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ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007 297
S ESTUDOS de cultura material, co-
mo especialidade acadêmica, tomam
por pressuposto a condição corporal do
homem e, portanto, a existência de uma
dimensão material, física, sensorial, que
subjaz à instituição e ao desenvolvimen-
to da vida biológica, psíquica e social. A
perspectiva da cultura material, assim,
permite, na história, identificar, definir e
compreender tal dimensão na organiza-
ção e dinâmica da vida social – sem se
perder em reducionismos nem em ex-
plicações causais. Não é de hoje que se
discute a cultura material no campo das
ciências sociais: desde a segunda meta-
de do século XIX ela vem sendo objeto
de reflexão e práticas, principalmente na
antropologia, na arqueologia (por força
da natureza da documentação exclusiva
ou predominante com que trabalha) e
na sociologia. Já a história, ela própria,
tem sido renitente, sobretudo por causa
do viés marcadamente logocêntrico da
formação do historiador, embora já não
haja dúvidas, hoje em dia, sobre a legiti-
midade das fontes materiais. Muitas ve-
zes, porém, ainda se pensa numa história
da cultura material, mais uma entre as fa-
tias em que se atomiza a disciplina, aqui
com seu horizonte restrito ao estudo de
artefatos e seus contextos, em vez de se
preocupar com a dimensão sensorial que
pode iluminar qualquer domínio da his-
tória: história social, econômica, políti-
ca, institucional, cultural, do gênero, das
minorias e dos excluídos, das ideologias
e assim por diante.
Porisso,foiumareconfortantesurpresa
ler a obra de Dom Paulo Evaristo Arns, A
técnica do livro segundo São Jerônimo, fru-
to de uma tese em patrística e línguas clás-
sicas apresentada à Sorbonne (Faculdade
de Letras e Ciências Humanas da antiga
Universidade de Paris), em 1952. Houve
uma edição francesa de 1953, uma italia-
na de 2005, e mesmo uma brasileira, pela
Imago, de 1993, mas que circulou muito
pouco. A atualidade do interesse de Dom
Paulo pela cultura material – mesmo que
em momento algum ele utilize a expres-
são –, na perspectiva mais fecunda (pelo
que permite compreender), faz que seu
livro seja contemporâneo de obras re-
centíssimas de renomados historiadores e
pesquisadores do cristianismo primitivo,
como Klingshirn & Safran (2007), Hur-
tado (2006), Williams (2006) e Grafton
& Williams (2006). Esses historiadores
estão agora palmilhando uma trilha que
Dom Paulo foi dos primeiros a abrir.
Apesar da riqueza de reflexão que a
obra em exame suscita, eu me limita-
ria aqui a comentar apenas três tópicos
– aliás intimamente associados e imbri-
cados – imbricados nessa eficaz perspec-
tiva de cultura material.
O livro como artefato
O primeiro tópico é precisamente sua
escolha seminal: não o conteúdo dos es-
critos do monge São Jerônimo, mas o
suporte físico desses conteúdos: o livro
como artefato.
São Jerônimo foi uma escolha per-
tinente. Doutor da Igreja que viveu na
virada dos séculos IV e V (347-420), per-
correu áreas imensas do mundo em que
se difundia a Boa Nova, de sua Dalmácia
natal (hoje Croácia) à Gália, de Roma
ao deserto da Síria, de Constantinopla à
O livro, a matéria e o espírito
Ulpiano T. Bezerra de Meneses
O
ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007298
Palestina. Tradutor da Bíblia do hebrai-
co para o latim (a Vulgata), a pedido do
papa Dâmaso, foi o verdadeiro fundador
da tradição “acadêmica” dos estudos
bíblicos. Além disso, dedicou-se com
paixão a produzir e difundir em livro o
resultado dos trabalhos seus e de outros
eruditos. Por certo, teve predecessores,
como Orígenes e Eusébio, mas sua pre-
sença foi mais forte.
Na obra de Dom Paulo, o estudo do
livro se desdobra num infindável mar
de temas, com os quais ele percorre mi-
nuciosa e competentemente o circui-
to completo de fabricação, circulação e
consumo do livro na Antigüidade tardia:
a composição (crítica interna, ditados, os
imponderáveis no trabalho de taquígra-
fos, copistas e calígrafos, as falsificações,
adulterações, correções, roubos de ma-
nuscritos), a matéria-prima e os equipa-
mentos (papiro, pergaminho, madeira
do liber, tabuinhas, estiletes, penas), as
unidades e tipologias (epístolas, comen-
tários, prefácios, tratados, recensões,
apologias, coleções etc.), a edição e difu-
são (empréstimos, comercialização, diá-
logos, lutas partidárias, grupos de leito-
res, intrigas religiosas, zelo apostólico,
publicações à revelia do autor, papel de
intermediários, depositários, e assim por
diante), os salários, os preços e os patro-
cínios (era grande o descompasso entre a
pobreza doméstica e os altos custos do li-
vro), os arquivos e as bibliotecas... Tudo
isso em capítulos e subdivisões lineares,
bem claras, com tratamento rigoroso da
terminologia antiga e suas implicações
filológicas, aproveitando-se de uma bi-
bliografia erudita, mas mobilizada sem
nenhum pedantismo.
À primeira vista, no entanto, poderia
alguém se perguntar: como um homem
de profunda espiritualidade (afinal, tra-
tava-se do futuro cardeal Arns) poderia
ter assim priorizado as coisas materiais?
Não vejo contradição nenhuma. Qual-
quer leitura menos superficial demons-
trará que aí se tem, antes de mais nada, a
aceitação da corporalidade como condi-
ção humana. Aliás, Henri de Lubac (je-
suíta francês, cardeal no fim da vida, um
dos mais importantes teólogos do século
XX) já observara que o Cristo ter assu-
mido integralmente a condição corporal
revelava a “honestidade da Encarnação”.
Conviria acrescentar que, para uma reli-
gião revelada, trata-se de uma exigência
da historicidade, o divino fazendo irrup-
ção na história, na história dos homens e
não numa história paralela.
Assim, Dom Paulo não vai trabalhar
o texto de São Jerônimo, mas procura
acompanhar as contingências que mar-
caram a difusão das Escrituras. Parafra-
seando de Lubac, poderíamos dizer que
fazia parte da honestidade da Revelação
que ela se tivesse submetido às vicissitu-
des da condição corporal da vida huma-
na – no livro. Para terminar: o próprio
São Jerônimo, no prefácio da tradução
do “Livro de Jó”, explicitamente associa
o trabalho de exegese bíblica ao trabalho
manual, exercício monástico, com o fito
de justificar, não a atividade física, mas a
intelectual.
A forma do livro e o conteúdo
Nestes tempos em que o livro digital
parece aposentar qualquer suporte físico,
em que se tem escrita sem livro, é salutar
refletir sobre o que o livro representou
para nossa civilização. Dom Paulo trata
da anatomia do livro, mas percebe que
ela não é independente de sua fisiologia.
A morfologia, os sentidos e o funciona-
mento do livro são solidários. Os minu-
ciosos quadros de informação que ele
monta permitem entrever precisamente
ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007 299
nos tempos de São Jerônimo a passagem
definitiva do rolo (o volumen de papiro)
ao códice, o codex de pergaminho, isto é,
o livro de forma cúbica, “tijolo elementar
do pensamento ocidental”, no dizer de
Foucault. O papiro (de origem vegetal)
adaptava-se ao rolo, mas para o livro em
folhas dobradas o pergaminho (pele de
animal) se comportava mais adequada-
mente. Dom Paulo aponta argumentos
para tal substituição, como a praticidade,
o preço mais baixo do codex (que já foi
chamado de “rolo dos pobres”), em re-
lação ao volumen, o acesso imediato aos
trechos procurados etc. Mas também já
acentua que a passagem do rolo ao có-
dice assegurava a unidade de composi-
ção literária, que não poderia ocorrer no
rolo.
Esse ponto de vista é hoje desenvolvi-
do em estudos que procuram entender o
livro como forma simbólica. A expressão
foi cunhada por Erwin Panofsky, ao pro-
por o estudo das formas como sintomas,
que exprimem por si todo um jogo de va-
lores, representações do mundo, modos
de pensar, que não são visíveis de ime-
diato. Michel Melot, conservador emé-
rito das bibliotecas nacionais da França,
publicou em 2006 um inspirado e funda-
mentado estudo sobre a história do livro.
Ele também toca no problema levantado
por Dom Paulo e prossegue: o rolo de
papiro desenrola-se indefinidamente, seu
conteúdo é um fluxo; assim a mensagem
do Velho Testamento tinha nele um ve-
tor apropriado. Já o códice, que nasce da
dobra, fecha-se sobre si mesmo, como
pretende a mensagem da salvação cristã,
que se apresenta como completa, auto-
suficiente: a verdade toda está conheci-
da, deve apenas realizar-se no tempo, até
o final. A tela do computador também
se desenrola indefinidamente, como no
volumen de papiro, aberta sem barreiras
para todos os links que multiplicam ca-
leidoscopicamente verdades múltiplas.
Dom Paulo intuiu que no livro-códice
se pressupõe um espaço circunscrito: por
ele a escrita é solidária com seu suporte.
O livro e o cristianismo
Assim, com o cenário montado em
A técnica do livro segundo São Jerônimo,
podemos avaliar o trabalho cotidiano,
concreto, do monge, do scholar e do edi-
tor em plena operação. Disso podemos
extrair duas considerações relevantes.
A primeira é que o cristianismo in-
tervém e marca fundamente a história
do livro – como uma forma de pensar
o mundo. Convém relembrar a transição
há pouco apontada, do rolo de papiro ao
livro dobrado, em pergaminho. Embora
seja atestado desde o século I de nossa
era, em Roma, o codex teve uma lentís-
sima aceitação até os tempos de São Je-
rônimo. Além disso, se quantificarmos
os códices anteriores ao século IV, veri-
ficaremos que dos 160 fragmentos que
chegaram até nós, 158, maioria impres-
sionante, se originaram em meio cristão:
são textos do “Evangelho de São João”,
dos “Atos dos apóstolos”, de uma epís-
tola paulina... Já a partir do século IV,
momento de expansão do cristianismo,
o domínio se torna efetivo: pois não era
um vetor apropriado para tornar visível
e compartilhar uma certa noção de ver-
dade, fundada numa revelação que já se
perfez?
Em conseqüência, o livro que encerra
essas verdades pode transformar-se num
manual de vida privada, portátil, pes-
soal, disponível em grande quantidade,
fazendo do cristianismo por excelência
a religião do livro. Melot compara os
comportamentos associados ao livro nas
outras duas grandes religiões monoteís-
ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007300
CortesiaCosac-Naify
São Jerônimo em seu gabinete, c. 1435, Jan Van Eyck, óleo sobre pergaminho.
ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007 301
tas. No judaísmo ele ressalta a natureza
de objeto sagrado da Torá; no islamismo,
o Corão não é propriamente o suporte da
palavra divina, mas mediação inescapável
para a onipresença dessa palavra pela re-
citação: a escrita é mero recurso da reci-
tação. São mais religiões da palavra do
que do livro, conclui Melot. No século
XV, quando ocorre a grande revolução
de Gutenberg, não é coincidência que o
primeiro livro impresso seja a Bíblia.
Seja como for, fica patente no estudo
de Dom Paulo o papel de Jerônimo na
implantação da cultura escrita (e sua au-
toridade na tradição ocidental) como a
atmosfera própria do cristianismo.
Segunda consideração: inversamente,
o livro intervém e marca a história do
cristianismo. Antes de mais nada, mar-
ca na formação de um modo específico
de produção de conhecimento que, para
simplificar, podemos chamar de estudos
bíblicos, postura que fez do cristianismo
na Antigüidade e na Idade Média um
foco e uma forma de sabedoria. Nessa
linha, Dom Paulo revela as habilidades
desse sábio que foi São Jerônimo, versa-
do em grego, latim, hebraico, filosofia,
filologia, retórica, exegese e o mais que
se fizesse necessário. Não sem mérito,
pois, é o patrono dos estudos bíblicos e
o protótipo do pesquisador eclesiástico.
Fica patente nesse passo a importância
da produção do livro e da leitura como
atividade monástica essencial. Ao mesmo
tempo, forma-se um novo público lite-
rário – que inclui até mulheres – com o
interesse concentrado na Bíblia e prepa-
rado para a leitura cotidiana e a medita-
ção noturna.
Jerônimo, entretanto, está atento aos
perigos de reificação do livro, risco com-
parável à transformação das imagens de-
vocionais em imagens sacras, o que foi
objeto de intermináveis disputas teoló-
gicas, assim como de inúmeros e ferozes
episódios de iconoclasmo. No caso do
livro, os desencontros foram mais ame-
nos. Dom Paulo dá conta das numero-
sas advertências do santo, por exemplo,
contra o uso do livro como talismã ou
objeto de superstições. Ele apresenta Je-
rônimo, mais que tudo, imbuído da di-
mensão mística do texto: “não é a pena
nem a tinta, nem sequer o volume, e sim
‘o espírito e a palavra de Deus’ que ocu-
parão o coração dos fiéis” (p.32). Para
concluir, Dom Paulo, em uníssono com
Jerônimo, reconhece que a materialida-
de não exclui a transcendência, é seu veí-
culo. E o conhecimento intelectual pode
ser instrumento para transformar-se e
transformar o mundo.
Somente esses rápidos comentários
mostram como foi justificada e oportu-
na a bem cuidada reedição que a Cosac-
ARNS, Paulo Evaristo (Dom). A técnica do li-
vro segundo São Jerônimo. Prefácio de Alfredo
Bosi. Trad. Cleone Augusto Rodrigues.
São Paulo: CosacNaify, 2007. 256p.
ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007302
Naify resolveu fazer dessa obra singular
e pioneira. Cumpre notar, ainda, a sele-
ção de imagens pictóricas que ilustram a
edição, datadas dos séculos XV a XVII,
incluindo Caravaggio, Nicoletto Semi-
tecolo, van Eyck, Leonardo, Antonello
da Messina, Ticiano, Dürer, Patinir e
Jusepe de Ribera. Evidentemente, as
imagens não pretendem criar nenhuma
ilusão das atividades de São Jerônimo e
dos ambientes que as abrigaram. Além
do aporte estético, servem como teste-
munho do impacto do santo monge no
imaginário europeu, mais de um milênio
após sua morte, e de sua associação ao
estudo, à erudição, à meditação, à escrita
e, sobretudo, ao livro.
Referências bibliográficas
GRAFTON, A.; WILLIAMS, M. Christi-
anity and the Library of Caesarea. Origen,
Eusebius, and the Library of Caesarea.
Cambridge, Mass.: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2006.
HURTADO, L. W. The earliest Christian
artifacts. Manuscripts and Christian ori-
gins. Grand Rapids: Eerdmans, 2006.
KLINGSHIRN, W. E.; SAFRAN, L.
(Ed.) The early Christian book. Washing-
ton: Catholic University of America Press,
2007.
MELOT, M. Livre. Paris: L’Oeil Neuf
Editions, 2006.
WILLIAMS, M. H. The monk and the
book. Jerome and the making of Christian
scholarship. Chicago: The University of
Chicago Press, 2006.
Ulpiano T. Bezerra de Meneses é professor
do Departamento de História da FFLCH-
USP. @ – utbm@uol.com.br

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Todas as parábolas da bíblia - Herbert Lockyer
 

Materia e espirito

  • 1. ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007 297 S ESTUDOS de cultura material, co- mo especialidade acadêmica, tomam por pressuposto a condição corporal do homem e, portanto, a existência de uma dimensão material, física, sensorial, que subjaz à instituição e ao desenvolvimen- to da vida biológica, psíquica e social. A perspectiva da cultura material, assim, permite, na história, identificar, definir e compreender tal dimensão na organiza- ção e dinâmica da vida social – sem se perder em reducionismos nem em ex- plicações causais. Não é de hoje que se discute a cultura material no campo das ciências sociais: desde a segunda meta- de do século XIX ela vem sendo objeto de reflexão e práticas, principalmente na antropologia, na arqueologia (por força da natureza da documentação exclusiva ou predominante com que trabalha) e na sociologia. Já a história, ela própria, tem sido renitente, sobretudo por causa do viés marcadamente logocêntrico da formação do historiador, embora já não haja dúvidas, hoje em dia, sobre a legiti- midade das fontes materiais. Muitas ve- zes, porém, ainda se pensa numa história da cultura material, mais uma entre as fa- tias em que se atomiza a disciplina, aqui com seu horizonte restrito ao estudo de artefatos e seus contextos, em vez de se preocupar com a dimensão sensorial que pode iluminar qualquer domínio da his- tória: história social, econômica, políti- ca, institucional, cultural, do gênero, das minorias e dos excluídos, das ideologias e assim por diante. Porisso,foiumareconfortantesurpresa ler a obra de Dom Paulo Evaristo Arns, A técnica do livro segundo São Jerônimo, fru- to de uma tese em patrística e línguas clás- sicas apresentada à Sorbonne (Faculdade de Letras e Ciências Humanas da antiga Universidade de Paris), em 1952. Houve uma edição francesa de 1953, uma italia- na de 2005, e mesmo uma brasileira, pela Imago, de 1993, mas que circulou muito pouco. A atualidade do interesse de Dom Paulo pela cultura material – mesmo que em momento algum ele utilize a expres- são –, na perspectiva mais fecunda (pelo que permite compreender), faz que seu livro seja contemporâneo de obras re- centíssimas de renomados historiadores e pesquisadores do cristianismo primitivo, como Klingshirn & Safran (2007), Hur- tado (2006), Williams (2006) e Grafton & Williams (2006). Esses historiadores estão agora palmilhando uma trilha que Dom Paulo foi dos primeiros a abrir. Apesar da riqueza de reflexão que a obra em exame suscita, eu me limita- ria aqui a comentar apenas três tópicos – aliás intimamente associados e imbri- cados – imbricados nessa eficaz perspec- tiva de cultura material. O livro como artefato O primeiro tópico é precisamente sua escolha seminal: não o conteúdo dos es- critos do monge São Jerônimo, mas o suporte físico desses conteúdos: o livro como artefato. São Jerônimo foi uma escolha per- tinente. Doutor da Igreja que viveu na virada dos séculos IV e V (347-420), per- correu áreas imensas do mundo em que se difundia a Boa Nova, de sua Dalmácia natal (hoje Croácia) à Gália, de Roma ao deserto da Síria, de Constantinopla à O livro, a matéria e o espírito Ulpiano T. Bezerra de Meneses O
  • 2. ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007298 Palestina. Tradutor da Bíblia do hebrai- co para o latim (a Vulgata), a pedido do papa Dâmaso, foi o verdadeiro fundador da tradição “acadêmica” dos estudos bíblicos. Além disso, dedicou-se com paixão a produzir e difundir em livro o resultado dos trabalhos seus e de outros eruditos. Por certo, teve predecessores, como Orígenes e Eusébio, mas sua pre- sença foi mais forte. Na obra de Dom Paulo, o estudo do livro se desdobra num infindável mar de temas, com os quais ele percorre mi- nuciosa e competentemente o circui- to completo de fabricação, circulação e consumo do livro na Antigüidade tardia: a composição (crítica interna, ditados, os imponderáveis no trabalho de taquígra- fos, copistas e calígrafos, as falsificações, adulterações, correções, roubos de ma- nuscritos), a matéria-prima e os equipa- mentos (papiro, pergaminho, madeira do liber, tabuinhas, estiletes, penas), as unidades e tipologias (epístolas, comen- tários, prefácios, tratados, recensões, apologias, coleções etc.), a edição e difu- são (empréstimos, comercialização, diá- logos, lutas partidárias, grupos de leito- res, intrigas religiosas, zelo apostólico, publicações à revelia do autor, papel de intermediários, depositários, e assim por diante), os salários, os preços e os patro- cínios (era grande o descompasso entre a pobreza doméstica e os altos custos do li- vro), os arquivos e as bibliotecas... Tudo isso em capítulos e subdivisões lineares, bem claras, com tratamento rigoroso da terminologia antiga e suas implicações filológicas, aproveitando-se de uma bi- bliografia erudita, mas mobilizada sem nenhum pedantismo. À primeira vista, no entanto, poderia alguém se perguntar: como um homem de profunda espiritualidade (afinal, tra- tava-se do futuro cardeal Arns) poderia ter assim priorizado as coisas materiais? Não vejo contradição nenhuma. Qual- quer leitura menos superficial demons- trará que aí se tem, antes de mais nada, a aceitação da corporalidade como condi- ção humana. Aliás, Henri de Lubac (je- suíta francês, cardeal no fim da vida, um dos mais importantes teólogos do século XX) já observara que o Cristo ter assu- mido integralmente a condição corporal revelava a “honestidade da Encarnação”. Conviria acrescentar que, para uma reli- gião revelada, trata-se de uma exigência da historicidade, o divino fazendo irrup- ção na história, na história dos homens e não numa história paralela. Assim, Dom Paulo não vai trabalhar o texto de São Jerônimo, mas procura acompanhar as contingências que mar- caram a difusão das Escrituras. Parafra- seando de Lubac, poderíamos dizer que fazia parte da honestidade da Revelação que ela se tivesse submetido às vicissitu- des da condição corporal da vida huma- na – no livro. Para terminar: o próprio São Jerônimo, no prefácio da tradução do “Livro de Jó”, explicitamente associa o trabalho de exegese bíblica ao trabalho manual, exercício monástico, com o fito de justificar, não a atividade física, mas a intelectual. A forma do livro e o conteúdo Nestes tempos em que o livro digital parece aposentar qualquer suporte físico, em que se tem escrita sem livro, é salutar refletir sobre o que o livro representou para nossa civilização. Dom Paulo trata da anatomia do livro, mas percebe que ela não é independente de sua fisiologia. A morfologia, os sentidos e o funciona- mento do livro são solidários. Os minu- ciosos quadros de informação que ele monta permitem entrever precisamente
  • 3. ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007 299 nos tempos de São Jerônimo a passagem definitiva do rolo (o volumen de papiro) ao códice, o codex de pergaminho, isto é, o livro de forma cúbica, “tijolo elementar do pensamento ocidental”, no dizer de Foucault. O papiro (de origem vegetal) adaptava-se ao rolo, mas para o livro em folhas dobradas o pergaminho (pele de animal) se comportava mais adequada- mente. Dom Paulo aponta argumentos para tal substituição, como a praticidade, o preço mais baixo do codex (que já foi chamado de “rolo dos pobres”), em re- lação ao volumen, o acesso imediato aos trechos procurados etc. Mas também já acentua que a passagem do rolo ao có- dice assegurava a unidade de composi- ção literária, que não poderia ocorrer no rolo. Esse ponto de vista é hoje desenvolvi- do em estudos que procuram entender o livro como forma simbólica. A expressão foi cunhada por Erwin Panofsky, ao pro- por o estudo das formas como sintomas, que exprimem por si todo um jogo de va- lores, representações do mundo, modos de pensar, que não são visíveis de ime- diato. Michel Melot, conservador emé- rito das bibliotecas nacionais da França, publicou em 2006 um inspirado e funda- mentado estudo sobre a história do livro. Ele também toca no problema levantado por Dom Paulo e prossegue: o rolo de papiro desenrola-se indefinidamente, seu conteúdo é um fluxo; assim a mensagem do Velho Testamento tinha nele um ve- tor apropriado. Já o códice, que nasce da dobra, fecha-se sobre si mesmo, como pretende a mensagem da salvação cristã, que se apresenta como completa, auto- suficiente: a verdade toda está conheci- da, deve apenas realizar-se no tempo, até o final. A tela do computador também se desenrola indefinidamente, como no volumen de papiro, aberta sem barreiras para todos os links que multiplicam ca- leidoscopicamente verdades múltiplas. Dom Paulo intuiu que no livro-códice se pressupõe um espaço circunscrito: por ele a escrita é solidária com seu suporte. O livro e o cristianismo Assim, com o cenário montado em A técnica do livro segundo São Jerônimo, podemos avaliar o trabalho cotidiano, concreto, do monge, do scholar e do edi- tor em plena operação. Disso podemos extrair duas considerações relevantes. A primeira é que o cristianismo in- tervém e marca fundamente a história do livro – como uma forma de pensar o mundo. Convém relembrar a transição há pouco apontada, do rolo de papiro ao livro dobrado, em pergaminho. Embora seja atestado desde o século I de nossa era, em Roma, o codex teve uma lentís- sima aceitação até os tempos de São Je- rônimo. Além disso, se quantificarmos os códices anteriores ao século IV, veri- ficaremos que dos 160 fragmentos que chegaram até nós, 158, maioria impres- sionante, se originaram em meio cristão: são textos do “Evangelho de São João”, dos “Atos dos apóstolos”, de uma epís- tola paulina... Já a partir do século IV, momento de expansão do cristianismo, o domínio se torna efetivo: pois não era um vetor apropriado para tornar visível e compartilhar uma certa noção de ver- dade, fundada numa revelação que já se perfez? Em conseqüência, o livro que encerra essas verdades pode transformar-se num manual de vida privada, portátil, pes- soal, disponível em grande quantidade, fazendo do cristianismo por excelência a religião do livro. Melot compara os comportamentos associados ao livro nas outras duas grandes religiões monoteís-
  • 4. ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007300 CortesiaCosac-Naify São Jerônimo em seu gabinete, c. 1435, Jan Van Eyck, óleo sobre pergaminho.
  • 5. ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007 301 tas. No judaísmo ele ressalta a natureza de objeto sagrado da Torá; no islamismo, o Corão não é propriamente o suporte da palavra divina, mas mediação inescapável para a onipresença dessa palavra pela re- citação: a escrita é mero recurso da reci- tação. São mais religiões da palavra do que do livro, conclui Melot. No século XV, quando ocorre a grande revolução de Gutenberg, não é coincidência que o primeiro livro impresso seja a Bíblia. Seja como for, fica patente no estudo de Dom Paulo o papel de Jerônimo na implantação da cultura escrita (e sua au- toridade na tradição ocidental) como a atmosfera própria do cristianismo. Segunda consideração: inversamente, o livro intervém e marca a história do cristianismo. Antes de mais nada, mar- ca na formação de um modo específico de produção de conhecimento que, para simplificar, podemos chamar de estudos bíblicos, postura que fez do cristianismo na Antigüidade e na Idade Média um foco e uma forma de sabedoria. Nessa linha, Dom Paulo revela as habilidades desse sábio que foi São Jerônimo, versa- do em grego, latim, hebraico, filosofia, filologia, retórica, exegese e o mais que se fizesse necessário. Não sem mérito, pois, é o patrono dos estudos bíblicos e o protótipo do pesquisador eclesiástico. Fica patente nesse passo a importância da produção do livro e da leitura como atividade monástica essencial. Ao mesmo tempo, forma-se um novo público lite- rário – que inclui até mulheres – com o interesse concentrado na Bíblia e prepa- rado para a leitura cotidiana e a medita- ção noturna. Jerônimo, entretanto, está atento aos perigos de reificação do livro, risco com- parável à transformação das imagens de- vocionais em imagens sacras, o que foi objeto de intermináveis disputas teoló- gicas, assim como de inúmeros e ferozes episódios de iconoclasmo. No caso do livro, os desencontros foram mais ame- nos. Dom Paulo dá conta das numero- sas advertências do santo, por exemplo, contra o uso do livro como talismã ou objeto de superstições. Ele apresenta Je- rônimo, mais que tudo, imbuído da di- mensão mística do texto: “não é a pena nem a tinta, nem sequer o volume, e sim ‘o espírito e a palavra de Deus’ que ocu- parão o coração dos fiéis” (p.32). Para concluir, Dom Paulo, em uníssono com Jerônimo, reconhece que a materialida- de não exclui a transcendência, é seu veí- culo. E o conhecimento intelectual pode ser instrumento para transformar-se e transformar o mundo. Somente esses rápidos comentários mostram como foi justificada e oportu- na a bem cuidada reedição que a Cosac- ARNS, Paulo Evaristo (Dom). A técnica do li- vro segundo São Jerônimo. Prefácio de Alfredo Bosi. Trad. Cleone Augusto Rodrigues. São Paulo: CosacNaify, 2007. 256p.
  • 6. ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007302 Naify resolveu fazer dessa obra singular e pioneira. Cumpre notar, ainda, a sele- ção de imagens pictóricas que ilustram a edição, datadas dos séculos XV a XVII, incluindo Caravaggio, Nicoletto Semi- tecolo, van Eyck, Leonardo, Antonello da Messina, Ticiano, Dürer, Patinir e Jusepe de Ribera. Evidentemente, as imagens não pretendem criar nenhuma ilusão das atividades de São Jerônimo e dos ambientes que as abrigaram. Além do aporte estético, servem como teste- munho do impacto do santo monge no imaginário europeu, mais de um milênio após sua morte, e de sua associação ao estudo, à erudição, à meditação, à escrita e, sobretudo, ao livro. Referências bibliográficas GRAFTON, A.; WILLIAMS, M. Christi- anity and the Library of Caesarea. Origen, Eusebius, and the Library of Caesarea. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006. HURTADO, L. W. The earliest Christian artifacts. Manuscripts and Christian ori- gins. Grand Rapids: Eerdmans, 2006. KLINGSHIRN, W. E.; SAFRAN, L. (Ed.) The early Christian book. Washing- ton: Catholic University of America Press, 2007. MELOT, M. Livre. Paris: L’Oeil Neuf Editions, 2006. WILLIAMS, M. H. The monk and the book. Jerome and the making of Christian scholarship. Chicago: The University of Chicago Press, 2006. Ulpiano T. Bezerra de Meneses é professor do Departamento de História da FFLCH- USP. @ – utbm@uol.com.br