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Aproximações entre o Saci e o Abaporu
Este texto pretende analisar o “monstro” com pé gigante da obra Abaporu1
de
Tarsila do Amaral. Procurarei traçar uma visão retrospectiva desse caráter “monstruoso”
da obra, retomando, entre outras coisas, a figura do ciópode ― monstro grego e
medieval ― e do saci ― mito brasileiro ―, entrando um pouco nos principais temas
do período em que a obra foi pintada: primitivismo, arte e cultura “genuinamente”
nacionais, valendo-me inicialmente de um estudo de Orianna Baddeley e Valery Fraser
Drawing the line: Art and Culture in Latin America, de 1989, e dos escritos de Tarsila
do Amaral.
Após uma comparação formal entre o ciópode e o Abaporu, buscarei interpretar
esses personagens a partir de seus significados etimológicos; o resultado será o monstro
europeu encontrando mais um correspondente ou duplo na mitologia brasileira: o saci.
Essa última criatura foi escolhida por Monteiro Lobato para fundar e assentar as
bases de uma arte e cultura brasileiras autênticas. E isso ocorreu bem antes da execução
da tela de Tarsila do Amaral. O Abaporu, por sua vez, foi o marco que Oswald de
Andrade utilizou para simbolizar o movimento Antropofágico, também preocupado
com a questão de uma cultura nacional.
Aproximando as figuras do Saci e do Abaporu, tentarei ir além do problema da
“brasilidade” desses monstros, inserindo-os no campo em que a história da arte estuda o
deformado, o maravilhoso, o desconhecido, o estranho, o feio, ou seja, estuda as
criaturas que habitam os sonhos e os pesadelos.
1
Data: 1928; Técnica: óleo sobre tela; dimensões 85 cm x 73cm; Localização: Museu de Arte
Latinoamericano de Buenos Aires- Fundación Costantini, Buenos Aires, Argentina.
1
O Abaporu é o quadro “fundador” do Movimento Antropofágico elaborado por
Oswald de Andrade e Raul Bopp. Na historiografia, existe a versão que foram esses dois
intelectuais os responsáveis pelo nome da famosa tela2
. Tendo em conta a importância
do título em uma obra de arte, é possível constatar e reiterar que há uma relação
profunda entre o Abaporu e a origem do Movimento Antropofágico. No entanto, é
preciso salientar que o título surgiu após a execução da pintura e não foi ideia da autora.
Neste sentido é necessário retroceder a interpretação da pintura aos termos
formais: a tela apresenta uma figura humana deformada que, se por um lado “rompe”3
com a tradição da arte acadêmica que via no corpo humano estruturado em proporções
divinas o seu estabelecido ideal de beleza4
, associa-se, por outro, às imagens disformes,
ou seja, estabelece contatos com uma também tradicional representação de figuras
monstruosas, “feias” e “maravilhosas”5
.
2
No relato de Tarsila, ela afirma que o título da obra foi criado por Oswald de Andrade e Raul Bopp:
"Deram-lhe o nome de Abaporu". “Pau Brasil e Antropofagia”, Diário de S. Paulo, quinta-feira, 4 de
janeiro de 1951. Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Organização Laura Taddei Brandini.
Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2008.p. 685.
No livro de Aracy Amaral "Tarsila: sua obra e seu tempo", o título foi criado por Oswald de
Andrade e Raul Bopp e foi retirado de um dicionário : "O título? Era a intensa vinculação com a terra
nessa figura central que correram ao dicionário tupi -guarani de Montoya, que pertencia ao pai de Tarsila,
para obter um nome para a tela" Amaral, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo - São Paulo: Ed.
34;Edusp. 2003. p. 279.
3
Nos estudos que não fazem referência tanto tematicamente quanto formalmente aos monstros, o
Abaporu é considerado como uma ruptura em relação ao cânone da figura humana das belas artes, na
época em que se estabelecia o modernismo no Brasil."O Abaporu de Tarsila está para a arte moderna
assim como Les Demoiselles d'Avignon, de Pablo Picasso está para a arte moderna ocidental: são obras de
ruptura, muito divulgadas e ainda assim imunes à banalização (...) Pintados nas primeiras décadas do
século XX, excepcionalmente resistentes à pasteurização promovida pela mídia, esses quadros ainda hoje
têm poder de choque. Em ambos a força desestabilizadora do senso comum advém da transgressão do nu
como representação canônica. O trato desregrado da anatomia, o desmembramento e a deformação, a
exposição abusiva de certas partes e o ocultamento de outras transformam o que nos é familiar ― o corpo
humano ― em algo assustador". Milliet, M. A. Tarsila: Os Melhores Anos. São Paulo: M1O Editora,
2011. p. 158. Vale lembrar que um título que o Abaporu já recebeu foi "nu", segundo informação no
Catálogo Raisonné de Tarsila. p. 166. O nome de Nu, reforçaria a interpretação de ruptura pois dá enfase
ao elemento “corpo”, corpo nu, apresentando um choque formal direto com os corpos nus canônicos.
4
Sobre o assunto ler, entre outros, “Ideia, a Evolução do Conceito de Belo” E. Panofsky e “Arte e Beleza
na Estética Medieval”, Umberto Eco.
5
Quanto a esse tema, há um estudo fundamental de Rudolf Wittkower, “Marvels of the East. A Study in
the History of Monsters” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, idem. Vol. 5 (1942), pp. 159-
197. Nesse texto, o autor faz um levantamento das figuras monstruosas do oriente que ficaram conhecidas
no ocidente por meio de manuscritos dos estudiosos da antiguidade e das obras de arte.
A própria Tarsila do Amaral se insere nesse tema. Quanto à questão da deformação das figuras
humanas na arte, segue o raciocínio da pintora no artigo “ Tendências da Arte Moderna”:
“ Há trinta anos, precisamente, nasceu o cubismo. Os seus frutos foram eficientes.
Apresentaram-se perspectivas nunca vistas, onde a imaginação criadora dos artistas novos se sentiu à
vontade. Os excessos, os exageros, não tardaram, porém, a aparecer.
Arte moderna! Nessas duas palavras cabem todas as extravagâncias, todas as monstruosidades
( inclusive a minha arte antropofágica, brutal e sincera), todos os desabafos, pesadelos, recalques e
delírios. Válvula através da qual o subconsciente se estampa na tela, se condensa no mármore. Se fixa na
2
Para reforçar a hipótese de que o interesse da artista ao deformar a figura
humana teria sido o de adentrar no imaginário dos monstros — e não somente o de
desestabilizar e confrontar o ideal de beleza —, basta lembrar que a explicação dada por
Tarsila do Amaral sobre a origem do quadro, é que ele foi criado a partir de sonhos,
lembranças da infância, memórias de estórias contadas pelas criadas negras no tempo
em que ela era pequena e vivia em uma fazenda6
. Dar ou optar por uma explicação
como essa é, antes de mais nada, inserir o seu monstro, o Abaporu, na esfera comum,
habitual desse tipo de seres que sempre existiram em sonhos e pesadelos.
A figura humana deformada na tela de Tarsila do Amaral tem como elemento
marcante um único pé gigante, sendo essa parte do corpo humano o seu principal índice
de monstruosidade. O entendimento dessa obra ficaria mais completo se ela fosse
comparada não apenas à produção artística de sua época, — penso nas obras de Picasso,
Léger ou Miró — mas também alinhada a uma “genealogia” das figuras monstruosas,
por mais variado e conflitante que esse tipo de imagem possa ser.
O pé agigantado do Abaporu não é estranho dentro da iconografia dos monstros:
existe um ser chamado ciópode que se caracteriza por seu único pé gigante, e é muito
conhecido e extremamente familiar no imaginário dos europeus. Nessa linha de
investigação há uma análise valiosa para a compreensão do quadro de Tarsila do
Amaral, publicada no ano de 1989 por Orianna Badelley e Valery Fraser, que compara o
ciópode com o Abaporu7
:
“Sua pintura mais importante do período é o Abaporu de 1928. Numa
pequena porção de terra, ao lado de um cacto e abaixo de um sol ardente,
senta uma monumental figura com uma cabeça pequena inclinada para o sol
e com um pé gigantesco: forte, de imponência física, enraizado no solo
pauta musical, de qualquer jeito, com talento, sem talento. Com técnica ou sem técnica, à vontade. A
confusão se estabeleceu. Agora o cansaço vai se generalizando.
O cubismo, ou melhor, a arte moderna, deu aos artistas uma consciência criadora e o espírito de
libertação. Hoje, porém, estamos num período de construção em que a técnica se impõe. As deformações
teratológicas e convencionais vão cedendo terreno para a deformação bela e harmoniosa. Todos os
grandes artistas de todas as épocas deformaram. No período áureo da estatuária grega, os artistas, longe
de copiar os seus modelos, deformavam os seus mármores no sentido ideal de beleza plástica.” Brandini,
Laura Taddei, Org. Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Campinas, SP. Editora da
UNICAMP, 2008. p.262
6
Amaral, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo - São Paulo: Ed. 34; Edusp. 2003. p. 280.
7
Todas as citações em outras línguas no presente texto foram traduzida livremente.
3
brasileiro. Esse é um descendente imaginativo dos ciópodes8
, uma das raças
monstruosas da lenda clássica e medieval”9
Antes de tentar compreender o sentido de “descendente imaginativo”, é
importante prosseguir na leitura do estudo já citado em que as autoras utilizam o texto
do historiador da arte Rudolf Wittkower10
para explicar a origem dos Ciópodes:
“O ciópode, pelo o que é dito, utiliza seu único pé para se proteger do sol
e da chuva; é encontrado na História Natural de Plínio e nas Viagens de Sir
John de Mandeville ao lado das pessoas com a orelha tão grande que a
utilizam como mantos para se protegerem do frio, ao lado da raça de seres
com os olhos no peito, e, finalmente, junto aos antropófagos, os comedores
de homem, que eram mais deformados moralmente do que fisicamente.
Essas raças monstruosas tradicionalmente povoaram o mundo desconhecido
para além do Mediterrâneo e, nos anos em que se seguiram às primeiras
expedições de Colombo, alguns tripulantes relatavam estórias similares
desses monstros (...) A imaginação de Amaral foi evidentemente movida em
torno de tais fontes porque, pouco tempo depois, ela pintou uma tela
intitulada Antropofagia/ Canibalismo11
(...) onde duas figuras monstruosas
monumentais similares sentam tendo como pano de fundo um cenário com
um cacto gigante e folhas de bananeira.”12
8
Itálico meu
9
“[Her most important painting of this period is Abapuru of 1928. On a small hillock, besides a cactus and
beneath a blazing sun, sits a monumental figure with a diminutive head like sprout leaning towards the
sun and with one gigantic foot: a strong, physical being, rooted into the Brazilian soil. This is an
imaginative descendant of the sciapods, one of the monstrous races of classical and medieval legend.]”
Baddeley, Oriana. Drawing the line: art and cultural identity in contemporary Latin America/ Oriana
Baddeley and Valerie Fraser, Verso, 1989. pp. 19 e 20.
10
Wittkower, Rudolf. Marvels of the East, A Study in the History of Monsters. Em uma das pranchas de
imagens presentes no estudo, o historiador apresenta vários ciópodes.
11
Itálico meu.
12
“[The sciapod, who is said to use its single foot to shelter from the sun and the rain, is found in Pliny's
Natural History and Sir John Mandeville's Travels alongside the people with ears so large they used them
like cloaks to keep out the cold, the people with eyes in their chests, and the anthropophagi, the man-
eaters, who were morally rather than physically deformed. These monstruous races had traditionally
peopled the unknown world beyond the Mediterranean, and in the years following Columbus's first
voyages to America travellers repeat stories of similar monstruous races who are to be found further on,
in the next valley, or over the next range of mountains but whom (of course) the writer never actually
sees. They always inhabit the world immediately beyond reality. Amaral's imagination was evidently
moving around such sources because shortly afterwards she produced a painting entitled Antropofagia/
Cannibalism (private collection, São Paolo, 1929) where two similarly monumental-monstrous figures sit
in front of a backdrop of gigantic cactu and banana leaves.]” Baddeley, Oriana. Drawing the line: art and
cultural identity in contemporary Latin America/ Oriana Baddeley and Valerie Fraser, Verso, 1989. pp.
19 e 20.
4
Se no início do comentário sobre a obra de Tarsila do Amaral as
historiadoras comparam as imagens do Abaporu (figura 1) com a de um ciópode
impresso no livro das Viagens de John de Mandeville (figura 2), afirmando ser o
primeiro um “descendente imaginativo” do segundo, no trecho acima elas radicalizam a
comparação ao escrever que a pintora muito provavelmente entrou em contato com tal
fonte. Antes de explorar essa hipótese, é obrigatório lê-las novamente:
“Os canibais foram supostamente descobertos pelos europeus em diferentes
partes da América, mas o imaginário do canibalismo foi especialmente forte
em relação aos nativos habitantes do Brasil. No início do século XVI,
numerosas gravuras populares circularam na Europa mostrando os indígenas
da costa brasileira roendo grandes braços e girando pernas carnudas em
espetos sobre uma fogueira. É esse o imaginário comum às xilogravuras dos
ciópodes ousados de Mandeville, que informa as extraordinárias pinturas de
Tarsila do Amaral”13
Figura 114
Figura 215
13
“[Cannibals were supposedly discovered by Europeans on several different parts of America, but the
imagery of cannibalism is especially strong in relation to the native inhabitants of Brazil. From the very
beginning of sixteenth century numerous popular prints had circulated in Europe showing the Indians of
Brazilian coast gnawing on large arms, or turning fleshy legs on a spit over a fire. This is the imagery,
along with that of the bold woodcuts of the sciapods from Mandeville's Travels, which informs Tarsila do
Amaral's extraordinary paintings]”. idem. pp. 19, 20.
14
Imagem retirada do Catálogo Raissoné, volume I, na página 67.
15
Reproduzida do livro de O. Baddelley, página 19.
5
As imagens dos dois monstros, postas lado a lado, apresentam, além do pé, mais
alguns elementos semelhantes no cenário: uma planta, o céu e uma porção de terra.
Diferem no posicionamento dos corpos: o Abaporu está sentado, com o pé voltado para
o solo, enquanto o ciópode, no livro de Mandeville, tem o seu pé suspenso no ar. Além
disso, as plantas não são as mesmas e Tarsila pintou um sol que não aparece na gravura
do livro de Viagens. Comparando essas duas imagens, Orianna Badelley e Valery Fraser
foram enfáticas: Tarsila do Amaral teve conhecimento das gravuras antigas dos seres
monstruosos e elegeu o ciópode para criar o Abaporu. A argumentação das autoras é
convincente, mesmo contrariando a explicação dada pela artista sobre a origem de seu
quadro que não faz menção a qualquer “apropriação” de figuras antigas. Mas teria
Tarsila do Amaral realmente conhecido esta imagem do ciópode e a recriado,
transformando-a em um monstro brasileiro, como sugere a interpretação das
historiadoras?
Somente confrontando essas duas imagens não é possível chegar a uma resposta
afirmativa. Porém, aumentando o repertório de figuras dentro do imaginário dos
monstros comuns tanto ao antropófago quanto ao ciópode, torna-se possível formular
outras hipóteses e expandir o significado de “descendente imaginativo”.
O Abaporu aparece, no contexto da arte brasileira, como um monstro solitário —
não somente no sentido dele ser uma obra única, “inovadora” —, comparável apenas a
uma outra figura pintada posteriormente por Tarsila na tela Antropofagia (figura 3). Já o
ciópode europeu medieval foi representado diversas vezes16
. Oriana Baddeley e Valery
Fraser compararam uma imagem específica de ciópode, isto é, selecionaram uma dentre
as várias representações existentes para validarem a hipótese de semelhança formal e
temática com o Abaporu. É evidente que as representações que só mostram o ciópode
num fundo neutro (figura 4) são um empecilho para as duas estudiosas que
encontrariam dificuldades ao tecer relações entre duas figuras que só teriam em comum
o único pé.
Utilizando o mesmo método das historiadoras — e aprofundando a seleção de
imagens — seria possível aproximar a figura do sol presente no Abaporu à imagem do
sol/laranja presente na Antropofagia (figura 5) e, como se as formas se repetissem, de
pintura para pintura, ver esse mesmo sol num manuscrito medieval representando um
casal de ciópodes (figura 6). Sol este que, provavelmente — acompanhando o raciocínio
das duas autoras —, Tarsila do Amaral teria conhecido e se “apropriado” para criar as
16
Ver estudo já citado de R. Wittkower.
6
suas telas. Embora essa hipótese formulada pareça ser válida, reduz o espectro do
amplo imaginário dos monstros em algumas poucas imagens. Isto é, em um estudo mais
completo para comprovar que Tarsila teria conhecido algum ciópode, seria necessário
levar em conta uma série vasta de imagens desses seres, bem como considerar outras
fontes textuais que giram em torno da “criação” do Abaporu.
Figura 317
Figura 418
Antropofagia, detalhe Sens, Cathedral, Grand Portal. 13 th cent.
Figura 5 Figura 619
Antropofagia
1929, óleo sobre tela, c.i.d. 126 x 142 cm
Acervo Fundação José e Paulina Nemirovsky
(São Paulo, SP) C14th illuminated manuscript Der Naturen
Bloeme in the National Library of the Netherland
17
Imagem 3 e 5, retirados do Catálogo Raisonné, Volume I, página 183.
18
Imagem publicada no estudo de R. Wittkower.
19
imagem retirada do site: http://www.theoi.com/greek-mythology/fabulous-tribes.html.
7
Ainda dentro do campo de investigação que parte do pressuposto de que o
Abaporu é essencialmente um monstro, pelas suas deformidades e pelo fato de ser uma
figura solitária em uma paisagem,20
— motivos que podem ser levados em conta para
caracterizar esses personagens — é oportuno fazer algumas considerações acerca de seu
significado. Para isso, é imprescindível frisar que o monstro não se forma por uma
imagem vista e reproduzida como na realidade, mas é uma espécie de conglomerado de
imagens reais fortemente devedoras de relatos, da palavra.21
Em grande parte das obras
de arte em que figuram monstros, essa relação se dá entre a composição/imagem e seu
título, a palavra. Daí a necessidade de investigar a questão etimológica.
Ciópode, do latim Sciapode, é a junção de duas palavras gregas, skia e poûs.
Traduzindo, sombra e pé. Como já afirmado, utiliza — de acordo com textos gregos e
medievais — esse pé para fazer-lhe sombra, proteger-lhe do sol. Abaporu é uma
palavra tupi-guarani: Aba, “homem”; poru, “aquele que come”.
A diferença fundamental entre essas duas figuras é que o nome do segundo
surgiu de um dicionário;22
isto é, não possuía uma lenda popularizada por relatos ou
textos clássicos gregos e medievais como o ciópode.
20
O mostro é solitário pois é execrado, detestado e se afasta para lugares ermos. Deformado, é filho da
desordem: “O monstro, portanto, é uma manifestação de desordem, e desordem por carência ou por
“superfluidade”, sendo o critério a forma inicial, forma de homem, de animal ou de vegetal, forma
perfeita tal qual Deus criou. Portanto, por natureza, é “imperfeito”.(...)O monstro, filho da desordem,
imagem de deformidade, também é com muita frequência considerado inimigo do Belo.” Kappler,
Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1994,
pp. 308,309.
21
Sobre este assunto, segue o trecho: “O monstro, produto de uma combinatória das formas, não é apenas
o fruto malsão de um amor pervertido pelo quebra-cabeça. O monstro também é construído por meio da
palavra: pode surpreender que os autores se obstinem tanto em descrever verbalmente o que a imagem
representa com muito mais facilidade. Para isso há várias razões, sendo uma delas que a elaboração do
monstro por meio da palavra constitui uma criação específica que comporta suas próprias modalidades,
características e prazer. Contudo, a palavra mantém relações estreitas com a imagem, e essas duas
maneiras de representar o monstro constantemente apresentam interferências e influências recíprocas,
acabando por constituir uma parceria indissociável na elaboração do monstro ou do estranho. Nessa
elaboração, é preciso distinguir duas atitudes típicas: ou o autor é um mistificador voluntário que quer
fazer passar por monstro o que não o é a priori e contribui conscientemente para o enriquecimento da
família dos monstros; ou ele esta isento de qualquer desejo de fabular e o monstro se cria sem que ele
perceba: esta é a atitude que revela as verdadeiras capacidades criadoras da palavra e da imagem, seus
recursos ocultos, vitais, essenciais ..., independentes da intenção humana que as manipula.
Nem sempre é fácil distinguir, numa descrição, qual das duas atitudes prevaleceu; muitas
vezes elas se entremesclam e não se pode categorizar em nenhum dos dois sentidos, sendo ainda aí
necessário admitir interferências”. Idem. pp. 261,262.
22
A palavra veio do dicionário tupi-guarani Montoya, no episódio já citado pelas palavras de A. Amaral
na nota 2.
8
Se o significado do monstro é dependente de seu nome, a operação de conferir o
título Abaporu à pintura aproximou esse personagem a um outro monstro tão tradicional
quanto o ciópode — no sentido de relatos e estórias já estabelecidas na cultura — o
Antropophagi, também do grego: antro, homem; phagi, comedor, o Antropófago.23
No caso da história brasileira, associando o monstro de Tarsila do Amaral aos
relatos dos jesuítas sobre os índios comedores de gente, os antropófagos por
excelência24
, criou-se o monstro imaginário Abaporu. A pintura de Tarsila, nomeada
por Oswald de Andrade25
, foi utilizada para tornar-se símbolo, ícone, marco, do
movimento antropofágico que, metaforicamente, visava devorar e regurgitar as culturas
dominantes.
23
Sobre os antropófagos: “Quando tratamos dos homens selvagens falamos superficialmente dos
antropófagos: esses “monstros” realmente fascinaram a imaginação tanto na Idade Média quanto em
outras épocas. O ciclope antropófago da Odisséia dá ensejo a um dos episódios mais impressionantes
dessa época.
Todos os povos considerados selvagens são suspeitos de antropofagia para os viajantes. Pian di
Carpini observa que os tártaros não estão isentos desse vício:
Em caso de necessidade eles não fazem cerimônia em comer carne humana.
Ao menos é “em caso de necessidade”. Sabe-se que em situações de escassez geral, ou de sítio,
quando reina a fome, ressurge o canibalismo. Existe também o canibalismo religioso que, embora possa
parecer paradoxal, muitas vezes ocorre em povos vegetarianos e relaciona-se com o “nascimento” de
plantas alimentícias; existe o canibalismo iniciático... para isso, remetemos aos trabalhos de M. Eliade, já
citados.
Naturalmente os viajantes que deparam com esse canibalismo não se propõem questões de
etnologia ou história das religiões: a priori, o canibalismo é um vicio monstruoso e o maior fundamento
para essa opinião é que os antropófagos figuram no rol dos monstros desde a Antiguidade.
É esse caráter aprioristicamente monstruoso da antropofagia que leva os viajantes a fabularem e
a dotarem os antropófagos com atributos efetivamente monstruosos: cabeça de cão ou olho único.
Cristóvão Colombo, já na primeira viagem, ouve falar dos “canibais” pelos índios que lhe
servem de guia:
Diziam eles (os índios) que era uma grande ilha habitada por homens que tinham um só olho no
meio da fronte e por outros chamados canibais que, diz ele, parece que tinham uma pele
medonha.
Alexandre Cionarescu observa que
esse trecho é a certidão de nascimento da palavra canibal, que, aliás, é o mesmo que o
francês Caraïbe e o espanhol Caribe.
A palavra Caribe, acrescenta, ainda conserva em espanhol os dois sentidos: o de
“habitante das Antilhas” e o de “antropófago”.” Kappler, Claude. Monstros, demônios e encantamentos
no fim da idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 230,231.
24
Com relação aos antropófagos reais: “ A excessiva crueldade do indígena repugna a condição humana,
dizia Gândavo na História da Província de Santa Cruz: não apenas matam aqueles que não são do seu
rebanho como também os comem, “usando nesta parte cruezas tão diabólicas, que ainda nelas excedem
aos brutos animais que não tem o uso da razão” ”. Souza, Laura de Mello e. O diabo na Terra de Santa
Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo. Companhia das Letras, 1986. pp.
65, 66.
25
“Oswald de Andrade, aturdido perante a monstruosidade que lhe ofereci, chamou Raul Bopp, então em
São Paulo, para ver qual sua impressão. Eu estava ao lado observando. “Bopp, disse Oswald, precisamos
criar um movimento em torno desse quadro". E ambos comentavam: essa figura sentada, tão pesada, com
seus pés imensos apoiados ao solo, evoca a terra brasileira, rude, selvagem. Deram o nome de Abaporu,
que significa antropófago.” Amaral, Tarsila do .“Pau Brasil e Antropofagia”, Diário de S. Paulo, quinta-
feira, 4 de janeiro de 1951. in Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Org. Laura Taddei
Brandini. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2008. p. 685
9
É principalmente pela existência de índios antropófagos no Brasil que Orianna
Baddeley e Valery Fraser reforçam a hipótese da relação de “descendência imaginativa”
entre o ciópode e o Abaporu26
. No movimento antropofágico, lançado por Oswald de
Andrade — ainda na argumentação das autoras — a ideia de deglutição da cultura
europeia para a formação de uma cultura genuinamente nacional estaria presente no
antropófago. Nesse sentido, Tarsila do Amaral teria se apropriado do ciópode e o
transformado no monstro brasileiro Abaporu pela deglutição e digestão de uma
imagem/lenda europeia.
Em mais uma observação que cabe ser feita acerca desse estudo, não é possível
deixar de notar que, se em um primeiro momento as autoras falam em “descendente
imaginativo”, elas acabam por concluir que a imaginação de Tarsila do Amaral foi
evidentemente movida em torno de tais fontes (gravuras de antropófagos e ciópodes)
porque, pouco tempo depois ela pintou uma tela intitulada Antropofagia/ Canibalismo.27
Enquanto esta última afirmação não traz dúvidas, sugerindo que a fonte ou
imagem primeira do Abaporu foi a de um ciópode, assim como, evidentemente, o casal
da Antropofagia é um casal de ciópodes, a primeira afirmação é polêmica: o que
significaria exatamente “descendente imaginativo”? Uma mesma figura recriada após
vários anos? Descendente bastardo (não reconhecido) ou filho legítimo (conhecido,
porém omitido)? Ou seja, e essa parece ser novamente a grande questão ainda não
respondida: Tarsila do Amaral sabia ou não sabia da existência dos ciópodes?
26
Na continuação e finalização da comparação entre o Abaporu e o sciapode, Orianna Baddeley retoma o
significado tupi do título da pintura de Tarsila e reafirma sua importância para o movimento
antropofágico: “Nos termos europeus, o canibalismo representa a antítese absoluta de moralidade e
civilidade. Em um grande salto imaginativo, Oswald de Andrade e seu círculo apropriaram-se deste
conceito Eurocêntrico e o inverteram, para que ele significasse algo positivo e inequivocamente
Brasileiro. Foi Oswald de Andrade quem deu à pintura de Tarsila do Amaral o título Abaporu, uma
palavra Tupi-Guarani que significa “aquele que come”, e lançou, pouco tempo depois, o movimento
Antropofagia com um “Manifesto Canibal” proclamando que a maneira em direção à uma cultura nova
genuinamente nacional se daria não pela rejeição ao passado Europeu e sim pela deglutição agressiva e
deliberada deste, consumindo-o como comida, digerindo-o e produzindo a partir dele algo fresco e
independente. Repetindo, do ponto de vista do colonizado, o que os Europeus fizeram com a América
durante séculos. “[In European terms cannibalism represent the absolute antithesis of morality and
civility. In a great imaginative leap Amaral, Oswald de Andrade and their circle approprieted this
Eurocentric concept and turned it on its head to mean something positive and unequivocally Brazillian. It
was Andrade who gave Amaral's painting the title Abaporu, a Tupi-Guarani word meaning 'the one who
eats', and shortly afterwards he launched the Antropofagia movement with a 'Cannibalist Manifesto'
proclaiming that the way forward to a new genuinely national was not by ignoring or turning one's back
on the European past but by deliberately, aggressively, consuming like food, digesting it and producing
out of it something fresh and independent. This, after all, was no more than the Europeans had done with
America for centuries”]. Baddeley, Oriana. Drawing the line: art and cultural identity in contemporary
Latin America/ Oriana Baddeley and Valerie Fraser, Verso, 1989.p.20
27
Citando novamente a afirmação das historiadoras: “Amaral's imagination was evidently moving around
such sources because shortly afterwards she produced a painting entitled Antropofagia/ Cannibalism.”.
10
A partir do momento em que o termo “descendente” pode ter diversos
significados e as autoras exploram apenas um deles, cabe aqui tentar elucidá-lo saindo
do trabalho das estudiosas, mas sem perder de vista as relações até aqui traçadas entre
os monstros ciópode, Abaporu e antropófago.
Para começar a decifrar o enigma dessa descendência, nada mais apropriado do
que ler as palavras da própria artista:
“Quanto à Antropofagia28
, eu mesma não sei como foi que tive a ideia de
fazer um quadro monstruoso para presentear Oswald de Andrade no dia de
seu aniversário, a 11 de janeiro de 1928. Alguns anos depois, creio que
descobri serem aquelas monstruosidades reminiscências da infância,
imagens subconscientes29
, criadas pela imaginação de criança apavorada
pelas velhas histórias de assombração.”30
Na primeira frase, fica claro que a artista não chegou a ter o conhecimento dos
ciópodes, ou, caso tenha tido, não era de seu interesse assumir o fato. Assim como o
título foi dado após a execução da pintura, ela se lembrou da origem da tela — de
imagens subconscientes — bastante tempo após pintá-la. Ela faz uma afirmação um
tanto obscura, pois “creio que descobri” tem um valor diverso de “descobri” ou
“descobri com absoluta certeza”. O único dado fornecido pela artista é a possível
explicação sobre a origem dessas imagens que são “subconscientes”, oriundas de
reminiscências da infância, de lembranças das estórias31
de assombração.
Desvendar quais foram essas estórias nos processos de memorização da infância
e a relação dessas imagens que se formaram no subconsciente é de extrema importância
para compreender o Abaporu. Pois esse monstro de um pé só pode ter sido criado, como
afirma Tarsila do Amaral, a partir de relatos de estórias. No entanto, falando em
subconsciente, não é possível descartar a hipótese de uma apropriação inconsciente de
um ciópode ou de algum monstro que ela conheceu de outra maneira, porém não
mencionou por não lembrar-se do fato.
Explicar a origem de uma obra de arte por imagens vindas do subconsciente,
como Tarsila do Amaral fez ao falar sobre a origem do Abaporu, não é uma “novidade
28
Nesse relato, Tarsila se refere ao Abaporu, como antropofagia.
29
itálico meu
30
Amaral, Tarsila do :“Pau Brasil e Antropofagia”, Diário de S. Paulo, quinta-feira, 4 de janeiro de 1951.
Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Org. Laura Taddei Brandini. Campinas, SP. Editora da
UNICAMP, 2008.p. 685.
31
O termo, embora arcaico, expressa melhor o sentido de criação imaginária e não o de um relato
histórico de fatos reais. Para uma maior clareza, prefiro utilizá-lo quando me refiro a “estórias” ficcionais,
imaginárias.
11
modernista”, mas já era conhecida ao menos desde o Renascimento se consideramos
que os sogni di pittori32
— os sonhos dos pintores — propiciavam a feitura de figuras
grotescas, deformadas, fantásticas, monstruosas, estranhas ao real, como uma das
formas de “dar vazão” ao “subconsciente”.
Quando a artista afirma ter descoberto a origem do monstro Abaporu, muito
tempo depois de tê-lo pintado, dá uma explicação que torna a pintura uma atividade
em que as imagens da realidade, das estórias, das lembranças ou mesmo de sonhos,
misturam-se e emergem no quadro. O tema das reminiscências de infância que ela
menciona sobre a criação da obra, mesmo que se relacione com o subconsciente, não
implicam que a artista tenha abdicado da racionalidade ao pintá-la.33
32
Com relação às obras de arte criadas a partir dos sonhos de pintores: “Na palavra grottesco, como
designação de uma determinada arte ornamental, estimulada pela Antiguidade, havia para a Renascença
não apenas o lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas concomitantemente, algo angustiante e sinistro em
face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam suspensas(...) o fato se manifesta na
segunda designação que surgiu para grotesco no século XVI: sogni dei pittori. Com ele se indica ao
mesmo tempo o domínio em que a ruptura de qualquer ordenação, a participação de um mundo diferente,
tal como aparece sensivelmente na ornamentação grotesca, se torna para todo ser humano uma vivência,
sobre cujo teor de realidade e verdade o pensar jamais alcançou bom termo. Sonhos de pintores... deve-se
admitir que a nova arte italiana já era do conhecimento de Dürer, quando ele assim se exprimiu: 'Mas tão
logo alguém queira realizar sonhos, poderá misturar todas as criaturas umas com outras' ”. Kayser,
Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo, Perspectiva, 2009.
p.20.
33
Se o Abaporu for pensado de acordo com a periodização dos movimentos na história da arte, poder-se-
ia associá-lo não só aos sogni di pittori do Renascimento, mas também ao movimento surrealista, tanto
do ponto de vista da “criação” da obra quanto ao seu tema. .
André Masson, em “A pintura é uma aposta”, 1941 , afirma que no movimento surrealista a
criação do que ele denomina “obra de imaginação” depende tanto do consciente, quanto do inconsciente ,
do racional e do irracional: “o inconsciente e o consciente, a intuição e o entendimento deverão operar sua
transmutação na supra consciência, na unidade irradiante”. Chipp, Herschel Browing. Teorias da arte
moderna/ São Paulo: Martins Fontes, 1998
O tema do homem primitivo irracional que se teria surgido de um sonho, são característicos do
movimento surrealista: “Mas onde estaria o surrealismo nesse contexto? Pode ser interessante pontuar
como a própria artista disse ter se dado à “descoberta” de suas pinturas antropofágicas. (…)
A desproporção entre membros inferiores e o restante do corpo em quadros como Abaporu
e a Antropofagia poderia ser então interpretada como tendo relação com reminiscências das impressões
que essa brincadeira infantil teria causado na imaginação da artista. O interesse de Tarsila na exploração
de material inconsciente apareceria ainda em outras obras do período como Sono e Cidade. (…)
(…) O mesmo ocorre com o Abaporu. Se essa obra de fato surge de uma “galopada no mundo
interior”, nas reminiscências da brincadeira infantil, toda sua estruturação visa “ plantar” a figura nesse
território selvagem característico da fase antropofágica. É evidente a enunciação dessa figura como o
“homem bárbaro”que nada mais era do que o homem brasileiro despido da mentalidade lógica e dos
preconceitos que as “manhas da catequese” lhe teriam infundido durante séculos de colonização territorial
e cultural. O homem que teria reconquistado a compreensão e a expressão poética do mundo, presente no
primitivo.
Justamente por isso, constitui uma afinidade mais interessante com o surrealismo. Uma
afinidade de interesse por formas de pensamento e de relação com o mundo não mediadas pela
racionalidade europeia, compartilhada por antropófagos e surrealistas.” Virava, Thiago Gil. Uma Brecha
para o Surrealismo: percepções do movimento surrealista no Brasil entre as décadas de 1920 e 1940.
Tese de Mestrado, ECA- USP, 2012.pp. 106, 108.
12
Presente nessa declaração da artista estão temas que se relacionam não só à
criação artística, mas também o episódio histórico de que a pintura foi dada de presente
para Oswald de Andrade. Este e Raul Bopp nomearam o quadro e criaram, em conjunto
com a artista, o movimento antropófagico. Com o título Abaporu, outras questões
importantes da declaração da artista ficaram em segundo plano. Ele é interpretado
sempre de acordo com a “moldura” de conceitos do folheto do manifesto― as colunas
de palavras que o circundam no Manifesto Antropófago (figura 7): o homem pré-lógico
da etnografia de Lévy- Bruhl, o bom selvagem de Rousseau, o homem nu desrecalcado
e criatura do subconsciente na psicanálise de Freud, etc. Baseado também nesse
raciocínio, circunscreveu-se o Abaporu na moldura da “originalidade brasileira”. O
Abaporu seria o homem brasileiro primitivo, sentado numa paisagem nacional, formado
pelas cores locais; tudo isso, inspirado por um imaginário “cem por cento” nacional e
criado por uma artista brasileira.34
Figura 735
34
Quanto à identidade brasileira no Abaporu: “ A pesquisa pelo imaginário que pudesse representar
simbolicamente uma identidade nacional passava também pela construção da imagem de um “homem
brasileiro”. Entre os “caipiras” de Almeida Jr. e os trabalhadores de Cândido Portinari, encontra-se o
homem bárbaro, o “ comedor de homens”, o Abaporu.
Isso insere não apenas Abaporu, mas também as demais obras antropofágicas que,
mergulhando no imaginário amazônico, procuram nele símbolos de identidade “ bárbara” e primitiva
brasileira, dentro de uma trajetória histórica da arte brasileira, de pesquisa por símbolos nacionais, que
remontam a meados do século XIX. (…) Dentro desse pensamento, que percebe na arte brasileira a
constituição de símbolos nacionais a partir da exacerbação ou neutralização do conflito entre homem e
natureza, as pinturas antropofágicas poderiam ser consideradas também como parte desse processo. Como
sua etapa “bárbara” ou selvagem. O homem brasileiro, o Abaporu, é apresentado em um suposto estágio
de integração, calcando firmemente os pés numa natureza que é vista agora não tanto como paraíso, mas
pelo prisma do mistério da imaginação.” idem. p. 104, 105.
35
Figura retirada do Catálogo Raisonné, volume III p. 182. Para uma outra versão do desenho ver figura
24 no anexo, p. 55.
13
Nesse entendimento — em que o Abaporu é explicado em função do movimento
antropofágico — a questão de uma possível descendência ciópode/Abaporu nem sequer
é tangenciada.36
Deveriam ser levadas em consideração também as afirmações de
Tarsila sobre as estórias de infância que a artista ouviu e se “inspirou” para criar a figura
monstruosa. Nos dizeres dela: "a casa assombrada, a voz do alto que gritava do forro
"eu caio" e deixava cair um pé (que me parecia imenso), caía outro pé, e depois a mão e
o corpo inteiro para o terror da criançada”.37
Esse relato mencionando a estória foi
contado primeiramente no ano de 193938
, muito após a realização da pintura e muito
antes da escrita do texto em que ela se refere ao Abaporu como “Antropofagia”,
publicado em 195139
. É comum, nas duas falas, o tema das reminiscências de infância.
Na medida em que Tarsila do Amaral não diz especificamente qual estória foi
aquela — num espectro de lendas brasileiras a serem levadas em consideração —,
como, por exemplo, o curupira, a mula sem cabeça, o saci, etc., e só fala de partes do
corpo ― pés e mãos ― que caíam de um forro, não é possível precisar qual foi a
estória contada pelas criadas negras no tempo em que ela era criança. E isso se torna um
problema, pois o monstro é, como já foi afirmado, criado em função da palavra, de seu
próprio nome.
Confiando nesse relato da artista, e pensando novamente no caso do ciópode, o
par de conceitos que formam um monstro — imagem/palavra ou composição/título ―
foi assimilado pelos artistas medievais e por Tarsila do Amaral de modo diverso. Na
primeira situação havia uma literatura e uma série de imagens já produzidas de ciópodes
(figuras 8, 9, 10 e 11). Já a artista brasileira valeu-se também de contos ou lendas;
porém, de acordo com sua versão da gênese do Abaporu, não se utilizou de estórias
escritas ou imagens de um monstro com um único pé gigante, uma mão grande, e uma
cabeça diminuta como referência. Sob esse ponto de vista, o Abaporu é uma imagem
única, primeira, original, de um monstro nacional.
36
Orianna Baddely e Valery Fraser, mesmo tendo utilizado a figura do ciópode para analisar o Abaporu, o
explicaram em função do movimento antropofágico
37
Tarsila e outros escritos. Brandini, Taddei.Editora da Unicamp, Campinas, 2008 p 722.
38
Publicado na Revista Anual do Salão de Maio, no texto "Pintura Pau-Brasil e Antropofagia"idem.p722
39
Ver nota 30.
14
Figura 840
Figura 941
Manuscrito do início do século
XIII, biblioteca de Sigmaringen
Figura 10 Figura 1142
Beatus Apocalypse,12th cent. Schedel, Liber Cronicarum, 1493
Paris, B.N.,Nouv. acqu. lat. I366
No contexto brasileiro, e tentando retomar a ideia de “descendência
imaginativa”, haveria uma espécie de omissão de todo monstro que não fosse nacional.
A descendência de monstros ocorreria da seguinte maneira: o ciópode, com suas
40
Imagem retirada do site: http://medieval.tumblr.com/post/31344946933/man-with-one-leg-ending-in-
giant-foot-sciapodeMan with one leg ending in giant foot (sciapode), lying on his back, protecting
himself from the sun with his large foot.
12th C. MS. Bodl. 614
41
Imagem retirada do livro de Gombrich. E. H. A História da Arte, Editora Guanabara Koogan S. A. Rio
de Janeiro, 1993, p. 124.
42
Imagens 8 e 9 retiradas do estudo de Wittkover , p. 40.
15
características e, principalmente, com o seu enorme pé, seria o pai do Abaporu ―
porque surgiu antes na história da arte. O filho herdou o pé agigantado. No entanto, o
Abaporu seria o filho rejeitado, pois desconhece suas origens ― já que não é possível
dizer qual a lenda exata em que Tarsila do Amaral se baseou para criá-lo. Nesse sentido,
ele mata o pai/ciópode, mas sem a intenção de cometer tal ato ― caso a artista brasileira
não soubesse realmente da existência do lendário monópode. Em outros termos: o
monstro brasileiro teria deglutido involuntariamente o monstro europeu e se tornado, ao
menos na cultura brasileira, muito mais conhecido do que seu precursor grego e
medieval. Tanto que nos estudos ou levantamentos iconográficos e iconológicos
nacionais sobre o Abaporu43
, o ciópode não é levado em conta.
Morto o Sciapode, resta ao historiador procurar outras genealogias para o único
pé gigante e, para isso, a interpretação da pintura nos termos formais volta a ser a
pauta:
“À diferença de qualquer outro artista de sua geração, Tarsila lançou mão
de poder expressivo de desenho topológico, tão essencialista na forma
quanto o desenho infantil. Em seus poucos nus, suprimiu detalhes
anatômicos como traços fisionômicos, cabelos ou unhas. Essas figuras
agigantadas, obedientes à gravidade, têm pés grandes, pernas grossas e
cabeças diminutas. Em Abaporu, o corpo se alça numa curva contínua como
se feito de massa maleável. O alongamento dos membros e do pescoço é
enfatizado pela visão em contre-plongée, isto é, de baixo para cima, o que
torna o enorme pé pousado no chão e reduz o tamanho da cabeça, na outra
extremidade”.44
É importante reparar que, no trecho acima, a noção do Abaporu como uma obra
inovadora, única, está embutida na interpretação. A frase “à diferença de qualquer
artista de sua geração" implica numa ideia de originalidade de Tarsila do Amaral,
corroborada pelo método de pintura que oferece uma visão em contre-plongée e
provoca essa deformação inovadora dos membros localizados na parte inferior da tela.
Agora não se deve mais falar somente do único pé deformado, mas também —
embora o trecho não deixe isto explícito — de uma mão grande próxima ao pé. Ou seja,
o único pé não seria mais tratado como o principal índice de monstruosidade já que
adquire o mesmo valor que a mão. Nessa explicação da obra é notável a alusão ao
43
No catalogue raisonné de Tarsila do Amaral não consta nenhuma referência ao ciópode, nem ao estudo
de O. Baddelley e V. Frasier.
44
Milliet, M. A. Tarsila: Os Melhores Anos. São Paulo: M1O Editora, 2011, p. 162.
16
desenho infantil45
— que é também uma fórmula da pintura enquanto uma ação
espontânea — relacionada à produção da artista especialmente em sua fase
antropofágica. Do ponto de vista formal e temático a observação em contre-plóngee
distanciaria o Abaporu da semelhança com o ciópode.
Mas é também na infância — partindo do pressuposto que a obra de Tarsila do
Amaral é um monstro pintado com características de um desenho infantil — onde se
encontra o eixo de ligação entre as explicações da pintora sobre a gênese do Abaporu e
o mito utilizado pelo movimento antropofágico da volta a um estado “originário”
primitivo. Essa interpretação formal vem a se somar à interpretação mítica e
psicanalítica46
do homem primitivo brasileiro, do homem pré-cabralino de Oswald de
Andrade. Uma tentativa de justificar a originalidade brasileira, a “brasilidade”, numa
espécie de retorno psicanalítico à infância nacional, não maculada ainda pela catequese
europeia:
“No século XX, o estudo científico dos primórdios tomou outro ramo.
Para a psicanálise, por exemplo, o verdadeiro primordial é o “primordial
humano”, a primeira infância. A criança vive num tempo mítico,
paradisíaco. A psicanálise elaborou técnicas capazes de nos revelar os
primórdios de nossa história pessoal e, sobretudo, de identificar o evento
preciso que pôs fim à beatitude da infância e decidiu a orientação futura de
45
Com referência ao desenho infantil: “Desde A negra, a pintura de Tarsila cada vez mais se alimenta do
seu imaginário. Seu desenho, feito in loco, já nasce transfigurado pela apreensão seletiva do visível, pela
economia do traço que dispensa o detalhe e retém o essencial. Vem daí o repertório da série Pau Brasil,
com suas formas naturais reduzidas à essência geométrica e as intervenções da fase antropofágica.
Aplicando à própria Tarsila o que ela escreveu de Brancusi, pode-se dizer que "sua evolução, feita no
sentido contrário, é antes uma involução”, isto é, caminha no sentido do retorno a infância, no medido em
que libera o imaginário infantil até então recalcado, idem. p. 96.
46
Ao criar o movimento antropofágico, Oswald de Andrade se valeu da psicanálise: “O próprio Oswald,
em entrevista a Nino Frank, no Les Nouvelles Littéraires, de 14 de julho de 1928, definiria seu
movimento; e toda a teoria do atavismo, expressa acima por Cendrars, emerge como o seu princípio
mesmo: “O que é a antropofagia? O fato de devorar o inimigo vencido passa em nós. Uma comunhão.
Nós absorvemos o Tabu para transformá-lo em Toten: o inimigo sagrado que é preciso transformar em
amigo” “Qu' est-ce que l'anthropophagie? Le fait de dévorer l´ ennemi vaincu pour que ses vertus passent
en nous. Une communion. Nous absorbons le Tabou pour le transformer en Toten: l'ennemi sacré qu'il
faut transformer en ami”. E mesmo ainda: “ O Brasil tem dois grandes inimigos: os missionários e os
governantes gerais portugueses. Aqueles que não reprovamos são os aventureiros, os presidiários, os
negros. Nossa raça não tem nada a ver com o Ocidente ou o Oriente. Eles estão distante de nós. Nós
somos submetidos às influências equatoriais”.[“Le Brésil a eu deux grands ennemis: les missionaires et
les gouverneurs généraux portugais. Ceux que nous ne désavouons pas, ce sont les aventuriers, les
forçats, les nègres. Notre race n'a rien à voir avec l'Occident ni avec l'Orient. Ils sont loin de nous. Nous
sommes soumis aux influences équatoriales”. Pressente-se as conversas de Cendrars e Oswald sobre o
assunto. No final da entrevista, antes de se referir à influência de Blaise, declara Oswald: “Freud coloca o
instinto sexual no centro da atividade humana: eu o oponho o instinto antropofágico onde a sexualidade é
uma das formas mais características.” “Freud place l'instinct sexual au centre de l'activité humaine: je lui
oppose l'instinct anthropophagique dont la séxualité est l'une des formes plus caractéristiques”]. Amaral,
Aracy, A. Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. São Paulo, Ed. 34, Fapesp, 1997, pp. 68, 69.
17
nossa existência.“Traduzindo isso em termos de pensamento arcaico, pode-
se dizer que houve um “ Paraíso”( para a psicanálise, o estado pré-natal ou o
período que se estende até a ablactação) e uma “ ruptura”, uma “catástrofe”
( o traumatismo infantil) e que, seja qual for a atitude do adulto face a esses
eventos primordiais, eles não são menos constitutivos de seu ser.”
É interessante constatar que, de todas as ciências da vida, somente
a psicanálise chega à ideia de que o “começo” de todo ser humano é
beatífico e constitui uma espécie de Paraíso, enquanto as demais ciências da
vida insistem sobretudo na precariedade e imperfeição do começo. O
processo, o vir-a-ser, a evolução que corrige, pouco a pouco, a penosa
pobreza do “ princípio”.
Duas ideias de Freud são importantes para o nosso tema: (1) a
beatitude da “ origem” e do “começo” do ser humano e (2) a ideia segundo
a qual, pela recordação ou mediante um “ voltar atrás”, é possível reviver
certos incidentes traumáticos da primeira infância.”47
Tendo em vista esse retorno à infância como a idade paradisíaca que
representaria a cultura “virgem” do povo brasileiro — ainda no contexto da arte e
cultura nacionais — não é possível deixar de notar o mesmo fenômeno ocorrendo nas
ideias de Monteiro Lobato antes de Oswald de Andrade e do Abaporu:
“Percebe-se que o pensamento estético de Lobato é sempre voltado às
origens. No texto sobre caricatura, conclamava o artista a ir até o povo em
busca de inspiração; nos artigos sobre pintura, conclamava o pintor a deixar
a cidade para captar a natureza e o homem dos campos brasileiros; (...)
Agora, entende o artista como aquele que deve plasmar a mitologia popular.
Para Lobato a volta às origens brasileiras, à natureza, ao povo, à mitologia
“brasílica”, continuava sendo a base de seu ideário para a regeneração do
país.
Após falar do caso grego, ele pergunta se no Brasil existiria matéria-
prima semelhante, digna de ser transformada em arte, e responde de
imediato que, embora não tão rica quanto a grega, o país possuía um
mitologia abundante o bastante para “darmos ao mundo uma contribuição
vultuosa de criações originais”.
Para conseguir essas “criações originais” basta que o artista mergulhe
“no seio do povo e lá bateie na ganga rude o ouro de lei”. Em seguida passa
a falar do Saci, segundo ele a mais original das criações populares
brasileiras. Dá-lhe o histórico, desde a criação do mito pelos indígenas até a
suposta transformação que sofreria a partir da presença do imigrante italiano
no país.”48
47
Eliade, Mircea: Mito e realidade. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972, p.73.
48
Chiarelli, Tadeu. Um Jeca nos Vernissages: Monteiro Lobato e o Desejo de uma Arte Nacional no
Brasil/ Tadeu Chiarelli- São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. p. 168.
18
No ano de 1917 houve o famoso “Inquérito sobre o Saci”49
, em que Monteiro
Lobato procurou resgatar a origem dessa lenda nacional. Para justificar sua concepção
de uma cultura original elegeu o Saci como representante do imaginário do povo
brasileiro. Pode-se identificar no personagem revalorizado por Monteiro Lobato um
índice de monstruosidade: possui uma única perna e um único pé. Características essas
comuns ao Abaporu pintado por Tarsila do Amaral em 1928.
Em um estudo que pretende analisar algumas figuras monstruosas na história da
arte e toma o Abaporu como um possível “descendente imaginativo” dos ciópodes —
procurando decifrar qual a relação “genealógica” formal e temática entre esses monstros
— o Saci, recuperado por Lobato, entra como um integrante fundamental nesse grupo
de seres.
Há pouco foi visto que, pela explicação de Tarsila do Amaral, o Abaporu é o
monstro brasileiro original, sem antecedentes. Todavia,o saci aparece também como
um ser monstruoso brasileiro sustentado por lendas populares.
Cronologicamente, o personagem saci antecede o Abaporu. E é digno de nota
que, em 1925, Tarsila do Amaral desenhou — no catálogo de sua primeira exposição
individual em Paris — um saci50
. Isso significa que, antes de pintar o Abaporu, ela
tinha pleno conhecimento da figura de um monópode, ou seja, de um ser possuidor de
uma única perna e um único pé (figura 12).
49
“Acreditando na importância desse mito para a exata compreensão da população brasileira, Lobato
propõe agora para o leitor que se estude o “duendezinho”:
[...] Façamos nós outros a arte sadia, e façamos sem o perceber.
O Estadinho abre suas colunas para esta investigação e pede a seus leitores um depoimento
honesto:
1- Sobre a concepção pessoal do Saci; como a recebeu na sua infância;
2- Qual a forma atual da crendice na zona em que reside;
3- Que histórias e casos interessantes, “passados ou ouvidos” sabe a respeito do Saci.
As comunicações deverão vir endereçadas a “Saci-Pererê”. Idem. p. 171, 172.
50
Especificamente sobre esse saci: “Na contracapa, a figura do Saci impressa em preto e vermelho
funciona como um fecho inesperado e brincalhão.” Milliet, M. A. Tarsila: Os Melhores Anos. São Paulo:
M1O Editora, 2011. p. 131.
19
Figura 12
Nesse caso existiria uma relação concreta e direta de “descendência
imaginativa”: ela desenhou em 1925 um monópode, o saci, e em 1928 ela pintou outra
figura, o Abaporu, que embora tenha outras características, não deixa de ser
essencialmente um monópode.
Enquanto personagens de uma cultura originalmente brasileira — tanto do ponto
de vista do modernismo antropofágico de Oswald de Andrade, quanto do nacionalismo
de Monteiro Lobato — os dois monstros são o emblema da “brasilidade”, cada um a
seu modo51
.
Etimologicamente — fundamental para o entendimento de todo monstro — , a
palavra “saci” vem do tupi-guarani Sacy-perereg (çaa cy, olho mau; pérérég,
saltitante), de acordo com Monteiro Lobato52
. Se o nome do monstro pintado por
51
Seria o caso de estabelecer as diferenças entre a Antropofagia modernista de Oswald de Andrade e o
Nacionalismo de Monteiro Lobato, que toquei apenas no ponto em comum da volta às origens. No
nacionalismo de Lobato, os elementos tirados da cultura popular já pressupõem certa mestiçagem negro,
índio, imigrante europeu, enquanto a Antropofagia oswaldiana, de certo modo, faz alusão a uma possível
cultura autóctone, pré-cabralina, virgem, original, mas que, na prática, tanto na literatura quanto nas artes
visuais, já está impregnada da mestiçagem, do deglutido e regurgitado. O homem pré-cabralino utópico
original parece ser apenas evocado. Um exemplo do “ruído” civilizatório, portanto, pós-cabralino, são o
sol/laranja e a folha de bananeira, que são de origem asiática, elementos esses introduzidos e mesclados
posteriormente à flora brasileira, e encontrados nas pinturas da fase antropofágica de Tarsila do Amaral.
52
Lobato, no inquérito, descreve exatamente desse modo a origem da palavra saci, fazendo uma nota
após a afirmação: “ Em guarani não há o çaa ou çaá. Pode ser caá, herva. Cy (cî) é mãe: Mãe da herva.
Pererê, saltitante. A etimologia original seria Yacy-yateré (fragmento de luar). Mais adiante serve-se de
um argumento de autoridade para explicar a origem tupi do nome: “ De nossas criações populares a mais
original é o Saci-Pererê. Vem do autóctone que lhe deu o nome atual, corruptela de Çaa cy perereg. Não
ficou provado, antes, parece, que é criação exclusiva do negro. A filiação do nome corre por conta de
Oliveira Lopes, autoridade em tupi, guarani e línguas adjacentes.” Lobato, Monteiro, O Sacy Perêrê:
20
Tarsila do Amaral, Abaporu, originou-se da mesma língua e o seu significado remetia
diretamente ao conceito grego de Antropófago, o saci não estabelece, em um primeiro
momento, nenhum tipo de relação com o imaginário europeu.
No caso do saci, cuja lenda possui inúmeras variações, é possível estudá-lo —
dentro do projeto de Monteiro Lobato — por meio da estória de 1921 intitulada “O
Saci”, escrita alguns anos após o “Inquérito sobre o Saci”. O intuito de interpretar essa
obra é buscar pontos de contato entre o saci e outras criaturas inserindo-o na
“genealogia” dos monstros. E, assim, ir além da formulação romântica de Monteiro
Lobato que via, no saci, uma criação subjetiva e original.53
Em “O Saci,” Lobato insere a “criaturinha” de uma perna só no imaginário da
literatura infantil. Na estória, o menino Pedrinho — um dos personagens principais —
tenta capturar o saci, pois duvida da existência do “demoniozinho”. Após realizar o
feito e prendê-lo numa garrafa, decide soltá-lo; os dois começam a conversar e é na
explicação sobre a sua origem que o saci revela:
“Para começar, temos de ir ao “sacizeiro” onde nasci, onde nasceram meus
irmãos e onde todos os sacis se escondem durante o dia, enquanto o sol está
de fora. O sol é o nosso maior inimigo54
. Seus raios espantam-nos para as
tocas escuras. Somos os eternos namorados da lua. É por isso que os poetas
nos chamam de filhos das trevas. Sabe o que são trevas?
― Sei. O escuro, a escuridão.
― Pois é isso. Somos filhos das trevas, como os beija-flores, os sabiás e
as abelhas são filhos do sol"55
A frase “o sol é o nosso maior inimigo” — na fala do saci sobre as suas origens
— é utilizada para, logo em seguida, ser confrontada com a escuridão, com as trevas, e
Resultado dum inquérito - Rio de Janeiro: Gráfica JB S.A. 1998.pp. 20, 22.
53
Cabe lembrar que Lobato propôs um concurso, também através do jornal, em que os participantes
deveriam desenhar o Saci. É importante salientar que, dos artistas paulistas, apenas Anita Malfatti
participou:
“No texto sobre a Exposição, escrito para a Revista, logo no primeiro parágrafo Lobato ataca
frontalmente os artistas paulistas por não terem visto ou participado da Mostra:
[...] Fixar um tipo puramente subjetivo (o Saci), de formas instáveis, cheio de variantes, existente
apenas na imaginação do sertanejo, é tarefa que requer do artista um bocado de mais talento do que o
preciso para broxar um melão [...] ou copiar fundos de Tabatinguera, tema dileto dos nossos paisagistas
que inebriam-se ali com uns toques de Veneza muito sedutores. Requer inventiva, requer composição, e
composição das que não possuem cômodos pontos de apoio, isto é, obras anteriores do mesmo gênero já
consagradas, nas quais o pintor monta sem percepção do público”. Chiarelli, Tadeu. Um Jeca nos
Vernissages: Monteiro Lobato e o Desejo de uma Arte Nacional no Brasil/ Tadeu Chiarelli- São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1995. p. 186.”
54
Itálico meu.
55
Lobato, Monteiro. O saci. Editora Brasiliense, 32 edição, 1979, São Paulo. Brasil. p. 26.
21
dar uma dimensão de conto de terror à estória. Essa ambientação do monstro saci
desemboca na explicação lobatiana sobre o medo, também na conversa entre Pedrinho e
a criatura:
“(...) O que me interessa agora é a vida dos tais “entes das trevas”, como
dizia tia Nastácia ― os misteriosos, os que uns dizem que existem e outros
juram que não existem.
― Compreendo ― disse o saci. Você se refere aos chamados “duendes”,
“monstros”, “capetas”, “gnomos”, etc ...
― Isso mesmo, amigo saci. Ando desconfiado que tudo não passa de
sonho. Eu não via nada na garrafa (...) Desconfio que estou sonhando...
Desconfio que isto é um pesadelo56
... Nos pesadelos é que aparecem
monstros horríveis. Por quê? Por que é que há coisas horríveis?
― Por causa do medo, Pedrinho. Sabe o que é medo?
O menino gabava-se de não ter medo de nada, exceto da vespa e de
outros bichinhos venenosos. Mas não ter medo é uma coisa e saber que o
medo existe é outra. Pedrinho sabia que o medo existe porque diversas
vezes o seu coração pulara de medo57
. E respondeu:
― Sei sim. O medo vem da incerteza.
― Isso mesmo ― disse o saci. A mãe do medo é a incerteza e o pai do
medo é o escuro. Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo. E
enquanto houver medo,— haverá monstros como os que você vai ver.
― Mas se agente vê esses monstros, então eles existem.
― Perfeitamente. Existem para quem os vê e não existem para quem não
os vê. Por isso digo que os monstros existem e não existem.
― Não entendo ― declarou Pedrinho. Se existem, existem. Se não
existem, não existem. Uma coisa não pode ao mesmo tempo existir e não
existir.
― Bobinho! ― declarou o saci. Uma coisa existe quando a gente acredita
nela; e como uns acreditam em monstros e outros não acreditam, os
monstros existem e não existem.”58
Vê-se que o local onde os sacis habitam — os sonhos e os pesadelos — é o
mesmo universo dos monstros. O monstro depende da crença. Lobato evoca o medo
que, na formulação de sua estória, dá realidade às criaturas desconhecidas. Nesse
sentido, o saci é uma criação de Pedrinho e dos demais personagens do Sítio do Pica-
Pau Amarelo.
No entanto por mais que a criação do monstro dependa da crença e isto seja
algo subjetivo, o saci tem características conhecidas por qualquer leitor brasileiro; essas
são algumas que Lobato demarca para caracterizar o personagem: “é um diabinho de
56
Itálico meu.
57
Itálico meu.
58
Idem, p. 43.
22
uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda a sorte (…) Traz
sempre na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha”.59
O saci é uma figura com inúmeras variações em suas aventuras, contadas de
diversos modos, interpretadas por cada pessoa de uma maneira. No entanto, o saci
sempre é um monópode, uma criatura da noite, e é reconhecível principalmente pelos
atributos mencionados no parágrafo anterior.
Em uma análise formal, temática e etimológica entre as figuras do Abaporu, do
ciópode e do saci, é pertinente traçar algumas comparações.
A “descendência imaginativa”, voluntária ou involuntária, do ciópode e do
Abaporu — como já foi visto — é a do pé agigantado, pois os dois são monópodes com
essa deformação. O saci aparece fora dessa aproximação formal específica, pois não
tem o pé grande. O que une os três monstros é que eles pertencem à categoria de
monópode.
Uma leitura atenta da estória de Lobato possibilita identificar uma relação
temática entre o sciapode e o saci. Vale retomar o significado do primeiro. Traduzido
para a língua portuguesa como “ciópode”60
, o sciapode tem origem na raiz da palavra
grega skia, que significa sombra e se aproxima, no contexto da mitologia clássica, de
outros termos.61
Além de inserir o ciópode no mundo do “desconhecido”, a palavra,
aliada à palavra grega poûs, o pé, tem função de fazer sombra; “é o pé que faz
sombra”— utilizado como um guarda-chuva, uma “sombrinha”, protegendo-o do sol
que queima.62
Pode-se interpretar que o sol é inimigo do ciópode, como, de modo
59
Idem, p. 17
60
No dicionário Latino-Português de Francisco Torrinha, Porto, Gráficos Reunidos Ltda, 1991, Sciapode
= Sciopode, e Sciapode/ Sciopode: Ciópodes, povo fabuloso de pés monstruosos pp.775,776. Sombra, em
latim é umbra, não existindo a palavra scia separada de Sciapode, e pode, do latim pede, pé.
61
Estendendo a questão etimológica: “A Psique é chamada às vezes de fumaça, kapnos, ou sombra, skia,
ou sonho, oneiros.” [la psuchè est appelée parfois fumée, kapnos, ou ombre, skia, ou songe, oneiros]
Vernant, Jean- Pierre.Mythe et pensée chez les grecs, études de psychologie historique. librairie François
Maspero S.A. Paris, 1966, p. 256. A sombra, skia, é comparada à uma aparição sobrenatural, phasma;
quando se vê a realidade como uma idade de sonhos.
Notável é uma obra intitulada Sciapode (Figura 25 do anexo, p.52) , de Odilon Redon, que
apresenta um rosto no lugar do pé, por meio de um desenho obscuro, sombreado . Assemelha-se também
à um peixe, tradicionalmente simbolizado pelo pé na iconografia astrológica. Há também outro ciópode
(figura 26 p. 53) em uma estampa feita por Redon, em que o pé é novamente um rosto.
62
De acordo com Wittkower, “os ciópodes são um único pé grande, com o qual eles se movem com
grande velocidade e que eles também utilizam como um guarda-chuva” [the sciapodes, a people with a
single large foot on which they move with great speed and which they also use as a sort of umbrella
against the burning sun] Wittkower, Rudolf “Marvels of the East,. A Study in the History of Monsters”.p.
160 E em uma nota, o autor diz: Para referências anteriores sobre ciópodes por Skylax, Hecateu e
Heródoto, cf Wilhelm Reese, Die griechischen Nachrichten fiber Indien, Leipzig 1914 [For earlier
references to the sciapodes by Skylax, Hekataios and Herodotus cf. Reese, op. cit., p. 49]. “Plínio, chama
23
análogo, “o sol é o nosso maior inimigo”, na fala do saci. Em suas origens, os dois
monstros têm esse dado em comum.63
Seria o saci realmente um “descendente imaginativo” dos ciópodes? Seria o caso
de pensar que a lenda europeia foi importada, mesclou-se com as estórias dos índios e
dos negros no Brasil, e o saci “deglutiu” o ciópode? Estar-se-ia frente às mesmas
questões que estruturam a relação ciópode/Abaporu, só que agora, além do ponto de
vista formal, também temático? Assim como Tarsila do Amaral, Monteiro Lobato
saberia ou não da existência dos ciópodes?
Novamente, do ponto de vista cronológico, o mito grego antecede o monstro
“brasileiro”. Numa resposta afirmativa à pergunta, poderia se levar em conta um fato
corroborando uma descendência direta e até mesmo “consciente” entre o saci e o
sciapode: ao pensar em Lobato como inventor de palavras64
e o primeiro a compilar as
estórias sobre o Saci, seria possível atribuir ao escritor a “ideia” de fazer corresponder o
nome grego skia, via latim sciapode, ao fonético tupi-guarani çaa cy, e português saci.
Monteiro Lobato, utilizando-se de uma “análise combinatória” de palavras, teria
resolvido o jogo anagramático óbvio do prefixo latim/português Scia-pode/ Saci65
.
Por mais que a relação anagramática seja evidente — atentando-se ainda à
questão do nome, — é de se notar que o “Inquérito sobre o saci” foi publicado
originalmente com o título “Inquérito sobre o sacy-perêre”. Ou seja, essa relação deixa
de existir com essa grafia do nome. Também, embora seja comum o reconhecimento de
Lobato como o “pai” do saci — justamente devido ao inquérito —, a “criaturinha” já
havia sido registrada na literatura por um outro escritor brasileiro: Ezequiel Freire.66
a raça também de Monocoli e este nome permance alternativo para o ciópode”.[Pliny VII, ii, 23 calls this
race also Monocoli and this name remained the alternative for Sciapodes.]. Idem, p. 49.
63
O sol é também um elemento presente no Abaporu.
64
Quanto a isso, sobre a criação de palavras de Monteiro Lobato: “A derivação prefixal é usada
frequentemente (“biótimo”, “desacontece”, “superpó”, “ re-olhava”) assim como as palavras compostas:
“abres-de-lagarto”, “dorme-e-acorda”, que muitas vezes são nomes atribuídos a pessoas e a coisas e
refletem características destes: “Major-agarra-e-não-larga-mais”, “Flor-das-Alturas”, “hiena-dos-mares”,
etc.
A flexão através do gênero e número dos nomes como em “ Floriana Peixota”, “ peixa”, ou “tia
Nastácia do rio” e “ peses de tartaruga”. Uma leitura atenta encontrará ainda incontáveis ocorrências
semânticas, consubstanciadas em jogos de palavras, recursos sonoros, aliterações, redundâncias, além de
infrações à norma culta e até o requinte do uso de arcaísmos ( bofé), palavras estrangeiras ( nursery),
termos técnicos ou regionalismos”. Sandroni, Laura: De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas. Rio
de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1987, pp.56,57.
65
Com relação ao anagrama com a palavra sciapode não encontrei nenhuma referência em Lobato. Mas
mantive essa questão pois a “coincidência” insere-se no contexto da pesquisa etimológica e temática.
66
Seria o caso de pesquisar uma bibliografia mais extensa sobre o assunto, para ver se não apareceu em
outros textos, além desse de 1874. Informação obtida no site http://www.crearte.com.br/saci_24.htm:
“Conta a lenda que o sacy nascera/ dos amores de um sapo e de uma freira,/ teve um irmão mais velho - o
lobisomen/ casou ao depois com a pisadeira./ Híbrido ser , biparte-se em dois entes/ de humanas formas e
24
Por esses motivos, a relação dos nomes scia/saci-pode seria de outra natureza, não de
uma inventividade de Lobato, já que o nome e a criatura já eram conhecidas.
Traçar semelhanças e diferenças entre monstros é tarefa complexa: não é
possível identificar com precisão o que realmente significa “descendência imaginativa”.
Sendo a categoria de tempo o eixo principal na relação de descendência, encontra-se a
dificuldade de reconhecer imediatamente uma originalidade “brasílica” tanto no saci,
quanto no Abaporu, pois o ciópode é um personagem da mitologia clássica e medieval.
Levando-se em conta a questão cronológica, fica também difícil acreditar na
relação inversa: nenhum sub-personagem da mitologia ou lendas europeias como o
monópode em questão, teria devorado ou deglutido qualquer monstro “brasileiro”
posterior a ele.
Porém, quando se pensa numa relação atemporal, ou seja, de imagens que
aparecem simultaneamente em vários lugares distintos, ou onde não se afirma
categoricamente o conhecimento do rastro cronológico delas, a pesquisa tentando
demonstrar uma relação efetiva fica comprometida. Caberia ao historiador apenas
apontar “ aproximações”, formais e temáticas.
A partir da “redescoberta” do ancestral qualquer defensor da cultura e arte
brasileiras negaria uma “descendência” entre os monstros, salientando apenas os
aspectos diferentes e singulares das figuras. Corroborando a questão da “originalidade e
imaginação” brasílicas, utilizaria os seguintes argumentos: o saci é um menino negro
travesso, oriundo de uma mescla entre lendas africanas e tupi-guaranis, usa um gorro
vermelho, arma confusões nas fazendas, geralmente montado em um cavalo; o Abaporu
é o homem brasileiro primitivo e a única interpretação de seu pé enorme é sua relação
intrínseca com o solo, com a terra “verde”67
. Se Oswald de Andrade utilizou o Abaporu,
criando, em torno do nome do monstro, o movimento antropofágico, de modo análogo
feição estranha;/ toutou-se outrora no basido (sabem?)/ dos olhos lindos de uma linda entranha./ Foi
desgraçado, muito; a mão furada/ e a dolorosa amputação de um pé,/ deram-lhe jus às lagrimas do
próximo/ como a alculnha lhe dão de saterê/ Unipede e zarolho, o vagabundo mofa das leis e zomba da
moral;" Freire, José Ezequiel de Lima. Flores do Campo. 2.a edição, São Paulo, 1950. p. 85.
67
Isto foi o que Oswald e Raul Bopp afirmaram, pelo o que informa Tarsila: “essa figura sentada. tão
pesada, com seus pés imensos apoiados no solo, evoca a terra brasileira, rude e selvagem”. Tarsila e
outros escritos. Brandini, Taddei. Editora da Unicamp, Campinas, 2008 p. 685. Mesmo Tarsila ficou
impressionada com a tela: “o Abaporu impressionou profundamente. Sugeria a criatura fatalizada, presa à
terra com seus enormes pés. Um símbolo. Um movimento se formaria em torno dela. Ali se concentrava o
Brasil, o “inferno verde”.” idem, p. 723. É interessante notar que, nas duas versões, há a menção de dois
pés do Abaporu, embora a criatura seja um monópode. Esses relatos influenciaram todas as futuras
interpretações sobre o pé do Abaporu.
25
havia feito, tempos antes, Monteiro Lobato ao tornar o saci o representante máximo do
imaginário do povo brasileiro.68
Não se pode negar as interpretações desses dois monstros como emblemas da
“brasilidade”, mas é importante ressaltar que o ciópode aparece como uma sombra, um
duplo tanto para o saci quanto para o Abaporu, pois é o primeiro da geração dos
monópodes no ocidente. Aparece como um fantasma, que “aterroriza” principalmente
Lobato, que conhecia bem “as mitologias daqueles velhos povos”,69
e a pintora Tarsila
do Amaral formada parcialmente na França e conhecedora da história da arte e da
68
Ao acreditar no povo como o grande criador de mitos, Lobato reproduziu um modelo romântico do
século XVIII: “Comecemos lembrando que houve um tempo em que se exagerou muito o aspecto
coletivo da criação, concebendo-se o povo, no conjunto, como criador de arte. Esta ideia de obras
praticamente anônimas, surgidas da coletividade, veio sobretudo da Alemanha, onde WOLFF afirmou, no
século XVIII, que os poemas atribuídos a HOMERO haviam sido, na verdade, criação do gênio coletivo
da Grécia, através de múltiplos cantos em que os aedos recolhiam a tradição, e que foram depois reunidos
numa unidade precária. Tempos depois, a coletânea de contos populares dos irmãos GRIMM veio como
prova aparente das hipóteses deste tipo, ― sem que se atentasse para o abismo que vai entre a ingênua
história folclórica e o refinamento, a altura de concepção da Ilíada e da Odisséia. Nessa mesma era,
encharcada de Volksgeist, esboçaram-se teorias sobre a formação popular das epopeias e romances
medievais o que era facilitado pela míngua de informação a respeito dos autores. Hoje, está superada esta
noção de cunho acentuadamente romântico, sabemos que a obra exige necessariamente a presença do
artista criador. Cândido, Antônio: Literatura de sociedade. São Paulo. Companhia Editora Nacional,
1965, p.29.
69
Lobato, no final da conversa entre o saci e Pedrinho sobre o medo, traça uma oposição entre a mitologia
grega e as lendas africanas e indígenas: “as mitologias daqueles velhos povos” estão cheias de terríveis
criações do medo. Aqui nestas Américas temos também muitas criações do medo, não só dos índios
chamados aborígenes, como dos negros que vieram da África.” Lobato, Monteiro. O saci. Editora
Brasiliense, 32 edição, 1979, São Paulo. Brasil. p.44.
26
mitologia70
. Mesmo assim, não se deve cometer o equívoco de sugerir que os dois
conheceram “evidentemente” a lenda/imagem europeia do ciópode.
A categoria temporal “descendência imaginativa” é complexa — e só é possível
utilizá-la por meio de metáforas — pois uma “genealogia” das figuras monstruosas,
nesse caso do ciópode/saci/Abaporu, não obedece necessariamente a uma linearidade
que o conceito de descendência implica. A partir do momento em que o Abaporu surge
de imagens do subconsciente e o saci é uma lenda brasileira — acreditando na
“brasilidade” dos monstros — a afirmação “o ciópode surgiu primeiro” torna-se relativa:
deve-se considerar uma teoria arquetípica dos monstros.
Existe o fato, a evidência de um “cruzamento”, tanto de imagens quanto de
temas semelhantes na análise realizada. Retirando a hipótese de descendência
imaginativa cronológica, voluntária ou involuntária, existiria, pela coincidência que se
verificou nessa aproximação, uma descendência imaginativa atemporal.
Com relação às diversas formas monstruosas que aparecem tanto no Oriente
quanto no Ocidente, é interessante refletir sobre a seguinte citação:
70
Tarsila tinha um bom conhecimento de mitologia. Como exemplo disso, segue um trecho de seu artigo
sobre o carnaval. Nele, Tarsila faz menção a um “retorno” dos deuses pagãos na era moderna por meio
das festividades populares. Ou seja, a artista reconhece a “sobrevivência” da mitologia pagã no
cristianismo. No final do artigo, ela ainda menciona “as figuras deformadas” das catedrais góticas em
forma de “reminiscências”:
“ Loucura coletiva, alegria desbragada, transbordamento de recalques entre gritos alucinantes,
gargalhadas estrepitosas, pandeiros frenéticos, roncos de tambores, requebros suarentos, vaivéns de
serpentinas, confetes chuviscando cores milionárias ― o carnaval impera hoje com as mesmas bacantes,
com os mesmos lupercos, no mesmo ritmo delirante.
O carnaval de hoje se liga por um fio tradicional às antigas lupercais, às bacanais, às saturnais.
As lupercais eram celebradas na antiga Roma em louvor a Lupercus, nome latino do deus Pan,
protetor dos pastores, inimigo tremendo dos lobos.
As lupercais foram, segundo as lendas romanas, implantadas da Grécia no Latium, três séculos
antes da nossa era, por Evandro, o civilizador que ensinou aos latinos o alfabeto, a música, a agricultura,
os hábitos brandos, e o culto a Pan. Essas festas orgíacas se iniciavam em Roma pelo sacrifício de uma
cabra e um cão, imolados pelos sacerdotes do culto, os lupercos, que saiam depois nus ou envoltos em
tiras de pele de pode, em corridas loucas pela cidade. (...)
A nudez dos lupercos evocava Pan e os Faunos, a corrida desenfreada simbolizava a desses
deuses pelas montanhas.
As bacanais de Roma, em louvor a Baco, correspondem às dionisíacas da Grécia, já que Dionísio
é o nome grego de Baco.(...)
Essas festas passaram do paganismo para o cristianismo com pequenas mudanças de forma. O
Carnaval, expressão etimologicamente controvertida, segundo uns do latim caro, carnis, carne, e vale,
adeus, e segundo outros de carus navallis, é um disfarce das antigas festas pagãs. O homem substituiu os
deuses antigos por um novo Deus, mudou, na aparência, o ritual do seu culto, mas continua o homem das
eras primitivas. (...)
O carnaval da idade média consistia na “ festa dos loucos”, que também se chamava “ festa dos
inocentes”, celebrada pelo natal. As esculturas das catedrais góticas com seus bichos fantásticos, figuras
deformadas ao lado sereno da Virgem Maria, são reminiscências que ligam o paganismo ao cristianismo.”
Brandini, Laura Taddei, Org. Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Campinas, SP.
Editora da UNICAMP, 2008. pp. 200, 201
27
“(...) vimos a importância e a permanência das tradições, sobretudo da
tradição oriental. As formas se transmitem de uma Cultura à outra, de uma
geração à outra sem que seus criadores estejam realmente conscientes da
herança de que são tributários. Deve-se daí deduzir que não há originalidade
nesse campo? Uma obra como a de J.Bosch, que, utilizando material
tradicional, faz literalmente explodir os limites do imaginário, não nos
permite aceitar essa hipótese. Mas é preciso reconhecer que, se a variedade
dos seres monstruosos é inegável, os procedimentos de composição não são
ilimitados. Além disso, observa-se nos autores certa complacência em
repetir formas já conhecidas: essas formas, na maioria das vezes, tem um
conteúdo mítico que pode estar aparente ou oculto. Ora, uma das
características do mito é ser repetitivo; quer repetindo- se de forma idêntica,
quer gerando, depois de modificado, um mito da mesma família, mas de
ramo diferente. Por isso, a opinião de G. Lascault71
se justifica
perfeitamente:
Da mesma forma que, segundo Lévi-Strauss, os mitos se pensam
entre si, pode-se dizer que as formas se modelam a si mesmas.
No que se refere as formas monstruosas, como aos mitos, há um
inconsciente coletivo em que os indivíduos vão haurir inspiração.”72
Seria possível, por esse raciocínio, aceitar a tese que considera a expressão
“descendente imaginativo”, pois o ciópode, o saci e o Abaporu seriam uma variação de
uma mesma forma, de um mesmo mito. Porém, o aspecto temporal das lendas e das
imagens fica comprometido na medida em que o autor fala em “inconsciente coletivo” e
conclui que:
“Há épocas e culturas em que a difusão do monstro é tal que fica muito
difícil sair das representações vigentes para inventar outras. Isso explica o
fato de certas gravuras de monstros passarem de uma obra a outra durante
cerca de um século ou de, contrariando qualquer lógica, serem encontradas
em contextos com os quais quase nada tem a ver: são um ornamento quase
intercambiável, podendo ser reutilizadas indiferentemente em contexto
diferente ou análogo ao precedente.
Todavia, o exame das formas monstruosas não leva à decepção: essas
formas tem um conteúdo, e este varia; é certo que os monstros de origem
oriental passaram a ser vistos sob outras luzes quando vieram para o
Ocidente. De uma cultura à outra, de uma época à outra e, mesmo em dada
época, de um indivíduo para outro, a interpretação de uma forma está sujeita
a variações: um cinocéfalo pode ser considerado um monstro selvagem e
sanguinário ou um São Cristovão socorredor. Do mesmo modo, nas formas
ocorre uma combinatória relativamente ampla, seus conteúdos podem
71
O autor, Claude Kappler, se refere ao livro de Gilbert Lascault, Le Monstre dans l'art Occidental Un
Probléme esthétique publicado em 1973.
72
Kappler, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da idade média. São Paulo: Martins
Fontes, 1994, pp. 254.
28
prestar-se a todos os caprichos do pensamento. Finalmente, se, como C. G.
Jung, admitirmos, por exemplo, que os arquétipos provenientes do
inconsciente coletivo variam pouquíssimo de um extremo ao outro da
humanidade, compreenderemos que essa permanência das formas, longe de
exprimir uma banalidade derrisória, revela, ao contrário, a força dos
instintos mais fundamentais e decorre de uma necessidade vital: a de
exprimir uma aparência eterna.”73
Considerando a teoria arquetípica dos monstros, pode-se verificar uma relação
atemporal entre os monstros ciópode, saci e Abaporu. O arquétipo ou modelo dessas
três criaturas, seria baseado nos elementos comuns: o sol, o único pé; a categoria de
monstro faria coincidir essas formas básicas, mas cada figura se singularizaria por estar
inserida e expressa em uma cultura diferente, em uma época diferente.
Dentro desse pensamento, que permite identificar uma série de outras relações
arquetípicas, é possível aumentar o repertório de mitos e lendas para descobrir o sentido
e a “origem” do Abaporu e do saci. Como ponto de partida, a cultura grega mitológica
continuaria sendo ainda o principal modelo a ser comparado.
Para desvendar a gênese do Abaporu — lembrando da explicação de Tarsila do
Amaral baseada nas imagens subconscientes — a estória da “casa assombrada, a voz do
alto que gritava do forro “eu caio” e deixava cair um pé (que me parecia imenso), caía
outro pé, e depois a mão e o corpo inteiro para o terror da criançada”,74
contada pela
artista, apresenta uma relação importante com uma das variações do mito de Dioniso75
,
já que esse deus tem sua simbologia originada na dança, no transe, iniciada pelo pé76
.
73
Idem. p. 256,257.
74
Brandini, LauraTaddei. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Editora da Unicamp,
Campinas, 2008 p 722.
75
A inserção de um dos aspectos dionisíacos no contexto do “modernismo” brasileiro não é tão
extravagante: “ Mais humour, maior ousadia formal, elaboração mais autêntica do folclore e dos dados
etnográficos, irreverência mais consequente, produzindo uma crítica bem mais profunda. Sobretudo a
descoberta de símbolos e alegorias densamente sugestivos, carregados de obscura irregularidade; a adesão
franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o mestiço, o filho de imigrantes, o
gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice. É toda a vocação dionisíaca de Oswald de Andrade,
Raul Bopp, Mário de Andrade; este haveria, aliás, de elaborar as diversas tendências do movimento numa
síntese superior.” Cândido, Antônio. Literatura e Sociedade, São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1965. p.146. E o universo do conhecimento de Tarsila sobre esse mesmo Deus é relevante no artigo da
artista sobre a origem do Carnaval, já mencionado.
76
Na interpretação do mito de Dioniso por Marcel Detienne: “Resta então pesquisar o segundo detalhe do
cerimonial insular: quando uma das mulheres cai com o seu fardo, e tudo balança tão brutalmente. Nada
mais comum do que uma queda no mundo dos bípedes, a não ser talvez quando esta acontece nas
proximidades de Dioniso. Com efeito, uma série de informações leva a supor que o pé, ou a perna, é uma
parte essencial do corpo dionisíaco.(...)
A mesma atitude para Penteu, no dia em que, diante do palácio de Cadmo, o deus com a máscara
de estrangeiro preside a sua investidura, mostrando-lhe como um bacante deve levantar o pé direito ao
mesmo tempo em que eleva o tirso com a mão direita. Assim começa a gestualidade de Dioniso. E, mais
de uma vez, ele próprio é invocado pelo pé: purificador, na Antígona, quando sua vinda é reclamada com
29
Este corpo que cai e se despedaça, lembra muito Dioniso em uma de suas
estórias em que o deus faz cair dos telhados os corpos que nele dançam77
. O corpo
despedaçado que cai, os pés e as mãos que caem: estaria aí uma relação arquetípica
entre as estórias contadas pelas criadas negras e mais uma das simbologias gregas do
pé.
Sendo o deus do pé e do pulo, Dioniso entra em contato com a simbologia
platônica dos seres hermafroditas, que também remetem a toda uma gênese dos seres
monópodes:
“Mas não pode haver dúvida: o transe dionisíaco começa pelo pé, com o
salto, primeiro aspecto do pé no domínio de Dioniso. O segundo, não menos
gestual, é um jogo familiar a todos os que participam dessas festas. Mais
precisamente, parece, das Dionísias campestres. Trata-se de caminhar com
um pé só, de saltar como saci78
. É o jogo do askôliasmós, segundo o sentido
antigo de um verbo que ameaça os andróginos apresentados pelo filósofo do
Banquete. Essas estorvantes criaturas de quatro braços e quatro pernas
começam a ser disciplinadas pelos deuses, que as partem ao meio. Mas se,
porventura, elas perseverassem na arrogância, seriam de novo cortadas ao
meio79
, de modo que só poderiam caminhar com uma única perna, como
urgência diante de tanta sordidez.‘°‘ Ou simplesmente porque Dioniso é o deus que salta, que pula
(pédan) por entre as tochas sobre os rochedos de Delfos. O deus cabrito, o filhote de cabra em meio às
bacantes da noite.
Por meio de Dioniso saltitante, o pé (poûs) encontra o verbo pular (pédán) e sua forma “saltar
longe de” (ekpédán) que é o termo técnico do transe dionisíaco; quando a pulsão de saltar invade o corpo,
arranca-o a si mesmo e arrasta-o irresistivelmente”. Detienne, Marcel. Dioniso a céu aberto. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1988, pp. 82,83.
77
Trata-se da seguinte versão de uma das estórias de Dionisio: “Diante do costume insular de um telhado
que se deve desfazer, como não lembrar que Dioniso em Tebas e em Orcômeno se apresenta como um
deus que faz tão alegremente dançar os telhados? As filhas de Mínias, entrincheiradas na casa do pai,
veem o telhado da casa paterna balançar; sob o olhar horrorizado de Penteu, as vigas mestras do palácio
de Cadmo oscilam, põem-se a balançar. Quanto ao telhado de Licurgo, nos Edônios, tragédia de Ésquilo,
é ele o primeiro a “fazer de bacante” enquanto o palácio real “vibra de entusiasmo”, no sentido próprio,
antes de desabar com um barulho assustador. Tantas intervenções parecem justificar o fato de ser limitada
a confiança nos talentos de arquiteto de Dioniso. Sob outro aspecto, esses indícios são excelentes para
sugerir que uma vez por ano, e talvez aproveitando um aniversário, o deus conventual e melancólico
destrói a cobertura de sua capela insular. Por algumas horas, ele torna a ser, com a cumplicidade do seu
tirso saído de sua letargia, o deus que faz os fiéis tropeçarem, saltarem e rodarem, conduzindo-os em
volta de seu santuário metamorfoseado em máscara terrível e centrípeta. O Dioniso das mulheres
enlouquecidas, em delírio, e carregando nas mãos, não mais os materiais de uma ocupação efêmera, mas
os membros palpitantes de uma mulher despedaçada sob os olhos do deus terrível, aquele que faz estourar
um corpo, ao acaso. Ao acaso irresistível de um fragmento de céu aberto em um telhado”. Idem.,
pp.91,92.
78
Note-se que o tradutor utiliza a expressão “saltar com uma perna só” como sinônimo de “saci”.
79
É interessante notar que a noção de punição divina corresponde ao sentido etimológico da própria
palavra monstro, que significa a demonstração do poder divino; deus pune deformando as criaturas que
transgridem a sua norma: “Devemos louvar a Deus por termos sido criados diferentes dos monstros, mas
estes últimos, se extrairmos a conclusão lógica do preceito bíblico, também estão na terra para louvar a
Deus “em seu coração”. Assim, de todos os lados, repercute o eco da glória de Deus.
Em oposição ao aspecto “gratuito” dessa primeira causa, “a ira de Deus” intervém
para castigar os pecadores; assim, as crianças que nascem como um sapo, com fisionomia de sapo,
30
sacis (askôliázein).’ Caminhar saltitando em vez de corretamente com as
duas pernas.”80
Esse jogo grego denominado askôliasmós — no domínio de Dioniso do “pular”
(pédan) e “saltar longe de” (ekpédán) —, remete diretamente ao saci. Voltando à
explicação de Monteiro Lobato, segundo a qual o nome original do saci é “Sacy-
perereg (çaa cy, olho mau; pérérég, saltitante)”81
, a palavra “perêre” encontra uma
relação arquetípica com o jogo grego de saltar com uma das pernas.
segundo o Pseudo-Tomás, nada mais são que a “demonstração” (“moustrance”) da vingança divina:
Mas só ha justiça, senso ou razão
Se digo que é demonstração [moustrance]
De uma cruel e pia vingança
Que Deus quer mostrar [mostrer] a nós”.
Aqui encontramos reunidos a noção de monstruosidade e o verbo demonstrar/mostrar,
paralelismo esse de grande interesse, como veremos logo.
Entre as causas biológicas e humanas dos monstros, há uma que causou grande
impressão e que deveria ser considerada como a explicação de grande parte dos monstros. Os híbridos,
como já vimos, constituem uma das categorias mais importantes: por muito tempo acreditou-se que, “por
mistura ou cruzamento de sementes”, podiam ser criados seres ao mesmo tempo parecidos com o homem
e com o animal. Naturalmente a zoofilia era considerada uma abominação. Aristóteles não acreditava nos
híbridos que, segundo ele, eram impossíveis. Contudo, a partir da Idade Média, indaga-se sobre a
verossimilhança de tais monstros.(...)
“A alma” da palavra monstrum é a raiz men que indica os movimentos mentais. Dela saíram três
categorias de palavras:
 a família μιμνσκω, mens, memini etc.;
 a família monere, monitio sobre a qual se formou, por sufixação não explicada
satisfatoriamente pelos linguistas, monistrum, que teria dado origem a monstrum;
 a família monstrare, que, naturalmente, comporta monstrum. Monere referia-se
a uma advertência divina. Os outros nomes latinos para monstro ou prodígio tinham
todos mais ou menos o mesmo sentido; (…)
Portanto, o sentido mais rico em força sacra é o de monstrum, palavra que, justamente,
prevaleceu sobre as outras com o passar do tempo.
A noção de sinal divino é realmente a própria substância da palavra. Em τέρας ― de
etimologia obscura ―, o grego possuía a mesma célula semântica.
Parece-nos muito útil lembrar aqui o comentário de R. B1och sobre a distinção entre
presságio e o grupo monstro- prodígio. O presságio era considerado uma “advertência leve, fugaz, relativa
à empresa imediata”, enquanto o monstro ou o prodígio são o “raio que abala as consciências”:
Se a divindade vem interromper por algum tempo a marcha normal do universo, não o
faz levianamente e sem sérios motivos. E esses motivos só poderiam ser a cólera provocada pela
negligência do antigo pacto.
Por isso “provoca no homem um sentimento de horror, um estremecimento que o
domina diante da intervenção tangível das forças divinas”.(...) Kappler, Claude. Monstros, demônios e
encantamentos no fim da idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 322, 323, 334 e 335.
80
Idem. p. 84,85. É de se notar que na tradução portuguesa utiliza-se a palavra saci já como sinônimo de
uma perna só, perneta. Quanto a punição dos deuses, percebe-se a semelhança também com a mitologia
indiana: O Manava-dharma-shastra ou Leis de Manu constitui um clássico da teoria jurídica indiana.
Esta obra, que talvez possa ser datada de um ou dois séculos antes da era cristã, condensa em forma de
máximas diversificadas todo o teor do dharma , seja as regras especificamente religiosas ou instituições,
costumes e preceitos éticos que dominam a existência do indivíduo, seja o indivíduo estabelecido no
mundo ( e, por consequência, sujeito às direções das castas sociais e dos ashramas) ou o indivíduo
isolado do mundo ( asceta). Tais regras se apresentam dentro do arcabouço de um grande afresco
cosmogônico (...) ― Manu é aqui o homem primordial que recebe a revelação dos desígnios supremos de
Brahman ao mesmo tempo é o promulgador de Smriti ou “ tradição guardada na memória” ( emitida
31
As analogias entre Dioniso, a estória de Tarsila do Amaral e o Saci, não se
limitariam ao corpo despedaçado e ao pulo:
“ Mais uma caminhada semântica, mas para além do “saltar-jorrar”, a fim de
atingir um mecanismo fisiológico, essencial ao dionisismo. Primeira
operação: um corpo de mênade. O que se passa lá dentro? É preciso pegá-la
viva no viveiro de Homero. No instante preciso em que Andrômaca tem a
intuição da desgraça ― a morte de Heitor. Ela se levanta, “salta” pelo
palácio; “ela parece uma mênade”, “seu coração palpita” (palloméné
kradién). Seu coração de mênade bat la chamade*( fica agitado, perturbado
N.do R.), a ciamada do nome dado em piemontês ao apelo angustiado de
trombetas e de tambores pelos quais os sitiados informavam aos sitiantes
que queriam render-se. Em grego, essa dança do coração, chamada “salto”,
pédésis, pode nascer do medo, quando surge o Pavor, pronto para gritar, e o
coração começa a saltar, a dançar ao estalar dos crótalos. O coração batendo
com o pé no diafragma, dançando sobre as entranhas uma ronda louca.
Palpitações que encontram um campo propício nas evoluções dos
Coribantes, essas potências muito irrequietas que giram freneticamente em
volta de um possuído igualmente palpitante. É com efeito no modelo
coribântico que o “salto” se revela como principio constitutivo do que vive,
e segundo a exata medida em que a dança dos Coribantes se vem juntar ao
frenesi do corpo báquico. Há algo de palpitante na besta humana, e o
educador das Leis, Platão, o pedagogo, estabelece essa teoria designando
pelo nome de “coreia” a ginástica que engloba a dança e a música, o
conjunto dos movimentos do corpo e dos movimentos da alma.”82
Em “O Saci”, Lobato expressa — de modo consciente ou inconsciente — essa
relação entre o pé, o coração e o medo, na seguinte frase: "Pedrinho sabia que o medo
existe porque diversas vezes o seu coração pulara de medo.” 83
.
secundariamente dos Shruti, “Revelação direta”) Renou, Louis : Hinduísmo. Rio de Janeiro, Zahar.
1964, p. 87 E sobre a “criação do mundo” conta-se sobre as idades desse homem primordial:
“Os períodos de um Manu, criações e destruições do mundo, são inúmeros; divertindo-se, por
assim dizer, Brahma repete isso infinitamente.
Na idade de Krita, Dharma tem quatro pés e é inteiro e assim também é a Verdade; nem
tampouco advém qualquer benefício aos homens por andarem eretos.
Nas três outras idades, devido a ganhos injustos, Dharma é sucessivamente privado de um pé, e
pela existência de roubo, falsidade e fraude, o mérito ganho pelos homens é diminuído numa quarta
parte em cada um.
Os homens acham-se livres de doença, atingem todos os seus objetivos e vivem quatrocentos
anos na idade de Krita, mas na idade de Treta e em cada qual das subsequentes sua vida é encurtada de
uma quarta parte.” idem, p.94 O esfacelamento moral é também um contínuo despedaçamento físico.
81
Lobato, Monteiro, O Sacy Perêrê: Resultado dum inquérito - Rio de Janeiro: Gráfica JB S.A. 1998.pp.
20.
82
Detienne, Marcel. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, pp.100,101.
83
Lobato, Monteiro. O saci. Editora Brasiliense, 32 edição, 1979, São Paulo. Brasil. p. 26. citado acima,
itálico meu. Saliente-se o fato de que Lobato também escreveu sobre Dioniso e, em uma estória, fez
alusão à “Dona etimologia”.
32
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  • 1. Victor Jenhei Nakamotome- n° usp: 8543661 e-mail: jenheicap@gmail.com Aproximações entre o Saci e o Abaporu Este texto pretende analisar o “monstro” com pé gigante da obra Abaporu1 de Tarsila do Amaral. Procurarei traçar uma visão retrospectiva desse caráter “monstruoso” da obra, retomando, entre outras coisas, a figura do ciópode ― monstro grego e medieval ― e do saci ― mito brasileiro ―, entrando um pouco nos principais temas do período em que a obra foi pintada: primitivismo, arte e cultura “genuinamente” nacionais, valendo-me inicialmente de um estudo de Orianna Baddeley e Valery Fraser Drawing the line: Art and Culture in Latin America, de 1989, e dos escritos de Tarsila do Amaral. Após uma comparação formal entre o ciópode e o Abaporu, buscarei interpretar esses personagens a partir de seus significados etimológicos; o resultado será o monstro europeu encontrando mais um correspondente ou duplo na mitologia brasileira: o saci. Essa última criatura foi escolhida por Monteiro Lobato para fundar e assentar as bases de uma arte e cultura brasileiras autênticas. E isso ocorreu bem antes da execução da tela de Tarsila do Amaral. O Abaporu, por sua vez, foi o marco que Oswald de Andrade utilizou para simbolizar o movimento Antropofágico, também preocupado com a questão de uma cultura nacional. Aproximando as figuras do Saci e do Abaporu, tentarei ir além do problema da “brasilidade” desses monstros, inserindo-os no campo em que a história da arte estuda o deformado, o maravilhoso, o desconhecido, o estranho, o feio, ou seja, estuda as criaturas que habitam os sonhos e os pesadelos. 1 Data: 1928; Técnica: óleo sobre tela; dimensões 85 cm x 73cm; Localização: Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires- Fundación Costantini, Buenos Aires, Argentina. 1
  • 2. O Abaporu é o quadro “fundador” do Movimento Antropofágico elaborado por Oswald de Andrade e Raul Bopp. Na historiografia, existe a versão que foram esses dois intelectuais os responsáveis pelo nome da famosa tela2 . Tendo em conta a importância do título em uma obra de arte, é possível constatar e reiterar que há uma relação profunda entre o Abaporu e a origem do Movimento Antropofágico. No entanto, é preciso salientar que o título surgiu após a execução da pintura e não foi ideia da autora. Neste sentido é necessário retroceder a interpretação da pintura aos termos formais: a tela apresenta uma figura humana deformada que, se por um lado “rompe”3 com a tradição da arte acadêmica que via no corpo humano estruturado em proporções divinas o seu estabelecido ideal de beleza4 , associa-se, por outro, às imagens disformes, ou seja, estabelece contatos com uma também tradicional representação de figuras monstruosas, “feias” e “maravilhosas”5 . 2 No relato de Tarsila, ela afirma que o título da obra foi criado por Oswald de Andrade e Raul Bopp: "Deram-lhe o nome de Abaporu". “Pau Brasil e Antropofagia”, Diário de S. Paulo, quinta-feira, 4 de janeiro de 1951. Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Organização Laura Taddei Brandini. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2008.p. 685. No livro de Aracy Amaral "Tarsila: sua obra e seu tempo", o título foi criado por Oswald de Andrade e Raul Bopp e foi retirado de um dicionário : "O título? Era a intensa vinculação com a terra nessa figura central que correram ao dicionário tupi -guarani de Montoya, que pertencia ao pai de Tarsila, para obter um nome para a tela" Amaral, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo - São Paulo: Ed. 34;Edusp. 2003. p. 279. 3 Nos estudos que não fazem referência tanto tematicamente quanto formalmente aos monstros, o Abaporu é considerado como uma ruptura em relação ao cânone da figura humana das belas artes, na época em que se estabelecia o modernismo no Brasil."O Abaporu de Tarsila está para a arte moderna assim como Les Demoiselles d'Avignon, de Pablo Picasso está para a arte moderna ocidental: são obras de ruptura, muito divulgadas e ainda assim imunes à banalização (...) Pintados nas primeiras décadas do século XX, excepcionalmente resistentes à pasteurização promovida pela mídia, esses quadros ainda hoje têm poder de choque. Em ambos a força desestabilizadora do senso comum advém da transgressão do nu como representação canônica. O trato desregrado da anatomia, o desmembramento e a deformação, a exposição abusiva de certas partes e o ocultamento de outras transformam o que nos é familiar ― o corpo humano ― em algo assustador". Milliet, M. A. Tarsila: Os Melhores Anos. São Paulo: M1O Editora, 2011. p. 158. Vale lembrar que um título que o Abaporu já recebeu foi "nu", segundo informação no Catálogo Raisonné de Tarsila. p. 166. O nome de Nu, reforçaria a interpretação de ruptura pois dá enfase ao elemento “corpo”, corpo nu, apresentando um choque formal direto com os corpos nus canônicos. 4 Sobre o assunto ler, entre outros, “Ideia, a Evolução do Conceito de Belo” E. Panofsky e “Arte e Beleza na Estética Medieval”, Umberto Eco. 5 Quanto a esse tema, há um estudo fundamental de Rudolf Wittkower, “Marvels of the East. A Study in the History of Monsters” Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, idem. Vol. 5 (1942), pp. 159- 197. Nesse texto, o autor faz um levantamento das figuras monstruosas do oriente que ficaram conhecidas no ocidente por meio de manuscritos dos estudiosos da antiguidade e das obras de arte. A própria Tarsila do Amaral se insere nesse tema. Quanto à questão da deformação das figuras humanas na arte, segue o raciocínio da pintora no artigo “ Tendências da Arte Moderna”: “ Há trinta anos, precisamente, nasceu o cubismo. Os seus frutos foram eficientes. Apresentaram-se perspectivas nunca vistas, onde a imaginação criadora dos artistas novos se sentiu à vontade. Os excessos, os exageros, não tardaram, porém, a aparecer. Arte moderna! Nessas duas palavras cabem todas as extravagâncias, todas as monstruosidades ( inclusive a minha arte antropofágica, brutal e sincera), todos os desabafos, pesadelos, recalques e delírios. Válvula através da qual o subconsciente se estampa na tela, se condensa no mármore. Se fixa na 2
  • 3. Para reforçar a hipótese de que o interesse da artista ao deformar a figura humana teria sido o de adentrar no imaginário dos monstros — e não somente o de desestabilizar e confrontar o ideal de beleza —, basta lembrar que a explicação dada por Tarsila do Amaral sobre a origem do quadro, é que ele foi criado a partir de sonhos, lembranças da infância, memórias de estórias contadas pelas criadas negras no tempo em que ela era pequena e vivia em uma fazenda6 . Dar ou optar por uma explicação como essa é, antes de mais nada, inserir o seu monstro, o Abaporu, na esfera comum, habitual desse tipo de seres que sempre existiram em sonhos e pesadelos. A figura humana deformada na tela de Tarsila do Amaral tem como elemento marcante um único pé gigante, sendo essa parte do corpo humano o seu principal índice de monstruosidade. O entendimento dessa obra ficaria mais completo se ela fosse comparada não apenas à produção artística de sua época, — penso nas obras de Picasso, Léger ou Miró — mas também alinhada a uma “genealogia” das figuras monstruosas, por mais variado e conflitante que esse tipo de imagem possa ser. O pé agigantado do Abaporu não é estranho dentro da iconografia dos monstros: existe um ser chamado ciópode que se caracteriza por seu único pé gigante, e é muito conhecido e extremamente familiar no imaginário dos europeus. Nessa linha de investigação há uma análise valiosa para a compreensão do quadro de Tarsila do Amaral, publicada no ano de 1989 por Orianna Badelley e Valery Fraser, que compara o ciópode com o Abaporu7 : “Sua pintura mais importante do período é o Abaporu de 1928. Numa pequena porção de terra, ao lado de um cacto e abaixo de um sol ardente, senta uma monumental figura com uma cabeça pequena inclinada para o sol e com um pé gigantesco: forte, de imponência física, enraizado no solo pauta musical, de qualquer jeito, com talento, sem talento. Com técnica ou sem técnica, à vontade. A confusão se estabeleceu. Agora o cansaço vai se generalizando. O cubismo, ou melhor, a arte moderna, deu aos artistas uma consciência criadora e o espírito de libertação. Hoje, porém, estamos num período de construção em que a técnica se impõe. As deformações teratológicas e convencionais vão cedendo terreno para a deformação bela e harmoniosa. Todos os grandes artistas de todas as épocas deformaram. No período áureo da estatuária grega, os artistas, longe de copiar os seus modelos, deformavam os seus mármores no sentido ideal de beleza plástica.” Brandini, Laura Taddei, Org. Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2008. p.262 6 Amaral, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo - São Paulo: Ed. 34; Edusp. 2003. p. 280. 7 Todas as citações em outras línguas no presente texto foram traduzida livremente. 3
  • 4. brasileiro. Esse é um descendente imaginativo dos ciópodes8 , uma das raças monstruosas da lenda clássica e medieval”9 Antes de tentar compreender o sentido de “descendente imaginativo”, é importante prosseguir na leitura do estudo já citado em que as autoras utilizam o texto do historiador da arte Rudolf Wittkower10 para explicar a origem dos Ciópodes: “O ciópode, pelo o que é dito, utiliza seu único pé para se proteger do sol e da chuva; é encontrado na História Natural de Plínio e nas Viagens de Sir John de Mandeville ao lado das pessoas com a orelha tão grande que a utilizam como mantos para se protegerem do frio, ao lado da raça de seres com os olhos no peito, e, finalmente, junto aos antropófagos, os comedores de homem, que eram mais deformados moralmente do que fisicamente. Essas raças monstruosas tradicionalmente povoaram o mundo desconhecido para além do Mediterrâneo e, nos anos em que se seguiram às primeiras expedições de Colombo, alguns tripulantes relatavam estórias similares desses monstros (...) A imaginação de Amaral foi evidentemente movida em torno de tais fontes porque, pouco tempo depois, ela pintou uma tela intitulada Antropofagia/ Canibalismo11 (...) onde duas figuras monstruosas monumentais similares sentam tendo como pano de fundo um cenário com um cacto gigante e folhas de bananeira.”12 8 Itálico meu 9 “[Her most important painting of this period is Abapuru of 1928. On a small hillock, besides a cactus and beneath a blazing sun, sits a monumental figure with a diminutive head like sprout leaning towards the sun and with one gigantic foot: a strong, physical being, rooted into the Brazilian soil. This is an imaginative descendant of the sciapods, one of the monstrous races of classical and medieval legend.]” Baddeley, Oriana. Drawing the line: art and cultural identity in contemporary Latin America/ Oriana Baddeley and Valerie Fraser, Verso, 1989. pp. 19 e 20. 10 Wittkower, Rudolf. Marvels of the East, A Study in the History of Monsters. Em uma das pranchas de imagens presentes no estudo, o historiador apresenta vários ciópodes. 11 Itálico meu. 12 “[The sciapod, who is said to use its single foot to shelter from the sun and the rain, is found in Pliny's Natural History and Sir John Mandeville's Travels alongside the people with ears so large they used them like cloaks to keep out the cold, the people with eyes in their chests, and the anthropophagi, the man- eaters, who were morally rather than physically deformed. These monstruous races had traditionally peopled the unknown world beyond the Mediterranean, and in the years following Columbus's first voyages to America travellers repeat stories of similar monstruous races who are to be found further on, in the next valley, or over the next range of mountains but whom (of course) the writer never actually sees. They always inhabit the world immediately beyond reality. Amaral's imagination was evidently moving around such sources because shortly afterwards she produced a painting entitled Antropofagia/ Cannibalism (private collection, São Paolo, 1929) where two similarly monumental-monstrous figures sit in front of a backdrop of gigantic cactu and banana leaves.]” Baddeley, Oriana. Drawing the line: art and cultural identity in contemporary Latin America/ Oriana Baddeley and Valerie Fraser, Verso, 1989. pp. 19 e 20. 4
  • 5. Se no início do comentário sobre a obra de Tarsila do Amaral as historiadoras comparam as imagens do Abaporu (figura 1) com a de um ciópode impresso no livro das Viagens de John de Mandeville (figura 2), afirmando ser o primeiro um “descendente imaginativo” do segundo, no trecho acima elas radicalizam a comparação ao escrever que a pintora muito provavelmente entrou em contato com tal fonte. Antes de explorar essa hipótese, é obrigatório lê-las novamente: “Os canibais foram supostamente descobertos pelos europeus em diferentes partes da América, mas o imaginário do canibalismo foi especialmente forte em relação aos nativos habitantes do Brasil. No início do século XVI, numerosas gravuras populares circularam na Europa mostrando os indígenas da costa brasileira roendo grandes braços e girando pernas carnudas em espetos sobre uma fogueira. É esse o imaginário comum às xilogravuras dos ciópodes ousados de Mandeville, que informa as extraordinárias pinturas de Tarsila do Amaral”13 Figura 114 Figura 215 13 “[Cannibals were supposedly discovered by Europeans on several different parts of America, but the imagery of cannibalism is especially strong in relation to the native inhabitants of Brazil. From the very beginning of sixteenth century numerous popular prints had circulated in Europe showing the Indians of Brazilian coast gnawing on large arms, or turning fleshy legs on a spit over a fire. This is the imagery, along with that of the bold woodcuts of the sciapods from Mandeville's Travels, which informs Tarsila do Amaral's extraordinary paintings]”. idem. pp. 19, 20. 14 Imagem retirada do Catálogo Raissoné, volume I, na página 67. 15 Reproduzida do livro de O. Baddelley, página 19. 5
  • 6. As imagens dos dois monstros, postas lado a lado, apresentam, além do pé, mais alguns elementos semelhantes no cenário: uma planta, o céu e uma porção de terra. Diferem no posicionamento dos corpos: o Abaporu está sentado, com o pé voltado para o solo, enquanto o ciópode, no livro de Mandeville, tem o seu pé suspenso no ar. Além disso, as plantas não são as mesmas e Tarsila pintou um sol que não aparece na gravura do livro de Viagens. Comparando essas duas imagens, Orianna Badelley e Valery Fraser foram enfáticas: Tarsila do Amaral teve conhecimento das gravuras antigas dos seres monstruosos e elegeu o ciópode para criar o Abaporu. A argumentação das autoras é convincente, mesmo contrariando a explicação dada pela artista sobre a origem de seu quadro que não faz menção a qualquer “apropriação” de figuras antigas. Mas teria Tarsila do Amaral realmente conhecido esta imagem do ciópode e a recriado, transformando-a em um monstro brasileiro, como sugere a interpretação das historiadoras? Somente confrontando essas duas imagens não é possível chegar a uma resposta afirmativa. Porém, aumentando o repertório de figuras dentro do imaginário dos monstros comuns tanto ao antropófago quanto ao ciópode, torna-se possível formular outras hipóteses e expandir o significado de “descendente imaginativo”. O Abaporu aparece, no contexto da arte brasileira, como um monstro solitário — não somente no sentido dele ser uma obra única, “inovadora” —, comparável apenas a uma outra figura pintada posteriormente por Tarsila na tela Antropofagia (figura 3). Já o ciópode europeu medieval foi representado diversas vezes16 . Oriana Baddeley e Valery Fraser compararam uma imagem específica de ciópode, isto é, selecionaram uma dentre as várias representações existentes para validarem a hipótese de semelhança formal e temática com o Abaporu. É evidente que as representações que só mostram o ciópode num fundo neutro (figura 4) são um empecilho para as duas estudiosas que encontrariam dificuldades ao tecer relações entre duas figuras que só teriam em comum o único pé. Utilizando o mesmo método das historiadoras — e aprofundando a seleção de imagens — seria possível aproximar a figura do sol presente no Abaporu à imagem do sol/laranja presente na Antropofagia (figura 5) e, como se as formas se repetissem, de pintura para pintura, ver esse mesmo sol num manuscrito medieval representando um casal de ciópodes (figura 6). Sol este que, provavelmente — acompanhando o raciocínio das duas autoras —, Tarsila do Amaral teria conhecido e se “apropriado” para criar as 16 Ver estudo já citado de R. Wittkower. 6
  • 7. suas telas. Embora essa hipótese formulada pareça ser válida, reduz o espectro do amplo imaginário dos monstros em algumas poucas imagens. Isto é, em um estudo mais completo para comprovar que Tarsila teria conhecido algum ciópode, seria necessário levar em conta uma série vasta de imagens desses seres, bem como considerar outras fontes textuais que giram em torno da “criação” do Abaporu. Figura 317 Figura 418 Antropofagia, detalhe Sens, Cathedral, Grand Portal. 13 th cent. Figura 5 Figura 619 Antropofagia 1929, óleo sobre tela, c.i.d. 126 x 142 cm Acervo Fundação José e Paulina Nemirovsky (São Paulo, SP) C14th illuminated manuscript Der Naturen Bloeme in the National Library of the Netherland 17 Imagem 3 e 5, retirados do Catálogo Raisonné, Volume I, página 183. 18 Imagem publicada no estudo de R. Wittkower. 19 imagem retirada do site: http://www.theoi.com/greek-mythology/fabulous-tribes.html. 7
  • 8. Ainda dentro do campo de investigação que parte do pressuposto de que o Abaporu é essencialmente um monstro, pelas suas deformidades e pelo fato de ser uma figura solitária em uma paisagem,20 — motivos que podem ser levados em conta para caracterizar esses personagens — é oportuno fazer algumas considerações acerca de seu significado. Para isso, é imprescindível frisar que o monstro não se forma por uma imagem vista e reproduzida como na realidade, mas é uma espécie de conglomerado de imagens reais fortemente devedoras de relatos, da palavra.21 Em grande parte das obras de arte em que figuram monstros, essa relação se dá entre a composição/imagem e seu título, a palavra. Daí a necessidade de investigar a questão etimológica. Ciópode, do latim Sciapode, é a junção de duas palavras gregas, skia e poûs. Traduzindo, sombra e pé. Como já afirmado, utiliza — de acordo com textos gregos e medievais — esse pé para fazer-lhe sombra, proteger-lhe do sol. Abaporu é uma palavra tupi-guarani: Aba, “homem”; poru, “aquele que come”. A diferença fundamental entre essas duas figuras é que o nome do segundo surgiu de um dicionário;22 isto é, não possuía uma lenda popularizada por relatos ou textos clássicos gregos e medievais como o ciópode. 20 O mostro é solitário pois é execrado, detestado e se afasta para lugares ermos. Deformado, é filho da desordem: “O monstro, portanto, é uma manifestação de desordem, e desordem por carência ou por “superfluidade”, sendo o critério a forma inicial, forma de homem, de animal ou de vegetal, forma perfeita tal qual Deus criou. Portanto, por natureza, é “imperfeito”.(...)O monstro, filho da desordem, imagem de deformidade, também é com muita frequência considerado inimigo do Belo.” Kappler, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 308,309. 21 Sobre este assunto, segue o trecho: “O monstro, produto de uma combinatória das formas, não é apenas o fruto malsão de um amor pervertido pelo quebra-cabeça. O monstro também é construído por meio da palavra: pode surpreender que os autores se obstinem tanto em descrever verbalmente o que a imagem representa com muito mais facilidade. Para isso há várias razões, sendo uma delas que a elaboração do monstro por meio da palavra constitui uma criação específica que comporta suas próprias modalidades, características e prazer. Contudo, a palavra mantém relações estreitas com a imagem, e essas duas maneiras de representar o monstro constantemente apresentam interferências e influências recíprocas, acabando por constituir uma parceria indissociável na elaboração do monstro ou do estranho. Nessa elaboração, é preciso distinguir duas atitudes típicas: ou o autor é um mistificador voluntário que quer fazer passar por monstro o que não o é a priori e contribui conscientemente para o enriquecimento da família dos monstros; ou ele esta isento de qualquer desejo de fabular e o monstro se cria sem que ele perceba: esta é a atitude que revela as verdadeiras capacidades criadoras da palavra e da imagem, seus recursos ocultos, vitais, essenciais ..., independentes da intenção humana que as manipula. Nem sempre é fácil distinguir, numa descrição, qual das duas atitudes prevaleceu; muitas vezes elas se entremesclam e não se pode categorizar em nenhum dos dois sentidos, sendo ainda aí necessário admitir interferências”. Idem. pp. 261,262. 22 A palavra veio do dicionário tupi-guarani Montoya, no episódio já citado pelas palavras de A. Amaral na nota 2. 8
  • 9. Se o significado do monstro é dependente de seu nome, a operação de conferir o título Abaporu à pintura aproximou esse personagem a um outro monstro tão tradicional quanto o ciópode — no sentido de relatos e estórias já estabelecidas na cultura — o Antropophagi, também do grego: antro, homem; phagi, comedor, o Antropófago.23 No caso da história brasileira, associando o monstro de Tarsila do Amaral aos relatos dos jesuítas sobre os índios comedores de gente, os antropófagos por excelência24 , criou-se o monstro imaginário Abaporu. A pintura de Tarsila, nomeada por Oswald de Andrade25 , foi utilizada para tornar-se símbolo, ícone, marco, do movimento antropofágico que, metaforicamente, visava devorar e regurgitar as culturas dominantes. 23 Sobre os antropófagos: “Quando tratamos dos homens selvagens falamos superficialmente dos antropófagos: esses “monstros” realmente fascinaram a imaginação tanto na Idade Média quanto em outras épocas. O ciclope antropófago da Odisséia dá ensejo a um dos episódios mais impressionantes dessa época. Todos os povos considerados selvagens são suspeitos de antropofagia para os viajantes. Pian di Carpini observa que os tártaros não estão isentos desse vício: Em caso de necessidade eles não fazem cerimônia em comer carne humana. Ao menos é “em caso de necessidade”. Sabe-se que em situações de escassez geral, ou de sítio, quando reina a fome, ressurge o canibalismo. Existe também o canibalismo religioso que, embora possa parecer paradoxal, muitas vezes ocorre em povos vegetarianos e relaciona-se com o “nascimento” de plantas alimentícias; existe o canibalismo iniciático... para isso, remetemos aos trabalhos de M. Eliade, já citados. Naturalmente os viajantes que deparam com esse canibalismo não se propõem questões de etnologia ou história das religiões: a priori, o canibalismo é um vicio monstruoso e o maior fundamento para essa opinião é que os antropófagos figuram no rol dos monstros desde a Antiguidade. É esse caráter aprioristicamente monstruoso da antropofagia que leva os viajantes a fabularem e a dotarem os antropófagos com atributos efetivamente monstruosos: cabeça de cão ou olho único. Cristóvão Colombo, já na primeira viagem, ouve falar dos “canibais” pelos índios que lhe servem de guia: Diziam eles (os índios) que era uma grande ilha habitada por homens que tinham um só olho no meio da fronte e por outros chamados canibais que, diz ele, parece que tinham uma pele medonha. Alexandre Cionarescu observa que esse trecho é a certidão de nascimento da palavra canibal, que, aliás, é o mesmo que o francês Caraïbe e o espanhol Caribe. A palavra Caribe, acrescenta, ainda conserva em espanhol os dois sentidos: o de “habitante das Antilhas” e o de “antropófago”.” Kappler, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 230,231. 24 Com relação aos antropófagos reais: “ A excessiva crueldade do indígena repugna a condição humana, dizia Gândavo na História da Província de Santa Cruz: não apenas matam aqueles que não são do seu rebanho como também os comem, “usando nesta parte cruezas tão diabólicas, que ainda nelas excedem aos brutos animais que não tem o uso da razão” ”. Souza, Laura de Mello e. O diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo. Companhia das Letras, 1986. pp. 65, 66. 25 “Oswald de Andrade, aturdido perante a monstruosidade que lhe ofereci, chamou Raul Bopp, então em São Paulo, para ver qual sua impressão. Eu estava ao lado observando. “Bopp, disse Oswald, precisamos criar um movimento em torno desse quadro". E ambos comentavam: essa figura sentada, tão pesada, com seus pés imensos apoiados ao solo, evoca a terra brasileira, rude, selvagem. Deram o nome de Abaporu, que significa antropófago.” Amaral, Tarsila do .“Pau Brasil e Antropofagia”, Diário de S. Paulo, quinta- feira, 4 de janeiro de 1951. in Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Org. Laura Taddei Brandini. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2008. p. 685 9
  • 10. É principalmente pela existência de índios antropófagos no Brasil que Orianna Baddeley e Valery Fraser reforçam a hipótese da relação de “descendência imaginativa” entre o ciópode e o Abaporu26 . No movimento antropofágico, lançado por Oswald de Andrade — ainda na argumentação das autoras — a ideia de deglutição da cultura europeia para a formação de uma cultura genuinamente nacional estaria presente no antropófago. Nesse sentido, Tarsila do Amaral teria se apropriado do ciópode e o transformado no monstro brasileiro Abaporu pela deglutição e digestão de uma imagem/lenda europeia. Em mais uma observação que cabe ser feita acerca desse estudo, não é possível deixar de notar que, se em um primeiro momento as autoras falam em “descendente imaginativo”, elas acabam por concluir que a imaginação de Tarsila do Amaral foi evidentemente movida em torno de tais fontes (gravuras de antropófagos e ciópodes) porque, pouco tempo depois ela pintou uma tela intitulada Antropofagia/ Canibalismo.27 Enquanto esta última afirmação não traz dúvidas, sugerindo que a fonte ou imagem primeira do Abaporu foi a de um ciópode, assim como, evidentemente, o casal da Antropofagia é um casal de ciópodes, a primeira afirmação é polêmica: o que significaria exatamente “descendente imaginativo”? Uma mesma figura recriada após vários anos? Descendente bastardo (não reconhecido) ou filho legítimo (conhecido, porém omitido)? Ou seja, e essa parece ser novamente a grande questão ainda não respondida: Tarsila do Amaral sabia ou não sabia da existência dos ciópodes? 26 Na continuação e finalização da comparação entre o Abaporu e o sciapode, Orianna Baddeley retoma o significado tupi do título da pintura de Tarsila e reafirma sua importância para o movimento antropofágico: “Nos termos europeus, o canibalismo representa a antítese absoluta de moralidade e civilidade. Em um grande salto imaginativo, Oswald de Andrade e seu círculo apropriaram-se deste conceito Eurocêntrico e o inverteram, para que ele significasse algo positivo e inequivocamente Brasileiro. Foi Oswald de Andrade quem deu à pintura de Tarsila do Amaral o título Abaporu, uma palavra Tupi-Guarani que significa “aquele que come”, e lançou, pouco tempo depois, o movimento Antropofagia com um “Manifesto Canibal” proclamando que a maneira em direção à uma cultura nova genuinamente nacional se daria não pela rejeição ao passado Europeu e sim pela deglutição agressiva e deliberada deste, consumindo-o como comida, digerindo-o e produzindo a partir dele algo fresco e independente. Repetindo, do ponto de vista do colonizado, o que os Europeus fizeram com a América durante séculos. “[In European terms cannibalism represent the absolute antithesis of morality and civility. In a great imaginative leap Amaral, Oswald de Andrade and their circle approprieted this Eurocentric concept and turned it on its head to mean something positive and unequivocally Brazillian. It was Andrade who gave Amaral's painting the title Abaporu, a Tupi-Guarani word meaning 'the one who eats', and shortly afterwards he launched the Antropofagia movement with a 'Cannibalist Manifesto' proclaiming that the way forward to a new genuinely national was not by ignoring or turning one's back on the European past but by deliberately, aggressively, consuming like food, digesting it and producing out of it something fresh and independent. This, after all, was no more than the Europeans had done with America for centuries”]. Baddeley, Oriana. Drawing the line: art and cultural identity in contemporary Latin America/ Oriana Baddeley and Valerie Fraser, Verso, 1989.p.20 27 Citando novamente a afirmação das historiadoras: “Amaral's imagination was evidently moving around such sources because shortly afterwards she produced a painting entitled Antropofagia/ Cannibalism.”. 10
  • 11. A partir do momento em que o termo “descendente” pode ter diversos significados e as autoras exploram apenas um deles, cabe aqui tentar elucidá-lo saindo do trabalho das estudiosas, mas sem perder de vista as relações até aqui traçadas entre os monstros ciópode, Abaporu e antropófago. Para começar a decifrar o enigma dessa descendência, nada mais apropriado do que ler as palavras da própria artista: “Quanto à Antropofagia28 , eu mesma não sei como foi que tive a ideia de fazer um quadro monstruoso para presentear Oswald de Andrade no dia de seu aniversário, a 11 de janeiro de 1928. Alguns anos depois, creio que descobri serem aquelas monstruosidades reminiscências da infância, imagens subconscientes29 , criadas pela imaginação de criança apavorada pelas velhas histórias de assombração.”30 Na primeira frase, fica claro que a artista não chegou a ter o conhecimento dos ciópodes, ou, caso tenha tido, não era de seu interesse assumir o fato. Assim como o título foi dado após a execução da pintura, ela se lembrou da origem da tela — de imagens subconscientes — bastante tempo após pintá-la. Ela faz uma afirmação um tanto obscura, pois “creio que descobri” tem um valor diverso de “descobri” ou “descobri com absoluta certeza”. O único dado fornecido pela artista é a possível explicação sobre a origem dessas imagens que são “subconscientes”, oriundas de reminiscências da infância, de lembranças das estórias31 de assombração. Desvendar quais foram essas estórias nos processos de memorização da infância e a relação dessas imagens que se formaram no subconsciente é de extrema importância para compreender o Abaporu. Pois esse monstro de um pé só pode ter sido criado, como afirma Tarsila do Amaral, a partir de relatos de estórias. No entanto, falando em subconsciente, não é possível descartar a hipótese de uma apropriação inconsciente de um ciópode ou de algum monstro que ela conheceu de outra maneira, porém não mencionou por não lembrar-se do fato. Explicar a origem de uma obra de arte por imagens vindas do subconsciente, como Tarsila do Amaral fez ao falar sobre a origem do Abaporu, não é uma “novidade 28 Nesse relato, Tarsila se refere ao Abaporu, como antropofagia. 29 itálico meu 30 Amaral, Tarsila do :“Pau Brasil e Antropofagia”, Diário de S. Paulo, quinta-feira, 4 de janeiro de 1951. Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Org. Laura Taddei Brandini. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2008.p. 685. 31 O termo, embora arcaico, expressa melhor o sentido de criação imaginária e não o de um relato histórico de fatos reais. Para uma maior clareza, prefiro utilizá-lo quando me refiro a “estórias” ficcionais, imaginárias. 11
  • 12. modernista”, mas já era conhecida ao menos desde o Renascimento se consideramos que os sogni di pittori32 — os sonhos dos pintores — propiciavam a feitura de figuras grotescas, deformadas, fantásticas, monstruosas, estranhas ao real, como uma das formas de “dar vazão” ao “subconsciente”. Quando a artista afirma ter descoberto a origem do monstro Abaporu, muito tempo depois de tê-lo pintado, dá uma explicação que torna a pintura uma atividade em que as imagens da realidade, das estórias, das lembranças ou mesmo de sonhos, misturam-se e emergem no quadro. O tema das reminiscências de infância que ela menciona sobre a criação da obra, mesmo que se relacione com o subconsciente, não implicam que a artista tenha abdicado da racionalidade ao pintá-la.33 32 Com relação às obras de arte criadas a partir dos sonhos de pintores: “Na palavra grottesco, como designação de uma determinada arte ornamental, estimulada pela Antiguidade, havia para a Renascença não apenas o lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas concomitantemente, algo angustiante e sinistro em face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam suspensas(...) o fato se manifesta na segunda designação que surgiu para grotesco no século XVI: sogni dei pittori. Com ele se indica ao mesmo tempo o domínio em que a ruptura de qualquer ordenação, a participação de um mundo diferente, tal como aparece sensivelmente na ornamentação grotesca, se torna para todo ser humano uma vivência, sobre cujo teor de realidade e verdade o pensar jamais alcançou bom termo. Sonhos de pintores... deve-se admitir que a nova arte italiana já era do conhecimento de Dürer, quando ele assim se exprimiu: 'Mas tão logo alguém queira realizar sonhos, poderá misturar todas as criaturas umas com outras' ”. Kayser, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo, Perspectiva, 2009. p.20. 33 Se o Abaporu for pensado de acordo com a periodização dos movimentos na história da arte, poder-se- ia associá-lo não só aos sogni di pittori do Renascimento, mas também ao movimento surrealista, tanto do ponto de vista da “criação” da obra quanto ao seu tema. . André Masson, em “A pintura é uma aposta”, 1941 , afirma que no movimento surrealista a criação do que ele denomina “obra de imaginação” depende tanto do consciente, quanto do inconsciente , do racional e do irracional: “o inconsciente e o consciente, a intuição e o entendimento deverão operar sua transmutação na supra consciência, na unidade irradiante”. Chipp, Herschel Browing. Teorias da arte moderna/ São Paulo: Martins Fontes, 1998 O tema do homem primitivo irracional que se teria surgido de um sonho, são característicos do movimento surrealista: “Mas onde estaria o surrealismo nesse contexto? Pode ser interessante pontuar como a própria artista disse ter se dado à “descoberta” de suas pinturas antropofágicas. (…) A desproporção entre membros inferiores e o restante do corpo em quadros como Abaporu e a Antropofagia poderia ser então interpretada como tendo relação com reminiscências das impressões que essa brincadeira infantil teria causado na imaginação da artista. O interesse de Tarsila na exploração de material inconsciente apareceria ainda em outras obras do período como Sono e Cidade. (…) (…) O mesmo ocorre com o Abaporu. Se essa obra de fato surge de uma “galopada no mundo interior”, nas reminiscências da brincadeira infantil, toda sua estruturação visa “ plantar” a figura nesse território selvagem característico da fase antropofágica. É evidente a enunciação dessa figura como o “homem bárbaro”que nada mais era do que o homem brasileiro despido da mentalidade lógica e dos preconceitos que as “manhas da catequese” lhe teriam infundido durante séculos de colonização territorial e cultural. O homem que teria reconquistado a compreensão e a expressão poética do mundo, presente no primitivo. Justamente por isso, constitui uma afinidade mais interessante com o surrealismo. Uma afinidade de interesse por formas de pensamento e de relação com o mundo não mediadas pela racionalidade europeia, compartilhada por antropófagos e surrealistas.” Virava, Thiago Gil. Uma Brecha para o Surrealismo: percepções do movimento surrealista no Brasil entre as décadas de 1920 e 1940. Tese de Mestrado, ECA- USP, 2012.pp. 106, 108. 12
  • 13. Presente nessa declaração da artista estão temas que se relacionam não só à criação artística, mas também o episódio histórico de que a pintura foi dada de presente para Oswald de Andrade. Este e Raul Bopp nomearam o quadro e criaram, em conjunto com a artista, o movimento antropófagico. Com o título Abaporu, outras questões importantes da declaração da artista ficaram em segundo plano. Ele é interpretado sempre de acordo com a “moldura” de conceitos do folheto do manifesto― as colunas de palavras que o circundam no Manifesto Antropófago (figura 7): o homem pré-lógico da etnografia de Lévy- Bruhl, o bom selvagem de Rousseau, o homem nu desrecalcado e criatura do subconsciente na psicanálise de Freud, etc. Baseado também nesse raciocínio, circunscreveu-se o Abaporu na moldura da “originalidade brasileira”. O Abaporu seria o homem brasileiro primitivo, sentado numa paisagem nacional, formado pelas cores locais; tudo isso, inspirado por um imaginário “cem por cento” nacional e criado por uma artista brasileira.34 Figura 735 34 Quanto à identidade brasileira no Abaporu: “ A pesquisa pelo imaginário que pudesse representar simbolicamente uma identidade nacional passava também pela construção da imagem de um “homem brasileiro”. Entre os “caipiras” de Almeida Jr. e os trabalhadores de Cândido Portinari, encontra-se o homem bárbaro, o “ comedor de homens”, o Abaporu. Isso insere não apenas Abaporu, mas também as demais obras antropofágicas que, mergulhando no imaginário amazônico, procuram nele símbolos de identidade “ bárbara” e primitiva brasileira, dentro de uma trajetória histórica da arte brasileira, de pesquisa por símbolos nacionais, que remontam a meados do século XIX. (…) Dentro desse pensamento, que percebe na arte brasileira a constituição de símbolos nacionais a partir da exacerbação ou neutralização do conflito entre homem e natureza, as pinturas antropofágicas poderiam ser consideradas também como parte desse processo. Como sua etapa “bárbara” ou selvagem. O homem brasileiro, o Abaporu, é apresentado em um suposto estágio de integração, calcando firmemente os pés numa natureza que é vista agora não tanto como paraíso, mas pelo prisma do mistério da imaginação.” idem. p. 104, 105. 35 Figura retirada do Catálogo Raisonné, volume III p. 182. Para uma outra versão do desenho ver figura 24 no anexo, p. 55. 13
  • 14. Nesse entendimento — em que o Abaporu é explicado em função do movimento antropofágico — a questão de uma possível descendência ciópode/Abaporu nem sequer é tangenciada.36 Deveriam ser levadas em consideração também as afirmações de Tarsila sobre as estórias de infância que a artista ouviu e se “inspirou” para criar a figura monstruosa. Nos dizeres dela: "a casa assombrada, a voz do alto que gritava do forro "eu caio" e deixava cair um pé (que me parecia imenso), caía outro pé, e depois a mão e o corpo inteiro para o terror da criançada”.37 Esse relato mencionando a estória foi contado primeiramente no ano de 193938 , muito após a realização da pintura e muito antes da escrita do texto em que ela se refere ao Abaporu como “Antropofagia”, publicado em 195139 . É comum, nas duas falas, o tema das reminiscências de infância. Na medida em que Tarsila do Amaral não diz especificamente qual estória foi aquela — num espectro de lendas brasileiras a serem levadas em consideração —, como, por exemplo, o curupira, a mula sem cabeça, o saci, etc., e só fala de partes do corpo ― pés e mãos ― que caíam de um forro, não é possível precisar qual foi a estória contada pelas criadas negras no tempo em que ela era criança. E isso se torna um problema, pois o monstro é, como já foi afirmado, criado em função da palavra, de seu próprio nome. Confiando nesse relato da artista, e pensando novamente no caso do ciópode, o par de conceitos que formam um monstro — imagem/palavra ou composição/título ― foi assimilado pelos artistas medievais e por Tarsila do Amaral de modo diverso. Na primeira situação havia uma literatura e uma série de imagens já produzidas de ciópodes (figuras 8, 9, 10 e 11). Já a artista brasileira valeu-se também de contos ou lendas; porém, de acordo com sua versão da gênese do Abaporu, não se utilizou de estórias escritas ou imagens de um monstro com um único pé gigante, uma mão grande, e uma cabeça diminuta como referência. Sob esse ponto de vista, o Abaporu é uma imagem única, primeira, original, de um monstro nacional. 36 Orianna Baddely e Valery Fraser, mesmo tendo utilizado a figura do ciópode para analisar o Abaporu, o explicaram em função do movimento antropofágico 37 Tarsila e outros escritos. Brandini, Taddei.Editora da Unicamp, Campinas, 2008 p 722. 38 Publicado na Revista Anual do Salão de Maio, no texto "Pintura Pau-Brasil e Antropofagia"idem.p722 39 Ver nota 30. 14
  • 15. Figura 840 Figura 941 Manuscrito do início do século XIII, biblioteca de Sigmaringen Figura 10 Figura 1142 Beatus Apocalypse,12th cent. Schedel, Liber Cronicarum, 1493 Paris, B.N.,Nouv. acqu. lat. I366 No contexto brasileiro, e tentando retomar a ideia de “descendência imaginativa”, haveria uma espécie de omissão de todo monstro que não fosse nacional. A descendência de monstros ocorreria da seguinte maneira: o ciópode, com suas 40 Imagem retirada do site: http://medieval.tumblr.com/post/31344946933/man-with-one-leg-ending-in- giant-foot-sciapodeMan with one leg ending in giant foot (sciapode), lying on his back, protecting himself from the sun with his large foot. 12th C. MS. Bodl. 614 41 Imagem retirada do livro de Gombrich. E. H. A História da Arte, Editora Guanabara Koogan S. A. Rio de Janeiro, 1993, p. 124. 42 Imagens 8 e 9 retiradas do estudo de Wittkover , p. 40. 15
  • 16. características e, principalmente, com o seu enorme pé, seria o pai do Abaporu ― porque surgiu antes na história da arte. O filho herdou o pé agigantado. No entanto, o Abaporu seria o filho rejeitado, pois desconhece suas origens ― já que não é possível dizer qual a lenda exata em que Tarsila do Amaral se baseou para criá-lo. Nesse sentido, ele mata o pai/ciópode, mas sem a intenção de cometer tal ato ― caso a artista brasileira não soubesse realmente da existência do lendário monópode. Em outros termos: o monstro brasileiro teria deglutido involuntariamente o monstro europeu e se tornado, ao menos na cultura brasileira, muito mais conhecido do que seu precursor grego e medieval. Tanto que nos estudos ou levantamentos iconográficos e iconológicos nacionais sobre o Abaporu43 , o ciópode não é levado em conta. Morto o Sciapode, resta ao historiador procurar outras genealogias para o único pé gigante e, para isso, a interpretação da pintura nos termos formais volta a ser a pauta: “À diferença de qualquer outro artista de sua geração, Tarsila lançou mão de poder expressivo de desenho topológico, tão essencialista na forma quanto o desenho infantil. Em seus poucos nus, suprimiu detalhes anatômicos como traços fisionômicos, cabelos ou unhas. Essas figuras agigantadas, obedientes à gravidade, têm pés grandes, pernas grossas e cabeças diminutas. Em Abaporu, o corpo se alça numa curva contínua como se feito de massa maleável. O alongamento dos membros e do pescoço é enfatizado pela visão em contre-plongée, isto é, de baixo para cima, o que torna o enorme pé pousado no chão e reduz o tamanho da cabeça, na outra extremidade”.44 É importante reparar que, no trecho acima, a noção do Abaporu como uma obra inovadora, única, está embutida na interpretação. A frase “à diferença de qualquer artista de sua geração" implica numa ideia de originalidade de Tarsila do Amaral, corroborada pelo método de pintura que oferece uma visão em contre-plongée e provoca essa deformação inovadora dos membros localizados na parte inferior da tela. Agora não se deve mais falar somente do único pé deformado, mas também — embora o trecho não deixe isto explícito — de uma mão grande próxima ao pé. Ou seja, o único pé não seria mais tratado como o principal índice de monstruosidade já que adquire o mesmo valor que a mão. Nessa explicação da obra é notável a alusão ao 43 No catalogue raisonné de Tarsila do Amaral não consta nenhuma referência ao ciópode, nem ao estudo de O. Baddelley e V. Frasier. 44 Milliet, M. A. Tarsila: Os Melhores Anos. São Paulo: M1O Editora, 2011, p. 162. 16
  • 17. desenho infantil45 — que é também uma fórmula da pintura enquanto uma ação espontânea — relacionada à produção da artista especialmente em sua fase antropofágica. Do ponto de vista formal e temático a observação em contre-plóngee distanciaria o Abaporu da semelhança com o ciópode. Mas é também na infância — partindo do pressuposto que a obra de Tarsila do Amaral é um monstro pintado com características de um desenho infantil — onde se encontra o eixo de ligação entre as explicações da pintora sobre a gênese do Abaporu e o mito utilizado pelo movimento antropofágico da volta a um estado “originário” primitivo. Essa interpretação formal vem a se somar à interpretação mítica e psicanalítica46 do homem primitivo brasileiro, do homem pré-cabralino de Oswald de Andrade. Uma tentativa de justificar a originalidade brasileira, a “brasilidade”, numa espécie de retorno psicanalítico à infância nacional, não maculada ainda pela catequese europeia: “No século XX, o estudo científico dos primórdios tomou outro ramo. Para a psicanálise, por exemplo, o verdadeiro primordial é o “primordial humano”, a primeira infância. A criança vive num tempo mítico, paradisíaco. A psicanálise elaborou técnicas capazes de nos revelar os primórdios de nossa história pessoal e, sobretudo, de identificar o evento preciso que pôs fim à beatitude da infância e decidiu a orientação futura de 45 Com referência ao desenho infantil: “Desde A negra, a pintura de Tarsila cada vez mais se alimenta do seu imaginário. Seu desenho, feito in loco, já nasce transfigurado pela apreensão seletiva do visível, pela economia do traço que dispensa o detalhe e retém o essencial. Vem daí o repertório da série Pau Brasil, com suas formas naturais reduzidas à essência geométrica e as intervenções da fase antropofágica. Aplicando à própria Tarsila o que ela escreveu de Brancusi, pode-se dizer que "sua evolução, feita no sentido contrário, é antes uma involução”, isto é, caminha no sentido do retorno a infância, no medido em que libera o imaginário infantil até então recalcado, idem. p. 96. 46 Ao criar o movimento antropofágico, Oswald de Andrade se valeu da psicanálise: “O próprio Oswald, em entrevista a Nino Frank, no Les Nouvelles Littéraires, de 14 de julho de 1928, definiria seu movimento; e toda a teoria do atavismo, expressa acima por Cendrars, emerge como o seu princípio mesmo: “O que é a antropofagia? O fato de devorar o inimigo vencido passa em nós. Uma comunhão. Nós absorvemos o Tabu para transformá-lo em Toten: o inimigo sagrado que é preciso transformar em amigo” “Qu' est-ce que l'anthropophagie? Le fait de dévorer l´ ennemi vaincu pour que ses vertus passent en nous. Une communion. Nous absorbons le Tabou pour le transformer en Toten: l'ennemi sacré qu'il faut transformer en ami”. E mesmo ainda: “ O Brasil tem dois grandes inimigos: os missionários e os governantes gerais portugueses. Aqueles que não reprovamos são os aventureiros, os presidiários, os negros. Nossa raça não tem nada a ver com o Ocidente ou o Oriente. Eles estão distante de nós. Nós somos submetidos às influências equatoriais”.[“Le Brésil a eu deux grands ennemis: les missionaires et les gouverneurs généraux portugais. Ceux que nous ne désavouons pas, ce sont les aventuriers, les forçats, les nègres. Notre race n'a rien à voir avec l'Occident ni avec l'Orient. Ils sont loin de nous. Nous sommes soumis aux influences équatoriales”. Pressente-se as conversas de Cendrars e Oswald sobre o assunto. No final da entrevista, antes de se referir à influência de Blaise, declara Oswald: “Freud coloca o instinto sexual no centro da atividade humana: eu o oponho o instinto antropofágico onde a sexualidade é uma das formas mais características.” “Freud place l'instinct sexual au centre de l'activité humaine: je lui oppose l'instinct anthropophagique dont la séxualité est l'une des formes plus caractéristiques”]. Amaral, Aracy, A. Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. São Paulo, Ed. 34, Fapesp, 1997, pp. 68, 69. 17
  • 18. nossa existência.“Traduzindo isso em termos de pensamento arcaico, pode- se dizer que houve um “ Paraíso”( para a psicanálise, o estado pré-natal ou o período que se estende até a ablactação) e uma “ ruptura”, uma “catástrofe” ( o traumatismo infantil) e que, seja qual for a atitude do adulto face a esses eventos primordiais, eles não são menos constitutivos de seu ser.” É interessante constatar que, de todas as ciências da vida, somente a psicanálise chega à ideia de que o “começo” de todo ser humano é beatífico e constitui uma espécie de Paraíso, enquanto as demais ciências da vida insistem sobretudo na precariedade e imperfeição do começo. O processo, o vir-a-ser, a evolução que corrige, pouco a pouco, a penosa pobreza do “ princípio”. Duas ideias de Freud são importantes para o nosso tema: (1) a beatitude da “ origem” e do “começo” do ser humano e (2) a ideia segundo a qual, pela recordação ou mediante um “ voltar atrás”, é possível reviver certos incidentes traumáticos da primeira infância.”47 Tendo em vista esse retorno à infância como a idade paradisíaca que representaria a cultura “virgem” do povo brasileiro — ainda no contexto da arte e cultura nacionais — não é possível deixar de notar o mesmo fenômeno ocorrendo nas ideias de Monteiro Lobato antes de Oswald de Andrade e do Abaporu: “Percebe-se que o pensamento estético de Lobato é sempre voltado às origens. No texto sobre caricatura, conclamava o artista a ir até o povo em busca de inspiração; nos artigos sobre pintura, conclamava o pintor a deixar a cidade para captar a natureza e o homem dos campos brasileiros; (...) Agora, entende o artista como aquele que deve plasmar a mitologia popular. Para Lobato a volta às origens brasileiras, à natureza, ao povo, à mitologia “brasílica”, continuava sendo a base de seu ideário para a regeneração do país. Após falar do caso grego, ele pergunta se no Brasil existiria matéria- prima semelhante, digna de ser transformada em arte, e responde de imediato que, embora não tão rica quanto a grega, o país possuía um mitologia abundante o bastante para “darmos ao mundo uma contribuição vultuosa de criações originais”. Para conseguir essas “criações originais” basta que o artista mergulhe “no seio do povo e lá bateie na ganga rude o ouro de lei”. Em seguida passa a falar do Saci, segundo ele a mais original das criações populares brasileiras. Dá-lhe o histórico, desde a criação do mito pelos indígenas até a suposta transformação que sofreria a partir da presença do imigrante italiano no país.”48 47 Eliade, Mircea: Mito e realidade. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972, p.73. 48 Chiarelli, Tadeu. Um Jeca nos Vernissages: Monteiro Lobato e o Desejo de uma Arte Nacional no Brasil/ Tadeu Chiarelli- São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. p. 168. 18
  • 19. No ano de 1917 houve o famoso “Inquérito sobre o Saci”49 , em que Monteiro Lobato procurou resgatar a origem dessa lenda nacional. Para justificar sua concepção de uma cultura original elegeu o Saci como representante do imaginário do povo brasileiro. Pode-se identificar no personagem revalorizado por Monteiro Lobato um índice de monstruosidade: possui uma única perna e um único pé. Características essas comuns ao Abaporu pintado por Tarsila do Amaral em 1928. Em um estudo que pretende analisar algumas figuras monstruosas na história da arte e toma o Abaporu como um possível “descendente imaginativo” dos ciópodes — procurando decifrar qual a relação “genealógica” formal e temática entre esses monstros — o Saci, recuperado por Lobato, entra como um integrante fundamental nesse grupo de seres. Há pouco foi visto que, pela explicação de Tarsila do Amaral, o Abaporu é o monstro brasileiro original, sem antecedentes. Todavia,o saci aparece também como um ser monstruoso brasileiro sustentado por lendas populares. Cronologicamente, o personagem saci antecede o Abaporu. E é digno de nota que, em 1925, Tarsila do Amaral desenhou — no catálogo de sua primeira exposição individual em Paris — um saci50 . Isso significa que, antes de pintar o Abaporu, ela tinha pleno conhecimento da figura de um monópode, ou seja, de um ser possuidor de uma única perna e um único pé (figura 12). 49 “Acreditando na importância desse mito para a exata compreensão da população brasileira, Lobato propõe agora para o leitor que se estude o “duendezinho”: [...] Façamos nós outros a arte sadia, e façamos sem o perceber. O Estadinho abre suas colunas para esta investigação e pede a seus leitores um depoimento honesto: 1- Sobre a concepção pessoal do Saci; como a recebeu na sua infância; 2- Qual a forma atual da crendice na zona em que reside; 3- Que histórias e casos interessantes, “passados ou ouvidos” sabe a respeito do Saci. As comunicações deverão vir endereçadas a “Saci-Pererê”. Idem. p. 171, 172. 50 Especificamente sobre esse saci: “Na contracapa, a figura do Saci impressa em preto e vermelho funciona como um fecho inesperado e brincalhão.” Milliet, M. A. Tarsila: Os Melhores Anos. São Paulo: M1O Editora, 2011. p. 131. 19
  • 20. Figura 12 Nesse caso existiria uma relação concreta e direta de “descendência imaginativa”: ela desenhou em 1925 um monópode, o saci, e em 1928 ela pintou outra figura, o Abaporu, que embora tenha outras características, não deixa de ser essencialmente um monópode. Enquanto personagens de uma cultura originalmente brasileira — tanto do ponto de vista do modernismo antropofágico de Oswald de Andrade, quanto do nacionalismo de Monteiro Lobato — os dois monstros são o emblema da “brasilidade”, cada um a seu modo51 . Etimologicamente — fundamental para o entendimento de todo monstro — , a palavra “saci” vem do tupi-guarani Sacy-perereg (çaa cy, olho mau; pérérég, saltitante), de acordo com Monteiro Lobato52 . Se o nome do monstro pintado por 51 Seria o caso de estabelecer as diferenças entre a Antropofagia modernista de Oswald de Andrade e o Nacionalismo de Monteiro Lobato, que toquei apenas no ponto em comum da volta às origens. No nacionalismo de Lobato, os elementos tirados da cultura popular já pressupõem certa mestiçagem negro, índio, imigrante europeu, enquanto a Antropofagia oswaldiana, de certo modo, faz alusão a uma possível cultura autóctone, pré-cabralina, virgem, original, mas que, na prática, tanto na literatura quanto nas artes visuais, já está impregnada da mestiçagem, do deglutido e regurgitado. O homem pré-cabralino utópico original parece ser apenas evocado. Um exemplo do “ruído” civilizatório, portanto, pós-cabralino, são o sol/laranja e a folha de bananeira, que são de origem asiática, elementos esses introduzidos e mesclados posteriormente à flora brasileira, e encontrados nas pinturas da fase antropofágica de Tarsila do Amaral. 52 Lobato, no inquérito, descreve exatamente desse modo a origem da palavra saci, fazendo uma nota após a afirmação: “ Em guarani não há o çaa ou çaá. Pode ser caá, herva. Cy (cî) é mãe: Mãe da herva. Pererê, saltitante. A etimologia original seria Yacy-yateré (fragmento de luar). Mais adiante serve-se de um argumento de autoridade para explicar a origem tupi do nome: “ De nossas criações populares a mais original é o Saci-Pererê. Vem do autóctone que lhe deu o nome atual, corruptela de Çaa cy perereg. Não ficou provado, antes, parece, que é criação exclusiva do negro. A filiação do nome corre por conta de Oliveira Lopes, autoridade em tupi, guarani e línguas adjacentes.” Lobato, Monteiro, O Sacy Perêrê: 20
  • 21. Tarsila do Amaral, Abaporu, originou-se da mesma língua e o seu significado remetia diretamente ao conceito grego de Antropófago, o saci não estabelece, em um primeiro momento, nenhum tipo de relação com o imaginário europeu. No caso do saci, cuja lenda possui inúmeras variações, é possível estudá-lo — dentro do projeto de Monteiro Lobato — por meio da estória de 1921 intitulada “O Saci”, escrita alguns anos após o “Inquérito sobre o Saci”. O intuito de interpretar essa obra é buscar pontos de contato entre o saci e outras criaturas inserindo-o na “genealogia” dos monstros. E, assim, ir além da formulação romântica de Monteiro Lobato que via, no saci, uma criação subjetiva e original.53 Em “O Saci,” Lobato insere a “criaturinha” de uma perna só no imaginário da literatura infantil. Na estória, o menino Pedrinho — um dos personagens principais — tenta capturar o saci, pois duvida da existência do “demoniozinho”. Após realizar o feito e prendê-lo numa garrafa, decide soltá-lo; os dois começam a conversar e é na explicação sobre a sua origem que o saci revela: “Para começar, temos de ir ao “sacizeiro” onde nasci, onde nasceram meus irmãos e onde todos os sacis se escondem durante o dia, enquanto o sol está de fora. O sol é o nosso maior inimigo54 . Seus raios espantam-nos para as tocas escuras. Somos os eternos namorados da lua. É por isso que os poetas nos chamam de filhos das trevas. Sabe o que são trevas? ― Sei. O escuro, a escuridão. ― Pois é isso. Somos filhos das trevas, como os beija-flores, os sabiás e as abelhas são filhos do sol"55 A frase “o sol é o nosso maior inimigo” — na fala do saci sobre as suas origens — é utilizada para, logo em seguida, ser confrontada com a escuridão, com as trevas, e Resultado dum inquérito - Rio de Janeiro: Gráfica JB S.A. 1998.pp. 20, 22. 53 Cabe lembrar que Lobato propôs um concurso, também através do jornal, em que os participantes deveriam desenhar o Saci. É importante salientar que, dos artistas paulistas, apenas Anita Malfatti participou: “No texto sobre a Exposição, escrito para a Revista, logo no primeiro parágrafo Lobato ataca frontalmente os artistas paulistas por não terem visto ou participado da Mostra: [...] Fixar um tipo puramente subjetivo (o Saci), de formas instáveis, cheio de variantes, existente apenas na imaginação do sertanejo, é tarefa que requer do artista um bocado de mais talento do que o preciso para broxar um melão [...] ou copiar fundos de Tabatinguera, tema dileto dos nossos paisagistas que inebriam-se ali com uns toques de Veneza muito sedutores. Requer inventiva, requer composição, e composição das que não possuem cômodos pontos de apoio, isto é, obras anteriores do mesmo gênero já consagradas, nas quais o pintor monta sem percepção do público”. Chiarelli, Tadeu. Um Jeca nos Vernissages: Monteiro Lobato e o Desejo de uma Arte Nacional no Brasil/ Tadeu Chiarelli- São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. p. 186.” 54 Itálico meu. 55 Lobato, Monteiro. O saci. Editora Brasiliense, 32 edição, 1979, São Paulo. Brasil. p. 26. 21
  • 22. dar uma dimensão de conto de terror à estória. Essa ambientação do monstro saci desemboca na explicação lobatiana sobre o medo, também na conversa entre Pedrinho e a criatura: “(...) O que me interessa agora é a vida dos tais “entes das trevas”, como dizia tia Nastácia ― os misteriosos, os que uns dizem que existem e outros juram que não existem. ― Compreendo ― disse o saci. Você se refere aos chamados “duendes”, “monstros”, “capetas”, “gnomos”, etc ... ― Isso mesmo, amigo saci. Ando desconfiado que tudo não passa de sonho. Eu não via nada na garrafa (...) Desconfio que estou sonhando... Desconfio que isto é um pesadelo56 ... Nos pesadelos é que aparecem monstros horríveis. Por quê? Por que é que há coisas horríveis? ― Por causa do medo, Pedrinho. Sabe o que é medo? O menino gabava-se de não ter medo de nada, exceto da vespa e de outros bichinhos venenosos. Mas não ter medo é uma coisa e saber que o medo existe é outra. Pedrinho sabia que o medo existe porque diversas vezes o seu coração pulara de medo57 . E respondeu: ― Sei sim. O medo vem da incerteza. ― Isso mesmo ― disse o saci. A mãe do medo é a incerteza e o pai do medo é o escuro. Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo. E enquanto houver medo,— haverá monstros como os que você vai ver. ― Mas se agente vê esses monstros, então eles existem. ― Perfeitamente. Existem para quem os vê e não existem para quem não os vê. Por isso digo que os monstros existem e não existem. ― Não entendo ― declarou Pedrinho. Se existem, existem. Se não existem, não existem. Uma coisa não pode ao mesmo tempo existir e não existir. ― Bobinho! ― declarou o saci. Uma coisa existe quando a gente acredita nela; e como uns acreditam em monstros e outros não acreditam, os monstros existem e não existem.”58 Vê-se que o local onde os sacis habitam — os sonhos e os pesadelos — é o mesmo universo dos monstros. O monstro depende da crença. Lobato evoca o medo que, na formulação de sua estória, dá realidade às criaturas desconhecidas. Nesse sentido, o saci é uma criação de Pedrinho e dos demais personagens do Sítio do Pica- Pau Amarelo. No entanto por mais que a criação do monstro dependa da crença e isto seja algo subjetivo, o saci tem características conhecidas por qualquer leitor brasileiro; essas são algumas que Lobato demarca para caracterizar o personagem: “é um diabinho de 56 Itálico meu. 57 Itálico meu. 58 Idem, p. 43. 22
  • 23. uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda a sorte (…) Traz sempre na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha”.59 O saci é uma figura com inúmeras variações em suas aventuras, contadas de diversos modos, interpretadas por cada pessoa de uma maneira. No entanto, o saci sempre é um monópode, uma criatura da noite, e é reconhecível principalmente pelos atributos mencionados no parágrafo anterior. Em uma análise formal, temática e etimológica entre as figuras do Abaporu, do ciópode e do saci, é pertinente traçar algumas comparações. A “descendência imaginativa”, voluntária ou involuntária, do ciópode e do Abaporu — como já foi visto — é a do pé agigantado, pois os dois são monópodes com essa deformação. O saci aparece fora dessa aproximação formal específica, pois não tem o pé grande. O que une os três monstros é que eles pertencem à categoria de monópode. Uma leitura atenta da estória de Lobato possibilita identificar uma relação temática entre o sciapode e o saci. Vale retomar o significado do primeiro. Traduzido para a língua portuguesa como “ciópode”60 , o sciapode tem origem na raiz da palavra grega skia, que significa sombra e se aproxima, no contexto da mitologia clássica, de outros termos.61 Além de inserir o ciópode no mundo do “desconhecido”, a palavra, aliada à palavra grega poûs, o pé, tem função de fazer sombra; “é o pé que faz sombra”— utilizado como um guarda-chuva, uma “sombrinha”, protegendo-o do sol que queima.62 Pode-se interpretar que o sol é inimigo do ciópode, como, de modo 59 Idem, p. 17 60 No dicionário Latino-Português de Francisco Torrinha, Porto, Gráficos Reunidos Ltda, 1991, Sciapode = Sciopode, e Sciapode/ Sciopode: Ciópodes, povo fabuloso de pés monstruosos pp.775,776. Sombra, em latim é umbra, não existindo a palavra scia separada de Sciapode, e pode, do latim pede, pé. 61 Estendendo a questão etimológica: “A Psique é chamada às vezes de fumaça, kapnos, ou sombra, skia, ou sonho, oneiros.” [la psuchè est appelée parfois fumée, kapnos, ou ombre, skia, ou songe, oneiros] Vernant, Jean- Pierre.Mythe et pensée chez les grecs, études de psychologie historique. librairie François Maspero S.A. Paris, 1966, p. 256. A sombra, skia, é comparada à uma aparição sobrenatural, phasma; quando se vê a realidade como uma idade de sonhos. Notável é uma obra intitulada Sciapode (Figura 25 do anexo, p.52) , de Odilon Redon, que apresenta um rosto no lugar do pé, por meio de um desenho obscuro, sombreado . Assemelha-se também à um peixe, tradicionalmente simbolizado pelo pé na iconografia astrológica. Há também outro ciópode (figura 26 p. 53) em uma estampa feita por Redon, em que o pé é novamente um rosto. 62 De acordo com Wittkower, “os ciópodes são um único pé grande, com o qual eles se movem com grande velocidade e que eles também utilizam como um guarda-chuva” [the sciapodes, a people with a single large foot on which they move with great speed and which they also use as a sort of umbrella against the burning sun] Wittkower, Rudolf “Marvels of the East,. A Study in the History of Monsters”.p. 160 E em uma nota, o autor diz: Para referências anteriores sobre ciópodes por Skylax, Hecateu e Heródoto, cf Wilhelm Reese, Die griechischen Nachrichten fiber Indien, Leipzig 1914 [For earlier references to the sciapodes by Skylax, Hekataios and Herodotus cf. Reese, op. cit., p. 49]. “Plínio, chama 23
  • 24. análogo, “o sol é o nosso maior inimigo”, na fala do saci. Em suas origens, os dois monstros têm esse dado em comum.63 Seria o saci realmente um “descendente imaginativo” dos ciópodes? Seria o caso de pensar que a lenda europeia foi importada, mesclou-se com as estórias dos índios e dos negros no Brasil, e o saci “deglutiu” o ciópode? Estar-se-ia frente às mesmas questões que estruturam a relação ciópode/Abaporu, só que agora, além do ponto de vista formal, também temático? Assim como Tarsila do Amaral, Monteiro Lobato saberia ou não da existência dos ciópodes? Novamente, do ponto de vista cronológico, o mito grego antecede o monstro “brasileiro”. Numa resposta afirmativa à pergunta, poderia se levar em conta um fato corroborando uma descendência direta e até mesmo “consciente” entre o saci e o sciapode: ao pensar em Lobato como inventor de palavras64 e o primeiro a compilar as estórias sobre o Saci, seria possível atribuir ao escritor a “ideia” de fazer corresponder o nome grego skia, via latim sciapode, ao fonético tupi-guarani çaa cy, e português saci. Monteiro Lobato, utilizando-se de uma “análise combinatória” de palavras, teria resolvido o jogo anagramático óbvio do prefixo latim/português Scia-pode/ Saci65 . Por mais que a relação anagramática seja evidente — atentando-se ainda à questão do nome, — é de se notar que o “Inquérito sobre o saci” foi publicado originalmente com o título “Inquérito sobre o sacy-perêre”. Ou seja, essa relação deixa de existir com essa grafia do nome. Também, embora seja comum o reconhecimento de Lobato como o “pai” do saci — justamente devido ao inquérito —, a “criaturinha” já havia sido registrada na literatura por um outro escritor brasileiro: Ezequiel Freire.66 a raça também de Monocoli e este nome permance alternativo para o ciópode”.[Pliny VII, ii, 23 calls this race also Monocoli and this name remained the alternative for Sciapodes.]. Idem, p. 49. 63 O sol é também um elemento presente no Abaporu. 64 Quanto a isso, sobre a criação de palavras de Monteiro Lobato: “A derivação prefixal é usada frequentemente (“biótimo”, “desacontece”, “superpó”, “ re-olhava”) assim como as palavras compostas: “abres-de-lagarto”, “dorme-e-acorda”, que muitas vezes são nomes atribuídos a pessoas e a coisas e refletem características destes: “Major-agarra-e-não-larga-mais”, “Flor-das-Alturas”, “hiena-dos-mares”, etc. A flexão através do gênero e número dos nomes como em “ Floriana Peixota”, “ peixa”, ou “tia Nastácia do rio” e “ peses de tartaruga”. Uma leitura atenta encontrará ainda incontáveis ocorrências semânticas, consubstanciadas em jogos de palavras, recursos sonoros, aliterações, redundâncias, além de infrações à norma culta e até o requinte do uso de arcaísmos ( bofé), palavras estrangeiras ( nursery), termos técnicos ou regionalismos”. Sandroni, Laura: De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1987, pp.56,57. 65 Com relação ao anagrama com a palavra sciapode não encontrei nenhuma referência em Lobato. Mas mantive essa questão pois a “coincidência” insere-se no contexto da pesquisa etimológica e temática. 66 Seria o caso de pesquisar uma bibliografia mais extensa sobre o assunto, para ver se não apareceu em outros textos, além desse de 1874. Informação obtida no site http://www.crearte.com.br/saci_24.htm: “Conta a lenda que o sacy nascera/ dos amores de um sapo e de uma freira,/ teve um irmão mais velho - o lobisomen/ casou ao depois com a pisadeira./ Híbrido ser , biparte-se em dois entes/ de humanas formas e 24
  • 25. Por esses motivos, a relação dos nomes scia/saci-pode seria de outra natureza, não de uma inventividade de Lobato, já que o nome e a criatura já eram conhecidas. Traçar semelhanças e diferenças entre monstros é tarefa complexa: não é possível identificar com precisão o que realmente significa “descendência imaginativa”. Sendo a categoria de tempo o eixo principal na relação de descendência, encontra-se a dificuldade de reconhecer imediatamente uma originalidade “brasílica” tanto no saci, quanto no Abaporu, pois o ciópode é um personagem da mitologia clássica e medieval. Levando-se em conta a questão cronológica, fica também difícil acreditar na relação inversa: nenhum sub-personagem da mitologia ou lendas europeias como o monópode em questão, teria devorado ou deglutido qualquer monstro “brasileiro” posterior a ele. Porém, quando se pensa numa relação atemporal, ou seja, de imagens que aparecem simultaneamente em vários lugares distintos, ou onde não se afirma categoricamente o conhecimento do rastro cronológico delas, a pesquisa tentando demonstrar uma relação efetiva fica comprometida. Caberia ao historiador apenas apontar “ aproximações”, formais e temáticas. A partir da “redescoberta” do ancestral qualquer defensor da cultura e arte brasileiras negaria uma “descendência” entre os monstros, salientando apenas os aspectos diferentes e singulares das figuras. Corroborando a questão da “originalidade e imaginação” brasílicas, utilizaria os seguintes argumentos: o saci é um menino negro travesso, oriundo de uma mescla entre lendas africanas e tupi-guaranis, usa um gorro vermelho, arma confusões nas fazendas, geralmente montado em um cavalo; o Abaporu é o homem brasileiro primitivo e a única interpretação de seu pé enorme é sua relação intrínseca com o solo, com a terra “verde”67 . Se Oswald de Andrade utilizou o Abaporu, criando, em torno do nome do monstro, o movimento antropofágico, de modo análogo feição estranha;/ toutou-se outrora no basido (sabem?)/ dos olhos lindos de uma linda entranha./ Foi desgraçado, muito; a mão furada/ e a dolorosa amputação de um pé,/ deram-lhe jus às lagrimas do próximo/ como a alculnha lhe dão de saterê/ Unipede e zarolho, o vagabundo mofa das leis e zomba da moral;" Freire, José Ezequiel de Lima. Flores do Campo. 2.a edição, São Paulo, 1950. p. 85. 67 Isto foi o que Oswald e Raul Bopp afirmaram, pelo o que informa Tarsila: “essa figura sentada. tão pesada, com seus pés imensos apoiados no solo, evoca a terra brasileira, rude e selvagem”. Tarsila e outros escritos. Brandini, Taddei. Editora da Unicamp, Campinas, 2008 p. 685. Mesmo Tarsila ficou impressionada com a tela: “o Abaporu impressionou profundamente. Sugeria a criatura fatalizada, presa à terra com seus enormes pés. Um símbolo. Um movimento se formaria em torno dela. Ali se concentrava o Brasil, o “inferno verde”.” idem, p. 723. É interessante notar que, nas duas versões, há a menção de dois pés do Abaporu, embora a criatura seja um monópode. Esses relatos influenciaram todas as futuras interpretações sobre o pé do Abaporu. 25
  • 26. havia feito, tempos antes, Monteiro Lobato ao tornar o saci o representante máximo do imaginário do povo brasileiro.68 Não se pode negar as interpretações desses dois monstros como emblemas da “brasilidade”, mas é importante ressaltar que o ciópode aparece como uma sombra, um duplo tanto para o saci quanto para o Abaporu, pois é o primeiro da geração dos monópodes no ocidente. Aparece como um fantasma, que “aterroriza” principalmente Lobato, que conhecia bem “as mitologias daqueles velhos povos”,69 e a pintora Tarsila do Amaral formada parcialmente na França e conhecedora da história da arte e da 68 Ao acreditar no povo como o grande criador de mitos, Lobato reproduziu um modelo romântico do século XVIII: “Comecemos lembrando que houve um tempo em que se exagerou muito o aspecto coletivo da criação, concebendo-se o povo, no conjunto, como criador de arte. Esta ideia de obras praticamente anônimas, surgidas da coletividade, veio sobretudo da Alemanha, onde WOLFF afirmou, no século XVIII, que os poemas atribuídos a HOMERO haviam sido, na verdade, criação do gênio coletivo da Grécia, através de múltiplos cantos em que os aedos recolhiam a tradição, e que foram depois reunidos numa unidade precária. Tempos depois, a coletânea de contos populares dos irmãos GRIMM veio como prova aparente das hipóteses deste tipo, ― sem que se atentasse para o abismo que vai entre a ingênua história folclórica e o refinamento, a altura de concepção da Ilíada e da Odisséia. Nessa mesma era, encharcada de Volksgeist, esboçaram-se teorias sobre a formação popular das epopeias e romances medievais o que era facilitado pela míngua de informação a respeito dos autores. Hoje, está superada esta noção de cunho acentuadamente romântico, sabemos que a obra exige necessariamente a presença do artista criador. Cândido, Antônio: Literatura de sociedade. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1965, p.29. 69 Lobato, no final da conversa entre o saci e Pedrinho sobre o medo, traça uma oposição entre a mitologia grega e as lendas africanas e indígenas: “as mitologias daqueles velhos povos” estão cheias de terríveis criações do medo. Aqui nestas Américas temos também muitas criações do medo, não só dos índios chamados aborígenes, como dos negros que vieram da África.” Lobato, Monteiro. O saci. Editora Brasiliense, 32 edição, 1979, São Paulo. Brasil. p.44. 26
  • 27. mitologia70 . Mesmo assim, não se deve cometer o equívoco de sugerir que os dois conheceram “evidentemente” a lenda/imagem europeia do ciópode. A categoria temporal “descendência imaginativa” é complexa — e só é possível utilizá-la por meio de metáforas — pois uma “genealogia” das figuras monstruosas, nesse caso do ciópode/saci/Abaporu, não obedece necessariamente a uma linearidade que o conceito de descendência implica. A partir do momento em que o Abaporu surge de imagens do subconsciente e o saci é uma lenda brasileira — acreditando na “brasilidade” dos monstros — a afirmação “o ciópode surgiu primeiro” torna-se relativa: deve-se considerar uma teoria arquetípica dos monstros. Existe o fato, a evidência de um “cruzamento”, tanto de imagens quanto de temas semelhantes na análise realizada. Retirando a hipótese de descendência imaginativa cronológica, voluntária ou involuntária, existiria, pela coincidência que se verificou nessa aproximação, uma descendência imaginativa atemporal. Com relação às diversas formas monstruosas que aparecem tanto no Oriente quanto no Ocidente, é interessante refletir sobre a seguinte citação: 70 Tarsila tinha um bom conhecimento de mitologia. Como exemplo disso, segue um trecho de seu artigo sobre o carnaval. Nele, Tarsila faz menção a um “retorno” dos deuses pagãos na era moderna por meio das festividades populares. Ou seja, a artista reconhece a “sobrevivência” da mitologia pagã no cristianismo. No final do artigo, ela ainda menciona “as figuras deformadas” das catedrais góticas em forma de “reminiscências”: “ Loucura coletiva, alegria desbragada, transbordamento de recalques entre gritos alucinantes, gargalhadas estrepitosas, pandeiros frenéticos, roncos de tambores, requebros suarentos, vaivéns de serpentinas, confetes chuviscando cores milionárias ― o carnaval impera hoje com as mesmas bacantes, com os mesmos lupercos, no mesmo ritmo delirante. O carnaval de hoje se liga por um fio tradicional às antigas lupercais, às bacanais, às saturnais. As lupercais eram celebradas na antiga Roma em louvor a Lupercus, nome latino do deus Pan, protetor dos pastores, inimigo tremendo dos lobos. As lupercais foram, segundo as lendas romanas, implantadas da Grécia no Latium, três séculos antes da nossa era, por Evandro, o civilizador que ensinou aos latinos o alfabeto, a música, a agricultura, os hábitos brandos, e o culto a Pan. Essas festas orgíacas se iniciavam em Roma pelo sacrifício de uma cabra e um cão, imolados pelos sacerdotes do culto, os lupercos, que saiam depois nus ou envoltos em tiras de pele de pode, em corridas loucas pela cidade. (...) A nudez dos lupercos evocava Pan e os Faunos, a corrida desenfreada simbolizava a desses deuses pelas montanhas. As bacanais de Roma, em louvor a Baco, correspondem às dionisíacas da Grécia, já que Dionísio é o nome grego de Baco.(...) Essas festas passaram do paganismo para o cristianismo com pequenas mudanças de forma. O Carnaval, expressão etimologicamente controvertida, segundo uns do latim caro, carnis, carne, e vale, adeus, e segundo outros de carus navallis, é um disfarce das antigas festas pagãs. O homem substituiu os deuses antigos por um novo Deus, mudou, na aparência, o ritual do seu culto, mas continua o homem das eras primitivas. (...) O carnaval da idade média consistia na “ festa dos loucos”, que também se chamava “ festa dos inocentes”, celebrada pelo natal. As esculturas das catedrais góticas com seus bichos fantásticos, figuras deformadas ao lado sereno da Virgem Maria, são reminiscências que ligam o paganismo ao cristianismo.” Brandini, Laura Taddei, Org. Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2008. pp. 200, 201 27
  • 28. “(...) vimos a importância e a permanência das tradições, sobretudo da tradição oriental. As formas se transmitem de uma Cultura à outra, de uma geração à outra sem que seus criadores estejam realmente conscientes da herança de que são tributários. Deve-se daí deduzir que não há originalidade nesse campo? Uma obra como a de J.Bosch, que, utilizando material tradicional, faz literalmente explodir os limites do imaginário, não nos permite aceitar essa hipótese. Mas é preciso reconhecer que, se a variedade dos seres monstruosos é inegável, os procedimentos de composição não são ilimitados. Além disso, observa-se nos autores certa complacência em repetir formas já conhecidas: essas formas, na maioria das vezes, tem um conteúdo mítico que pode estar aparente ou oculto. Ora, uma das características do mito é ser repetitivo; quer repetindo- se de forma idêntica, quer gerando, depois de modificado, um mito da mesma família, mas de ramo diferente. Por isso, a opinião de G. Lascault71 se justifica perfeitamente: Da mesma forma que, segundo Lévi-Strauss, os mitos se pensam entre si, pode-se dizer que as formas se modelam a si mesmas. No que se refere as formas monstruosas, como aos mitos, há um inconsciente coletivo em que os indivíduos vão haurir inspiração.”72 Seria possível, por esse raciocínio, aceitar a tese que considera a expressão “descendente imaginativo”, pois o ciópode, o saci e o Abaporu seriam uma variação de uma mesma forma, de um mesmo mito. Porém, o aspecto temporal das lendas e das imagens fica comprometido na medida em que o autor fala em “inconsciente coletivo” e conclui que: “Há épocas e culturas em que a difusão do monstro é tal que fica muito difícil sair das representações vigentes para inventar outras. Isso explica o fato de certas gravuras de monstros passarem de uma obra a outra durante cerca de um século ou de, contrariando qualquer lógica, serem encontradas em contextos com os quais quase nada tem a ver: são um ornamento quase intercambiável, podendo ser reutilizadas indiferentemente em contexto diferente ou análogo ao precedente. Todavia, o exame das formas monstruosas não leva à decepção: essas formas tem um conteúdo, e este varia; é certo que os monstros de origem oriental passaram a ser vistos sob outras luzes quando vieram para o Ocidente. De uma cultura à outra, de uma época à outra e, mesmo em dada época, de um indivíduo para outro, a interpretação de uma forma está sujeita a variações: um cinocéfalo pode ser considerado um monstro selvagem e sanguinário ou um São Cristovão socorredor. Do mesmo modo, nas formas ocorre uma combinatória relativamente ampla, seus conteúdos podem 71 O autor, Claude Kappler, se refere ao livro de Gilbert Lascault, Le Monstre dans l'art Occidental Un Probléme esthétique publicado em 1973. 72 Kappler, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 254. 28
  • 29. prestar-se a todos os caprichos do pensamento. Finalmente, se, como C. G. Jung, admitirmos, por exemplo, que os arquétipos provenientes do inconsciente coletivo variam pouquíssimo de um extremo ao outro da humanidade, compreenderemos que essa permanência das formas, longe de exprimir uma banalidade derrisória, revela, ao contrário, a força dos instintos mais fundamentais e decorre de uma necessidade vital: a de exprimir uma aparência eterna.”73 Considerando a teoria arquetípica dos monstros, pode-se verificar uma relação atemporal entre os monstros ciópode, saci e Abaporu. O arquétipo ou modelo dessas três criaturas, seria baseado nos elementos comuns: o sol, o único pé; a categoria de monstro faria coincidir essas formas básicas, mas cada figura se singularizaria por estar inserida e expressa em uma cultura diferente, em uma época diferente. Dentro desse pensamento, que permite identificar uma série de outras relações arquetípicas, é possível aumentar o repertório de mitos e lendas para descobrir o sentido e a “origem” do Abaporu e do saci. Como ponto de partida, a cultura grega mitológica continuaria sendo ainda o principal modelo a ser comparado. Para desvendar a gênese do Abaporu — lembrando da explicação de Tarsila do Amaral baseada nas imagens subconscientes — a estória da “casa assombrada, a voz do alto que gritava do forro “eu caio” e deixava cair um pé (que me parecia imenso), caía outro pé, e depois a mão e o corpo inteiro para o terror da criançada”,74 contada pela artista, apresenta uma relação importante com uma das variações do mito de Dioniso75 , já que esse deus tem sua simbologia originada na dança, no transe, iniciada pelo pé76 . 73 Idem. p. 256,257. 74 Brandini, LauraTaddei. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Editora da Unicamp, Campinas, 2008 p 722. 75 A inserção de um dos aspectos dionisíacos no contexto do “modernismo” brasileiro não é tão extravagante: “ Mais humour, maior ousadia formal, elaboração mais autêntica do folclore e dos dados etnográficos, irreverência mais consequente, produzindo uma crítica bem mais profunda. Sobretudo a descoberta de símbolos e alegorias densamente sugestivos, carregados de obscura irregularidade; a adesão franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o mestiço, o filho de imigrantes, o gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice. É toda a vocação dionisíaca de Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mário de Andrade; este haveria, aliás, de elaborar as diversas tendências do movimento numa síntese superior.” Cândido, Antônio. Literatura e Sociedade, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1965. p.146. E o universo do conhecimento de Tarsila sobre esse mesmo Deus é relevante no artigo da artista sobre a origem do Carnaval, já mencionado. 76 Na interpretação do mito de Dioniso por Marcel Detienne: “Resta então pesquisar o segundo detalhe do cerimonial insular: quando uma das mulheres cai com o seu fardo, e tudo balança tão brutalmente. Nada mais comum do que uma queda no mundo dos bípedes, a não ser talvez quando esta acontece nas proximidades de Dioniso. Com efeito, uma série de informações leva a supor que o pé, ou a perna, é uma parte essencial do corpo dionisíaco.(...) A mesma atitude para Penteu, no dia em que, diante do palácio de Cadmo, o deus com a máscara de estrangeiro preside a sua investidura, mostrando-lhe como um bacante deve levantar o pé direito ao mesmo tempo em que eleva o tirso com a mão direita. Assim começa a gestualidade de Dioniso. E, mais de uma vez, ele próprio é invocado pelo pé: purificador, na Antígona, quando sua vinda é reclamada com 29
  • 30. Este corpo que cai e se despedaça, lembra muito Dioniso em uma de suas estórias em que o deus faz cair dos telhados os corpos que nele dançam77 . O corpo despedaçado que cai, os pés e as mãos que caem: estaria aí uma relação arquetípica entre as estórias contadas pelas criadas negras e mais uma das simbologias gregas do pé. Sendo o deus do pé e do pulo, Dioniso entra em contato com a simbologia platônica dos seres hermafroditas, que também remetem a toda uma gênese dos seres monópodes: “Mas não pode haver dúvida: o transe dionisíaco começa pelo pé, com o salto, primeiro aspecto do pé no domínio de Dioniso. O segundo, não menos gestual, é um jogo familiar a todos os que participam dessas festas. Mais precisamente, parece, das Dionísias campestres. Trata-se de caminhar com um pé só, de saltar como saci78 . É o jogo do askôliasmós, segundo o sentido antigo de um verbo que ameaça os andróginos apresentados pelo filósofo do Banquete. Essas estorvantes criaturas de quatro braços e quatro pernas começam a ser disciplinadas pelos deuses, que as partem ao meio. Mas se, porventura, elas perseverassem na arrogância, seriam de novo cortadas ao meio79 , de modo que só poderiam caminhar com uma única perna, como urgência diante de tanta sordidez.‘°‘ Ou simplesmente porque Dioniso é o deus que salta, que pula (pédan) por entre as tochas sobre os rochedos de Delfos. O deus cabrito, o filhote de cabra em meio às bacantes da noite. Por meio de Dioniso saltitante, o pé (poûs) encontra o verbo pular (pédán) e sua forma “saltar longe de” (ekpédán) que é o termo técnico do transe dionisíaco; quando a pulsão de saltar invade o corpo, arranca-o a si mesmo e arrasta-o irresistivelmente”. Detienne, Marcel. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, pp. 82,83. 77 Trata-se da seguinte versão de uma das estórias de Dionisio: “Diante do costume insular de um telhado que se deve desfazer, como não lembrar que Dioniso em Tebas e em Orcômeno se apresenta como um deus que faz tão alegremente dançar os telhados? As filhas de Mínias, entrincheiradas na casa do pai, veem o telhado da casa paterna balançar; sob o olhar horrorizado de Penteu, as vigas mestras do palácio de Cadmo oscilam, põem-se a balançar. Quanto ao telhado de Licurgo, nos Edônios, tragédia de Ésquilo, é ele o primeiro a “fazer de bacante” enquanto o palácio real “vibra de entusiasmo”, no sentido próprio, antes de desabar com um barulho assustador. Tantas intervenções parecem justificar o fato de ser limitada a confiança nos talentos de arquiteto de Dioniso. Sob outro aspecto, esses indícios são excelentes para sugerir que uma vez por ano, e talvez aproveitando um aniversário, o deus conventual e melancólico destrói a cobertura de sua capela insular. Por algumas horas, ele torna a ser, com a cumplicidade do seu tirso saído de sua letargia, o deus que faz os fiéis tropeçarem, saltarem e rodarem, conduzindo-os em volta de seu santuário metamorfoseado em máscara terrível e centrípeta. O Dioniso das mulheres enlouquecidas, em delírio, e carregando nas mãos, não mais os materiais de uma ocupação efêmera, mas os membros palpitantes de uma mulher despedaçada sob os olhos do deus terrível, aquele que faz estourar um corpo, ao acaso. Ao acaso irresistível de um fragmento de céu aberto em um telhado”. Idem., pp.91,92. 78 Note-se que o tradutor utiliza a expressão “saltar com uma perna só” como sinônimo de “saci”. 79 É interessante notar que a noção de punição divina corresponde ao sentido etimológico da própria palavra monstro, que significa a demonstração do poder divino; deus pune deformando as criaturas que transgridem a sua norma: “Devemos louvar a Deus por termos sido criados diferentes dos monstros, mas estes últimos, se extrairmos a conclusão lógica do preceito bíblico, também estão na terra para louvar a Deus “em seu coração”. Assim, de todos os lados, repercute o eco da glória de Deus. Em oposição ao aspecto “gratuito” dessa primeira causa, “a ira de Deus” intervém para castigar os pecadores; assim, as crianças que nascem como um sapo, com fisionomia de sapo, 30
  • 31. sacis (askôliázein).’ Caminhar saltitando em vez de corretamente com as duas pernas.”80 Esse jogo grego denominado askôliasmós — no domínio de Dioniso do “pular” (pédan) e “saltar longe de” (ekpédán) —, remete diretamente ao saci. Voltando à explicação de Monteiro Lobato, segundo a qual o nome original do saci é “Sacy- perereg (çaa cy, olho mau; pérérég, saltitante)”81 , a palavra “perêre” encontra uma relação arquetípica com o jogo grego de saltar com uma das pernas. segundo o Pseudo-Tomás, nada mais são que a “demonstração” (“moustrance”) da vingança divina: Mas só ha justiça, senso ou razão Se digo que é demonstração [moustrance] De uma cruel e pia vingança Que Deus quer mostrar [mostrer] a nós”. Aqui encontramos reunidos a noção de monstruosidade e o verbo demonstrar/mostrar, paralelismo esse de grande interesse, como veremos logo. Entre as causas biológicas e humanas dos monstros, há uma que causou grande impressão e que deveria ser considerada como a explicação de grande parte dos monstros. Os híbridos, como já vimos, constituem uma das categorias mais importantes: por muito tempo acreditou-se que, “por mistura ou cruzamento de sementes”, podiam ser criados seres ao mesmo tempo parecidos com o homem e com o animal. Naturalmente a zoofilia era considerada uma abominação. Aristóteles não acreditava nos híbridos que, segundo ele, eram impossíveis. Contudo, a partir da Idade Média, indaga-se sobre a verossimilhança de tais monstros.(...) “A alma” da palavra monstrum é a raiz men que indica os movimentos mentais. Dela saíram três categorias de palavras:  a família μιμνσκω, mens, memini etc.;  a família monere, monitio sobre a qual se formou, por sufixação não explicada satisfatoriamente pelos linguistas, monistrum, que teria dado origem a monstrum;  a família monstrare, que, naturalmente, comporta monstrum. Monere referia-se a uma advertência divina. Os outros nomes latinos para monstro ou prodígio tinham todos mais ou menos o mesmo sentido; (…) Portanto, o sentido mais rico em força sacra é o de monstrum, palavra que, justamente, prevaleceu sobre as outras com o passar do tempo. A noção de sinal divino é realmente a própria substância da palavra. Em τέρας ― de etimologia obscura ―, o grego possuía a mesma célula semântica. Parece-nos muito útil lembrar aqui o comentário de R. B1och sobre a distinção entre presságio e o grupo monstro- prodígio. O presságio era considerado uma “advertência leve, fugaz, relativa à empresa imediata”, enquanto o monstro ou o prodígio são o “raio que abala as consciências”: Se a divindade vem interromper por algum tempo a marcha normal do universo, não o faz levianamente e sem sérios motivos. E esses motivos só poderiam ser a cólera provocada pela negligência do antigo pacto. Por isso “provoca no homem um sentimento de horror, um estremecimento que o domina diante da intervenção tangível das forças divinas”.(...) Kappler, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 322, 323, 334 e 335. 80 Idem. p. 84,85. É de se notar que na tradução portuguesa utiliza-se a palavra saci já como sinônimo de uma perna só, perneta. Quanto a punição dos deuses, percebe-se a semelhança também com a mitologia indiana: O Manava-dharma-shastra ou Leis de Manu constitui um clássico da teoria jurídica indiana. Esta obra, que talvez possa ser datada de um ou dois séculos antes da era cristã, condensa em forma de máximas diversificadas todo o teor do dharma , seja as regras especificamente religiosas ou instituições, costumes e preceitos éticos que dominam a existência do indivíduo, seja o indivíduo estabelecido no mundo ( e, por consequência, sujeito às direções das castas sociais e dos ashramas) ou o indivíduo isolado do mundo ( asceta). Tais regras se apresentam dentro do arcabouço de um grande afresco cosmogônico (...) ― Manu é aqui o homem primordial que recebe a revelação dos desígnios supremos de Brahman ao mesmo tempo é o promulgador de Smriti ou “ tradição guardada na memória” ( emitida 31
  • 32. As analogias entre Dioniso, a estória de Tarsila do Amaral e o Saci, não se limitariam ao corpo despedaçado e ao pulo: “ Mais uma caminhada semântica, mas para além do “saltar-jorrar”, a fim de atingir um mecanismo fisiológico, essencial ao dionisismo. Primeira operação: um corpo de mênade. O que se passa lá dentro? É preciso pegá-la viva no viveiro de Homero. No instante preciso em que Andrômaca tem a intuição da desgraça ― a morte de Heitor. Ela se levanta, “salta” pelo palácio; “ela parece uma mênade”, “seu coração palpita” (palloméné kradién). Seu coração de mênade bat la chamade*( fica agitado, perturbado N.do R.), a ciamada do nome dado em piemontês ao apelo angustiado de trombetas e de tambores pelos quais os sitiados informavam aos sitiantes que queriam render-se. Em grego, essa dança do coração, chamada “salto”, pédésis, pode nascer do medo, quando surge o Pavor, pronto para gritar, e o coração começa a saltar, a dançar ao estalar dos crótalos. O coração batendo com o pé no diafragma, dançando sobre as entranhas uma ronda louca. Palpitações que encontram um campo propício nas evoluções dos Coribantes, essas potências muito irrequietas que giram freneticamente em volta de um possuído igualmente palpitante. É com efeito no modelo coribântico que o “salto” se revela como principio constitutivo do que vive, e segundo a exata medida em que a dança dos Coribantes se vem juntar ao frenesi do corpo báquico. Há algo de palpitante na besta humana, e o educador das Leis, Platão, o pedagogo, estabelece essa teoria designando pelo nome de “coreia” a ginástica que engloba a dança e a música, o conjunto dos movimentos do corpo e dos movimentos da alma.”82 Em “O Saci”, Lobato expressa — de modo consciente ou inconsciente — essa relação entre o pé, o coração e o medo, na seguinte frase: "Pedrinho sabia que o medo existe porque diversas vezes o seu coração pulara de medo.” 83 . secundariamente dos Shruti, “Revelação direta”) Renou, Louis : Hinduísmo. Rio de Janeiro, Zahar. 1964, p. 87 E sobre a “criação do mundo” conta-se sobre as idades desse homem primordial: “Os períodos de um Manu, criações e destruições do mundo, são inúmeros; divertindo-se, por assim dizer, Brahma repete isso infinitamente. Na idade de Krita, Dharma tem quatro pés e é inteiro e assim também é a Verdade; nem tampouco advém qualquer benefício aos homens por andarem eretos. Nas três outras idades, devido a ganhos injustos, Dharma é sucessivamente privado de um pé, e pela existência de roubo, falsidade e fraude, o mérito ganho pelos homens é diminuído numa quarta parte em cada um. Os homens acham-se livres de doença, atingem todos os seus objetivos e vivem quatrocentos anos na idade de Krita, mas na idade de Treta e em cada qual das subsequentes sua vida é encurtada de uma quarta parte.” idem, p.94 O esfacelamento moral é também um contínuo despedaçamento físico. 81 Lobato, Monteiro, O Sacy Perêrê: Resultado dum inquérito - Rio de Janeiro: Gráfica JB S.A. 1998.pp. 20. 82 Detienne, Marcel. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, pp.100,101. 83 Lobato, Monteiro. O saci. Editora Brasiliense, 32 edição, 1979, São Paulo. Brasil. p. 26. citado acima, itálico meu. Saliente-se o fato de que Lobato também escreveu sobre Dioniso e, em uma estória, fez alusão à “Dona etimologia”. 32