1. Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Estudos da Linguagem
Mestrado em Linguística
Menor ou criança?
Uma análise da argumentação discursiva nas notícias dos
portais Globo.com e R7
Trabalho de conclusão solicitado na disciplina “Tópicos
de Semântica I”, como forma de avaliação final.
Professora: Sheila Elias Oliveira
Aluno: Eduardo Santos de Oliveira
RA: 1429943
Campinas
2012
2. Este trabalho busca analisar o uso dos termos “criança” e “menor” pelo
jornalismo brasileiro, tomando como corpus algumas notícias e reportagens dos portais
Globo.com (Organizações Globo) e R7 (Central Record de Comunicação). O objetivo é
compreender o uso dessas palavras e a argumentação usada em cada situação na qual os
termos aparecem.
A característica principal de um portal é a conveniência: em apenas um site, o
internauta tem acesso a notícias, entretenimento, esportes, e-mail gratuito, comunidade
de usuários, ferramentas de busca, jogos online, canais, etc.
“Os portais tentam atrair e manter a atenção do internauta ao apresentar, na
página inicial, chamadas para conteúdos díspares de várias áreas e de várias
origens. A solução ajuda a formar „comunidades‟ de leitores digitais, reunidos
em torno de um determinado tema e interessados no detalhamento da
categoria de um conteúdo em questão e seus respectivos hyperlinks [...], que
surgem em novas janelas de browser.” (Ferrari, 2006:30)
O Globo.com foi lançado em 2000, pelas Organizações Globo. Atualmente é
considerado o maior portal de notícias do Brasil, e um dos sites mais acessados no país1.
Tem como principais sites o G1 (Notícias), Globoesporte.com (esportes) e Ego
(entretenimento).
O R7 teve início em 2009, como parte do projeto da Rede Record para alcançar
e ultrapassar a Rede Globo como principal empresa de mídia e comunicação do país. Os
principais sites são os de notícias, esportes, entretenimento e vídeos2.
Ponto de vista téorico
A nossa base teórica para realizar este trabalho é a Semântica Histórica da
Enunciação, apresentada por Eduardo Guimarães. Para Guimarães (2010: 66), a
enunciação deve ser encarada a partir da história, isto é, “a significação é determinada
pelas condições sociais de sua existência”.
Como também afirma Oliveira (1998: 6), esta perspectiva “preconiza que os
sentidos de uma enunciação são constituídos em lugares de significação historicamente
construídos – os discursos”. Assim, a análise deve ser feita em dois níveis: o da
1
Wikipedia. Acessado em 13 dez 2012. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Globo.com>
2
Wikipedia. Acessado em 13 dez 2012. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/R7>
3. constituição (espaço interdiscursivo) e o da formulação (no qual os sentidos são
verbalizados pelo sujeito).
Uma vez que a argumentação é resultado das relações de discursos,
interdiscursos (memórias históricas) e dos lugares de significação discursivos – e que os
sentidos não são fixos, mas se constroem na enunciação (Oliveira,1998) –, entendemos
que a mesma deve ser tratada como uma relação de linguagem, de significação que
proporciona uma direção ao dizer, e não apenas como uma técnica de convencimento,
seja para aceitação ou dissuasão.
“[...] Um argumento não é algo que indica um fato que seja capaz de levar a
uma conclusão. Um argumento é um enunciado que, ao ser dito, por sua
significação, leva a uma conclusão (uma outra significação). Mais
especificamente, argumentar é dar uma diretividade ao dizer” (Guimarães,
2002: 79).
Neste trabalho, podemos observar como o contexto histórico da palavra “menor”
é determinante para argumentação nas notícias, e logo, no entendimento geral dos
leitores. Quando a imprensa usa os termos em análise apenas em algumas situações, e
não à faixa etária que faz parte da categoria jurídica “menor de idade” – crianças e
adolescentes com até 18 anos de idade – são criados e fortalecidos estereótipos e
estigmas, que enfraquecem moralmente uma parte da classe infanto-juvenil.
Segundo Neder (apud Goffman), estigma é a “discrepância específica entre a
identidade social virtual e a real dos indivíduos”, isto é, “um tipo especial de relação
entre estereótipo e atributo”. No jornalismo, o uso constante do termo menor acaba se
tornando um “estigma enunciativo” (Neder, 2008). Isto porque, em seu significado
original, o termo “menor” está ligado ao marco etário da legislação penal, ao jurídico.
O primeiro Código de Menores (instituído pelo presidente Washington Luís em
12 de outubro de 1927) classificava menor todo aquele que tinha menos de 18 anos de
idade, “abandonado ou delinquente”. Em 10 de outubro de 1979, o presidente
Figueiredo institui o novo Código de Menores, que tem como objetivo dar “assistência,
proteção e vigilância a menores: de até dezoito anos de idade, que se encontrem em
situação irregular” (entende-se por “situação irregular” a negligência dos pais ou
responsável, maus tratos, castigos, perigo moral, desvio de conduta e autoria de
infrações penais); e “entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos na lei”.
Conforme Neder (2008), a conotação pejorativa que se dá por um deslizamento
semântico ocorreu em três níveis: o político-ideológico (o ideal proposto era de inclusão
4. de crianças e adolescentes); o jurídico (uma vez que a legislação penal se apropriou do
conceito de maioridade da legislação civil); e linguístico (se no início “menor” se referia
a proteção e acolhimento, com o passar dos anos passou a significar preconceito e
rejeição, a partir dos discursos jurídico e jornalístico).
As mudanças na legislação para estabelecer os direitos da criança e do
adolescente terá como ápice a extinção do Código de Menores, dando lugar ao Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), instituído em 1990, dois anos após a promulgação
da Constituinte e um anosdepoisda primeira eleição presidencial com votação direta,
pós ditadura militar.
O ECA surge com o objetivo de combater a discriminação de crianças e
adolescentes, mostrando que estas são sujeitos de direitos, tal como os adultos e idosos.
Umas das principais maneiras de avançar nisso foi a exclusão do termo “menor”.
O portal R7 e o uso dos termos “menor” e “criança” e “adolescente”
Título da matéria: “Menor rouba carro com criança de quatro anos dentro”
Nota abaixo do vídeo: “Um homem roubou um veículo no Gama, região administrativa
do DF. O acusado teria pegado o veículo enquanto a mãe de uma criança prendia o
cachorro. A filha de quatro anos estava na cadeirinha presa ao carro. O assaltante
abandonou a menina no meio do caminho e capotou o carro.”
Na matéria, que tem um vídeo de 2 minutos e 49 segundos, o discurso não segue
uma linha coerente no tratamento do agente da ação: a repórter não usa em momento
algum o termo “menor”, mas sim “adolescente”, “menino” e “garoto”; todavia, tanto o
apresentador quanto o título e nota não usam o mesmo tratamento da repórter, chegando
até mesmo fazer paradoxos (menor x homem; acusado x assaltante). Na reportagem, o
sargento de polícia responsável pelo caso chama o adolescente de “elemento”, termo
comum no jargão policial.
Ao fazer o uso de “menor”, “homem”, “acusado” e “assaltante”, o discurso
jornalístico retoma e cruza-se com outro discurso: o jurídico, o qual repassa conotação
de delinquência, irresponsabilidade e de criminalidade, mobilizando a intertextualidade.
“Assim, um acontecimento enunciativo cruza enunciados de discursos
diferentes em um texto. a enunciação, então, se dá como o lugar de posições
de sujeitos que são os liames do acontecimento com a interdiscursividade.
5. Deste modo aquilo que se significa, os efeitos do sentido, são efeitos do
interdiscurso no acontecimento” (Guimarães, 2010: 68).
A reportagem é finalizada com uma falado sargento:
“Ultimamente eles andam de sangue muito frio, né? Eles não tão mais
preocupando se vai ficar dois meses, ou 10 anos de cadeia; não tão nem aí, não; pra
eles é normal. Então, a gente... é um serviço rotineiro da gente mesmo” (sic).
Assim, essa enunciação pode ser parafraseada da seguinte forma: esses garotos
não têm preocupação, sentimentos, misericórdia, temor; a criminalidade já se tornou
normal para eles. Assim como a prisão dos mesmos é algo constante, uma rotina para a
polícia.
Em outra reportagem do dia 05 de novembro de 2012, no mesmo portal, o
tratamento é diferenciado. A reportagem conta a história de adolescentes que sofreram
violência sexual doméstica. Com uma linguagem mais literária e texto mais
aprofundado, a matéria não faz uso do termo “menor”, apenas a expressão menor de
idade (“O número de menores de idade vítimas...”). Há uma exceção no uso: quando se
refere à idade passada de uma adolescente (“A irmã também foi abusada quando era
menor...”), logo a conotação adquirida é diferente, pois diz respeito à idade da
adolescente.
A criança e o adolescente no G1
Na editoria de notícias G1, do portal Globo.com, quatro matérias analisadas
servem para mostrar a diferença no uso das terminologias em estudo. A primeira, do dia
10 de outubro de 2012, trata sobre uma rebelião no Centro de Atendimento Integrado da
Baixada, em Belford Roxo (RJ).
A incoerência nos discursos também é notada nesta matéria: a repórter usa a
palavra adolescente, enquanto a apresentadora e o texto escrito usam o termo menor. O
próprio entendimento de “menor” é suplantado no título pela palavra “jovens” – faixa
etária de pessoas acima dos 18 anos, ou seja, com maioridade.
O uso da palavra “rebelião” e não “reivindicação” dos adolescentes gera um
deslizamento semântico equivalente à ideia de baderna, irresponsabilidade, “vadiagem”.
Ao mesmo tempo, “jovens” sugere que os mesmos são responsáveis por seus atos, e
logo, passíveis de punição.
6. Nesta matéria, há um link para outra com temática semelhante. Esta é de 22 de
agosto do mesmo ano e diz respeito a transferência de crianças e adolescentes para um
novo centro socioeducacional, no Rio de Janeiro. O texto é mais detalhado e
aprofundado que o outro, mas também apresenta discrepâncias nas terminologias.
O título usa “menores infratores”, expressão excluída do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), e usada no extinto Código de Menores. No sub-título, repete-se
o termo, mas também usa-se “meninos”. Essa incoerência de sentidos é mantida ao
longo do texto.
A retomada de palavras excluídaspelo ECA é o que podemos chamar de
esquecimento ideológico (Orlandi apud Pêcheux), isto é discursos históricos que
adquirimos ao longo da vida, sendo que este esquecimento não é voluntário.
“É assim que suas palavras adquirem sentido, é assim que eles
se significam retomando palavras já existentes como se elas se
originassem neles e é assim que sentidos e sujeitos estão sempre
em movimento, significando sempre de muitas e variadas
maneiras. Sempre as mesmas, mas ao mesmo tempo, sempre
outras” (Orlandi, 2007: 36).
Quando a criança ou adolescente é quem sofre uma ação, é a vítima de
acidentes, crimes, etc, o tratamento muda. No dia 02 de outubro de 2012, a editoria G1
do Rio de Janeiro noticia a investigação da queda de uma criança de 12 anos em uma
escola. Em toda a matéria, em momento algum o termo “menor” é usado, mas
“criança”, “menino”, “estudante”, “aluno”.A matéria também oferece dois links de
notícias sobre o caso, que fazem o mesmo tratamento à criança.
Numa outra notícia no mesmo portal, do dia 11 de dezembro de 2012, esse
tratamento é mantido, mas com um deslocamento. Vejamos:
Título: Em MS, três pessoas e uma criançamorrem em acidente na BR-163
Sub-título: Acidente aconteceu na segunda-feira (10), na região norte do estado. Três
pessoas morreram no local. A quarta vítima morreu no local.
O deslocamento se faz presente na diferenciação dada às quatro vítimas do
acidente no título da matéria: enquanto os adultos são tratados como “pessoas”, a
criança de doze anos é tida como “criança”. Mais uma vez o esquecimento ideológico é
percebido. No entanto, no segundo parágrafo da notícia a criança é chamada é tradado
como “pessoa”.
7. Considerações finais
A partir da análise das notícias, podemos compreender que:
Para designar crianças e adolescentes que cometem algum crime ou são
suspeitos, os jornalistas (repórteres ou editores) usam o termo “menor”, de
forma constante;
Quando a criança ou adolescente é vítima de crimes ou sofre acidentes,
homicídios e sequestros, usa-se com frequência “criança”, “adolescente”,
“menino”, “menina”, “garota”, “garoto”;
Nem todos são “menores”, mesmo que tenham idade inferior a 18 anos, pois
isso vai depender se a criança/adolescente é autor ou vítima;
Os jornalistas desconhecem ou negligenciam o Estatuto da Criança e do
Adolescente e ainda usam termos do antigo Código de Menores
De certa forma, o uso do termo “menor” em situações nas quais a
criança/adolescente é tida como suspeito ou autor de algum delito e infração, apaga,
suplanta o sentido real da pessoa dessa faixa etária. É o que Orlandi (1992) chama de
“silenciamento” ou “política do silêncio”.
“[...] A política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos
necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma
situação discursiva dada. [...] A política do silêncio produz um recorte entre o
que se diz e o que não se diz [...]” (Orlandi, 1992: 75).
Entre os vários significados para a palavra “menor”, o de abrangência geral é
relacionado à inferioridade, pequenez, subordinação. Diz também respeito ao oposto de
maioridade: menor de idade é quem não completou ainda 18 anos. E se não alcançou a
maioridade, é passível de vulnerabilidade, irresponsabilidade e dependência.
Essa ideia de inferioridade é o que podemos classificar de memória discursiva:
aquilo que já está dito, que serve de base para sustentar o uso de uma palavra ou
discurso. Ou seja, “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a
forma do pré-construído” (Orlandi, 2007: 31). Assim, cada vez que se usa a palavra
menor para tratar sobre uma criança e adolescente, produz-se um deslizamento para a
história desta palavra, de cunho pejorativo e estigmatizado.
8. Referências
FERRARI, Pollyana. Jornalismo digital. São Paulo: Contexto, 2006.
GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da
linguagem. Campinas: Editora RG. 4. ed. 2010.
NEDER, V. O estigma de “menor” na imprensa escrita. Cenários da Comunicação,
São Paulo, v. 7. n. 2, p. 161-167, 2008. Acesso em 13 dez 2012. Disponível em:
http://www.revistabrasileiramarketing.org/.
OLIVEIRA, Sheila Elias Oliveira. Cidadania: história e política de uma palavra.
Campinas: Pontes: RG, 2006.
__________. Igreja Universal do Reino de Deus: uma análise de argumentação em
perspectiva discursiva. Campinas: Unicamp, 1998. 115 p. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em Linguística, Instituto de Estudos de Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.
ORLANDI,Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos.
Campinas: Pontes, 2007.
__________. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora
da Unicamp, 1992.