e muito sujos, os dois pés
foram mergulhados dentro da água fumegante, esfregados pelas mãozinhas cuidadosas de Rebeca. Depois de limpos foram friccionados levemente com o
mesmo pedaço de pano usado para secar o corpo, trazendo de volta a circulação. Como um passe de mágica, a menina materializou um frasco de forma
afuselada que continha um líquido cor de conhaque, derramou umas gotas na
palma da mão e começou a massagem dos pés de Miryam, trazendo com isto
um total bem-estar. Espalhou a essência pelos calcanhares e tornozelos, dei— 42 —
xando que o óleo aromático penetrasse profundamente na pele. Miryam não se
calçou novamente, deixando suas sandálias sobre o catre, permanecendo de pés
nus até que saísse da casa novamente.
Cumprida assim sua tarefa, Rebeca tomou as mãos da avó que, descalça, seguiu a menina de volta à sala, atravessando a fronteira de cortinas que
separavam os dois ambientes. A aparição da Senhora fez com que os homens
que conversavam em voz baixa na soleira da porta, voltassem para a refeição.
As duas crianças de Rute, Efrain e Rubens, já estavam terminando sua
terrina de lentilha, sentadas no chão ao lado do fogão.
Silenciosamente os homens sentaram-se nos tamboretes que rodeavam a
mesa, aguardando a refeição. Nenhum deles convidou Miryam para sentar,
embora Rute tivesse esperado sua mãe terminar a higiene para servir o jantar.
Ela se manteve de pé atrás, observando sua filha a distribuir os pratos de
barro cozido e colocar no centro da mesa alguidares de madeira, tampados, e
pratos cheios de comida. A todos foi dada uma crocante torta de trigo para
ser comida com a sopa de lentilha que enchia os alguidares. Os outros pratos
continham passas sem caroço e figos secos molhados em filetes de mel dourado. Tiago abençoou a refeição. Rute serviu porções generosas que foram devoradas em silêncio, ajudadas por canecas de leite quente e fumegante.
Miryam serviu-se diretamente das panelas e sentou-se numa grossa esteira de palma e junco, humildemente, pois não era costume que as mulheres se
sentassem com os homens.
Nenhuma palavra foi dita, apenas a fome voraz era saciada pela fartura
daquela mesa simples, todos concentrados na comida. Acabada a refeição Rute
colocou no resto das brasas que ainda estavam bem vivas um galho de cinamomo
cheio de flores de um tom violeta que se queimou vagarosamente espalhando pelo
aposento um aroma gostoso e matou o cheiro da comida e de picumã.
Arrotando saciados, os homens se levantaram para cumprir a última tarefa do dia, uma das obrigações que todos os judeus a partir dos treze anos
precisavam fazer, entoar a oração da noite, o Schema(10).
(10) Profissão de fé do judaísmo, proclamando a absoluta unidade de Deus. É recitando
duas vezes no culto diário, ao anoitecer e de manhã (Deut 6:7). É também proferido pelo

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Antes de se voltarem para o Sul, em direção a cidade Santa de Jerusalém, João Zebedeu convidou todos os presentes para entoar com eles a oração
diante da porta, ergueram os braços e recitaram, sem cobrir as cabeças, sem
usarem seus filacterios(12), orando a Deus. Seguiram a tradição milenar que
pesava sob suas cabeças. Miryam seguiu-os, com sua voz que ainda conservava
timbre de menina que cantava hinos no templo de Jerusalém. Um a um, todos
juntaram suas vozes num só louvor, sem instrumentos, apenas as vozes de homens
tementes a seu Deus.
“Ouve ó Israel. O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o
Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as suas
forças...”.
Terminada a oração, Tiago e João que pretendiam pousar na casa de
Nehemias, pegaram algumas candeias e desejando a paz aos que permaneciam na casa, saíram com ele para a noite. A porta foi trancada por Rute
que, com presteza, designou os lugares para o repouso. Miryam saudando a
todos retirou-se para trás da cortina com as crianças. Aos poucos todos foram
se deitando, Ismael acomodado numa esteira estendida na sala. A luz continuou acesa, bruxuleando nas candeias, pois as misteriosas trevas da noite eram
temidas por todos os judeus.
judeu moribundo ou em sua intenção. Milhares de judeus enfrentaram a morte heroicamente
professando este credo do judaísmo.
(11) Filacterios — ou tefelin, são símbolos da religião judaica, juntamente com o shabbath, a
circuncisão, as leis dietéticas e as franjas rituais outzitziot, os tefelin ou filacterios são basicamente caixas onde estão depositadas tiras de pergaminho nas quais estão inscritas quatro passagens bíblicas em hebraico: Êxodo 13:1-10 e 11:16, Deuteronômio 6:4-7 e 11:13-21.
Os filacterios são feitos de couro negro, um se destina à cabeça e o outro à mão esquerda.
São presos por meios de tiras e alças de couro. O usado na cabeça é amarrado na testa de
forma a ficar perto do cérebro, e o que está no braço esquerdo fica numa posição mais
próxima do coração. Significa que quando um judeu adora a Deus o faz com seu coração e
sua mente. O uso é obrigatório para todos os homens adultos judeus desde os treze anos de
idade. São colocados antes de iniciar as orações matutinas, menos nos shabbaths e nos
dias de festa. A tradição exige, que ao ser colocado, o indivíduo deve estar de pé, em sinal
de respeito, e, o primeiro a ser colocado é o da mão . É colocado na parte interior do braço
esquerdo bem acima do cotovelo e preso por uma alça de longa tira que pende do lado.
Depois que os nós estão atados, o devoto enrola a tira do tefilin várias vezes em torno do
antebraço. O outro é colocado na parte central superior da testa e a tira que o segura é
enrolada na cabeça e amarrada, deixando as duas tiras pendentes cair em cima do ombro.

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SÃO PAULO, 1964

Para Míriam foi fácil se encantar e descobrir um amigo no homem
grande e diferente, vestido com roupas esquisitas, parecido com os
judeus barbudos que passavam pela rua e que nunca falavam com
ela. Para ele foi mais difícil, mesmo vendo na menina alguma coisa
especial que o atraia e que o prendia como uma mosca num pires de
mel. Porque no mundo daquele homem não havia lugar para mulheres, mesmo que fossem crianças.
Para Felipe, a amizade dos dois foi muito difícil de aceitar. Tinha
ciúmes de sua menina e muito medo que um severo rabino hassidi
pudesse transformá-la numa mulher abafada pelas severas leis dele,
que ela sofresse com isso. Felipe não tinha grandes posses mas poderia ter enviado suas filhas para uma ótima escola para meninas judias onde elas teriam acesso a uma boa educação e um bom treinamento, a fim de se tornarem boas esposas e mães, obedientes, castas, caridosas e piedosas. Os planos que aquele judeu pequeno e prático tinha para suas meninas nada tinham a ver com os hassidins. Percebeu que elas, desde muito pequenas, eram inteligentes, ativas, curiosas e inquisitivas e entendeu que não deveriam ser tolhidas e encurraladas dentro de preceitos ortodoxos e severos que colocavam as
mulheres na total dependência masculina, cortando suas asa bem cedo.
Para os hassidins, as mulheres não tinham inteligência suficiente para
estudar, principalmente estudar o Talmude(13) se tivesse tendência para
(12) Talmude — fonte bibliográfica do judaísmo rabínico criado durante a era helenistica da
história judaica. É composto da coleção de muitos livros, se tratando de uma verdadeira
biblioteca de tratados de leis e regulamentos rabínicos, tradições, costumes, ritos e cerimônias, leis civis e criminais. Também contém opiniões, discussões e debates, aforismos moralísticos, exemplos e citações de Sábios. Todo este acúmulo de saber e experiência é

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isso e quisessem fazê-lo. Para os hassidins, Deus tinha feito as mulheres com a mente vagarosa, superficial e inconstante, cabendo a
elas apenas um papel na vida, o de criar filhos. Para Felipe, suas meninas eram brilhantes poderiam fazer o que preferissem, e acreditava
que sendo produto de sua semente, elas nunca seriam mulheres de
mente estreita e inconstante. Para os hassidins(14), as mulheres precisavam ser guiada pela mão forte do homem, dono dos altos planos
espirituais de Deus. Para Felipe, suas meninas precisavam em primeiro lugar aprender as coisa práticas da vida para que pudessem sobreapresentado aos devotos a fim de que seja neles incentivada a vontade de saber juntamente
com uma conduta ética digna. O Talmude ainda tenta orientar o povo judeu através das vicissitudes da vida e estimular a fé através de ensinamentos populares. O Talmude foi a criação
religiosa e cultural concebida em séculos de esforço, num esforço de elaboração de uma
síntese racional da crença e das observâncias com a conduta moral e a lei, ocupando milhares
de eruditos durante possivelmente sete séculos. Foi engendrado como instrumento de adaptação da religião judaica às circunstâncias, pois o mundo está sempre em mutação.
(13) Hassidin ou Chassidin — o hassidismo ou chassidismo foi fundado por Israel, Baal
Shem por volta de 1735 quando ele começou a pregar sua filosofia de fé e de predestinação.
Desde o florescimento da era rabínica na antiga Babilônia no final do período do Segundo
Templo, nenhum movimento religioso causou um impacto tão grande entre judeus como o
movimento hassidico. Em menos de um século conseguiu penetrar profundamente na vida
dos judeus da Europa Oriental, região em que se concentrava a maioria do povo judeu. O
movimento conseguiu reavivar o combatido espírito judeu, massacrado por tantas vicissitudes e desgraças, principalmente nos países eslavos, assegurando-lhes a sobrevivência moral.
Cresceu de tal maneira que, no final do século XIX, pelo menos metade dos judeus do
mundo podiam ser considerados adeptos fervorosos do hassidismo. É considerado como
uma revolução social e religiosa. Com a morte de Baal Shem, a liderança religiosa passou
para Dov Ber, seu discípulo que começou a contradizer seu mestre quanto a comunhão
direta do homem com Deus. Dov Ber institucionalizou o movimento conferido ao rebeh ou
tzadik, rabi, o papel de mediador entre o homem e Deus. O devoto tornou-se dependente do
rabi, intermediário entre ele e Deus. O hassidi piedoso visitava seu tzadik pelo menos três
vezes ao ano, presenteando-o com dinheiro e recebendo em troca disso suas bênçãos e
seus conselhos. Além dessas visitas, procurava-o todas as vezes que necessitava de sua
intervenção junto ao Todo Poderoso. Era procurado com freqüência para resolver problemas de ordem econômica, tão comuns nos miseráveis guetos da Polônia, Ucrânia e Eslováquia, entre outros. O tzadik tinha sempre em mãos amuletos e talismãs para qualquer tipo de
problema, onde estavam inscritas em hebraico as encantações e fórmulas cabalísticas que
anulavam o poder dos demônios. Estes homens santos viviam, de um modo geral, bem
melhor do que seus seguidores, mas eram seguidos, por onde iam por adeptos fervorosos
que bebiam suas palavras e oravam com ele. O culto hassidico emprestava grande ênfase
ao poder criador da canção, tida como a forma mais pura de oração. Contudo, apesar de
tudo isto, o movimento hassidico produziu uma profunda revolução religiosa em sua época,
ajudando os espezinhados habitantes dos velhos guetos na obtenção da força moral necessária para não sucumbirem. Como movimento religioso organizado demonstra hoje em dia
grande vitalidade, nos centros urbanos importantes como Nova Iorque, Chicago, Londres.
Os tzadim ainda são importantes nas comunidades hassidicas porem, a atuação deles é
muito diferente dos tempos passados.

— 46 —
viver em qualquer circunstância adversa e deixar os planos espirituais
para os judeus ortodoxos. Por isso achava muito importante que elas
fizessem cursos regulares normais, aprendessem várias línguas e adotassem uma profissão, embora não descuidasse dos assuntos bíblicos em casa.
Felipe não era um frequentador assíduo de sinagogas nem procurava rabinos para pedir conselhos e orientação para os passos que
dava em sua vida. Nos anos tumultuados e doloridos que passou na
Europa, antes de dar com os costados no Brasil, naqueles anos de
desespero pela sobrevivência e de grandes desilusões, seu caráter
havia se moldado, transformando-o num homem quase céptico. Cumpria automaticamente suas obrigações religiosas, pois elas pareciam
estar gravadas com fogo no seu código genético. Além disso sua esposa era piedosa e ele não queria desgostá-la. Assim, comparecia à
sinagoga em quase todos os Shabbath e, excepcionalmente, quando
havia um compromisso social como um casamento ou um minyan(15),
para rezar o kaddish(16), uma oração fúnebre em intenção da alma de
algum amigo que havia falecido. Em casa, conversava com as suas
meninas sobre as coisas da Bíblia, fazia as orações necessárias para
que fosse considerado um judeu e conservava um menorá de prata na
sala de jantar e um mezuzah(17), pequeno pergaminho contendo uma
oração, pregado no batente da porta de entrada, igual ao que havia
na casa de seu pai e de seu avô na Alemanha, como uma homenagem a eles.
Contudo, não se manifestava contra a religiosidade demonstrada
pela grande maioria de seus amigos judeus. Mas não conseguia entender os judeus hassidins. Tendo desenvolvido uma atitude pragmática em relação à vida, Felipe não via com bons olhos e nem conseguia
(15) Minyan — dez fiéis do sexo masculino que se reúnem para realizar um culto religioso.
(16) Kaddish — o mais famoso hino a Deus da liturgia judaica. Há muitas variedades, entre
eles o recitado pelos enlutados.
(17) Mezuzah — caixa tubular de madeira, vidro ou metal, em geral de sete a oito centímetros de comprimento, contendo um pequeno pedaço retangular de pergaminho, no qual estão escritas em, vinte e duas linhas, em hebraico, as passagens bíblicas de Deuteronômio
(6:4-9 e 11:13-21) que fazem parte do Schema. Tem uma abertura na parte superior que
deixa entrever a palavra Shadai, um dos nomes místicos de Deus, impresso no verso do
pergaminho. É colocado numa posição inclinada na parte superior da ombreira direita na
porta de entrada da residência. Toda vez que sai ou entra na casa o judeu devoto beija a
mezuzah, tocando com a ponta dos dedos a palavra Shadai e diz baixinho — “Que Deus
cuide de minha saída e de minha entrada agora e para sempre”.

— 47 —
entender o fanatismo religioso com suas leis extremamente severas
dos ortodoxos. Por isso ficou realmente preocupado com o interesse
de sua menina pelo judeu cabeludo e barbudo que fora morar no mesmo andar do seu prédio. Relutou muito para permitir, sem repreensões, a presença dela junto a ele. Ciumento, esperava que a menina
fosse rechaçada pois conhecia a mentalidade ortodoxa com relação
às mulheres. Mas conhecia também a curiosidade e a sede de saber
de sua menina. Sentia-se como um tolo, enciumado, por vê-la ao lado
do rabino, substituído como um pedaço de pau, posto de lado como
algo inútil, principalmente quando, depois do jantar, ela atravessava a
porta de entrada para se enfiar na sala do outro lado do hall. Chegara
a ir, muitas vezes espiar o que eles estavam conversando, mandava a
esposa acompanhar a menina, tinha medo de fazer papel ridículo.
Começou a se conformar e ser mais racional quando viu sua filha aprendendo o hebraico. Ele mesmo desconhecia esta língua. Falava o iídiche e o alemão que aprendera quando criança, conseguia se comunicar em francês e italiano que aprendera pelas suas andanças pela
Europa. Mesmo o seu português não era perfeito, arranhando os erres, não conjugando os verbos com precisão e tinha especial predileção pela troca dos gêneros dos substantivos. O progresso de Míriam,
aprendendo mais uma língua começou finalmente a animá-lo. O seu
lado pragmático acabou convencendo-o que aquela amizade e vizinhança poderia trazer um grande lucro. O argumento final que o convenceu a aceitar o relacionamento de Míriam e Abraham Jacobinsky
foi um pensamento que lhe ocorreu uma tardinha, um pensamento súbito que o iluminou, afastando-o daquela preocupação que o atormentava, enquanto fechava as portas de sua loja. Olhando para a rua quase vazia, ficou parado enquanto as ideias vinham a sua mente.
— Além disso, pensou como que concluindo uma longa dissertação de preocupações, ela nunca irá colocar um xale na cabeça, nunca
vai se sacudir lamentando por Jerusalém. E ele nunca vai maltratá-la
por causa disso.
Para Abraham Jacobinsky uma luta interior muito grande havia se
iniciado naquele dia da mudança para a Rua da Graça. Míriam fazia
com que ele se lembrasse de coisas e sensações sepultadas há muitos anos dentro dele. Lembrava-se de sua infância, de sua adolescência na América. Foi sua educação americana que fez com que ele
amolecesse o seu coração e com isso tornou possível a bela amizade
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Evangelho Segundo Maria

  • 1. S. F. ARSKY O Evangelho Segundo Maria(*) (*) Maria, nome latino derivado do hebraico Miryam ou do aramaico Maryam.
  • 3. “Recebe este escrito para que saibas como preservar os livros. E deverá colocá-los em ordem ungí-los com óleo de cedro e guardá-los em vasos de barro no lugar indicado”. TESTAMENTO DE MOISÉS “Embora muita coisa seja estranha demais para se acreditar, nada é estranho demais que não possa ter acontecido”. THOMAS HARDY
  • 4. —1— PALESTINA, ANO 46 D.C. O mês de Sivan(1) estava chegando ao fim e a hora décima já havia terminado há algum tempo. O pôr do Sol chegaria logo, não iria se demorar para que, logo depois dele, a província da Galileia fosse submergida em completa escuridão. O grupo de quatro pessoas, uma mulher e três homens, todos ofegantes e suados, apressou o passo para sair do compacto bosque formado por terebinto, que, escorrendo pela casca grossa das árvores, brilhava toda vez que captava um pouco da luz que filtrava por entre a ramagem. Nos dias anteriores houve vezes em que a estrada se mostrara hostil. No começo, depois que largara a região, ás margens do Yam, e passaram pelas desgastadas pedras da estrada romana que margeava o lago de Kineret(2) e penetravam na fértil planície, ziguezagueando por entre plantações e hortos até chegarem ao pé de uma montanha, num esplendido vale. A estrada então se enfiou pelas pedras, margeada por paredões verticais e nus, ás vezes de um tom dourado e cansativo por causa do sol inclemente que neles batia e, outras vezes, de um triste arroxeado furta-cor porque o caminho se entortava numa curva pronunciada, com a sombra banhando as rochas. A mesma via tortuosa e estreita que margeava o desfiladeiro ao pé do vale, obrigando os viajantes a atravessarem passagens difíceis, íngremes e pedregosas, aclíves pronunciados que dificultavam a mar(1) Sivan corresponde aproximadamente aos meses de Maio-Junho. O calendário judeu é do tipo lunar e consiste de 12 meses calculados de acordo com a lua. Seguindo ao costumes bíblicos os meses são contados a partir de Nisan. São os seguintes: 1-Nisan 2-Iyyar 3-Sivan 4-Tamuz 5-Av 6-Elul &-Tishri 8-Chishvan 9-Kislev 10-Teveret 11-Shevat 12-Adar. (2) Lago de Kineret, ou Mar da Galiléia. —4—
  • 5. cha, mergulhava, em certos trechos, numa mataria cerrada e selvagem, envolvendo-os num calor opressivo. O bafo quente do local obrigava os poros a segregar um suor abundante, que colava parte da roupa á pele e escorria pelo rosto e pelo corpo. Depois das rochas e penhascos veio a planície outra vez, agora coberta de arbustos baixos e robustos que margeavam a estrada de terra socada por milhares de pés peregrinos que por ali passaram durante muitos anos. Encontraram aldeias pobres e laboriosas durante a jornada, passaram por camponeses vestidos com túnicas grosseiras cingindo os rins, cabeças protegidas por panos coloridos, trabalhando nos campos entre palmeiras que balançavam ao vento. O terreno do caminho havia continuado pedregoso, batido, mas invadido por uma vegetação rasteira, fazendo com que o viajante desavisado tropeçasse no emaranhado que cobria o chão. Ás vezes, olivais verde azulados dominavam o cenário que margeava o caminho, e se perdiam no horizonte com suas enormes árvores retorcidas, a galharia rugosa se projetando para o céu. Outras vezes, trigais ondulantes e dourados coloriam o caminho, sobressaindose no terreno avermelhado. Mesmo quando o caminho estreito se transformava em uma estrada larga, ainda o caminhante sofria os efeitos de um leito erodido, esburacado e mal-tratado. Durante o trajeto os viajantes encontraram algumas das muitas caravanas que cruzavam diariamente a Palestina, em direção à Síria e Fenícia. Elas passavam ocupando toda a largura da estrada, esparramando-se pelas margens e invadindo os campos circunvizinhos. Deslocavam-se lentamente, preguiçosos, sem pressa, atropelando os que vinham em sentido contrário. Eram grandes comboios de homens, mulheres e crianças, dromedários, búfalos de grandes chifres, cabras, asnos e mulas, todo este conglomerado exalando um odor acre e forte misto de cheiro de animais e suor. Grandes carretas seguiam os comboios, com suas rodas de madeira gemendo na estrada, puxadas por bois vigorosos. Sacolejavam barulhentas pelos buracos da estrada ou cheias de mulheres com rosto oculto por longos véus e crianças ruidosas, ou carregadas de mercadorias acondicionadas em grandes cestas de vime, tonéis de madeira, ânforas de barro e fardos. Assim que a caravana acabava de passar, deixava atrás de si uma imensa nuvem de pó que sufocava os andarilhos, provocando tosse e mal estar. —5—
  • 6. Quando os viajantes penetraram na sombra acolhedora do bosque, embora ainda houvessem pedras e aclives dificultando a jornada, o caminho pareceu abrandar-se. Talvez fosse a atmosfera tranquila, o odor da resina dos terebintos, a sombra das copas acolhedoras, os raios de luz filtrando-se obliquamente através da ramagem, os troncos seculares que abrigavam mas não oprimiam. Mesmo suados e ofegantes, os viajantes sabiam que estavam muito próximos do seu destino, a aldeia de Nazaré. Felizmente Iavé havia sido misericordioso e os havia poupado dos desagradáveis encontros com as rudes patrulhas romanas, com seus soldados desafiadores que gostavam de ultrajar e insultar os judeus viajantes. Os quatro marcharam por mais meia hora pelo mesmo caminho que cortava o bosque e descia uma encosta suave. De repente, o bosque se abriu e avistaram lá embaixo a aldeia aninhada no exuberante verde que cobria várias colinas a seu redor, um tapete de vegetação que refletia levemente o resto de luz daquele dia. Tinham finalmente chegado ao fim da jornada e não passariam aquela noite ao relento. A mulher, cansada e abatida, apoiou-se no homem que parecia ser jovem, de cabelos encaracolados. Procurando auxílio para vencer os últimos passos, deixou o bosque e olhou a vila. Não tinha mais a juventude que deixa as pessoas se sujeitarem a uma exaustiva viagem a pé, como a que tinha feito, embora já fosse uma viajante experimentada, mas uma força de vontade férrea tinha se manifestado nela a fim de executar aquele empreendimento. O homem jovem amparou-a, segurou sua trouxa de viagem, ajudando-a a transpor os poucos metros que faltavam para que ela pudesse contemplar a aldeia. Fora uma penosa travessia desde as margens do mar de Tiberíades, onde estava parada há alguns meses. Contemplando Nazaré, falou com voz cansada e ofegante: — Vamos descansar um pouco, por favor. Acho que temos algum tempo antes que escureça. Os outros concordaram e sentaram-se na relva, depositando suas bagagens no chão e procurando recobrar as forças. Ismael, o mais baixo do grupo não ficou muito tempo estirado no chão ao lado dos companheiros. Era pequeno e ruivo, com pernas grossas e batatudas escondidas sob a túnica pobre e escura, de cor indefinida, já desbotada pelo —6—
  • 7. uso, cingida por uma corda amarrada à cintura. Duas pontas de tamanhos diferentes caiam ao longo da sua vestimenta. Ismael era um monge terapeuta, originário de um mosteiro essênio no Monte Carmelo, na Galileia. Viajava constantemente, parando muito pouco nos lugares onde passava pois, como terapeuta externo, cabia-lhe a missão de viajar sempre e entregar-se franca e totalmente à prática da caridade ao próximo, ajudando os necessitados, curando enfermos, consolando aflitos e, no meio da prática de tais virtudes, espalhando as luzes das verdades espirituais de sua Fraternidade. Contudo, a viagem que Ismael estava empreendendo naquele momento de sua vida, colocava-o fora de suas atribuições normais e rotineiras. Era também um sábio que falava e sabia escrever em várias línguas, além do aramaico. Era mestre na língua dos romanos, dos gregos, dos fenícios, dos egípcios, dos celtas, dos árabes com seus vários dialetos e manejava com perícia os vários alfabetos, as letras mais difíceis, os símbolos mais complicados. Ismael era o único filho de uma família cujo chefe era descendente do ramo de Davi. Era de Betânia, na Judeia e, ainda criança, viu sua mãe definhar em cima de uma enxerga e morrer. A lei judaica estabelecia que o pai de Ismael poderia se casar novamente, um arranjo que seria satisfatório para ele e a nova esposa, e dava ao pequeno órfão uma mãe. Mas, o pai de Ismael não era um judeu ortodoxo comum. Pertencia a uma Fraternidade essênia(3) que frequentava muitas vezes ao ano. Por isso, nem mesmo quis ir ao templo e exercer o direito que lhe cabia como um viúvo descendente de Davi e pai de família, de trazer de lá uma mulher para sua casa. Ele tinha a função de (3) Fraternidade essênia — seita religiosa no final do período do Segundo Templo. Sob o ponto de vista religioso, tinham crenças e costumes próprios. Acreditavam na imortalidade da alma, na recompensa e na punição mas não acreditavam na ressurreição física. Levavam uma vida comunal abstêmia e se opunham à escravidão e à propriedade privada, eram, na sua maioria, celibatários e tinham na agricultura sua ocupação principal. Opunham-se a sacrifícios de animais e só ofertavam flores e óleos. Havia um período de iniciação de 3 anos para os noviços que, depois de admitidos juravam não revelar os segredos da seita. Nada se sabe a respeito deles depois da destruição do Segundo Templo. A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto poderá elucidar fatos com o cristianismo nascente. Já há algumas publicações e estudos feitos sobre estes documentos que ainda estão sendo analisados. —7—
  • 8. hospedeiro dentro da comunidade espiritual em que ingressara, e a que pertencia, cabendo-lhe a tarefa de dispor para que os terapeutas externos, em suas eternas perambulações, tivessem boas acomodações quando visitassem Betânia. Providenciava uma cama decente e refeições fartas durante a estadia deles. Assim, como viúvo, preferiu dedicar-se às suas tarefas e abdicar de uma nova esposa. Levou o filho Ismael até o mosteiro do Monte Carmelo, numa penosa viagem em que o pequeno teve que seguí-lo à pé com seus passos curtos. Lá Ismael havia sido entregue como aprendiz e assim foram cortados de um só golpe, todos os laços que prendiam o menino a sua gente. Nos primeiros anos de sua iniciação, havia ficado praticamente isolado a fim de esquecer as regras e procedimentos sociais da sociedade judaica. Aos poucos, a medida que crescia, foi-se integrando na vida austera da comunidade monástica e adotado pelos monges que acabaram de criá-lo. Ali cresceu Ismael, se inteirando de todos os conhecimentos essênios, de sua filosofia de vida. Os monges viviam afastados do mundo, enclausurados nos mosteiros, haviam vários por toda a nação. Discordavam abertamente do clero judaico que, segundo eles, havia distorcido os ensinamentos de Moisés. Fariseus ou Saduceus, todos eram combatidos pelos monges e pelos integrantes da Ordem Essênia. Os monges essênios postulavam o domínio das paixões, seguiam a escola pitagórica e eram celibatários convictos. Mas, nas comunidades fora dos mosteiros, homens e mulheres conviviam em vida familiar, com regras para o matrimônio e educação dos filhos. Aí eram pacifistas mas, quando necessário, sabiam lutar, e eram hostis às autoridades romanas e aos que compactuavam com ela. O povo essênio vivia em comunidades, juntos, e possuíam tudo em comum. Quanto aos judeus, também viviam em função das Leis Mosaicas(4) mas elas eram habilmente manejadas pela classe sacerdotal que exercia grande influência na vida da nação. Ortodoxos, fariseus e céticos saduceus guiavam e (4) Leis Mosaicas — código de leis dado ao seu povo pelo patriarca Moisés. —8—
  • 9. manobravam o povo, que não se afastava de sua grande devoção aDeus. Criando dentro das nações da Fraternidade do mosteiro do Monte Carmelo, à Ismael foi destinada uma função muito especial. Os essênios eram grandes praticantes da medicina e tinham entre eles o equivalente judaico dos ascetas de Alexandria conhecidos como terapeutas. Também chamados terapeutas, Ismael tornou-se um deles e exercia um intercâmbio direto com o mundo exterior. Desde pequeno havia demonstrado dons especiais e grande interesse nas artes médicas. Por isso, aos doze anos foi consagrado como servidor da Fraternidade num ritual simples e cheio de simbolismo, durante uma reunião em que lavou as mãos numa bacia de louça branca, afirmando assim o compromisso de jamais sujá-las com atos indignos. Depois da ablução, o neófito Ismael comprometeu-se com palavras, pedindo também o auxílio divino para o cumprimento de seus propósitos, postando-se em frente de uma lâmpada. Daquele dia em diante, Ismael, com a permissão da Ordem, passou a usar o gesto que o tornaria conhecido como monge, cerrando a mão direita, com o braço levantado, e apontando o indicador para o céu. Começou sua aprendizagem nas artes mágicas de curar, no conhecimento de ervas e substâncias, nas técnicas médicas. Depois de servir alguns anos dentro do mosteiro, provando ser digno de pertencer à Fraternidade, numa cerimônia simples, lavou o rosto, além das mãos e selou definitivamente seu compromisso de usar seus sentidos conforme as regras do mosteiro do Monte Carmelo. Passou então a servir seu semelhante no mundo exterior. Por toda a Palestina, pessoas ligadas a essa Fraternidade abrigavam e proviam os monges em suas andanças. Todos sabiam da existência dos Mosteiros e dos homens simples e virtuosos, que guardavam a Lei, que se vestiam de branco, não bebiam vinho, não comiam carne e não se deitavam com mulheres. Também todos conheciam as cidades essênias perto do Mar Morto, onde os homens não eram celibatários mas eram zelosos guardiães da Lei e muito virtuosos e pios. —9—
  • 10. —2— SÃO PAULO, 1987 O salão do Museu de Arqueologia da USP, o Museu do Homem, como é chamado, fica no terceiro andar de um dos muitos prédios do campus. É uma sala bem iluminada, com compridas estantes de vidro. Por causa da luz do sol, as persianas precisam ser abaixadas logo depois das dez horas da manhã para evitar, principalmente, que os artefatos indígenas fabricados com penas e palhas, se desbotem. As vitrines são muito bem arrumadas, com cartões fornecendo informações de cada item ao visitante e extremamente limpas. A faxineira pernambucana que cuida da limpeza, uma mulher pequena e franzina, funcionária tempo integral, gosta de manter tudo na mais perfeita ordem e limpeza. O museu é muito pequeno. O salão de exibição, o depósito, a sala de classificação e de limpeza de peças, a sala do arquivo, a sala de administração com seu banheiro particular e outro pequeno banheiro. Nunca houve verba para ampliá-lo, e pode-se dizer que a existência dele é um luxo dentro do departamento. Em setembro de 1987, três funcionários cuidavam do Museu: a faxineira pernambucana, um rapaz negro de corpo atlético e Míriam Weissmann diplomada pelo Curso de História da Universidade. Míriam Weissmann, com especialização e mestrado em Povos Orientais, levava sozinha o museu. O rapaz negro vivia em permanente licença para tratamento de saúde, apesar de seu corpo atlético, a faxineira pernambucana pouco conseguia fazer além de limpar. Depois que terminou o seu mestrado e sua tese de doutoramento, ela não quis se dedicar à carreira docente. Não que lhe faltassem convites. Um antigo professor, Tito Lubonski, orientou-a durante a preparação — 10 —
  • 11. de sua tese e fez vários convites para que ela iniciasse a carreira no seu departamento, como assistente. Míriam rejeitou a oferta. Não era aquilo que ela queria e, se ficasse comprometida com uma carreira universitária, seus sonhos teriam que ser esquecidos. Optou, na época pensou que fosse temporário, pelo cargo de funcionária da USP, encostada devido seu curriculum no Museu de Antropologia onde cumpria o horário de trabalho exigido. Desanimada, via que o temporário estava se virando permanente e, que a oportunidade esperada e sonhada por ela estava se tornando uma quimera. Era quase meio dia, hora do almoço, num dia quente da primavera paulistana, um clima já de quase verão, embora a estação estivesse ainda longe. Míriam levantou-se da escrivaninha onde estivera sentada nas últimas duas horas, planejando uma exposição de peças do Alto Xingu para o saguão da Agência Butantã do Banespa. Levantou os braços, espreguiçando-se, e calçou o tênis regata que tinha tirado dos pés enquanto trabalhava. Era uma moça pequena, baixinha e rechonchuda, sem ser gorda. Tinha os cabelos cortados bem curtos e, os cachos com reflexo dourados emolduravam um rosto redondo de olhos azuis escondidos atrás de óculos de aros escuros, nariz pequeno e lábios carnudos que pareciam muito macios. Parecia uma menininha embora já tivesse chegado aos trinta e quatro anos. Míriam nunca havia sido casada. Nem tampouco havia amigado, juntado ou vivido na companhia de algum homem. Tivera um caso de amor ardente e mal-resolvido, ainda pendente, com um assistente da cadeira de Antropologia Cultural, casado e sem a mínima vontade se separar da mulher e dos filhos. Até aquela tarde de primavera que mais parecia verão ela só estava seriamente comprometida com seus livros e sua vida intelectual. Os homens não se sentiam atraídos por ela e ela não fazia nem um pouco de esforço para atraí-los. Se fosse vaidosa poderia ser considerada uma garota atraente mas as roupas que usava eram sempre de baixa qualidade, muito simples, quase sempre jeans, camiseta e tênis, sempre sem um pingo de maquilagem que poderia esconder as sardas e realçar sua boca e seus olhos. Seus óculos de armação escura já estavam pendurados no nariz há mais de cinco anos e eram os únicos que ela tinha. Míriam gastava tudo o que ganhava, praticamente todo o seu salário, em livros. Importados ou comprados nos sebos onde era assídua frequentadora, em inglês, francês, alemão ou italiano, eles eram a coisa mais importante de sua vida. Não havia mais lugar para estocá-los dentro, de sua casa, estavam por todos os lados, em todos os cômodos. — 11 —
  • 12. Depois de uma boa espreguiçada, Míriam passou um pente nos cabelos e gritou: — Raimunda! A faxineira se materializou na frente dela, pronta para atendê-la. Raimunda adorava a moça, a patroa, como a chamava. Trabalhavam juntas há cinco anos naquele lugar sossegado e sem muito movimento o que lhes dava a oportunidade de muita conversa e longas confidências, troca de conselhos e alguma ajuda mútua. — Pronto, D. Míriam, já sei, vai almoçar. — Vou indo. Hoje vou sair do campus para variar um pouco. Não agüento mais a comida daqui. — Porque a Senhora não vai num tal de vegetariano que tem lá na Teodoro? Ouvi dizer que é danado de bom. Comida fina. É uma boa ideia, concordou Míriam. É. Acho que vou para lá. Qualquer coisa é bom para variar e ficar livre da comida horrível do Biafra. — O restaurante do campus, onde comiam os alunos, professores e funcionários tinha sido apelidado de Biafra em homenagem aos africanos desnutridos e realmente fazia juz ao nome. Raimunda declarou com evidente satisfação: — Pode ir sossegada, D. Míriam. Eu tomo conta de tudo daqui. A faxineira não comia em restaurante. O salário pequeno e cinco filhos em casa para alimentar obrigavam-na comer uma marmita fria sempre com os mesmos ingredientes como recheio: arroz, feijão, farinha e ovo frito. Ás vezes ela variava, geralmente logo depois de receber o contra-cheque, com umas finas rodelas de tomate e uma ou duas folhas de alface que murchavam abafadas dentro do recipiente fechado. Quando Míriam tinha sua carteira mais recheada e podia fazer-lhe uma gentileza, pagava um comercial com carne para a faxineira. Também trazia sempre de casa sobras do jantar para reforçar a marmita de Raimunda. Míriam saiu do prédio com as alças da bolsa atravessadas no corpo e tomou o ônibus na avenida. O campus da universidade foi desfilando para os seus olhos, alegrando-a, mesmo conhecendo cada pedaço dele, cada árvore, cada prédio, cada flor. Era um belo lugar, mui— 12 —
  • 13. to agradável. Avenidas amplas ladeadas por arbustos e flores bem cuidadas, bosques aprazíveis, cada prédio dentro de um jardim, sem muros, o verde do campus brilhando sob a luz do sol do meio dia. Não foi difícil encontrar o restaurante. Estava bem cheio, era hora de almoço de todo o comércio e dos escritórios que lotam os prédios daquelas redondezas, mas havia vagas nas mesas. O sistema usado era simples. Na entrada recebia-se um tíquete para ser pago na saída e podia-se escolher o prato da preferência na mesa fria onde saladas verdes e coloridas esperavam que o freguês se servisse em outra mesa especial, um rechaud, acomodando os diversos pratos quentes, sem nenhum tipo de carne. Com um prato bem sortido na mão, Míriam olhou para o lado esquerdo. Lá estavam as janelas dando para a rua, escancaradas, deixando entrar uma leve brisa junto com o ruído dos carros e ônibus. Sentado sob uma janela aberta para a rua, estava o Professor Tito Lubonski, atrás de um enorme prato de folhas verdes. — Posso sentar-me aqui, Professor? — perguntou Míriam chegando-se perto dele. — Que prazer, Míriam Weissmann, minha ex-aluna predileta. Façame companhia, respondeu Tito. — Enjoei do Biafra. Vim experimentar a comida daqui. É um pouco distante mas, se valer a pena, fico freguesa. — É boazinha. Dá para agüentar se agente não vier todos os dias. Há outro do tipo pelas redondezas. Míriam sentou-se em frente do homem com seu prato variado. Tito era um homem de meia idade, calvo, muito magro. Trabalhava na universidade há muitos anos como professor do Departamento de História Antiga, e era detentor de muitos diplomas de cursos feitos no exterior. Passara uns anos na Sorbonne dando aulas como professor convidado e tinha algumas fama dentro da comunidade universitária. Era pessoa simples e modesta apesar da imensa bagagem cultural que trazia com ele. Falava e mastigava ao mesmo tempo: — Tenho tido propostas de trabalho fora do Brasil, mas vou ficar por aqui mesmo. — Ouvi dizer que o Senhor vai para o Departamento de Publicações, para a Imprensa Universitária. É verdade? perguntou ela. — 13 —
  • 14. — Verdade, respondeu sem parar de comer. Começo amanhã a chefiar a coisa por lá. Quero publicar só coisa boa, nada do lixo que vem sendo impresso nestes últimos tempos. — Parabéns, professor, cumprimentou ela com sinceridade. Tenho certeza que fará um trabalho maravilhoso. — É, falou Tito, vou tentar fazer possível. Gosto disso. E emendou, trocando de assunto: — Como vai o seu trabalho no museu? — Uma merda. Não agüento mais manusear cacos de cerâmica, pena de cocar de índio, esqueleto de urna funerária. O Senhor sabe que não é isso que eu queria para mim. — Bem, disse ele, foi descoberto um sítio arqueológico em Araraquara. Parece que um fazendeiro passou o trator por uma área nunca plantada e desenterrou uma urna funerária. Se você quiser pode ir trabalhar lá. Míriam bebeu um gole de suco e demorou para responder. — Esquece. Já tive muitas oportunidades de desenterrar cacarecos indígenas. Não quero mais. Ela tentou mudar de assunto mas a conversa foi-se esvaziando e os dois continuaram comendo em silêncio, cada um mergulhado nos seus próprios pensamentos. Levantaram-se mais de uma vez para encher os pratos. O assunto parecia definitivamente esgotado quando o Professor perguntou de repente: — Míriam, o que você acha de trabalhar de verdade onde sempre você desejou, em Israel? Escavações... — Tá falando sério? É o que sonhei fazer toda minha vida. Porque o Senhor está falando nisso? Acha que tenho chance? Ela falou de pressa, sem tomar fôlego, parecendo estar sendo sacudida por uma onda de entusiasmo. — Calma, mocinha, riu Tito, há uma chance sim. Míriam segurou as mãos dele: — Como, por favor, me diga como. Penso nisso desde menina. — 14 —
  • 15. Ele continuou rindo da aflição dela. — Eu sei que você deseja isso, mas deixe-me contar, calma. Ela suspirou, endireitou o corpo procurando prestar atenção. — Estou ouvindo, bem comportada, mestre. Pode seguir adiante e demonstrar o que tem escondido no fundo do baú. — A ideia não me ocorreu agora, disse Tito. Eu já havia prensado nisso, mas a correria, a empolgação do novo trabalho na imprensa, me fez deixar de lado outros problemas, mesmo sabendo que o seu real interesse é a Palestina. Bem, há dois dias recebi uma carta de um amigo meu, da Inglaterra, que esta indo para Israel. — E daí? perguntou Míriam. — Daí que pensei em você porque ele está com um enorme subsídio e financiamento para colocar em andamento uma escavação que está parada, desativada ou ainda não começou, não sei bem ao certo, creio que perto de um lugar chamado Bherfar’ham. Acho que entre Bhefar’ham e Kfar Hassidi. — Tenho lido muito a respeito de escavações feitas em Israel, comentou Míriam. Todas elas estão sob comando de arqueólogos pagos por judeus americanos cheios dos dólares. Não li nada a respeito de escavação parada ou para começar. — Bem, parece que esse tell nada tem a ver com os tempos de Cristo, o que está sepultado é um enigma, disse Tito sem dar muita atenção ás palavras dela. A carta que recebi... Míriam interrompeu o Professor: — Li alguma coisa recentemente, notícia muito pequena, a respeito da descoberta de ruínas bíblicas do Porto de Kefar Naum. A seca da região foi tão grande que fez com que o Mar da Galileia recuasse. Nas escavações na beira dele só haviam encontrado vestígios da época bizantina. Agora vão mergulhar e achar o resto mais antigo da cidade. É disso que o Senhor está falando? — Claro que não. Você não prestou atenção? disse Tito. É outra escavação. Mas vão jogar muito dinheiro nela. Aliás estão despejando dinheiro em Israel, dólares. Toda Israel fervilha de sítios arqueológicos em atividade. — 15 —
  • 16. — Em compensação, meu caro Professor Tito, quando acham um sambaqui por aqui ele se perde por falta de verbas. Tratores arrancam o calcário para vender como adubo. Os cofres públicos são fechados para nós e não há investimentos particulares para qualquer atividade arqueológica. A de Araraquara, é uma exceção... — Pois é, concordou Tito, você tem toda razão. Também, você já ouviu falar de índio milionário que queira achar vestígios de seus antepassados? Você sabe que são os judeus milionários americanos que estão financiando e despejando dólares na velha Palestina. — Por isso fico com os meus livros, minhas revistas que recebo do Instituto Central de Relações Culturais de Jerusalém — tenho uma amiga lá que me manda todas — e fico esperando uma oportunidade pra me mandar pra fora. — Bem, vamos voltar ao nosso assunto anterior, disse Tito cruzando os talheres e os braços em cima da mesa. Posso escrever para Mark Eitelberg e pedir que arranje um lugar para você na equipe que está formando. Quero um curriculum seu em inglês, pode arranjar? — Claro, respondeu ela. Já tenho pronto esperando uma chance. Mas como entrarei em contato com o seu amigo e porque ele vai me colocar no projeto? — Bom, vamos por partes. Você terá que encontrá-lo em Londres caso tudo seja acertado. E se agüentar por lá até que comece o trabalho em Israel, dentro de quatro meses eu acho. — Eles, ou a fundação que está financiando o projeto mandariam um adiantamento, para a passagem, custos de viagem, manutenção, o Senhor sabe... — Suponho que não, respondeu Tito. Você terá um mês e meio para providenciar a quantia necessária para suas despesas. — Não dá. Sou dura. Não tenho um puto dum tostão guardado e ganho uma mixaria na merda da universidade. Tito soltou uma gargalhada gostosa. A franqueza da moça sempre fora um ponto a favor dela. — Você tem um tempinho para vender seus cacarecos, arranjar um financiador, sei lá. Não vai precisar de tanto assim. Uns cinco mil — 16 —
  • 17. dólares, eu acho... — Falar é fácil, retrucou Míriam. Ah! Me esqueci de meu velho pai judeu. Todo judeu velho tem dinheiro escondido. Quando eu ficar velha terei uma pilha de ouro ou de dólares. Os dois riram da piadinha. — Bem, continuou Tito, Mark Eitelberg é meu amigo há muitos anos. Depois da guerra éramos crianças judias sobreviventes do holocausto. Eu vim para o Brasil morar com uma velha tia que me acolheu, ele seguiu para a América. De lá para a Inglaterra. Mas temos mantido contato todos estes anos, nos visitando-os sempre. Quando fiquei na França nos encontrávamos sempre. A mulher dele foi irmã de minha mulher, o que nos torna meio parentes além de tudo. Foi, porque morreu de câncer há algum tempo. Se eu advogar em sua causa, o que não é favor nenhum pois conheço sua capacidade, seu preparo, tenho certeza que ele me atenderá. — Bem, Professor Tito, aceito sua oferta. Vamos esperar e pagar para ver. Agradeço por querer me tirar das mão dos índios e me jogar para os hebreus. Afinal, é de lá que eu vim... — Ora Míriam, assim que eu tiver em mãos o seu curriculum, mando a carta. E ficaremos aguardando a resposta. Raimunda levou a papelada de Míriam para Tito Lubonski, já no prédio da imprensa. A arqueóloga não pensou mais no assunto. Não pensou, embora o desejasse muito, que aquela proposta, surgida entre duas garfadas de legumes, pudesse se concretizar. Almejava mais do que nunca sair do quotidiano sem sentido em que se via metida até o pescoço, para trabalhar naquilo que sonhava fazer e estava se preparando para fazer desde que era criança. Para falar a verdade, desde o dia que conhecera o Rabino Abraham Jacobinsky. Também Abraham Jacobinsky nunca pode esquecer, enquanto foi vivo, a menina curiosa que, sentada á porta de entrada de seu apartamento, espionava a mudança que estava acontecendo no mesmo — 17 —
  • 18. andar em que ela morava. —3— PALESTINA, ANO 46 D.C. Ismael, o monge terapeuta, foi o primeiro do grupo dos viajantes a se levantar, a fim de examinar sua bagagem. Não trazia roupas além daquilo que levava no corpo. Mas, sua bagagem era preciosa, constituindo-se de uma coleção de rolos de pergaminhos preparados por ele mesmo. Eram feitos de pele de cordeiro cuja preparação sempre era trabalhosa, exigindo uma técnica especial trazida da região de Pérgamo. Os vários rolos que Ismael transportava estavam bem acondicionados e protegidos, bem enrolados em panos, tendo sido preparados em Cafarnaum, com muitos dias de trabalho, para que ficassem firmes e perfeitos. As peles de cordeiros tinham sido cuidadosamente raspadas, com muita delicadeza para não se romperem ocasionando buracos na peça e garantissem a qualidade superior da escrita. Depois, tinham sido secadas ao sol, sem que ficassem curtidas, viradas de um lado para o outro, cuidadosamente esticadas para que não se enrugassem. Esta operação foi ajudada por um tempo seco e estável, bem ensolarado e, depois de alguns dias de paciente trabalho, as peles estavam bem secas para serem friccionadas com pó de gesso e polida com pedra-pomes. Depois dele foi a vez da mulher levantar-se. Ela afastou o véu da cabeça deixando a cabeleira farta e grisalha exposta à leve brisa. O rosto levemente moreno mostrava-se extraordinariamente jovem pela idade que possuía. Contemplou a aldeia com tanta emoção que seus olhos se umedeceram. O talhe — 18 —
  • 19. esguio de sua figura contrastava com o azul suave do céu sem nuvens. Usava uma túnica clara e singela, muito suja na barra pela poeira do caminho percorrido, cingida por uma estreita faixa azul na altura da cintura. Sobre os ombros levava um véu combinando com a cor da faixa, também simples, sem bordas trabalhadas, de fazenda compacta, sem transparência. O homem jovem, de cabelos encaracolados, percebeu a emoção que dela se apossou e, levantando-se, foi até ela colocando as mãos em seus ombros. Ela, percebendo a presença dele controlou-se engolindo em seco. — João, disse para ele, gostaria de tomar um gole de água. João abaixou-se e pegou o odre de pele de cabra, bem curtido. A água estava fresca embora o recipiente tivesse viajado colado ao corpo do homem. Várias camadas de breu forravam-no por dentro, conservando-o impermeável e mantendo a água a uma temperatura adequada para o consumo dos viajantes. O odre foi passado às mãos da senhora que, destampando-o, deixou jorrar o resto do líquido para umedecer os lábios e saciar a sede. — É o resto de água potável. Ainda bem que estamos chegando comentou João. — Obrigada, meu amigo, ela agradeceu entregando o odre. És um bom homem. Tens me ajudado e me apoiado nesses anos difíceis. João, filho de Zebedeu de Cafarnaum não era tão jovem quanto parecia. Tinha o rosto estreito e enormes olhos que deixavam aparecer um temperamento arrebatado. Fanático e sombrio acompanhava aquela mulher seguindo-a com devoção e fidelidade há muitos anos. Acompanhava-a a cada passo, seguindo-a como um cão fiel, bebendo suas palavras e amando-a como um filho dedicado. Outro rapaz, ainda quase criança, levantou-se e segurou a mão dela. Era Nehemias, neto da falecida mulher que fora a primeira esposa de seu marido. Ciumento ele falou: — Ora minha avó, parece que eu de nada valho. — Não fale assim. Tu tens sido minha tranquilidade e facilitou muito — 19 —
  • 20. as coisas para mim. — Então vamos indo vó. Ainda temos uma boa pernada até tua casa, disse o rapaz. Os quatro caminhantes começaram a descida do lado oriental do Monte Nebi, em direção à aldeia assentada numa das encostas do Vale de Jezrael. O caminho que seguiam era suave e bem cuidado, como se mãos humanas o tivessem aplainado. Era coberto de sedosa vegetação verde claro que bordava a brancura calcária do chão poeirento, cercado de vegetação luxuriante que atestava a fertilidade do vale. Não era o único caminho em direção ao aglomerado de casas baixas e brancas que formavam a cidadezinha. A base do Monte Nebi era contornada por mais dois caminhos além daqueles que estavam seguindo os quatro viajantes. Partiam, um para Séforis e outro, para Jafa em direção ao mar. Todos eles eram bem cuidados e cercados de propriedades agrícolas que atestavam a fertilidade da terra. Por isso mesmo, estando situado numa rota próspera, o povoado de Nazaré era privilegiado quanto a sua localização e meios de comunicação com toda a região. Seus caminhos bem cuidados, de calcário branco, atraíam os visitantes que chegavam de todas as partes, interessados na produção agrícola do fértil vale. Caravaneiros, comerciantes, intermediários, compradores e vendedores, falando línguas diferentes e de costumes diferentes por ali passavam, vindos desde a vizinha região de Samaria, da distante Pereia, de Tabor, de Magdala, Caná e Tiberiades. As vezes vinham caravanas de Damasco ou de Jerusalém que ali perto acampavam, enchendo as pousadas e dando má fama ao povoado. Além do aramaico, diversas línguas eram faladas na aldeia. Ali mercadejavam o azeite, a oliva, o mel; ali vendiam-se cestos e esteiras trançadas produzidas pelos artesãos nazarenos; uma infinidade de outros produtos como lentilha, trigo e cevada eram trocados e vendidos pelos produtores. O comércio era uma atividade febril e fanática. Os quatro viajantes podiam ver nitidamente as milhares de videiras escoradas com estacas de madeira, rodeando a vila, descendo das encostas das várias colinas em degraus, desafiando os aclives. Marchando lentamente e be— 20 —
  • 21. bendo com os olhos a deslumbrante e luxuriante paisagem verde, atravessavam a região. Camponeses que cuidavam de uma bela plantação de palmeiras ao pé do Monte Nebi, colhendo frutos para a preparação do mel, largaram os cestos no chão para dar as boas vindas aos viajantes peregrinos. — Bem vinda senhora Miryam. A paz esteja convosco, cumprimentaram-na os camponeses. A medida que foram caminhando a cena foi se repetindo. Amigos empenhados em seus afazeres diários daquele fim de tarde, muitos já recolhendo seus cestos, enxadas e instrumentos, pararam suas atividades para cumprimentar Miryam, e muitos acompanharam-na até a entrada da vila. O cortejo foi engrossando até que os últimos metros do caminho foram vencidos e as primeiras casas da aldeia foram alcançadas. A aldeia era composta por um ajuntamento de casas plantadas entre duas ruas estreitas, sem calçadas, sem pavimentação, cobertas por cascalho. No centro delas corria uma valeta com profundidade suficiente para que as águas servidas e pluviais escorressem sem maiores problemas, fazendo com que o ar ficasse impregnado com cheiro de esgoto. Crianças descalças, vestidas com túnicas curtas e sujas, largaram seus folguedos infantis e pararam para seguir o cortejo. Miryam sentia-se cansada, mas estava feliz com o calor da amizade que irradiava os semblantes daquela gente simples, com as boas vindas recebidas em palavras e flores. Sentia-se querida no meio de seu povo e por isso estava contente. As casas de Nazaré feitas de blocos e sem ornamentos eram simples como as ruas. A natureza farta e generosa, favorável aos frutos, fragrâncias e flores servia como enfeite para a cidade. Muitas vezes o cheiro das flores era tão intenso que mascarava o odor exalado pelo esgoto. Palmeiras se agitavam, no fundo dos quintais, acenando amigavelmente para os quatro viajantes e para o cortejo, enquanto serviam de sombra para as pessoas que ainda trabalhavam sob ela ou faziam a última refeição do dia. Algumas casas tinham suas entradas protegidas por toldos de fortes cores e berrantes tons, outras — 21 —
  • 22. tinham entradas ajardinadas por esfuziantes canteiros de papoulas de um vermelho cor de sangue, cravos de todas as cores e matizes, narcisos e jacintos azuis. Alguns muros eram forrados por trepadeiras que por eles subiam, deixando seus cachos de flores balançar sobre a cabeça dos passantes. Naquele entardecer do fim do mês de Sivam toda a aldeia era um festival de cores e o cortejo que seguia Miryam de Nazaré, Ismael, João Zebedeu e Neemias era um festival da mais pura alegria e amizade. Não haviam ainda atravessado a metade da cidade quando chegaram ao poço. Naquele horário, quase no fim da tarde ao redor do poço da aldeia se amontoava um grande número de pessoas. Jovens, meninos, mulheres e velhos, carregando bilhas, vasilhames de cobre luzidio, jarros vidrados cor de cerâmica vermelha, se aglomeravam, em volta do poço que abastecia a cidadezinha. Tagarelavam discutiam, trocavam informações enquanto esperavam a vez de encher os recipientes. No meio do povo aglomerado, cerca de cinquenta pessoas, João Zebedeu avistou um homem que falava inflamado, de olhos muito brilhantes, vestindo uma túnica escura sobre a qual levava um manto listado de cores indefinidas pelo uso. Reconheceu Tiago Zebedeu, seu irmão, que pensava estar em Jerusalém, há muito tempo. Era diferente de João, apenas o brilho inusitado dos olhos de ambos poderia acusar o parentesco. Gigantesco, Tiago era robusto, encorpado e tinha a barriga proeminente. Usava grande barba que se confundia com seus cabelos escuros, longos e encaracolados, seu nariz adunco se projetando maciço e saliente. Falava sem parar despejando palavras umas atrás das outras para alguns ouvintes, enquanto movimentava os braços em gestos amplos e nervosos. Havia na figura do homem agigantado um mistério indefinível, um ar de grandeza que se fazia notar na sua voz possante, nas sua fala simples, ora de uma brandura e uma doçura sem igual, ora de uma veemente ferocidade. Os olhos, brilhantes e escuros irradiavam uma paixão infinita. A marca do exagero estava gravada nele. Palavras contundentes jorravam de seu coração misturadas a um sentimento ilimitado de bondade, piedade e fé. — 22 —
  • 23. João parou, apertou o braço de Miryam, avisando-a que alguma coisa estava acontecendo. Apontou o irmão: — É Tiago. Ele está aqui. Pensei que estivesse com Pedro e Matias em Jerusalém. Tiago avistou o grupo se aproximando da fonte e parou de falar, olhando-o fixamente, as mãos paradas no ar, imóvel por um instante. Depois, abrindo caminho entre as pessoas paradas à sua frente, conseguiu se aproximar dos recém chegados. Sem dizer uma palavra parou em frente deles abraçando João carinhosamente. Beijou as faces do irmão dois beijos estalados e ruidosos, fechando os olhos para gozar aquele momento de reencontro. Os filhos de Trovão estavam mais uma vez juntos e era hora de celebrar e agradecer ao Senhor por permitir que seus passos se reencontrassem outra vez. Só então, despertou daquele encantamento momentâneo e o cumprimentou: — Shalom! A paz esteja contigo, meu irmão João. Virando-se para Miryam que, com Ismael e Neemias, pacientemente esperavam ao lado que acabasse de transbordar a emoção dos irmão, repetiu a saudação. Abraçou a amiga, mãe de seu Mestre, e deixou que as lágrimas corressem livremente pela barba negra. — Pensei que nunca mais iria vê-la, Senhora, disse comovido. — Ora, Tiago, retrucou Miryam. Os caminhos do Senhor são numerosos. Enquanto Ele permitir nossas vidas se entrelaçarão, ainda que por momentos fugazes, e nossos destinos se cruzarão. — Louvado seja o Senhor Deus que permitiu a este pobre homem contemplar mais uma vez a mãe de seu Mestre. — Louvado seja Deus, repetiram em coro todos os que assistiam a cena. — 23 —
  • 24. —4— SÃO PAULO, 1964 Míram vivia com os pais, desde que nascera, num modesto apartamento da Rua da Graça, no Bom Retiro, bairro de São Paulo na época povoado por judeus. Ela e sua irmã Judite cresceram e fizeram seus primeiros amigos nas ruas daquele bairro comercial onde as lojas, pequenas indústrias de confecção de roupas e malharias se misturava aos pequenos prédios de três andares. Os judeus bem sucedidos na vida, judeus que frequentavam a Hebraica e o Guarujá, judeus cujos filhos estudavam no Rio Branco e no Bandeirantes, não queriam o Bom Retiro para viver, embora muitos deles tivessem ainda negócios no bairro. Saiam para os bairros residenciais dos Jardins, misturando-se aos goim e com eles convivendo na mais profunda harmonia e integração. A Rua José Paulino, a Rua a Graça, a rua Júlio Conceição, fervilhavam o dia inteiro — compradores, mulheres em busca de uma pechincha, varejistas para fazerem suas encomendas, sacoleiras que compravam ás dúzias, com bom desconto, para revender de porta em porta. Ao lado desta população flutuante, desfilavam homens barbudos vestidos de preto, com grandes e pequenos chapéus, homens com uma mecha de cabelo comprido enrolado na orla, homens com kipás(4) bordados. Lado a lado, o iídiche e o hebraico eram ouvidos de uma ponta do bairro à outra. A escola pública, na Rua dos Italianos, tinha setenta e cinco por cento de jovens judeus sentados nas carteira gas(4) kipá — solidéu usado pelos homens. — 24 —
  • 25. tas pelo uso. Professores e funcionários cristãos trabalhavam lado a lado com colegas judeus. No entardecer das sextas-feiras o Shabbath(5) começava na maioria dos lares do bairro, de acordo com as regras sagradas observadas desde os tempos antigos, mas no dia seguinte, aos sábados, grande parte do comércio abria as portas até o meio dia, de acordo com a lei do país. Apenas os mais ortodoxos mantinham suas portas abaixadas respeitando o repouso de acordo com a lei dos judeus. Contudo, a maioria das máquinas de costura e das malharias martelavam nas fabriquetas nas mãos de operários católicos, umbandistas e evangélicos. Depois do meio dia as portas de todas as lojas comerciais abaixavam-se, os balconistas e as operárias lotavam os ônibus que passavam pela Rua José Paulino ou dirigiam-se para a Estação da Luz, para tomar o trem para os subúrbios. As ruas do bairro iam se esvaziando de carros e de pessoas, dando um toque de Shabbath ao bairro, numa atmosfera de descanso e de sossego que só iria terminar com o fim do domingo. Mas apesar de tudo, o Bom Retiro nunca teve as características de um gueto. Era apenas um dos bairros pobres de grande atividade comercial de São Paulo, habitado em sua grande maioria por israelitas, que viviam e comerciavam lado a lado com cristãos. Sinagogas e igrejas coexistem ali até hoje, sem maiores consequências. Míriam e Judite tinham permissão para sair uma vez por semana pelas ruas do bairro com outras crianças. Por isso conheciam cada pedaço do bairro, cada loja, cada fábrica, cada esquina e cada praça, as igrejas dos cristãos, a Politécnica, tudo até os limites permitidos pelos pais. Havia áreas estritamente proibidas como as Ruas Aimorés e Itaboca, antigas ruas de confinamento de prostitutas, o Jardim da Luz, o Pátio da Estação Ferroviária. O belo jardim da Luz, perdido para os moradores do bairro, que dele nem se aproximavam, era ponto de (5) Shabbath o dia de repouso, guardado semanalmente desde pouco antes do por do sol de sexta-feira até depois do cair da noite no sábado. Nos Dez Mandamentos e em geral no Pentateuco o Shabbath é enfatizado como dia de repouso completo e abstenção do trabalho. O versículo de Isaías (58:13)-2 chama o Shabbat um deleite, e o santo dia do Senhor digno de honra mostra que, para homenagear este dia, todos, pobres e ricos, devem participar dele, desde os preparativos, devem vestir roupas limpas para recebê-lo com a mesa posta e luzes acesas. O Shabbath é iniciado com a dona de casa acendendo um candelabro; a melhor comida é servida, embora ela não possa ser preparada durante o Shabbat. O culto nas sinagogas incluem a leitura da Torah e dos Profetas e pelo estudo das leis. — 25 —
  • 26. prostitutas, vadios e ladrões e passadores de maconha, bêbados e marginais. Ali transitava esse tipo de gente, o dia inteiro, não permitindo que casais de namorados se sentassem sob as árvores frondosas para arrulhar seus amores em paz. Proibida de frequentar este ponto do bairro, Míriam, toda vez que podia, passava horas amoitada atrás de um poste ou uma banca de jornais do outro lado da calçada, firmando os olhos, procurando ver o proibido, louca para saber o que se passava entre as frondosas árvores do jardim. Ela era assim, curiosa, irreverente, feliz quando conseguia descobrir o mundo com suas próprias pernas. Por isso não sossegou enquanto não provou um pedaço de carne de porco e não se sentiu em pecado, nem tampouco morreu, embora passasse três dias esperando que Deus fosse tirar sua vida como castigo. A vida de Míriam Weissmann poderia ser dividida em duas partes distintas, antes do Rabino e depois do Rabino. Quando era muito pequena o melhor dia da semana era o Domingo. Neste dia especial o pai colocava toda a família dentro do volkswagen vermelho e dirigia para lugares divertidos de São Paulo onde ela podia ver coisas diferentes e maravilhosas. O lugar que ela mais gostava de visitar era o zoológico da Água Funda onde os macacos mais engraçados do mundo viviam soltos, deslumbrando e divertindo os visitantes com suas cambalhotas e caretas. Era também delicioso passear no horto florestal no meio de velhas e enormes árvores e á beira do lago, onde a família se sentava no gramado para comer o lanche que D. Naomi havia preparado e acondicionado numa cesta. Ela e Judite corriam entre as árvores e deitavam-se no gramado para tomar sol. No verão acordavam muito cedinho e o pai descia a Serra do Mar, todos com seus maiôs sob uma roupa leve, para passarem o dia na Praia Grande ou no Gonzaga. Faziam enormes castelos na areia, rodeados de túneis e estradas, e se refrescavam nas ondas enquanto o pai e a mãe as vigiavam debaixo de um enorme guarda-sol colorido. Depois comiam enormes fatias de melancia, fartos sanduíches e ostras frescas. Muitas vezes os passeios dominicais eram feitos em companhia de amigos da família e faziam comboios de carros cheios de crianças e cestas com iguarias que eram divididas na hora do almoço. Nos domingos de chuva apareciam os amigos para almoçar a deliciosa comida que D. Naomi preparava, lotando o apartamento da Rua da Graça. — 26 —
  • 27. Durante a semana a melhor hora do dia era depois que o pai chegava da loja. Ele se sentava em frente da televisão depois do jantar para assistir os programas de gente grande e, enquanto Judite, maior do que ela, se sentava no tapete, ela se encarapitava no colo dele, ali se aninhando e se sentindo protegida enquanto apertava Salomé com força de encontro ao peito. Salomé tinha sido propriedade da irmã mais velha, mas Judite não gostava de bonecas e havia cortado muito rente os lindos cachinhos loiros e pintado os lábios rosados e entreabertos dela com uma feia cor azul de uma esferográfica. Mas para Míriam, Salomé era linda e confortadora. Dormia com ela todas as noites, lavava com sabonete seus velhos vestidos desbotados, costurava para ela novos trajes com retalhos coloridos e cuidava dela como se ela fosse a coisa mais preciosa de sua vida. Com ela conversava e para ela contava seus segredos mais íntimos como fez no dia em que roubou o batom que Judite comprara às escondidas da mãe na Drogaria Farmaluz, escondendo-o no corpo dela. Só Salomé sabia dos segredos dela e mantinha-se fiel e calada. No colo do pai, com Salomé apertada num braço, ficava quietinha, sentindo o cheiro gostoso do desodorante lavanda que ele usava há anos, passando a mão e acariciando suavemente os sinais que ele tinha gravados no antebraço esquerdo. Ali ficava até adormecer e ser colocada na cama. Também gostava do Shabbath, embora um pouco menos do que os domingos porque era um dia de muitas proibições. Gostava desse dia porque o pai ficava em casa com a família e não se importava com a loja que ficava por conta de um empregado de confiança. Neste dia ele levava a família à sinagoga. Ela era vestida com sua melhor roupa e ficava com D. Naomi e Judite junto com muitas mulheres para ver os homens, ouvir lindos cânticos e preces, assistir o desenrolar do pergaminho amarelo onde as palavras de Deus estavam escritas. Depois iam para casa e lá ficavam, a mãe com eles, livre das tarefas domésticas, distribuindo a comida preparada na véspera. Adorava ver as velas acesas no lindo menorá(6) de prata, em lugar de honra. Seu pai lhe contava lindas histórias da Bíblia, de Raquel e Lia, das águas do Mar (6) Menorá — candelabro. A menorá dourada de sete braços era uma característica mais importante do Tabernáculo e dos Templos. Era um símbolo do judaísmo e está freqüentemente representada em túmulos e monumentos. — 27 —
  • 28. Vermelho se abrindo para os filhos de Israel, de Daniel na cova dos leões, do poderoso Sansão. Também adorava o fim do ano que para ela significava Natal dos cristãos e o Papai Noel de barbas brancas e roupa vermelha que ficava andando pela Rua José Paulino, tocando um sino prateado e convidando a todos os transeuntes para comprar presentes. Felipe sempre arrumava um presente surpresa para suas meninas no dia de Natal, mesmo que sua piedosa esposa discordasse deste gesto. Elas ficavam loucas para que o velho santo cristão se lembrasse delas, fascinadas com os enfeites das vitrines, com os pinheirinhos lindamente decorados com bolas e galões brilhantes. Felipe lembrava-se de sua infância na Alemanha quando seu pai proibia qualquer manifestação dos filhos em relação às festas cristãs, ignorando as comemorações do Natal e do Ano Novo, e os ovos de Páscoa. Lembrava-se das vezes que ficara com o nariz colado nos vidros das lojas durante horas, devorando com os olhos o colorido dos enfeites e das guloseimas, querendo ser cristão nem que fosse só naquela época do ano. Na casa de Míriam o Natal cristão era comemorado com presentes. Felipe não teve coragem de negar as suas crianças as delícias cristãs do país em que viviam, em que Papai Noel passeava pelas calçadas prometendo brinquedos. Houve um ano em que o menorá de prata coexistiu pacificamente com um pinheirinho de bolas vermelhas, lindamente enfeitado, mas para a piedosa D. Naomi, aquilo foi demais e o fato não se repetiu para a tristeza das criança. Míriam tinha onze anos quando o Rabino Abraham Jacobinsky chegou mudando sua vidinha. No principio Felipe e Naomi foram contra a aproximação com o novo vizinho, pois desconfiavam daquele tipo de judeu que diziam ser fanáticos e que iam de encontro as ideias mais liberais deles. Aos onze anos Míriam era uma menina miúda e tinha mais semelhança com um menino do que com uma futura senhorita. Calças compridas de brim escuro com alças, cheia de bolsos, pulôver azul marinho e um boné que escondi os cabelos encaracolados faziam parte da indumentária preferida da menina. Mascando chicletes, ela observou o vai-e-vem dos carregadores que subiam e desciam a escadaria que saia do pequeno vestíbulo. Uma lâmpada fraca de 60 watts iluminava parcamente o espaço que dava para a escadaria e levava para o saguão principal do prédio. A mudança do apartamento vizinho, vago há tanto tempo, havia chamado a atenção dela. Já Judite não se importa— 28 —
  • 29. va com estes acontecimentos. Ela já não zanzava com outras crianças e nem se importava com o que acontecia no prédio, pois, três anos mais velha que Míriam, se achava uma mulher feita e vivia ás voltas com namoricos e festinhas, onde podia exibir lindos vestidos e o corpo desenvolvido que tanto agradava a rapaziada. A mudança que estava sendo transportada para aquele andar era muito estranha, aos olhos da menina observadora. Em primeiro lugar a porta do apartamento vago estava fechada, ninguém abria para colocar para dentro o que subia pela escada. Segundo, porque tinha poucos móveis amontoados para entrar, apenas uma cama de solteiro com seu colchão, estantes e pacotes e caixotes de vários tamanhos e formatos, com rótulos enormes onde estava estampado o nome Abraham Jacobinsky e um endereço. Os móveis pareciam novinhos em folha, mas os pacotes pareciam velhos. Duas malas grandes, velhas e esfoladas, amarradas com grossas correias de couro, esperavam ao lado da porta de entrada. Alguns engradados traziam a inscrição “this side up” que Míriam logo traduziu, pois cursava o terceiro ano da União Cultural Brasil-Estados Unidos e não perdia a oportunidade de aplicar seus conhecimentos de inglês. Quando já havia uma grande quantidade de caixotes, móveis e embrulhos atulhando o pequeno hall, os carregadores pararam de subir e descer as escadas e sentaram onde puderam ficar esperando alguém, conversando. — Ainda falta um bocado lá embaixo e não chegou ninguém para abrir a porta, comentou um carregador. — Vai ser o diabo se a gente tiver que descer com tudo isso de volta, resmungou um velho operário. Míriam ficou curiosa: — Como é que vocês subiram com tudo isto sem ter lugar pra colocar? Olha como vocês deixaram a entrada da minha casa. — Era pra deixar aqui, ir adiantando o serviço, enquanto o dono chega, explicou o primeiro. Os trabalhadores nem chegaram a acabar o cigarro que começaram a fumar. O som de passos na escadaria avisou-os que alguém subia em direção àquele último andar. Um homem muito grande, pare— 29 —
  • 30. ceu á Míriam que era o maior ser humano que ela tinha posto os olhos em cima, um gigante para ela, subiu o último degrau e tentou esgueirar-se entre o amontoado de coisas que lotava o pequeno espaço. Era alto e imponente e vestia um casaco preto e longo que não conseguia esconder a massa de seu corpo. Os pés imensos enfiados em lustrosas botinas negras mal encontrava espaço para pisar. Uma enorme barba negra, salpicada por muitos fios brancos, caia-lhe no peito, escondendo o colarinho e a camisa e debruçando-se sobre a lapela do casacão abotoado. A barba farta dava-lhe um ar de imponente dignidade e combinava com o nariz adunco e os dois olhos cor de azeviche que ficavam sob espessa sobrancelha. Os olhos movimentavam-se constantemente, não perdendo um detalhe sequer de tudo o que via, examinando a criança encostada na parede. Tinha um chapéu também escuro de abas redondas que escondia a testa e uma calvície pronunciada. Míriam se impressionou com as mãos dele. Elas saiam de repente de dentro da escuridão da manga, grandes e poderosas como duas enormes mariposas, os dedos muito alvos, a pele que podia ser vista, de brancura marmórea, as costas cobertas por chumaços de pelo escuro e grosso. Aquele homem estranho e grande conseguiu transpor com seus sapatos número 45 a barreira de móveis e caixotes e abriu a porta do apartamento 31. A claridade que veio de dentro, através dos vitrôs que davam para a rua, deixou a silhueta dele delineada no vão da porta, mostrando o impressionante poder de seu corpo. Os carregadores se animaram imediatamente, começando a enfiar para dentro o que estava depositado no pequeno hall. Depois, desceram os três lances de escada atrás do restante dentro do caminhão de mudanças estacionado na frente do prédio. Enquanto isto o homem de preto, sem ao menos tirar o magnífico chapéu, começou a abrir os caixotes e pacotes, como se estivesse procurando alguma coisa. Míriam, curiosa, aproximou-se da porta aberta. Livros, montanhas de livros, começaram a sair dos misteriosos pacotes e para serem amontoados de encontro ás paredes da sala, desocupando os caixotes que os carregadores transportavam de volta ao caminhão. Aos poucos, sem temer o grande gigante vestido de preto, Míriam foi se aproximando dele, ajudando a empilhar o que ele desembalava. Ele fingiu não notar a menina mas agiu como se tudo fosse natural, aceitando a ajuda dela. Deu-lhe uns — 30 —
  • 31. oito anos e pensou que fosse um menino. Nenhuma palavra foi pronunciada entre os dois. Os carregadores iam e vinham perguntando de vez em quando onde deviam ser colocados os objetos transportados. Ele não falava. Se limitava a fazer gestos apontando na direção. — Você é mudo? perguntou Míriam não agüentando mais o silêncio. Onde está o resto da família? Não tem criança? A resposta foi uma gargalhada imensa, o som dela enchendo o apartamento e saindo pela janela. — É mudo? Ou não é? tornou a perguntar. — Não, não ser, falou de vagar medindo as palavras. Falar muito mal o português e gostar de silêncio. — Você sabe inglês? Pode falar em inglês. Eu entendo tudo e sei falar um pouquinho. Ou alemão, ou em iídich(7), ela desandou a falar jogando para fora todas as palavras que estavam represadas dentro dela. Contou como aprendera o alemão com o pai exigente e o iídiche em casa, o português na escola e com os amigos, que era muito boa em português, do curso da União Cultural onde ia sozinha de ônibus duas vezes por semana. Quando ela tomou fôlego, parando por um instante, ele aproveitou a brecha: — Precisar aprender português mais bem. Preferir falar para aprender. — Pois eu vou ensinar você, prometeu ela. É fácil, muito fácil. Agora, quem é você? Meu nome é Míriam Weissmann e eu moro no 32. — Então você ser menina mulher. Lógico... respondeu ele. Eu Rabino Abranham Jacobinsky. Ele não parou de remexer os caixotes para conversar com ela. Continuava desempacotando seus livros. — Um Rabino de verdade? Um Rabino sábio? (7) Iídche — língua falada pela maioria dos judeus da Europa na Idade Média. Formada de quatro componentes principais: hebraico, loez (francês e italianos antigos) alemão e elementos eslavos. O alemão medieval do Reno Médio foi o componente mais importante. 85% do vocabulário e da estrutura gramatical básica provem do alemão. Desde a sua formação (1000 a 1250) a língua evoluiu muito e, depois da segunda guerra mundial e o extermínio de judeus, o número de pessoas que fala o iídche ficou bastante reduzido. — 31 —
  • 32. — De verdade, real. Mas o que ser sábio? — A wise man, respondeu ela. Sá-bi-o. — Ah, a wise man. Eu procurar ser sá-bi-o. — Ai meu Deus! — exclamou a menina. Vou precisar ensinar todas as conjugações verbais para você. Vai me dar um trabalhão! Ele olhou para ela divertido. Achou-a diferente e engraçada. — Onde está o resto de sua família? perguntou ela. — Ser só. Não ter família, ele respondeu sério enquanto mexia nos seus pacotes. — Vamos cuidar de você Rabino. Vou ensinar você falar português direitinho. Ele se comoveu: — Obrigado, pequena Míriam. Já tinha começado a gostar daquela menina miúda e engraçada. — Obrigado uma ova! Você vai melhorar o meu inglês e me ensinar um pouco da sua sabedoria, disse ela e saiu correndo com um volto-mais-tarde, deixando-o imaginar o que seria “uma ova”. — Preciso contar em casa que um Rabino sábio, acho que até um homem santo é nosso vizinho e tem lindos cachos no cabelo. O Rabino Jacobinsky e Míriam Weissmann tinham acabado de iniciar um relacionamento que duraria enquanto o Rabino vivesse, uma amizade sólida e cheia de carinho que encantaria encheria a vida dele de alegrias. — 32 —
  • 33. —5— PALESTINA, ANO 46 D.C. A noite já começava a cair. Os tons avermelhados do poente estavam sendo combinados pelo azul acinzentado que logo seria escuro e algumas estrelas pálidas já podiam ser vistas povoando o céu. Miryam precisou abrir o seu caminho para poder andar os últimos passos que a separavam de sua casa. Percebendo a aproximação rápida da noite com a escuridão tão temida, o povo foi se dispersando e se recolhendo em suas moradias. Os mais medrosos apressavam o passo para não serem colhidos pela negrura onde imperavam os espíritos do mal. Os quatro viandantes alcançaram finalmente a casa de Miryam onde os candeeiros de azeite já brilhavam, projetando luzes bruxuleantes dentro da escuridão dos cômodos. A casa, construída de blocos de argamassa, liga de cal e barro amassado era simples e pobre mas, tinha a porta de entrada aberta, hospitaleira e generosa. Tiago e João foram os primeiros a entrar e a cumprimentar Rute, filha de Miryam, e seus filhos Rebeca de onze anos, Rubens e Efraim, gêmeos de nove anos. Rute manejava habilmente um panelão fumegante que balangava numa trempe localizada dentro de uma lareira pedras, no lado esquerdo da sala. A porta de entrada era baixa, sem segurança e com sua folha de madeira tosca sem pintura abria para o jardim, com canteiros de flores coloridas e legumes plantados em fileiras. Para dentro dava acesso a dois aposentos bem espaçosos mas sem paredes divisórias. Os ambientes eram divididos por cortinas e apenas uma abertura interna se destacava nas paredes caiadas, servindo — 33 —
  • 34. de comunicação com uma oficina de carpinteiro, principal ofício dos homens da família. Não havia janelas, apenas uma grande rótula no teto para deixar entrar os restos da claridade do sol que se espalhava sobre o chão de terra batida. O teto era rústico, com numerosas vigas robustas se entrecruzando. O mobiliário era simples e reduzido. Somente ao lado da parede de entrada, dois baús de cipreste ricamente entalhados se destacavam. Serviam de assento e de guarda-roupa, armazenando lençóis, cobertores e edredões. Ao lado deles, um tear e vasos de barro cheios de azeite. No centro da sala e ao lado do fogo, uma enorme mesa de cedro do Líbano, robusta e simples rodeada de bancos tocos e gastos, todos enegrecidos pelo uso constante e pela fumaça de lenha que queimava na lareira. O lado de fora era espaçoso. Além do jardim com flores e hortaliças, um quintal rodeava a casa. Um cômodo que servia de dispensa, onde os grãos eram armazenados em cestos de vime de diversos tamanhos e formatos, onde as ânforas repletas de azeitonas, alcaparras curtidas, azeite, onde os figos secos e passas eram pendurados em cachos. Era o único atestado de fartura da família. A voz de João Zebedeu tirou Rute de seus afazeres e fez com que as crianças interrompessem suas brincadeiras. Cumprimentou a dona de casa, o cumprimento usual de todo o povo da Galileia: — A paz esteja contigo! Rute correu para abraçar a velha mãe e o sobrinho que seguiam os dois Zebedeus porta a dentro. Mãe e filha olharam-se por um instante, toda a ternura dos olhos de Miryam se derramaram sobre a figura da jovem e esbelta filha caçula. Rute era parecida com a mãe, bela, a pele levemente amorenada, olhos ternos, cabelos longos presos por um lenço branco, alguns cachos rebeldes, encaracolados escapando pelos lados, de uma cor de avelã dourada que brilhava sob a luz dos candeeiros de azeite. — Mãe, que alegria poder abraçá-la mais uma vez! Dizem que os caminhos estão cada vez mais que nunca cheios de malfeitores que assaltam e matam. Que bom estar com a Senhora outra vez, sã e salva. — Tantas quantas o Senhor permitir, minha Rute querida, falou Miryam abraçando-a. Deus seja louvado, estamos aqui novamente juntas. Conse— 34 —
  • 35. guimos fazer uma ótima viagem e, com a proteção do Senhor, todos os malfeitores foram afastados ao nosso caminho. E, além disso, não vim sozinha. Trago comigo meu fiel João, seu sobrinho Nehemias e meu amigo Ismael. Eles me escoltaram com carinho e dedicação. Nehemias está voltando para a casa de seu pai e Ismael é um monge que está aqui a meu pedido a fim de executar uma tarefa. — Sejam todos bem-vindos, disse Rute e virando-se para o estranho, Ismael, acrescentou: — Minha casa é tua casa. Rute, filha caçula de Miryam, enviuvara muito cedo e morava com a mãe, cuidando da casa também na ausência dela. Antes de Amós, seu falecido marido, ter morrido numa infeliz queda de uma íngreme ribanceira onde tentava reunir umas cabras que tinham fugido do cercado para invadir uma plantação bem cuidada e viçosa de lentilhas, Rute morava com a família na estrada para Naum, logo depois da vila. Amós possuía uma herdade de bom tamanho onde criava cabras em cercados especiais e cultivava lentilhas e oliveiras. As cabras também eram usadas para mover um moinho onde as azeitonas dos olivais eram trituradas e transformadas em precioso azeite que escoava por um canal de pedra e enchia as ânforas de barro vidrado. A produção conseguida era trocada por mercadores por bens de interesse para Amós e sua família. A morte prematura de Amós obrigou Rute a pedir auxílio a seu meio-irmão Judá para tocar a propriedade e conseguir o sustento dos filhos. Com a chegada dos hóspedes inesperados Rute apressou-se para o panelão, para aumentar a refeição pois o número de pessoas famintas havia crescido. Os hóspedes, sem fazer cerimônia acomodaram-se onde quiseram, Ismael, arriando sua preciosa carga e acomodando-se num dos bancos, com Nehemias, a seu lado. Nehemias iria primeiro provar da hospitalidade de Rute e de sua saborosa cozinha para depois seguiu para a casa de seu velho pai. Miryam dirigiu-se a Tiago Zebedeu, ansiosa por saber das novidades, pondo o cansaço de lado: — Pensava que estivesses em Jeruzalém. Em Cafarnaum. Todos acham que estás lá, junto a Tiago, Pedro e Matias, pregando a verdade do Rei— 35 —
  • 36. no de Deus. Desejo notícias de meu filho Tiago, a quem não vejo há cinco anos. Tiago Zebedeu respondeu em voz baixa. — As coisas não andam boas por lá, Senhora Miryam. Estamos sendo implacavelmente perseguidos pelos sacerdotes. Os esbirros do Sinédrio(9) estão por toda a parte, nos perseguindo e nos espionando até em sonhos. Tiago, seu filho, o irmão do Senhor, está em Qumran. Houve um ataque dos soldados de Anás, o sumo-sacerdote, contra um lugar de oração e ele foi ferido e levado a Jericó. De lá ele se refugiou em Qumran junto aos nossos irmãos essênios. Estamos esperando que volte para Jerusalém a fim de ouvirmos suas orientações. Simão Pedro está pensando em abandonar a pregação em Jerusalém e viajar para Antióquia, onde poderá pregar a verdade aos gentios(10). — Meu irmão Tiago Zebedeu, respondeu Miryam, achas que estarás a salvo aqui entre nós? Há um templo também aqui e um feroz sacerdote saduceu que não hesitará em sacrificá-lo caso te tornes inoportuno. — Eu sei que o perigo está em toda parte de nossa nação. Vim aqui para vê-la, Senhora, e juntar forças para continuar minha missão junto a meu povo, em Jerusalém. Daqui seguirei para Cafarnaum rever a casa de meu pai. Não sabia que a mãe do Mestre estava lá, pensei encontrá-la aqui e já pensava em partir quando a vi chegando. Tiago Zebedeu continuou a falar, sua voz crescendo o tom até se tornar forte e robusta, enchendo o ambiente acanhado. Miryam deixou-o falar e todos ficaram muito atentos para saber o que havia acontecido naqueles tempos que se seguiram à morte do Mestre. — A situação está se tonando cada vez mais perigosa. Nos primeiros anos parecia-nos tudo mais fácil. O perigo não nos assustava tanto. Parecía(8) Sinédrio — constitui, na literatura rabínica, na assembléia de 71 eruditos que funcionava tanto como órgão legislador como Supremo Tribunal. Antes do Ano 70, o Sinédrio se reunia na Sala de Pedra Talhada de Templo, com várias atribuições, entre elas a proclamação da Lua Nova, a declaração do ano bissexto, decisões de crimes contra o Estado e de questão religiosas. (9) Gentios — para os hebreus todos os povos que não professassem a religião de Iavé, considerados pagãos. — 36 —
  • 37. mos revigorados, fortes e confiantes. Constantemente nos lembrávamos do dia em que havíamos sido consagrados pelo Mestre, um a um, na casa da sogra de Simão Pedro. Infelizmente, como todos já sabem, ficamos todos juntos apenas por algum tempo. Agora passamos por momentos de grande dor, muita angústia e amarga perseguição. As proféticas palavras do Mestre estão se cumprindo. Mas ele nos garantiu que o Senhor não nos abandonaria, que nunca estaríamos desamparados. Não sei o que está acontecendo com André, com o Zelote, com Bartolomeu de Naum, ou com Felipe. Há algum tempo não os vejo, Bons tempos aqueles em que seguíamos o Mestre por todas as partes, sem que ninguém nos importunasse. A tantos lugares o seguíamos! Visitamos tantas cidades distantes, onde os homens valem menos que as bestas do campo! Agora, Senhora, vim buscar energia e renovar minha inspiração junto à mãe de meu Mestre. João não se conteve. Histérico, levantou os braços para o céu numa louca invocação, exigindo justiça divina. As crianças, assustadas, começaram a chorar com o trovejar das palavras que jorraram de sua boca: — Deus de Israel, Deus dos exércitos! Abra o coração dos hipócritas com uma faca para que os escorpiões e cobras que lá se alojam possam sair à luz do dia e sejam mortos pelo homem de fé! Oh! Deus de Israel! Mande seu fogo para destruir os nossos inimigos! Malditos sejam aqueles que impedem a propagação da Boa Nova, das palavras de nosso Mestre. Miryam colocou as mãos nos ombros de João. — Calma, meu amigo. Suas palavras são cheias de sinceridade, mas já há muito tempo, sabemos que as ideias de meu filho encontrariam a oposição dos homens. Sempre que um profeta se levanta para ajudar os homens, é apedrejado até a morte. Ela parou por um instante, olhando aqueles homens à sua frente e eles nada disseram. Ela continuou: — Temo por meu filho Tiago. Sei que meus filhos pertencem ao Senhor e a seus desígnos, mas mesmo assim, temo por ele. Ele viveu em intimidade com seu irmão Jesus e conhece todos seus ensinamentos, podendo falar por ele. Foi um — 37 —
  • 38. filho muito chegado, sempre me comunicando tudo o que se passava com ele e com todos os que seguiam Jesus, mas há tantos anos não o vejo! A Senhora abaixou os olhos deixando uma lágrima escorrer. Depois virou-se para o Zebedeu, e, olhando-o demoradamente nos olhos, disse: — Obrigada pelas notícias meu irmão. — Sinto não ter melhores, Senhora. Mas Tiago estava vivo em Qumran. — Então ele está a salvo, pensou Miryam, mas não disse nada. Tiago Zebedeu continuou: — Nossos espíritos se enriqueceram como o mestre quis, a fim de que pudéssemos seguir e enfrentar sozinhos as maldades humanas. Mas, às vezes, é preciso que um homem como eu, mesmo amparado pelo Senhor, venha respirar o ar puro e tranquilo que rodeia a mãe do Mestre. Alisando a barba negra onde já apareciam alguns fios brancos, Tiago Zebedeu fez uma pausa breve. E prosseguiu: — O Sinédrio não nos dá paz. Aonde quer que nos reunamos, lá está ele, com a mão forte de Roma, nos prendendo e nos vigiando, nos expulsando e nos ameaçando. Ele tem mil olhos que vigiam a cada minuto nosso passos e nossas ações. Há divergências entre nós pois estamos inquietos com os falsos mestres que brotam da terra a cada momento, com seus ensinamentos que nos confundem. Acontecimentos estranhos e enigmáticos nos perturbam. Um homem chamado Saulo perseguiu a nossa gente, entrando até pelas casas e arrastando homens e mulheres para o cárcere. Destruiu e matou a mando dos romanos durante muito tempo. Depois se disse arrependido e juntou-se a uma comunidade nossa por três anos. Se diz convertidos mas discute com os nossos, parecendo que não se mantém leal às nossas leis. Há muitas brigas e discussões e estamos confundidos. Às vezes, ao tentar compreender ou ouvir tais novos ensinamentos, parece-me ouvir a voz do Mestre dizendo: “Os outros tomam caminhos errados, são cegos conduzindo cegos. Só os que seguem meu caminho nunca cairão no abismo e entrarão no reino de Deus”. Sabemos que a verdade triunfará e que precisamos ser pacientes embora, muitas vezes, nossos corações sejam dominados pelo desespero. — 38 —
  • 39. Depois do desabafo, Tiago Zebedeu parou de falar, cansado. Os outros continuaram em silêncio, mesmo João que mal continha a ira. As crianças tinham parado de brincar, atentas ao desenrolar do discurso daquele veemente pescador de almas. Isaias quebrou em silêncio, perguntando: — Quem chefia os seguidores do Mestre? Tiago Zebedeu retomou seu discurso, agora mais brando: — Quando interpelamos o Mestre perguntando-lhe: “Senhor, sabemos que nos deixará. Quem será nosso chefe depois de sua partida?” Ele nos respondeu: “Ireis para Jerusalém com Tiago, meu irmão, por causa de quem o céu e a terra passarão a existir”. Tiago, agora que o Mestre nos deixou, é o mais importante, é conhecido e chamado por todos de Tiago, o Justo. Fala com a autoridade do conhecimento e sabe transmitir as palavras e o pensamento do Mestre. Ele não bebe vinho, não se alimenta de animais, não se banha, suas roupas são de linho e tem permissão para entrar no lugar mais santo do templo. É o mais piedoso entre os piedosos e por estar sempre orando a Deus, seus joelhos são duros como os de um camelo. Miryam cerrou os olhos ao ouvir sobre seu filho Tiago. Deus lhe havia revelado o nascimento de seu primogênito Jesus, mas nada sabia da santidade de Tiago. Havia dado dois filhos ao Deus de que era serva e agradecia a Ele por ter sido escolhida. Isaías, curioso, continuou com suas perguntas. — Como fazem para pregar em Jerusalém? Sabemos algumas coisas mas gostaríamos de ouvir as notícias pela boca de um discípulo do Mestre Jesus. — Criamos uma congregação, vivendo todos como o fazem o povo essênio, como nos ensinou Jesus. Tiago viveu em Qumran, como o Mestre. Assim todos nós que cremos estarmos sempre juntos e tudo o que possuímos é bem comum. Diariamente estamos no Templo, orando e ouvindo e partilhamos o pão em reuniões nas casas, ou qualquer lugar. Todos os que desejam seguir os ensinamentos que podemos transmitir e o nosso modo de vida, nos procuram. O que podemos dar é amor. Ensinar o amor e a fé. E a esperança de um futuro junto a Deus. Mas as nossas congregações sempre foram implacavelmente — 39 —
  • 40. perseguidas. E estão sendo desagregadas. Tivemos notícias que outras comunidades iguais, em outros lugares onde estão os romanos com suas espadas, foram destruídas, havendo mortos e feridos. Mas, sempre que somos destruídos, mesmo que nos encontremos exauridos e temerosos, desanimados e sem forças, sentimos o Mestre nos animando, dando-nos cada vez mais a fé. Tiago o justo com sua fé inabalável nos mantém unidos, mesmo com as corrente contrárias e as correntes dissidentes que no ameaçam destruir e matar a nossa fé. Agora interrompemos por uns tempos nosso trabalho em Jerusalém. Logo Tiago estará de volta para lá e nos reuniremos novamente, sob seu comando. Pedro pensa em ir pregar para os gentios e Saulo, agora chamado Paulo, virá de Antióquia para se juntar a nós. Esperamos que agora Paulo, o que tanto nos perseguiu, não se afaste da Lei e cultue o Senhor Deus segundo as palavras do Mestre Jesus, sem provocar controvérsias. Miryam então se manifestou: — Você confirmou o que eu já havia ouvido, a perseguição que Roma e o Sinédrio movem contra os seguidores de meu filho primogênito. Mas agora estou chegando de uma cansativa viagem e preciso me alimentar e descansar. Depois vamos orar e pedir ao Senhor para proteger o seu povo e para permitir que a verdade sobre o reino de Deus possa ser propagada. — Senhor, pensou, nada mudou. Não sabem nada e continuam os mesmos. Mas seja feita a vossa vontade, ó Deus de Israel, se é esse o vosso desejo. Que as coisas sigam o seu curso conforme foi determinado. Depois destes breves pensamentos, Miryam virou-se para sua filha Rute: — Minha filha, preciso lavar-me. O pó da estrada, depois desta longa caminhada, seca minha pele e maltrata meus pés. — Mãe, respondeu Rute, Rebeca irá ajudá-la. É criança mas sabe cumprir com suas obrigações. Rebeca, ouvindo a mãe, levantou-se do chão, uma menina de dez anos vestindo uma túnica rústica. — Venha, avó, disse, tomando-a pela mão como se ela fosse uma criança. Levou-a para trás da cortina onde ficava a parte interna da casa. Uma — 40 —
  • 41. lamparina de azeite bruxuleava, deixando ver muito pouco antes que os olhos se acostumassem com a semi-escuridão. O dia já se findava e a pouca luz que entrava na casa pela rótula do teto já se havia ido. As cortinas esticadas numa corda rústica eram feitas de cobertas grossas, acizentadas e serviam para dividir o ambiente. Sobre as camas de grossas tiras de couro cruzadas, estendiam-se algumas peles de camelo e carneiro, que também revestiam o chão nú, de terra batida, proporcionando uma atmosfera aconchegante para aquela parte da casa. Encostada na parede, apertada entre duas enxergas uma mesinha baixa e tosca sustentava uma bacia de barro, funda e larga. Assim que atravessou as cortinas uma enxurrada de recordações tomou conta da velha senhora. Rebeca não se deu conta, em nenhum momento, dos sentimentos emocionais que dominavam o rosto da avó, indo e vindo de um lado para o outro, a menina sentia-se importante com o trabalho. Sentia-se honrada por ser tão jovem e já encarregada de cuidar para que a avó, que voltava depois de uma prolongada ausência, tivesse conforto e se sentisse em casa. Miryam procurou controlar-se. — Estou velha mesmo, pensou. Tudo está me afetando, todos os velhos lugares, os velhos objetos, tudo me faz lembrar alguma coisa. Preciso deixar essas bobagens de lado para não machucar meu velho coração. — Pode buscar a água, Rebeca, disse em voz alta afastando de si qualquer pensamento que não fosse o de se livrar do pó da estrada. Enquanto Rebeca se dirigia para o outro lados da cortina, Miryam deixou o véu cair no chão. Depois, tirou a túnica empoeirada e suja pela cabeça, deixando-a cair a seus pés. Seu corpo ficou cingido apenas por uma espécie de tanga de tecido mais fino, que passava por entre as pernas e era presa na cintura por um cordão. Rebeca, transportando a água tépida numa enorme ânfora que mal podia carregar, despejou-a cuidadosamente numa bacia de barro, procurando não respingar as peles que cobriam o chão. Em seguida deu para a avó um pequeno tablete amarelado que tirou da dobra da manga de sua túnica. Miryam ajoelhou-se sobre a túnica suja junto à bacia de água limpa e, com suas mãos, molhou o rosto, os seios e as axilas. Rebeca, atrás dela, — 41 —
  • 42. segurou a vasta cabeleira grisalha, torcendo-a e levando-a para o alto, a fim de que a parte de trás do pescoço não fosse esquecida. O tablete amarelado foi esfregando na pele umedecida que se cobriu de uma leve espuma perfumada. Inclinando-se novamente sobre a água, toda a espuma foi removida por vigorosa lavagem e Miryam estava pronta para secar o corpo. Prestativa, Rebeca soltou a cabeleira e com um pedaço de pano quadrado, muito alvo que esperava sobre uma das camas, secou-lhe toda a pele molhada, encostando delicadamente as mãos no corpo da senhora. Miryam estendeu as mãos quando Rebeca lhe apresentou um vidrinho cheio de óleo perfumado. A menina derramou umas gotas que Miryam passou suavemente pelo corpo e nas axilas antes de vestir a túnica branca, rigorosamente alva, sentando-se em seguida sobre a pele lanosa que cobria uma das enxergas. Rebeca deu-lhe um lenço azul que ela colocou na cabeça, escondendo parte da cabeleira. — Agora vamos tirar as sandálias, avó, disse Rebeca. Teus pés devem estar cansados e doloridos. Eles merecem um bom tratamento depois de terem carregado teu corpo por tanto tempo. A menina arregaçou a túnica da avó até os joelhos e depois colocou a mesma bacia de água que havia servido para lavar Miryam. Sumiu por uns instantes para o outro lado da cortina, surgindo quase imediatamente para jogar mais água quente dentro da água já servida. Ajoelhou-se e com presteza tomou o pé direito da avó com suas mãos, desatando-lhe a sandália, pois sabia que se começasse seu trabalho com o esquerdo atrairia maus augúrios e espíritos malignos. Com cuidado, desenrolou as tiras de couro de cabra que haviam marcado profundamente as pernas de Miryam e repetiu a mesma operação com o outro pé. Marcados pelas correntes de couro, levemente, e muito sujos, os dois pés foram mergulhados dentro da água fumegante, esfregados pelas mãozinhas cuidadosas de Rebeca. Depois de limpos foram friccionados levemente com o mesmo pedaço de pano usado para secar o corpo, trazendo de volta a circulação. Como um passe de mágica, a menina materializou um frasco de forma afuselada que continha um líquido cor de conhaque, derramou umas gotas na palma da mão e começou a massagem dos pés de Miryam, trazendo com isto um total bem-estar. Espalhou a essência pelos calcanhares e tornozelos, dei— 42 —
  • 43. xando que o óleo aromático penetrasse profundamente na pele. Miryam não se calçou novamente, deixando suas sandálias sobre o catre, permanecendo de pés nus até que saísse da casa novamente. Cumprida assim sua tarefa, Rebeca tomou as mãos da avó que, descalça, seguiu a menina de volta à sala, atravessando a fronteira de cortinas que separavam os dois ambientes. A aparição da Senhora fez com que os homens que conversavam em voz baixa na soleira da porta, voltassem para a refeição. As duas crianças de Rute, Efrain e Rubens, já estavam terminando sua terrina de lentilha, sentadas no chão ao lado do fogão. Silenciosamente os homens sentaram-se nos tamboretes que rodeavam a mesa, aguardando a refeição. Nenhum deles convidou Miryam para sentar, embora Rute tivesse esperado sua mãe terminar a higiene para servir o jantar. Ela se manteve de pé atrás, observando sua filha a distribuir os pratos de barro cozido e colocar no centro da mesa alguidares de madeira, tampados, e pratos cheios de comida. A todos foi dada uma crocante torta de trigo para ser comida com a sopa de lentilha que enchia os alguidares. Os outros pratos continham passas sem caroço e figos secos molhados em filetes de mel dourado. Tiago abençoou a refeição. Rute serviu porções generosas que foram devoradas em silêncio, ajudadas por canecas de leite quente e fumegante. Miryam serviu-se diretamente das panelas e sentou-se numa grossa esteira de palma e junco, humildemente, pois não era costume que as mulheres se sentassem com os homens. Nenhuma palavra foi dita, apenas a fome voraz era saciada pela fartura daquela mesa simples, todos concentrados na comida. Acabada a refeição Rute colocou no resto das brasas que ainda estavam bem vivas um galho de cinamomo cheio de flores de um tom violeta que se queimou vagarosamente espalhando pelo aposento um aroma gostoso e matou o cheiro da comida e de picumã. Arrotando saciados, os homens se levantaram para cumprir a última tarefa do dia, uma das obrigações que todos os judeus a partir dos treze anos precisavam fazer, entoar a oração da noite, o Schema(10). (10) Profissão de fé do judaísmo, proclamando a absoluta unidade de Deus. É recitando duas vezes no culto diário, ao anoitecer e de manhã (Deut 6:7). É também proferido pelo — 43 —
  • 44. Antes de se voltarem para o Sul, em direção a cidade Santa de Jerusalém, João Zebedeu convidou todos os presentes para entoar com eles a oração diante da porta, ergueram os braços e recitaram, sem cobrir as cabeças, sem usarem seus filacterios(12), orando a Deus. Seguiram a tradição milenar que pesava sob suas cabeças. Miryam seguiu-os, com sua voz que ainda conservava timbre de menina que cantava hinos no templo de Jerusalém. Um a um, todos juntaram suas vozes num só louvor, sem instrumentos, apenas as vozes de homens tementes a seu Deus. “Ouve ó Israel. O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as suas forças...”. Terminada a oração, Tiago e João que pretendiam pousar na casa de Nehemias, pegaram algumas candeias e desejando a paz aos que permaneciam na casa, saíram com ele para a noite. A porta foi trancada por Rute que, com presteza, designou os lugares para o repouso. Miryam saudando a todos retirou-se para trás da cortina com as crianças. Aos poucos todos foram se deitando, Ismael acomodado numa esteira estendida na sala. A luz continuou acesa, bruxuleando nas candeias, pois as misteriosas trevas da noite eram temidas por todos os judeus. judeu moribundo ou em sua intenção. Milhares de judeus enfrentaram a morte heroicamente professando este credo do judaísmo. (11) Filacterios — ou tefelin, são símbolos da religião judaica, juntamente com o shabbath, a circuncisão, as leis dietéticas e as franjas rituais outzitziot, os tefelin ou filacterios são basicamente caixas onde estão depositadas tiras de pergaminho nas quais estão inscritas quatro passagens bíblicas em hebraico: Êxodo 13:1-10 e 11:16, Deuteronômio 6:4-7 e 11:13-21. Os filacterios são feitos de couro negro, um se destina à cabeça e o outro à mão esquerda. São presos por meios de tiras e alças de couro. O usado na cabeça é amarrado na testa de forma a ficar perto do cérebro, e o que está no braço esquerdo fica numa posição mais próxima do coração. Significa que quando um judeu adora a Deus o faz com seu coração e sua mente. O uso é obrigatório para todos os homens adultos judeus desde os treze anos de idade. São colocados antes de iniciar as orações matutinas, menos nos shabbaths e nos dias de festa. A tradição exige, que ao ser colocado, o indivíduo deve estar de pé, em sinal de respeito, e, o primeiro a ser colocado é o da mão . É colocado na parte interior do braço esquerdo bem acima do cotovelo e preso por uma alça de longa tira que pende do lado. Depois que os nós estão atados, o devoto enrola a tira do tefilin várias vezes em torno do antebraço. O outro é colocado na parte central superior da testa e a tira que o segura é enrolada na cabeça e amarrada, deixando as duas tiras pendentes cair em cima do ombro. — 44 —
  • 45. —6— SÃO PAULO, 1964 Para Míriam foi fácil se encantar e descobrir um amigo no homem grande e diferente, vestido com roupas esquisitas, parecido com os judeus barbudos que passavam pela rua e que nunca falavam com ela. Para ele foi mais difícil, mesmo vendo na menina alguma coisa especial que o atraia e que o prendia como uma mosca num pires de mel. Porque no mundo daquele homem não havia lugar para mulheres, mesmo que fossem crianças. Para Felipe, a amizade dos dois foi muito difícil de aceitar. Tinha ciúmes de sua menina e muito medo que um severo rabino hassidi pudesse transformá-la numa mulher abafada pelas severas leis dele, que ela sofresse com isso. Felipe não tinha grandes posses mas poderia ter enviado suas filhas para uma ótima escola para meninas judias onde elas teriam acesso a uma boa educação e um bom treinamento, a fim de se tornarem boas esposas e mães, obedientes, castas, caridosas e piedosas. Os planos que aquele judeu pequeno e prático tinha para suas meninas nada tinham a ver com os hassidins. Percebeu que elas, desde muito pequenas, eram inteligentes, ativas, curiosas e inquisitivas e entendeu que não deveriam ser tolhidas e encurraladas dentro de preceitos ortodoxos e severos que colocavam as mulheres na total dependência masculina, cortando suas asa bem cedo. Para os hassidins, as mulheres não tinham inteligência suficiente para estudar, principalmente estudar o Talmude(13) se tivesse tendência para (12) Talmude — fonte bibliográfica do judaísmo rabínico criado durante a era helenistica da história judaica. É composto da coleção de muitos livros, se tratando de uma verdadeira biblioteca de tratados de leis e regulamentos rabínicos, tradições, costumes, ritos e cerimônias, leis civis e criminais. Também contém opiniões, discussões e debates, aforismos moralísticos, exemplos e citações de Sábios. Todo este acúmulo de saber e experiência é — 45 —
  • 46. isso e quisessem fazê-lo. Para os hassidins, Deus tinha feito as mulheres com a mente vagarosa, superficial e inconstante, cabendo a elas apenas um papel na vida, o de criar filhos. Para Felipe, suas meninas eram brilhantes poderiam fazer o que preferissem, e acreditava que sendo produto de sua semente, elas nunca seriam mulheres de mente estreita e inconstante. Para os hassidins(14), as mulheres precisavam ser guiada pela mão forte do homem, dono dos altos planos espirituais de Deus. Para Felipe, suas meninas precisavam em primeiro lugar aprender as coisa práticas da vida para que pudessem sobreapresentado aos devotos a fim de que seja neles incentivada a vontade de saber juntamente com uma conduta ética digna. O Talmude ainda tenta orientar o povo judeu através das vicissitudes da vida e estimular a fé através de ensinamentos populares. O Talmude foi a criação religiosa e cultural concebida em séculos de esforço, num esforço de elaboração de uma síntese racional da crença e das observâncias com a conduta moral e a lei, ocupando milhares de eruditos durante possivelmente sete séculos. Foi engendrado como instrumento de adaptação da religião judaica às circunstâncias, pois o mundo está sempre em mutação. (13) Hassidin ou Chassidin — o hassidismo ou chassidismo foi fundado por Israel, Baal Shem por volta de 1735 quando ele começou a pregar sua filosofia de fé e de predestinação. Desde o florescimento da era rabínica na antiga Babilônia no final do período do Segundo Templo, nenhum movimento religioso causou um impacto tão grande entre judeus como o movimento hassidico. Em menos de um século conseguiu penetrar profundamente na vida dos judeus da Europa Oriental, região em que se concentrava a maioria do povo judeu. O movimento conseguiu reavivar o combatido espírito judeu, massacrado por tantas vicissitudes e desgraças, principalmente nos países eslavos, assegurando-lhes a sobrevivência moral. Cresceu de tal maneira que, no final do século XIX, pelo menos metade dos judeus do mundo podiam ser considerados adeptos fervorosos do hassidismo. É considerado como uma revolução social e religiosa. Com a morte de Baal Shem, a liderança religiosa passou para Dov Ber, seu discípulo que começou a contradizer seu mestre quanto a comunhão direta do homem com Deus. Dov Ber institucionalizou o movimento conferido ao rebeh ou tzadik, rabi, o papel de mediador entre o homem e Deus. O devoto tornou-se dependente do rabi, intermediário entre ele e Deus. O hassidi piedoso visitava seu tzadik pelo menos três vezes ao ano, presenteando-o com dinheiro e recebendo em troca disso suas bênçãos e seus conselhos. Além dessas visitas, procurava-o todas as vezes que necessitava de sua intervenção junto ao Todo Poderoso. Era procurado com freqüência para resolver problemas de ordem econômica, tão comuns nos miseráveis guetos da Polônia, Ucrânia e Eslováquia, entre outros. O tzadik tinha sempre em mãos amuletos e talismãs para qualquer tipo de problema, onde estavam inscritas em hebraico as encantações e fórmulas cabalísticas que anulavam o poder dos demônios. Estes homens santos viviam, de um modo geral, bem melhor do que seus seguidores, mas eram seguidos, por onde iam por adeptos fervorosos que bebiam suas palavras e oravam com ele. O culto hassidico emprestava grande ênfase ao poder criador da canção, tida como a forma mais pura de oração. Contudo, apesar de tudo isto, o movimento hassidico produziu uma profunda revolução religiosa em sua época, ajudando os espezinhados habitantes dos velhos guetos na obtenção da força moral necessária para não sucumbirem. Como movimento religioso organizado demonstra hoje em dia grande vitalidade, nos centros urbanos importantes como Nova Iorque, Chicago, Londres. Os tzadim ainda são importantes nas comunidades hassidicas porem, a atuação deles é muito diferente dos tempos passados. — 46 —
  • 47. viver em qualquer circunstância adversa e deixar os planos espirituais para os judeus ortodoxos. Por isso achava muito importante que elas fizessem cursos regulares normais, aprendessem várias línguas e adotassem uma profissão, embora não descuidasse dos assuntos bíblicos em casa. Felipe não era um frequentador assíduo de sinagogas nem procurava rabinos para pedir conselhos e orientação para os passos que dava em sua vida. Nos anos tumultuados e doloridos que passou na Europa, antes de dar com os costados no Brasil, naqueles anos de desespero pela sobrevivência e de grandes desilusões, seu caráter havia se moldado, transformando-o num homem quase céptico. Cumpria automaticamente suas obrigações religiosas, pois elas pareciam estar gravadas com fogo no seu código genético. Além disso sua esposa era piedosa e ele não queria desgostá-la. Assim, comparecia à sinagoga em quase todos os Shabbath e, excepcionalmente, quando havia um compromisso social como um casamento ou um minyan(15), para rezar o kaddish(16), uma oração fúnebre em intenção da alma de algum amigo que havia falecido. Em casa, conversava com as suas meninas sobre as coisas da Bíblia, fazia as orações necessárias para que fosse considerado um judeu e conservava um menorá de prata na sala de jantar e um mezuzah(17), pequeno pergaminho contendo uma oração, pregado no batente da porta de entrada, igual ao que havia na casa de seu pai e de seu avô na Alemanha, como uma homenagem a eles. Contudo, não se manifestava contra a religiosidade demonstrada pela grande maioria de seus amigos judeus. Mas não conseguia entender os judeus hassidins. Tendo desenvolvido uma atitude pragmática em relação à vida, Felipe não via com bons olhos e nem conseguia (15) Minyan — dez fiéis do sexo masculino que se reúnem para realizar um culto religioso. (16) Kaddish — o mais famoso hino a Deus da liturgia judaica. Há muitas variedades, entre eles o recitado pelos enlutados. (17) Mezuzah — caixa tubular de madeira, vidro ou metal, em geral de sete a oito centímetros de comprimento, contendo um pequeno pedaço retangular de pergaminho, no qual estão escritas em, vinte e duas linhas, em hebraico, as passagens bíblicas de Deuteronômio (6:4-9 e 11:13-21) que fazem parte do Schema. Tem uma abertura na parte superior que deixa entrever a palavra Shadai, um dos nomes místicos de Deus, impresso no verso do pergaminho. É colocado numa posição inclinada na parte superior da ombreira direita na porta de entrada da residência. Toda vez que sai ou entra na casa o judeu devoto beija a mezuzah, tocando com a ponta dos dedos a palavra Shadai e diz baixinho — “Que Deus cuide de minha saída e de minha entrada agora e para sempre”. — 47 —
  • 48. entender o fanatismo religioso com suas leis extremamente severas dos ortodoxos. Por isso ficou realmente preocupado com o interesse de sua menina pelo judeu cabeludo e barbudo que fora morar no mesmo andar do seu prédio. Relutou muito para permitir, sem repreensões, a presença dela junto a ele. Ciumento, esperava que a menina fosse rechaçada pois conhecia a mentalidade ortodoxa com relação às mulheres. Mas conhecia também a curiosidade e a sede de saber de sua menina. Sentia-se como um tolo, enciumado, por vê-la ao lado do rabino, substituído como um pedaço de pau, posto de lado como algo inútil, principalmente quando, depois do jantar, ela atravessava a porta de entrada para se enfiar na sala do outro lado do hall. Chegara a ir, muitas vezes espiar o que eles estavam conversando, mandava a esposa acompanhar a menina, tinha medo de fazer papel ridículo. Começou a se conformar e ser mais racional quando viu sua filha aprendendo o hebraico. Ele mesmo desconhecia esta língua. Falava o iídiche e o alemão que aprendera quando criança, conseguia se comunicar em francês e italiano que aprendera pelas suas andanças pela Europa. Mesmo o seu português não era perfeito, arranhando os erres, não conjugando os verbos com precisão e tinha especial predileção pela troca dos gêneros dos substantivos. O progresso de Míriam, aprendendo mais uma língua começou finalmente a animá-lo. O seu lado pragmático acabou convencendo-o que aquela amizade e vizinhança poderia trazer um grande lucro. O argumento final que o convenceu a aceitar o relacionamento de Míriam e Abraham Jacobinsky foi um pensamento que lhe ocorreu uma tardinha, um pensamento súbito que o iluminou, afastando-o daquela preocupação que o atormentava, enquanto fechava as portas de sua loja. Olhando para a rua quase vazia, ficou parado enquanto as ideias vinham a sua mente. — Além disso, pensou como que concluindo uma longa dissertação de preocupações, ela nunca irá colocar um xale na cabeça, nunca vai se sacudir lamentando por Jerusalém. E ele nunca vai maltratá-la por causa disso. Para Abraham Jacobinsky uma luta interior muito grande havia se iniciado naquele dia da mudança para a Rua da Graça. Míriam fazia com que ele se lembrasse de coisas e sensações sepultadas há muitos anos dentro dele. Lembrava-se de sua infância, de sua adolescência na América. Foi sua educação americana que fez com que ele amolecesse o seu coração e com isso tornou possível a bela amizade — 48 —