SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 57
Baixar para ler offline
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
DEPARTAMENTO DE DIREITO INTERNACIONAL E COMPARADO
OBEDE FRANKLIN MOURA E SILVA JUNIOR
Nº USP: 7214849
IMPORTAÇÃO DE MODELOS DE CONTRATOS EMPRESARIAIS
COMPLEXOS: UMA ANÁLISE DE DIREITO COMPARADO
Orientador: Professor Doutor Wagner Menezes
São Paulo
2015
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
DEPARTAMENTO DE DIREITO INTERNACIONAL E COMPARADO
IMPORTAÇÃO DE MODELOS DE CONTRATOS EMPRESARIAIS
COMPLEXOS: UMA ANÁLISE DE DIREITO COMPARADO
Trabalho apresentado como exigência para a
conclusão do curso de graduação em Direito na
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Orientador: Professor Doutor Wagner Menezes.
Obede Franklin Moura e Silva Junior
Nº USP: 7214849
São Paulo
2015
Nome: FRANKLIN M. E S. JR., Obede.
Título: Importação de Modelos de Contratos Empresariais Complexos: Uma Análise de
Direito Comparado.
Trabalho apresentado como exigência para a
conclusão do curso de graduação em Direito na
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Orientador: Professor Doutor Wagner Menezes.
Aprovado em: ______/______/______
Banca Examinadora
Prof. ____________________________ Instituição:_________________________
Julgamento:______________________ Assinatura:_________________________
Prof. ____________________________ Instituição:_________________________
Julgamento:______________________ Assinatura:_________________________
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos meus pais e ao meu irmão,
meus referenciais de vida e conduta cristã.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pela Sua infinita graça, pela família que tenho e, principalmente, por ter me
concedido essa natureza irrequieta de cearense.
Agradeço à minha mãe, Hailane, pela ética, força e persistência próprias de uma mulher
extremamente forte e, sobretudo, cristã. Ao meu amigo, pai e pastor, nessa ordem de
referência, Obede, pela coerência, ternura e sabedoria, muito além do que se espera de
qualquer amigo, pai ou pastor. Ao meu irmão, Arnon, pelo cuidado, maturidade e prudência
de um irmão mais novo e, ao mesmo tempo, mais velho. Devo tudo o que sou e o que tenho a
essas três pessoas.
Agradeço à minha avó e segunda mãe, a Sra. Valdelice, que, com sua doçura infinita, sempre
me transmitiu os fundamentos da fé cristã, da ética protestante e a cultura do sertão. Ao meu
avô, o Sr. Renato, pela sua caridade com os necessitados.
Agradeço ao Prof. Wagner Menezes, pela parceria de futebol e pelas lições de direito
internacional e de vida, além de ter delicadamente aceitado me orientar na elaboração deste
trabalho.
Agradeço, por fim, ao Prof. Mario Engler Pinto Jr., por toda a gentileza em me ajudar no
desenvolvimento deste trabalho, baseado em um de seus brilhantes artigos.
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar, sobretudo sob uma perspectiva prática, os motivos
pelos quais tem sido adotado no Brasil o modelo de negociação e elaboração de contratos
empresariais complexos anglo-americano, em detrimento do modelo alemão, cuja realidade
jurídico-legislativa é mais próxima da brasileira. Apresentam-se, assim, as peculiaridades
próprias de cada um desses modelos, destacando-se aspectos jurídicos e sociais envolvidos na
determinação da forma de contratar, tanto nos Estados Unidos da América quanto na
Alemanha. Comparam-se cláusulas e distinguem-se os padrões de cada um dos modelos
contratuais. Posteriormente, analisa-se o modelo brasileiro e seus excessos diante da
legislação vigente. Conclui-se que, destarte a existência de uma legislação solidificada no
Brasil em matéria de direito dos contratos, o modelo contratual anglo-americano se encaixa
mais no perfil dos contratantes brasileiros, voltados à minimização de oportunismos, porém,
ainda assim, poder-se-ia adotar no Brasil uma forma mais intermediária entre os modelos
anglo-americano e alemão para uma maior eficiência de seus contratos.
Palavras-chave: direito contratual; direito contratual anglo-americano; direito contratual
alemão; contratos empresariais complexos; fusões e aquisições.
ABSTRACT
This thesis has the scope of analyzing, especially under a practical approach, the reasons by
means of which the Anglo-American complex business contracting model has been adopted
in Brazil, instead of its German counterpart, whose legislative and judiciary realities are closer
to the Brazilian ones. The peculiarities of each of these models are presented, pointing out
legal and social aspects involved in determining the contracting way in both the United States
and Germany. Standard clauses in complex business contracts are compared and distinguished
from the patterns of each of the contract models. Later, the Brazilian contracting style is
analyzed, stressing its excesses under the Brazilian law. Finally, it is concluded that, although
there is a codified legislation in Brazil regarding contract law, the Anglo-American
contracting model seems to fit more properly in the contracting parties style in Brazil, aimed
at the minimization of opportunism. It is also concluded that an intermediate solution in
between both Anglo-American and German contracting styles should be adopted in Brazil for
a greater contract efficiency.
Key-words: contract law; Anglo-American contract law; German contract law; complex
business contracts; mergers and acquisitions.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................8
2 ELABORAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS NOS
SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO.................................................................10
2.1 O Processo de Negociação dos Contratos Complexos ..........................................11
2.2 Os Contratos e suas Cláusulas...............................................................................13
2.3 Evitando o Oportunismo........................................................................................15
2.4 O Papel do Processo Civil .....................................................................................17
2.5 O Papel da Tradição e Interações Sociais..............................................................20
2.6 O Papel da Boa-Fé.................................................................................................22
3 INTERPRETAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS NOS
SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO.................................................................26
3.1 Problemas de Significado e de Linguagem ...........................................................28
3.2 Soluções Padronizadas...........................................................................................34
3.2.1 Soluções Padronizadas no Direito Contratual...........................................34
3.2.2 Outras Soluções Padronizadas...................................................................36
3.2.3 Soluções Padronizadas Podem Ser Adotadas nos Estados Unidos? .........38
4 O MODELO BRASILEIRO...........................................................................................39
4.1 Para Quem se Destina o Contrato Elaborado no Brasil?.......................................39
4.2 Exemplos de Cláusulas de Contratos Complexos no Brasil..................................42
4.3 Custos de Transação e Oportunismo .....................................................................46
4.4 O Papel da Boa-Fé no Direito Brasileiro...............................................................47
4.4.1 A Boa-Fé Durante as Tratativas................................................................47
4.4.2 A Boa-Fé na Execução do Contrato..........................................................49
4.4.3 A Boa-Fé Após o Término do Contrato....................................................50
5 CONCLUSÃO................................................................................................................52
6 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................54
8
1 INTRODUÇÃO
Desde o desenvolvimento econômico experimentado pelas nações europeias a
partir do século XV, especialmente com a necessidade de arrecadação de recursos para o
financiamento da aventura marítima em direção às Índias e suas especiarias, o direito tem sido
desafiado a regular novas formas de relacionamento entre partes contratantes. A
complexificação da economia, portanto, exige uma complexificação dos contratos.
Atualmente, contratos empresariais complexos – fusões, aquisições, joint
ventures, contratos financeiros, contratos de leasing etc. – são particularmente difíceis de
elaborar e de ler. O processo de negociação é longo, cansativo e, via de regra, requer do
advogado muitos dias e noites de trabalho. E, quando enfim, algum litígio envolvendo algum
desses tipos de contrato vai ao judiciário, juízes dificilmente têm tempo e conhecimento
técnico para interpretar os termos e condições ali estabelecidos.
Qual, pois, seria o destinatário buscado pelo advogado atual ao redigir um
contrato empresarial complexo? As partes? Os tribunais? A resposta é especialmente
importante para se definir a técnica de interpretação para tais contratos.
Fato notório é que temos nos especializado num juridiquês incompreensível, que
complica o simples e, em última instância, abre as portas para a loteria jurídica.
O sistema brasileiro, nesse contexto, é interessantemente paradoxal: ao mesmo
tempo em que contempla como princípio supremo da hermenêutica contratual a boa-fé
objetiva, o que é típico de países com regime de civil law, produz contratos adornados com
cláusulas extremamente esmiuçadas, na tentativa de dizer ao juiz qual era verdadeiramente a
vontade das partes no momento da contratação, o que é próprio de países com regime de
common law.
Ora, se se tem uma série de definições, regras e condições já delimitadas na
legislação dos países com direito codificado, como é o caso do Brasil, por que se escolhe
justamente gastar cláusulas e cláusulas definindo o já definido, regulando o óbvio e dirimindo
9
o incontestável? O excesso na escrita, verificadamente, cria a falsa ideia de que aquilo que
não está expressamente proibido no contrato está necessariamente permitido por ele.
Curiosamente, enquanto escrevemos um contrato de compra e venda de ações em
centenas de páginas, pouco obstando futuros litígios, o modelo contratual alemão o faz em
algumas dezenas, com uma taxa de litígios consideravelmente inferior.
Mas como o contrato alemão pode alcançar os objetivos das partes contratantes
com muito menos rebuscamento? Nossa resposta desafia uma precipitada conclusão no direito
dos contratos: que o processo de contratação nos Estados Unidos – e, consequentemente,
também no Brasil –, com sua ênfase em contratos rebuscados, customizados e de alta
complexidade, opera sensivelmente para ajudar as partes a ter o negócio que desejam.
Tal como Claire Ariane Hill e Christopher King1
, acreditamos que essa
customização dos contratos nos Estados Unidos tem uma explicação não tanto benevolente:
isso reflete (i) uma cara e dispendiosa tentativa de impedir o oportunismo através da
linguagem usada nos contratos, e (ii) um fracasso na criação e aceitação de soluções “boas o
suficiente” para dirimir pontos não controversos que as partes normalmente enfrentam.
Entendemos que o modelo contratual alemão se sai melhor nessas duas frentes.
Ele, ao mesmo tempo em que corta parte dos custos excessivos com a elaboração de contratos
“amarrados”, também cria e usa soluções padrões boas o suficiente para lidar com pontos não
controversos.
Para tentarmos compreender os questionamentos suscitados, bem como a razão
para essa evidente incoerência no direito brasileiro, dividiremos a nossa pesquisa da seguinte
forma: na primeira parte nós compararemos os modelos de contratos empresariais complexos
dos sistemas anglo-americano e alemão, desmembrando tal análise em duas etapas: (a)
elaboração e (b) interpretação. Na segunda parte nós trataremos da realidade brasileira,
destacando (a) características do nosso sistema normativo, (b) o modelo por nós adotado e (c)
os problemas por nós enfrentados devido a tal escolha.
1
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words?, Chicago-Kent Law Review, vol. 79, p. 890,
2004. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=596668. Acesso em 8 de setembro de 2014.
10
2 ELABORAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS
COMPLEXOS NOS SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO
O processo de elaboração de contratos empresariais complexos no sistema anglo-
americano difere-se diametralmente daquele no sistema alemão.
Para Avery Katz2
, isso se evidencia de uma forma bastante peculiar no
direcionamento acadêmico de juristas e estudantes de direito. Para ele, a doutrina nos Estados
Unidos têm se concentrado muito mais no eventual litígio judicial advindo dos contratos do
que na vontade das partes no momento de redigi-los.
Isso significa que os contratos empresariais complexos elaborados no sistema
anglo-americano são elaborados objetivando principalmente o que será decidido no caso de
haver um litígio contencioso. Dentro desse objetivo, portanto, cada uma das partes procura
redações mais claras e completas em determinados momentos, e mais obscuras e incertas em
outros, a depender do seu interesse.
Horas e horas são trabalhadas nos escritórios de advocacia não para delimitar a
real vontade das partes, mas para proteger seus clientes do adversário. E o resultado imediato
nisso tudo só é benéfico ao próprio advogado, materializado nos honorários exorbitantes.
Dessa forma, enquanto nos países de common law as partes procuram em seus
contratos desencorajar violações, compensar a vítima dessas eventuais violações e assegurar o
cumprimento do contrato através da customização máxima e complexa da linguagem, na
Alemanha o mesmo objetivo é buscado – e alcançado, muitas vezes com maior êxito – com
uma linguagem mais amena, flexível e aberta.
Dado à complexidade e à singularidade do objeto desse tipo contratual (seja um
investimento, a aquisição de ações de uma companhia etc.), além do fato de que a vontade das
2
Contractual Incompleteness: A Transactional Perspective. Case Western Reserve Law Review, setembro de
2005, p. 171: “[L]egal scholars should focus more on addressing the contractual decisions of private
lawmakers (that is, transactional lawyers and their clients) and less on the decisions of public lawmakers (that
is, courts and legislature)”. Paper disponível em http://law.cwru.edu/news/pdf/239_Contractual_
Incompleteness_A_Transactional_Perspective_-_Katz.pdf, p. 171 Último acesso em 30.10.2014.
11
partes dependerá de fatores que muitas vezes não são sabidos no momento da primeira
minuta, articular contingências e decidir como lidar com elas de forma ex ante – como
habitualmente é feito nos Estados Unidos – pode ser pior que deixar uma flexibilidade ex post
– como é feito na Alemanha.
O pragmatismo alemão leva a contratos muito mais enxutos, muitas vezes a
metade ou dois terços do tamanho do contrato equivalente elaborado no sistema anglo-
americano3
. É justamente esse o ponto de nosso interesse neste trabalho.
2.1 O Processo de Negociação dos Contratos Complexos
Claire A. Hill4
explica bem como esse processo funciona no sistema anglo-
americano.
Primeiramente, as partes fazem menos do que deveriam para “completar” os
contratos. Todos os pontos de potencial interesse para as partes são abordados na minuta, que,
por sua vez, foi provavelmente usada para outra transação com escopo provavelmente
diferente.
A partir da remessa da primeira minuta por uma parte à outra, uma série de novas
versões marcadas e mexidas aparecem. Esse é o processo de “customização” desses contratos.
À medida que o processo de due diligence termina, as partes conseguem identificar as
contingências materializadas e materializáveis, discutem preço, garantias, formas de solução
de conflitos e, por fim, se desesperam para assinar o contrato. A ideia é que cada transação
tenha seu “próprio” contrato, feito à sua imagem e semelhança.
O momento de assinatura é um dos mais peculiares possíveis, principalmente
porque, na maioria das vezes, as transações empresariais complexas têm dois momentos
diferentes: a assinatura, ou signing, e o fechamento, ou closing. Essa separação entre signing e
3
HILL, Claire A.; KING, Christopher. Op. Cit., p. 894.
4
Bargaining in the Shadow of the Lawsuit: A Social Norms Theory of Incomplete Contracts. University of
Minnesota, Legal Studies Research Paper Series. Research Paper No. 08-46, p. 2. Disponível em
http://ssrn.com/abstract=1288689. Último acesso em 7.10.2014.
12
closing ocorre, principalmente, devido a uma série de condições suspensivas impostas e
necessárias para o aperfeiçoamento do contrato, como no caso de uma avaliação de algum
órgão regulador da concorrência.
Partes e advogados se enclausuram em salas de reunião por dias e noites seguidos.
Tudo o que é decidido no processo de negociação ali no momento é praticamente reduzido a
termo na minuta contratual já completamente retalhada. A probabilidade de erro humano,
assim, cresce exponencialmente com o passar das horas sem sono. O que se tem por fim: um
documento enorme, muitas vezes com referências cruzadas erradas e, inevitavelmente, com
suas lacunas.
A negociação desse tipo de contrato na Alemanha, por sua vez, parte dos mesmos
eventos, mas se materializam de forma consideravelmente diferente.
Primeiramente, os contratos alemães5
não se destinam primordialmente a
combater o oportunismo como nos seus pares anglo-americanos. Por ser um sistema de civil
law, muitas cláusulas não precisam ser por demasiado extensas e explicadas, uma vez que o
próprio direito já o faz e, portanto, não há necessidade de se repetir o óbvio.
Além disso, como o mercado doméstico alemão é incomparavelmente menor que
o anglo-americano – usado worldwide –, os agentes envolvidos normalmente são os mesmos.
Não se procura, dessa maneira, tirar a máxima vantagem possível pois, se assim determinado
indivíduo faz, ele ficará “marcado” pela sua própria comunidade.
Fora isso, os escritórios têm a cultura de compartilhar suas minutas-padrão de tal
forma que podemos visualizar cláusulas uniformes em contratos elaborados mesmo por
diferentes escritórios.
5
Os contratos alemães que estamos descrevendo são somente aqueles domésticos. Tais contratos tendem a ser
celebrados no mercado intermediário na Alemanha. Contratos para transações muito grandes tipicamente
envolvem mais de uma jurisdição, sendo governados por algum direito estrangeiro e, portanto, minutados e
negociados por um dos cinco grandes escritórios do “magic circle” britânico: Allen&Overy, Clifford Chance,
Freshfields Bruckhaus Deringer, Linklaters e Slaughter and May.
13
Dois fatores, portanto, são extremamente importantes no condicionamento das
relações contratuais nas diferentes comunidades: (i) o número de players atuantes no mercado
e (ii) o grau de desconfiança social.
2.2 Os Contratos e suas Cláusulas
Para melhor apresentarmos nosso ponto, analisaremos alguns modelos de
cláusulas largamente utilizados nos contratos empresariais complexos anglo-americanos e
alemães. Para facilitar nossa exposição, nosso paradigma será os contratos de M&A6
.
Observemos esses dois modelos de cláusula de definição de foro:
Cláusula anglo-americana Cláusula alemã:
“The exclusive forum for the resolution of
any dispute under or arising out of this
agreement shall be the courts of general
jurisdiction of [•] and both parties submit to
the jurisdiction of such courts. The parties
waive all objections to such forum based on
forum non conveniens7
.”
“Ausschließlicher Gerichtsstand ist [•]8
.”
Outro exemplo de excessiva escrita pode ser comprovada nas cláusulas de outorga
abaixo, comum em instrumentos de securitização:
Cláusula anglo-americana Cláusula alemã:
“[•] does hereby grant, bargain, sell, assign,
transfer, convey, pledge and confirm, unto
“Der Sicherungsgeber übereignet der Bank
hiermit den gesamten jeweiligen Bestand
6
Os exemplos de cláusulas aqui abordados foram retirados do artigo de Claire A. Hill e Christopher King, How
Do German Contracts Do As Much With Fewer Words?, Op. Cit., p. 894-896.
7
Tradução livre e literal: "O foro exclusivo para a solução de qualquer litígio sob ou decorrente deste contrato
será aquele dos tribunais de competência genérica de [●], e ambas as partes se submeterão à jurisdição de tais
tribunais. As partes renunciam a todas as objeções a este foro baseadas em forum non conveniens".
8
Tradução livre e literal: "A jurisdição especial é [●]".
14
Cláusula anglo-americana Cláusula alemã:
Indenture Trustee, its successors and assigns,
for the security and benefit of the Indenture
Trustee, for itself, and for the Holders from
time to time a security interest in and lien on,
all estate, right, title and interest of __in, to
and under the following described property,
agreements, rights, interests and privileges,
whether now owned or hereafter acquired,
arising or existing (which collectively (...),
are herein called the “[•] Trustee Indenture
Estate”).”9
an(...) der sich in (...) befindet und in Zukunft
dorthin verbracht wird.”10
A língua alemã contribui ainda de certa forma para a redução do tamanho e na
objetividade de seus contratos. Comprovemos nessas frases bastante utilizadas em contratos
de M&A:
Cláusula anglo-americana Cláusula alemã:
“(...) including but not limited to(...)”11
“insbesondere”12
Nota-se, com os exemplos acima citados, a objetividade e concisão dos contratos
alemães em detrimento dos seus equivalentes anglo-americanos.
Por que, então, nós brasileiros escolhemos um e não o outro? É com o objetivo de
compreender melhor essa nuance que se resvala no direito brasileiro que procuraremos
estudar o tema.
9
Tradução livre e literal: "[●], por este instrumento, outorga, negocia, vende, cede, transfere, transmite,
penhora e confirma, pela Escritura de Depositário, a seus sucessores e cessionários, para garantia e benefício
do Depositário, para si e para os Titulares, de tempos em tempos, em garantia e penhor, todo imóvel, direito,
título e garantias de ___, para e relacionados aos imóveis, contratos, direitos, garantias e privilégios, seja de
sua propriedade agora ou no futuro (coletivamente denominados como [●]".
10
Tradução livre e literal: " O Segurador transfere/cede ao Banco o conjunto do respectivo estoque/acervo para
____ e que se encontra em _____ para lá ser levado futuramente."
11
Tradução livre e literal: "incluindo, mas não se limitando a (...)".
12
Tradução livre e literal: "especialmente".
15
2.3 Evitando o Oportunismo
Por que as partes contratantes nos Estados Unidos incorrem em todos esses
custos? Por que pretendem compreender todas as hipóteses e eventos possíveis e impossíveis
nos seus contratos? Na opinião de Hill e King13
, os players anglo-americanos têm entrado
numa “arms race”, na qual cada um procura prever as possíveis estratégias do outro em cada
rodada de negociações.
O resultado é esse modelo contratual anglo-americano típico, completamente
customizado e extenso. Os participantes no processo acreditam, ou acabam persuadindo a si
mesmos a acreditar, que “qualquer vírgula importa”.
A demonstração de que esse modelo procura muito mais evitar disputas (ou uma
vitória em caso de litígio) é que durante todo o período em que não há problemas encontrados
pelas partes na vigência do contrato – e, por isso, não há qualquer necessidade de
“enforcement” legal, as partes raramente (ou nunca) consultam o instrumento contratual.
É somente quando o relacionamento contratual começa a descambar para a
desconfiança que as partes procuram de fato levar em consideração as letras do contrato e sua
literalidade. E, ainda assim, as chances de que a letra contratual fará uma real diferença no
sentido de externalizar a vontade das partes no momento de celebração do contrato são
mínimas, uma vez que nos Estados Unidos o resultado dos litígios são bastante incertos e
imprevisíveis.
Certamente seria muito melhor se as partes contratantes na modelo anglo-
americano deixassem de adotar essa corrida armamentista na hora de negociar, elaborar e
efetivamente executar seus contratos. No entanto, sabemos esse tipo de acordo é bastante
difícil de ser feito e cumprido quando essa prática de “corrida armamentista” tem sido o
modus operandi vigente.
13
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit. p. 902.
16
O modelo alemão, mais uma vez, tem por elemento intrínseco a regra do “stop
sooner”14
no procedimento de customização. Um advogado na Alemanha pretendendo
negociar no estilo anglo-americano mostra-se extremamente agressivo para os padrões locais,
como dissemos anteriormente, bastante “doméstico” e baseado em relações de confiança entre
players conhecidos um dos outros.
Em contrapartida, se um advogado atuar nos Estados Unidos sem negociar cada
um dos termos contratuais minuciosa e exaustivamente, com certeza será visto como alguém
sem zelo e/ou competência institucional. Vale ressaltar que a forma de remuneração seja nos
Estados Unidos, na Inglaterra ou Alemanha é a mesma: horas incorridas multiplicadas pelas
taxas de honorários, o que, em tese, favoreceria o modelo de trabalho anglo-americano sob
uma perspectiva do advogado.
Dessa forma, aparentemente não há qualquer razão que explique o porquê de os
advogados alemães terem menor incentivo, em comparação com o modelo anglo-americano,
para - ou vontade de - gastar tempo negociando exaustivamente e revisando material.
Alguém pode argumentar no sentido de dizer que nos Estados Unidos e Inglaterra
esse modelo de negociação e elaboração de contratos demonstra forte zelo por parte do
advogado. Um sócio que verifica no seu advogado júnior um cuidado nos detalhes, uma
obsessão em cada palavra escrita, enfim, esse “zelo” no processo de elaboração do contrato,
fica impressionado. Da mesma forma ficam os clientes em relação ao trabalho dos advogados
contratados – se não ficarem impressionados, pelo menos não ficam aflitos.
Na Alemanha, a mesma conduta não será recompensada dessa forma. E por que
isso ocorre?
Conforme já falamos, a comunidade de players na Alemanha (diga-se: advogados,
executivos, negociadores, financial advisors etc.) tem sido relativamente homogênea. Esse
tipo de comunidade estimula o desenvolvimento e a aplicação efetiva da norma “stop sooner”
(“parar o quanto antes”), seja por uma questão de expectativas sociais inerentes às relações
desses players, seja pelo cálculo de custos envolvidos.
14
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 903.
17
2.4 O Papel do Processo Civil
Acreditamos que as diferenças do processo civil especificamente nos Estados
Unidos e na Alemanha desempenham relevante papel no momento de negociar, elaborar e
executar contratos.
Um dos primeiros grandes trabalhos sobre o tema foi elaborado por John H.
Langbein15
. O autor introduz seu estudo com a seguinte anedota do escritor belga Georges van
Hecke16
:
"He [van Hecke] told of a transaction in which an American company
and a European company were planning to affiliate by exchanging
shares. The lawyers for the American firm drafted two contracts to
embrace the transaction. The combined drafts ran about 10,000 words
in length. The European businessman had no prior experience with
American lawyers, and when presented with the elephantine American
drafts he was so shocked that he nearly renounced the deal.
Thereupon it was decided to start over, and the European
businessman arranged for his lawyer to prepare a counterdraft. 'The
result was a document of 1400 words. It was found by the American
party to include all the substance that was really needed, and it was
readily executed by both parties and adequately performed.'"17
Van Hecke aponta três principais características que clarificam o motivo pelo qual
os contratos nos Estados Unidos são muito mais detalhados que suas contrapartes europeias.
A primeira seria por conta do perfeccionismo inerente dos empresários de lá. Segundo ele, o
15
Comparative Civil Procedure and the Style of Complex Contracts, Yale Law School, Faculty Scholarship
Series, Paper 537, 1987, p. 381, disponível em http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/537/. Última
visita em 14.7.2015.
16
In A Civilian Looks at the Common-Law Lawyer, International Contracts: Choice of Law and Language,
Parker School of Foreign and Comparative Law, Universidade de Columbia, 1962.
17
Tradução livre: "Ele falou de uma transação na qual uma empresa estadunidense e uma empresa europeia
planejavam se coligar trocando suas ações entre si. Os advogados da empresa estadunidense elaboraram
minutas de dois contratos para abranger toda a operação. As minutas juntas somavam cerca de 10.000
palavras de extensão. O empresário europeu não tinha experiência prévia com advogados americanos e,
quando apresentado às colossais minutas elaboradas pela parte estadunidense, ele ficou tão chocado que quase
cancelou o negócio. Então, decidiu-se começar de novo, e o empresário europeu solicitou seu advogado para
que preparasse uma contraminuta. 'O resultado foi um documento de 1.400 palavras. A parte estadunidense
ficou satisfeita com tal documento, considerando que toda a substância essencial do negócio foi devidamente
abordada, e foi prontamente celebrado pelas partes e devidamente cumprido.'"
18
"empresário médio" nos Estados Unidos está disposto a pagar pela perfeição na forma de altos
honorários. E ele deseja esse perfeccionismo justamente para evitar que as eventualidades
provenientes do contrato segam deixadas ao julgamento do judiciário.
Nesse contexto vale reproduzir um pequeno extrato da obra clássica de James C.
Freund, Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for Negotiating Corporate
Acquisitions, na qual o autor ilustra cenas por ele vivenciadas nos processos de negociação e
elaboração de contratos de fusões e aquisições nos Estados Unidos18
:
"Scene 12
'Never leave well enough alone'
[Monday, January 11. PRUDENT and PREPPIE are in Prudent's
office.]
PRUDENT: Now, Pete, even though all the major issues have been
resolved, there are still a few edges we can pick up in drafting the
necessary language. Let me show you, for example, how I think you
ought to handle this registration provision..."19
Em segundo lugar, estaria o federalismo. Para van Hecke, quando um advogado
nos Estados Unidos está preparando uma minuta de um contrato, ele não sabe em qual
jurisdição um eventual litígio será julgado. Ele tem, portanto, que preparar um contrato que
possa atingir seus objetivos em qualquer jurisdição em solo estadunidense.
Em terceiro lugar, ele cita as diferenças entre países com direito codificado e não
codificado. Para o autor, os advogados nos Estados Unidos elaboram seus contratos para
combater a falta de juridicidade no próprio direito, manifesta num complexo de
jurisprudências e multiplicidade de primeiras instâncias.
Um dos belos argumentos de van Hecke é que os advogados atuantes em nações
baseadas em common law, estando fundamentados no método causídico, acabam por se tornar
mais sensíveis às nuances da prática, dos detalhes próprios do caso concreto. Enquanto isso,
18
Law Journal Press, 4ª edição, Nova Iorque: 1977, p. 528. O Capítulo 14 da referida obra retrata numa espécie
de dramaturgia cenas corriqueiras por ele vivenciadas em determinada transação envolvendo companhia no
ramo de softwares.
19
Tradução livre e literal: "Cena 12. Nunca deixe o 'bom o bastante' sozinho. [Segunda-feira, 11 de janeiro.
PRUDENTE e INICIANTE estão no escritório de Prudente.] Prudente: Agora, Pete, mesmo com todos os
maiores problemas resolvidos, ainda existem alguns pontos que podemos abordar elaborando uma minuta
com uma redação mais adequada. Deixe-me mostrar a você, por exemplo, como eu acho que você deve lidar
com essa cláusula de registro..."
19
os advogados atuantes em países sob civil law, sendo treinados com direito codificado,
tendem a enfatizar mais princípios doutrinários.
Ele conclui, dessa forma, que quanto um advogado nos Estados Unidos e um
europeu desejam dizer a mesma coisa, o advogado estadunidense necessariamente usará mais
palavras.
Langbein posiciona sua linha de argumento nas diferenças de direito processual e
suas respectivas instituições nos Estados Unidos e na Europa continental. Para ele, faz mais
sentido procurar a explicação das diferenças entre os modelos contratuais anglo-americanos e
europeus a partir dessa perspectiva, e não da tradicional "code law vs case law".
Para Langbein, o direito processual nos Estados Unidos é ineficiente20
, além de
ser caro, lento, imprevisível e ineficaz no que concerne ao desencorajamento de demandas
frívolas. Diante desse cenário, o empresário prefere diminuir as eventualidades e
imprevisibilidades de seus contratos através do preciosismo linguístico.
Nos Estados Unidos, por exemplo, cada parte contratante presume de antemão que
a outra parte pode causar consideráveis dificuldades através, especialmente, da apresentação
voluntária de interpretações erradas de cláusulas. A parte diz que quer alguma coisa, escreve
algo diferente mas reafirma que aquilo que pretende dizer com a cláusula escrita é o que as
partes haviam negociado. Lá, diferentemente da Alemanha e demais países de common law,
essa parte que agiu de má-fé poderá sim prevalecer no judiciário.
E mesmo que essa parte não prevaleça no judiciário, poderá ser causadora de
grandes custos à parte inocente na fase pré-litigiosa (custos com alocação de pessoal para
elaboração de notificações e produção de provas, por exemplo). Essa estratégia de apresentar
cláusulas a partir de erros conscientes de interpretação (strategic misinterpretation) pode,
dessa forma, valer a pena nos Estados Unidos.
O processo civil alemão, de outro lado, impõe limites à aplicação dessa strategic
misinterpretation. Primeiro que há uma supremacia do princípio da boa-fé, pelo qual as partes
20
HECKE, Georges Van., op. cit., p. 386.
20
não ficam adstritas à literalidade do contrato, além da regra do “perdeu, pagou”. Tudo isso,
via de regra, acaba por desestimular a parte faltosa a procurar resolver seus litígios no
judiciário.
Essa atuação do princípio da boa-fé no contexto do processo civil alemão permite,
ainda, que o próprio juiz não fique preso ao contrato, mas, antes, deva procurar saber qual foi
a intenção das partes no momento da celebração do contrato. Outros instrumentos pré-
contratuais ou acessórios, além de documentos diversos, portanto, devem ser utilizados para
delimitar a vontade das partes e identificar eventual má-fé de alguma delas.
O interessante é que o sistema alemão confere muito poder aos seus juízes. E,
dessa forma, deve ter formas eficientes de assegurar que esse poder seja usado de forma justa.
É por isso que os juízes na Alemanha não são eleitos nem apontados por meio de um processo
político. Eles são selecionados a partir de méritos intelectuais e acadêmicos, e, em seguida,
são submetidos a um processo de treinamento especializado para esse fim. Além disso, o
crescimento na carreira é baseado no julgamento exclusivo dos seus pares, e não por
elementos externos21
.
Importante destacar que no direito processual na Europa continental,
essencialmente de civil Law, o juiz é aquele que analisa evidencias, examina provas e ouve
testemunhas, sem que haja a possibilidade de júri nos julgamentos de casos envolvendo
litígios contratuais como os aqui suscitados22
.
2.5 O Papel da Tradição e Interações Sociais
Como já falamos anteriormente, as partes contratantes na Alemanha não procuram
compelir o oportunismo tanto quanto naqueles contratos de modelo anglo-americano.
21
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words. op. cit., p. 905.
22
LANGBEIN, John H., The German Advantage in Civil Procedure, 52 U. Chi. L. Rev. 823 (1985), p. 826-828.
Disponível em http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/536/. Última visualização em 5.7.2015.
21
Falamos que isso ocorre por duas razões principais: (i) a regra do “parar o quanto
antes” (stop sooner) no processo de customização dos contratos e (ii) a estrutura do processo
civil alemão.
Outra razão possível, defendida por Hill e King23
, é o papel da tradição e das
interações sociais como determinações nos processos de negociação, elaboração e execução
dos contratos.
A comunidade de players na Alemanha é pequena, quando comparada com aquela
dos Estados Unidos. Na Alemanha, muitas indústrias estão concentradas em determinadas
regiões, sem grandes dispersões. Assim, muitas transações ocorrem entre partes já
acostumadas a transacionar.
Além disso, as associações comerciais na Alemanha têm maior relevância que
aquelas nos Estados Unidos.
Em se tratando especificamente de contratos de M&A, observamos que aquisições
feitas por players externos – e, consequentemente, assessorados por advogados de fora da
comunidade –, como por exemplo por fundos de private equity, não têm tido considerável
importância em termos quantitativos na Alemanha24
.
Para finalizar esse ponto, o mercado de ações na Alemanha, em termos de
controle societário ou participação relevante, não é tão disperso como o mercado nos Estados
Unidos. Na Alemanha, os bancos detêm consideráveis participações em várias companhias.
Segundo Eric Nowak25
, é bem comum encontrar um mesmo banco envolvido nos dois lados
de uma transação.
23
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 907.
24
Vide Constantin Christofidis e Olivier Debande, Financing Innovative Firms Through Venture Capital,
disponível em http://www.eib.org/attachments/pj/vencap.pdf. Último acesso em 5.7.2015.
25
Recent Developments in German Capital Markets and Corporate Governance, Journal of Applied Corporate
Finance, vol. 14, nº 3, 2001. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=316123.
Último acesso em 5.7.2015.
22
Todos esses fatores contribuem significativamente para um modelo de negociação
não tão voltado para compelir o oportunismo das partes como assim o é nos contratos de
modelo anglo-americano.
2.6 O Papel da Boa-Fé
O direito material alemão impõe obrigações de boa-fé consideravelmente mais
fortes que o direito nos Estados Unidos. Algumas dessas obrigações são dispositivas, outras
são cogentes. O Código Civil alemão ("BGB") assim dispõe: "Seção 242. O devedor tem o
dever de cumprir sua obrigação de acordo com os requisitos da boa-fé, levando em
consideração a prática habitual"26
.
Conforme observação de Reinhard Zimmermann e Simon Whittaker27
, essa Seção
242 do BGB tem sido usada largamente por partes e juízes para interferir nas relações
contratuais no sentido de evitar graves injustiças.
Hill e King sustentam que essa Seção 242 do BGB tem tido uma aplicação muito
mais vasta do que a literalidade de seu texto poderia expressar28
. Tal Seção 242 impõe o dever
às partes de agir em boa-fé durante a negociação de um contrato, e a garantia dada pelo
vendedor numa aquisição ("culpa in contrahendo").
Essa disposição, dessa forma, pode fazer com que o vendedor seja
responsabilizado por uma insuficiente divulgação de informações ao comprador, algo que, via
de regra, não ocorreria nos Estados Unidos.
A boa-fé, nesse sentido, assume papel consideravelmente relevante, seja na
negociação ou execução de determinado contrato. Num contexto onde esse instituto impera,
26
"An obligor has a duty to perform according to the requirements of good faith, taking customary practice into
consideration". Tradução livre. Versão em língua inglesa disponível em http://www.gesetze-im-
internet.de/englisch_bgb/englisch_bgb.html#p0725. Último acesso em 6.7.2015.
27
Good Faith in European Contract Law, Cambridge, England, 1996, p. 25. Disponível em
http://www.loc.gov/catdir/samples/cam032/99037679.pdf. Último acesso em 6.7.2015.
28
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 910.
23
supostamente, as partes contratantes são desestimuladas a agirem de forma incoerente,
"mudando de ideia" no decorrer do dos processos de elaboração e execução contratual. Diante
de uma ofensa à boa-fé observada em juízo, determinada provisão contratual poderá ser
completamente ignorada.
Ocorre que nos contratos complexos de modelo anglo-americano há uma
tendência maior entre as partes em confiar apenas no estabelecido na cláusula de
representações e garantias (representations and warranties). É a literalidade do contrato que
indica a dimensão da interpretação desse instrumento.
Na Alemanha, esse processo é diferente. A boa-fé deve agir de tal forma que a
relação de confiança deve estar presente em tudo aquilo estabelecido no contrato e, ainda
além, na relação das partes prévia à celebração do contrato e durante a execução deste.
O exercício interpretativo das normas estabelecidas nos contratos, em especial
aquela de representações e garantias, sob o princípio da boa-fé, deve, dessa forma, levar em
consideração as práticas costumeiras no mercado daquela localidade, além das práticas
intersubjetivas, conforme falamos acima.
Como bem ressaltou Jeffrey Lipshaw, na atividade interpretativa, em se tratado de
contratos de M&A, nós projetamos vários conceitos - confiança, representações, garantias -
numa realidade de relacionamento entre vendedor e comprador29
. Para o mencionado autor,
transformar as representações prestadas no âmbito de um contrato de M&A em meias-
verdades ou omissões, e ignorar suas diferenças, é ignorar o significado de confiança. Essa é
uma crítica direta ao modelo anglo-americano.
Também nessa perspectiva, Claire Hill e Erin O'Hara defendem que o papel do
direito não deve necessariamente ser de encorajamento ou desencorajamento de confiança
entre as partes, mas de otimização dessa relação30
.
29
Of Fine Lines, Blunt Instruments, and Half-Truths: Business Acquisition Agreements and the Right to Lie, p.
31-32. Disponível em http://www.theconglomerate.org/2006/02/contracting_to_.html. Última visita em
13.7.2015.
30
A Cognitive Theory of Trust, MInessota Legal Studies Research Paper No. 05-51, Dezembro de 2005,
disponível em http://ssrn.com/abstract=869423. Última visita em 13.7.2015.
24
Esses autores sustentam que os doutrinadores nos Estados Unidos pressupõem que
a confiança entre as partes é totalmente benéfica, ou totalmente maléfica, sem considerar que
a relação de confiança e desconfiança pode coexistir na mesma relação obrigacional.
Na tese deles, o direito deve se preocupar em criar condições favoráveis para o
encorajamento da confiança, nos momentos em que a confiança é mais benéfica para as
partes, e para a desconfiança, naquelas situações contrárias.
Um exemplo dessa relação confiança/desconfiança pode facilmente ser observado
nas atividades que envolvem inspeção/monitoramento de obrigações contraídas (o que
envolve uma desconfiança inerente), e, de outro lado, uma atividade de
liderança/administração (o que implica confiança).
De qualquer forma, seja em relação de confiança ou desconfiança, a boa-fé deve
servir, como expôs Stephen Bainbridge, como um "lubrificante para reduzir o atrito social"31
.
William A. Sahlman, no seu artigo How to Write a Great Business Plan32
, diz que
é muito comum que os players envolvidos numa negociação se tornem extremamente
criativos, elaborando vários tipos de modelos de recompensa e de opções (de compra e de
venda de stock), o que, muitas vezes, colaboram para um maior atrito entre as partes
negociantes. Ele33
, numa tentativa de mitigar essa fricção entre as partes, destaca as
características de casos bem sucedidos:
Eles são simples;
Eles são justos;
Eles enfatizam mais a confiança entre as partes do que
desenvolvem "amarras legais";
Eles não se implodem caso sua aplicação prática se dê de forma
minimamente diferente do previsto;
Eles não incentivam comportamentos destrutivos ou competitivos
entre as partes; e
31
Corporate Decision-Making and the Moral Rights of Employees: Participatory Management and Natural
Law, Setembro de 1998, p. 37. Disponível em http://ssrn.com/abstract=132528. Última visita em 13.7.2015.
32
Harvard Business Review, julho-agosto de 1997, p. 107, disponível em https://hbr.org/1997/07/how-to-write-
a-great-business-plan. Última visita em 13.7.2015.
33
Professor na Escola de Administração de Empresas de Harvard.
25
Eles são escritos numa pilha de papel não superior a meio
centímetro de altura34
.
Como mostrado, o processo de elaboração dos contrato leva em consideração
elementos objetivos, subjetivos e intersubjetivos. As diferenças entre os modelos contratuais
anglo-americano e alemão se apresentam em cada um desses elementos de forma bastante
clara.
A linguagem mais enxuta, a forma objetiva de lidar socialmente, um mercado de
players mais reduzido e que costumam negociar entre si, uma tradição jurídica baseada em
common law ou civil law, entre outras coisas, demonstram essas disparidades latentes.
34
"No greater than one-quarter inch thick", op. cit., p. 107.
26
3 INTERPRETAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS
COMPLEXOS NOS SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO
De acordo com Alan Schwartz e Robert Scott35
, há um efetivo consenso entre
tribunais e doutrinadores que o objetivo principal da interpretação contratual é fazer com que
o aplicador da lei encontre a "resposta correta" para o cumprimento do contrato.
A busca dessa "resposta correta" seria a solução para o problema contratual
enfrentado pelas partes, com frequência provenientes de cláusulas ambíguas, vagas, omissas
ou em lacunas contratuais.
A ideia principal é, dessa forma, determinar o que as partes de fato intentaram no
momento da negociação e celebração do referido contrato.
Segundo os mencionados autores, há duas justificativas para a busca dessa
resposta correta. A primeira parte de uma perspectiva baseada na autonomia das partes. Essa
leitura sustenta que o exercício de coerção pelo Estado contra uma pessoa deve ser justificado.
Uma justificativa plausível para tanto seria dizer que os tribunais interferem nessa
relação obrigacional no sentido de obrigar as partes a cumprirem o que elas efetivamente
acordaram.
Dessa forma, o aplicador do direito deve apenas encontrar o que as partes tinham
acordado (ou intentavam acordar) para que esse objetivo seja alcançado.
A segunda justificativa parte de uma perspectiva baseada na eficiência. As partes,
a partir dessa visão, contratam para maximizar as vantagens que o negócio objeto do contrato
pode criar.
35
Contract Theory and the Limits of Contract Law, University of Virginia School of Law, Law and Economics
Research Paper nº 03-1, Yale Law Journal, vol. 113, 2003, p. 31. Disponível em
http://papers.ssrn.com/abstract=397000. Última visita em 6.8.2015.
27
Esse alvo é inatingível se o aplicador do direito falhar ao compelir as partes a
cumprir algo que ambas não almejavam, ou seja, caso o tribunal submeta as partes a uma
solução diferente daquela dada pelas próprias partes. Assim, o tribunal deve estar certo de que
a solução pretendida pelas partes (aquela pretérita, presente no momento de negociação e
execução contratual) será efetivamente adotada.
Nesse sentido, Schwartz e Scott defendem que as regras de interpretação
contratual devem ser padrão e mandatórias, uma vez que conceder soberania para as partes
delimitarem não somente a escrita, mas também a interpretação contratual pode levar a um
imbróglio considerável, já que cada parte poderá ter uma "interpretação" diferenciada das
"regras de interpretação".
O foco é buscar segurança jurídica.
Essa é uma grande diferença entre os modelos contratuais anglo-americanos e
suas contrapartes alemães. Conforme abordamos anteriormente, na Alemanha há uma
diversidade de normas padrão codificadas e de abrangência nacional, além dos comentários ao
BGB, servindo para uma unificação na aplicação da norma.
Isso favorece para uma maior segurança jurídica no momento de interpretar os
contratos. As regras já foram definidas e todos os players já estão cientes delas. Dessa forma,
evita-se buscar a exaustão na escrita e facilita o trabalho do juiz, muitas vezes não
especializado na matéria envolvendo contratos complexos.
Nos Estados Unidos, devido a todos os pontos já mencionados, como a
diversidade de jurisdições, a falta de codificação e a variedade de players, além da tradição
social, os advogados procuram se ater nos contratos não somente sobre a obrigação ali
acordada, mas também sobre regras procedimentais sobre o próprio contrato.
Isso gera horas a mais de trabalho e, consequentemente, custos adicionais às
partes, além de elevar a probabilidade de eventuais gaps e dúvidas na hora de aplicar cada
cláusula. Afinal, como dissemos, o excesso de escrita pode muito bem criar a falsa ideia do
que aquilo que não está expressamente proibido, necessariamente está permitido.
28
3.1 Problemas de Significado e de Linguagem
Schwartz e Scott levantam dois questionamentos sobre o processo de
interpretação que muitas vezes se misturam36
: (i) o que a linguagem empregada no contrato
quer dizer? e (ii) em que "linguagem"37
o contrato foi escrito?
Para demonstrar que esses dois pontos são distintos e não devem ser confundidos,
os referidos autores propõe que suponhamos dois grupos de comunidades linguísticas.
O primeiro grupo, chamado aqui de M, consiste de um uma única comunidade
linguística. Essa comunidade M é composta de juízes, advogados, empresários, conselheiros,
diretores etc. Os membros de M se comunicam através da "língua majoritária", porque é a
linguagem que as pessoas normalmente usam quando pretendem se comunicar entre si.
O segundo grupo, chamado aqui de P, consiste de uma variedade de comunidades
linguísticas. Cada comunidade integrante de P é composta de indivíduos que atuam num
mesmo grupo de negócios. Dessa forma, o grupo P contém uma infinidade de comunidades,
uma vez que há uma infinidade de grupos de negócio. Os membros do grupo P podem
elaborar seus contratos na língua de seus respectivos pares, ou na "língua majoritária".
Assim, a simples existência de uma variedade de comunidades linguísticas
contribui para o surgimento de problemas na hora de identificar qual "grupo linguístico" foi
tomado por base na hora de elaboração do contrato.
Se as partes concordam sobre a linguagem com a qual o contrato foi escrito, o
dever dos tribunais será limitado a encontrar o que as partes quiseram dizer com aquela
específica linguagem.
36
Schwartz e Scoot, op. cit., p. 32.
37
A palavra empregada pelos autores, language, no texto original, permite a tradução tanto para "língua", como
"linguagem". Como a ideia desenvolvida pelos autores faz referência à comunidades linguísticas, ou seja,
grupos de pessoas com uma certa "linguagem" própria, adotamos aqui, em tradução livre, o vocábulo
"linguagem", para que se evite qualquer ambiguidade como "idioma".
29
De outra lado, se as partes não concordam sobre qual foi a real linguagem
utilizada por base na elaboração do contrato, o juiz deverá primeiramente descobrir se as
partes escreveram o referido instrumento na "língua majoritária" ou numa língua privada,
específica, própria da atividade negocial que atuam.
Uma questão que é levantada pelos autores mencionados é se os tribunais
deveriam criar incentivos para que as partes usem a língua majoritária na preparação de seus
contratos, interpretando tais contratos como se sempre tivessem sido escritos nesse grupo
linguístico, ou se as partes devem ter a liberdade de escrever com a linguagem que optarem.
Um exemplo abordado no referido trabalho diz respeito ao vocábulo "esposa". Na
linguagem técnica, a luz do direito, esposa é um status alcançado mediante o cumprimento de
requisitos legais. Uma mulher é esposa de um homem quando ambos decidem se casar e,
formalmente, preenchem todos os requisitos legais, culminando com uma certidão de
casamento.
No entanto, determinado indivíduo pode muito bem elaborar um testamento pelo
qual deixa tudo para sua "esposa", referindo-se a mulher com qual tem vivido publicamente
por décadas, mas não estando casado legalmente com ela. Para a comunidade que o conhece,
muito certamente o termo "esposa" utilizado no documento não gerará qualquer dúvida. Mas
para terceiros? E qual o eventual interesse desse terceiro?
De uma forma contrária defende Steven L. Harris38
. Para o referido autor, as
partes apenas deveriam descrever no contrato as respectivas regras de interpretação caso a
desejável interpretação fuja às definições usuais dos termos empregados, seja em
conformidade com o dicionário, seja em conformidade com o sentido atribuído pela atividade
negocial sobre a qual o contrato dispõe. Harris sustenta:
"Parties who wished to use language in a manner that would
counteract the meaning otherwise attributed to it by the interpretive
device (i.e., the dictionary or the relevant usage of trade) would need
first to appreciate the need to do so. That is, they would need to be
informed of the rule of interpretation (which is no small assumption)
38
Rules for Interpreting Incomplete Contracts: A Cautionary Note, Louisiana Law Review, vol. 62, nº 4, 2002,
p. 1281. Disponível em: http://digitalcommons.law.lsu.edu/lalrev/vol62/iss4/13. Última visita em 25.8.2015.
30
and to realize that the meaning they ascribe (in their hands) to crucial
terms differs from that of the interpretive device."39
Nesse contexto, mais uma vez as distinções entre um sistema de leis codificado e
outro baseado em casos jurisprudenciais se tornam evidentes. Para mitigar esse exercício
interpretativo pelo juiz, as partes nos Estados Unidos procuram delimitar ao máximo a língua
utilizada nos seus contratos.
É justamente por isso que os contratos complexos nos Estados Unidos seguem
uma ordem lógica e estrutural para delimitar tanto "contexto", quanto a "linguagem" utilizada
ali, deixando claro a quem for lê-lo (principalmente o juiz) o sentido mais próximo que as
partes pretendem conferir ao instrumento.
Dessa forma, os contratos sob o modelo anglo-americano destacam, inicialmente
um "Whereas" (traduzido para o português como "Considerandos"), pelo qual as partes
indicam o contexto no qual o contrato está sendo celebrado.
Muitos contratos complexos nesse modelo anglo-americano ainda contemplam
páginas e páginas de "Definições". Procura-se definir termos como "dia útil", "afiliada",
"coligada" etc.
Exemplos de "definições" frequentemente encontradas nos contratos de transações
complexas sob o modelo anglo-americano:
"'Affiliate' means, in relation to a Person, any Person that (i) directly
or indirectly Controls such Person, (ii) is Controlled, directly or
indirectly, by such Person, or (iii) is under, direct or indirect, common
Control with such Person."40
"'Applicable Law' means any constitution, statute, law, regulation,
rule, ruling, order, writ, injunction, judgment or decree of or by any
39
Tradução livre: "Partes que desejam usar a linguagem de uma forma que iria contrariar o significado de outra
forma que lhe foi atribuída pelo dispositivo interpretativo (i.e. o dicionário ou o uso comumente usado no
comércio) precisaria primeiro estudar a necessidade de fazê-lo. Ou seja, eles teriam de ser informados sobre
as regras de interpretação (que não são uma suposição pequena) e teriam que perceber que o significado que
eles atribuem (em suas mãos) para termos relevantes difere daquela do dispositivo interpretativo".
40
Tradução livre: "'Afiliada' significa, em relação a uma Pessoa, qualquer outra Pessoa que, direta ou
indiretamente, por meio de uma ou mais Pessoas, Controla, é Controlada por ou está sob Controle comum
com a Pessoa em questão.
31
Governmental Authority as in effect and applicable to such Person or
its business, operations, properties or assets."41
“'Business Day' means any day (excluding Saturdays and Sundays) on
which commercial banks generally are open for the transactions of
normal banking business.42
"'Buyer' shall have the meaning ascribed to it in the introduction
preceding the recitals."43
“'Dollar' means the currency in full force and effect in the United
States of America."44
“'Party' shall have the meaning ascribed to it in the introduction
preceding the recitals."45
“'Person' means any Governmental Authority or any individual, firm,
partnership, corporation, limited liability company, joint venture,
trust, unincorporated organization or other entity or organization,
whether or not a legal entity."46
Após o estabelecimento dessas definições, passa-se a utilizá-las no corpo do
contrato mediante o uso de termos iniciados com letra maiúscula. Sendo que, todos os termos
não iniciados dessa maneira devem ser interpretados de acordo com a linguagem comum, ou a
"linguagem majoritária", como falamos acima.
Observe-se que muitos dos termos mencionados nos exemplos dados são
definidos na lei ou estão pacificados na linguagem majoritária que um indivíduo não
familiarizado com esse tipo de contrato pode facilmente achar tais termos redundantes.
41
Tradução livre: "'Direito Aplicável' significa qualquer constituição, estatuto, lei, regulamento, regra, decisão,
ordem, mandado, liminar, sentença ou decreto de ou por qualquer Autoridade Governamental, em vigor e
aplicável a tal Pessoa ou seus negócios, operações, propriedades ou ativos".
42
Tradução livre: "'Dia Útil' significa qualquer dia (excluindo sábados e domingos) nos quais os bancos
comerciais normalmente operam para transações bancárias comuns".
43
Tradução livre: "'Comprador' deverá ter o significado a ele atribuído na introdução anterior aos
Considerandos".
44
Tradução livre: "'Dollar' significa a moeda vigente nos Estados Unidos da América".
45
Tradução livre: "'Parte' deverá ter o significado atribuído na introdução anterior aos Considerandos".
46
Tradução livre: "'Pessoa' significa qualquer pessoa natural, empresa, sociedade, associação, trust, fundo de
investimento, condomínio, organização não constituída e qualquer outra entidade, incluindo qualquer
Autoridade Governamental.
32
Além disso, muitos desses contratos apresentam as chamadas "Rules of
Construction", pelas quais as partes indicam regras interpretativas referentes ao próprio
instrumento.
Exemplos de "Rules of Construction" comumente encontradas em contratos de
compra e venda de quotas ou ações são:
1. "All article, section, exhibit and schedule references used in this
Agreement are to articles, sections, exhibits and schedules in this
Agreement unless otherwise specified. The schedules and exhibits
attached to this Agreement constitute a part of this Agreement and are
incorporated herein for all purposes".47
2. "The term “includes” or “including” shall mean “including
without limitation.” The words “hereof,” “hereto,” “hereby,”
“herein,” “hereunder” and words of similar import, when used in this
Agreement, shall refer to this Agreement as a whole and not to any
particular section or article in which such words appear. The singular
shall include the plural and vice versa".48
3. "Whenever this Agreement refers to a number of days, such
number shall refer to calendar days unless Business Days are
specified. Whenever any action must be taken hereunder on or by a
day that is not a Business Day, then such action may be validly taken
on or by the next Business Day."49
4. "Reference to a given agreement, instrument, document or
Applicable Law is a reference to that agreement, instrument,
document or Applicable Law as modified, amended, supplemented and
restated through the date as of which such reference is made and, as
to any Applicable Law, any successor Applicable Law".50
47
Tradução livre: "As referências a quaisquer documentos ou instrumentos incluem todos os respectivos anexos,
aditivos, substituições, consolidações e complementações, exceto se de outra forma expressamente previsto."
48
Tradução livre: "Os termos 'inclui' ou 'incluindo' significam 'incluindo, sem limitação'. Os termos 'neste
instrumento', 'por este instrumento', 'por meio deste' e semelhantes, quando usadas neste Contrato, devem
referir-se a este Contrato como um todo e não a qualquer seção ou cláusula nas quais a referida palavra
aparece. A palavra no singular deverá incluir o plural e vice versa".
49
Tradução livre: "Sempre que o presente Contrato referir-se a um número de dias, tal número deverá referir-se
a dias corridos, salvo se Dias Úteis. Sempre que qualquer ação deva ser tomada nos termos deste Contrato em
determinado dia que não seja Dia Útil, então esta ação poderá ser validamente tomada no dia imediatamente
seguinte ao Dia Útil."
50
Tradução livre: "Referência a um dado contrato, instrumento, documento ou Lei Aplicável é uma referência
àquele contrato, instrumento, documento ou Lei Aplicável, tais como modificados, alterados, complementados
ou atualizados até a data a partir da qual a referência é feita, tal como para Leis Aplicáveis sucessoras".
33
5. "The captions in this Agreement are for convenience only and
shall not be considered a part of or affect the construction or
interpretation of any provision of this Agreement".51
Outras regras que têm sido bastante utilizadas nos contratos anglo-americanos são
as chamadas material adverse change ("MAC") e material adverse effect ("MAE"). Essas
cláusulas permitem que um comprador cancele, sem custos, o negócio caso alguma alteração
ou efeito adversos atinjam o negócio de forma relevante.
Ronald Gilson e Alan Schwartz tratam primordialmente sobre o tema no trabalho
"Understanding MACs: Moral Hazard in Acquisitions"52
. Uma justificativa para o frequente
uso dessas cláusulas, para os mencionados autores, está na natureza da interpretação judicial.
Os advogados esperam que a interpretação de uma MAC ou MAE dada em determinado caso
pelo tribunal pode ser influenciada pela prática das partes em outra transação:
"A number of factors may have influenced this diffusion. Perhaps most
interesting, the spread may have been due to the nature of judicial
interpretation. Lawyers would expect that judicial construction of a
traditional MAC term in a particular transaction would be influenced
by changes in MAC terms in other transactions. In particular, how a
court resolves the ambiguity in the traditional MAC formulation may
be influenced by the practice of parties in other transactions to
resolve the ambiguity explicitly."53
Em outras palavras: dentro do cenário de incertezas gerado pelo sistema jurídico
norte-americano, o uso de tais mecanismos podem trazer um pouco mais de "bom senso",
algo já inerente às concepções de boa-fé adotadas por países de civil law, pois, como já
tratamos anteriormente, nesse sistema não há necessidade de se prever esses tipos de regras,
uma vez que o direito codificado já fez esse trabalho.
51
Tradução livre: "As legendas deste Contrato são apenas para conveniência e não devem ser consideradas parte
deste Contrato ou efeito de construção ou interpretação de qualquer cláusula deste Contrato.
52
Columbia Law School, Center for Law and Economic Studies, Paper nº 245; Stanford Law School, John M.
Olin Program in Law and Economics, Paper nº 278; Yale Law School, Center for Law, Economics and Public
Policy, Paper nº 292, p. 43. Disponível em http://ssrn.com/abstract=515105. Última visita em 25.8.2015.
53
Tradução livre: "Um número de fatores pode influenciar essa difusão. Talvez mais interessante, a propagação
pode ter sido devido à natureza da interpretação judicial. Advogados esperariam que a construção judicial de
uma tradicional cláusula MAC numa determinada transação poderia ser influenciada por mudanças numa
cláusula MAC em outra transação. Particularmente, como um tribunal resolve uma ambiguidade de uma
tradicional formulação de uma MAC poderá influenciar, pela prática das partes, outras transações para
solucionar ambiguidades explícitas".
34
Em adendo, ao contrário dos modelos anglo-americanos, os contratos alemães não
tem por destinatário final o juiz, mas as partes. É por isso que tais regras não têm razão de ser
dentro do modelo alemão.
3.2 Soluções Padronizadas
O direito contratual alemão contribui para que as partes lidem com questões "não
controversas", pontos não centrais dentro de uma determinada transação, por conter soluções
padronizadas para problemas comuns nas transações. Essas soluções apresentadas pelo direito
alemão favorecem diretamente para uma redução dos custos de transação.
Vejamos abaixo alguns exemplos dessas soluções padronizadas presentes no
direito contratual alemão.
3.2.1 Soluções Padronizadas no Direito Contratual
De acordo com Hill e King54
, há muito mais lei contratual codificada aplicável a
negócios complexos na Alemanha que nos Estados Unidos.
Além disso, uma vez que a Alemanha tem um sistema de civil law com apenas
uma jurisdição, a lei é geralmente bastante uniforme em todo o território nacional.
O direito contratual alemão dispõe, ainda, de muitos comentários ao BGB
detalhados (como o Palandt), que são considerados como fontes de direito.
Essas regras de direito contratual estão basicamente descritas no Direito Alemão
das Obrigações, parte do Código Civil alemão (BGB). O Direito das Obrigações tem um
54
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 912.
35
capítulo contendo regras pertinentes a todas obrigações, incluindo obrigações contratuais (§§
241 - 304 BGB).
As regras aplicáveis às obrigações contratuais abordam interpretação,
cumprimento e inadimplemento. Conforme já mencionamos anteriormente, em comparação
com o sistema legal estadunidense o direito alemão dispõe de muito mais regras aplicáveis a
eventuais "gaps" contratuais.
Nos Estados Unidos, a maior parte dessas regras aplicáveis ao preenchimento de
lacunas contratuais estão no Artigo 2º do UCC55
, voltada apenas a venda de bens e, portanto,
não compreendendo a maioria das transações complexas.
Importante destacar que no direito contratual alemão a definição de conceitos no
Direito das Obrigações inclui cumprimento substancial do contrato, alocação de risco em caso
de erro, há especificação de quando o prazo para notificações começa a correr, incluindo
notificações de inadimplemento (§ 187), quando esse período se encerra (§ 188), o número de
dias a serem contados num mês e num ano (§ 191), além de definir "dia útil" (§ 193),
"afiliado", "coligada", "bem imóvel" (§§ 94-98), e muitos outros termos que encontramos nas
"Definições", incluídas nos contratos sob o modelo anglo-americano.
Como nos Estados Unidos não há essa especificação presente nos códigos de leis,
há a necessidade de incorporá-la e descrevê-la no próprio corpo do contrato, que passa a ser a
fonte única dessas disposições.
A título exemplificativo, a Seção 463 do BGB apresenta uma provisão sobre os
procedimentos para exercício de direito de preferência. Se as partes concordarem com a
aplicação de direito de preferência de acordo com o disposto no BGB, poderão utilizar uma
mera sentença do gênero: "A outorga a B direito de preferência na aquisição das ações detidas
por A na Companhia".
As partes, portanto, não precisam se debruçar sobre cláusulas e mais cláusulas
repetindo o procedimento que já foi devidamente estabelecido por lei. E, dessa forma, caso as
55
Disponível em https://www.law.cornell.edu/ucc/2/article2. Última visita em 5.8.2015.
36
partes decidam alterar apenas alguma parte do procedimento ordinário presente no BGB, elas
poderão apenas especificar exatamente o que será diferente.
Em palavras mais claras: o direito contratual alemão dispõe de muitas provisões
padrão que contribuem diretamente para uma redução na extensão e repetição de seus
contratos, e, consequentemente, uma diminuição de eventuais dúvidas na interpretação deles.
Essas disposições padrão no direito contratual alemão são muitas vezes
disponíveis para eleição: as partes podem ou não adotá-las. E as partes costumam adotá-las56
.
O direito alemão é ainda mais apto que o direito contratual nos Estados Unidos
para respeitar as especificações, acordadas pelas partes, de uma quantia relativa a
indenizações. Nos Estados Unidos, esse tipo de disposição pode muito facilmente ser
considerada inaplicável se tiver "aberta demais".
É justamente por isso que as partes devem elaborar suas disposições sobre
indenização de forma bastante minuciosa para que a chance de invalidação dessa cláusula
pelas cortes seja minimizada.
O direito contratual alemão dispõe, em paralelo às especificações acima
mencionadas, sobre provisões particulares a determinados tipos de contratos, como compra e
venda, mútuo, locação, empreitada etc., o que não ocorre com tanta riqueza de detalhes no
direito contratual nos Estados Unidos e Inglaterra.
3.2.2 Outras Soluções Padronizadas
O início da elaboração contratual, baseada numa minuta comumente "padrão", é
algo que difere enormemente entre os modelos contratuais anglo-americano e alemão.
56
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 914.
37
Um exemplo da perspectiva norte americana nesse "first drafting" é descrito na
obra, citada anteriormente, de James Freund57
:
"You must recognize that each transaction has its own individualized
thumbprint. (...) I want to call special attention to one cardinal sin
that I find young (and often mature) lawyers commit time and again.
The ABC deal comes in to the office. The partner evaluates it, calls in
an associate, gives him the facts, and tells him to prepare a draft
'modeled on the XYZ acquisition that we did in January (...) What the
associate should have done, of course, was to go back to the first draft
of the XYZ deal in the files, and mark that up".58
Sob o ponto de vista das práticas contratuais alemãs, as coisas são bem diferentes.
Algumas soluções fora do direito também podem ser encontradas na Alemanha. Exemplos
bastante comuns são as minutas disponibilizadas pelas associações de comércio. Esse tipo de
associação tem considerável espaço na Alemanha, o que não ocorre nos Estados Unidos.
Como o direito alemão bem permite, as cláusulas adotadas por determinada
associação de comércio podem ser tomadas como referência. Por exemplo, um contrato de
mútuo pode ser consideravelmente curto porque ele pode incorporar por referência as
condições gerais estabelecidas nos Termos e Condições Gerais dos Bancos, uma minuta
padrão59
.
Talvez ainda mais impressionante é o fato de que as bancas de advogados na
Alemanha normalmente disponibilizam suas minutas - e essas minutas são mais facilmente
adotadas por outros advogados. Nos Estados Unidos e Inglaterra, mesmo dentro de um
escritório especializado em M&A, por exemplo, cada equipe ou mesmo advogado tem sua
própria minuta e "jeito de escrever"60
.
57
Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for Negotiating Corporate Acquisitions, op. cit., p. 141-142.
58
Tradução livre: "Você deve reconhecer que cada transação tem sua impressão digital própria. (...) Eu quero
chamar a atenção em especial de um pecado capital que eu vejo jovens advogados (e, muito frequentemente,
sêniores também) cometendo comumente. O negócio ABC chega ao escritório. O sócio responsável avalia,
chama o associado, apresenta-lhe os fatos e pede-lhe que prepare uma minuta 'modelada na aquisição de XYZ
que fizemos em janeiro (...). O que o associado deveria fazer, claro, seria voltar para a primeira minuta do
negócio XYZ e então marcá-la".
59
Vide How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 915.
60
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 915.
38
3.2.3 Soluções Padronizadas Podem Ser Adotadas nos Estados Unidos?
Hill e King tecem a seguinte pergunta: "se soluções padronizadas são tão
vantajosas, por que elas não podem ser alcançadas nos Estados Unidos?"61
.
Conforme já mencionamos supra, uma primeira razão está no federalismo
estadunidense. Enquanto na Alemanha o direito civil é federal, nos Estados Unidos há 50 leis
estaduais lidando sobre o assunto, além do sistema de common law.
Além disso, caso as associações de comércio - que não têm tanta relevância
quanto na Alemanha - nos Estados Unidos tentassem uniformizar as minutas contratuais, tal
iniciativa poderia ser considerada ilícita diante das leis antitruste (Seção 1 do Sherman Act).
Na Alemanha, como dissemos, há uma maior homogeneidade nas transações
locais. As partes normalmente se conhecem, o que favorece uma maior confiança no
momento da negociação e execução dos contratos. Nos Estados Unidos essa homogeneidade é
praticamente impossível de existir. Há não somente uma diversidade de players locais, como
transações cross-border, o que faz com que as partes lidem com uma infinidade de
jurisdições.
Não se pode desconsiderar, inclusive, a influência da cultura do povo, que acaba
por influenciar a forma de negociar e executar relações obrigacionais. Sabe-se que o povo
estadunidense é desconfiado e tende a pensar que cada um, a qualquer momento, pode tirar
uma vantagem sobre o outro.
Nesse sentido, as bancas de advogados disputam entre si justamente na
perspectiva do quem tem a "cover everything form"62
, além de advogados treinados para
discutir sobre todos os pontos existentes.
61
How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 921.
62
Ou: uma minuta capaz de cobrir todos os pontos relevantes de uma infinidade de transações.
39
4 O MODELO BRASILEIRO
Volvendo nossos olhares ao direito pátrio, observamos que, por aqui, basicamente
todos os documentos elaborados no âmbito das negociações complexas de fusões e aquisições
seguem o modelo anglo-americano. Para fins deste trabalho, esclarecemos que, ao tratarmos
de contratos empresariais complexos diante do “modelo brasileiro”, estamos nos referindo aos
contratos domésticos, celebrados aqui e envolvendo partes brasileiras.
A nossa investigação para determinar o porquê desse evento inusitado, tendo em
vista o fato de que nosso ordenamento jurídico se assemelha muito mais àquele alemão, é
nosso desafio aqui. E, deve-se alertar, que a resposta não pode ser dada somente e
exclusivamente com base em argumentos jurídicos ou mesmo de "supremacia econômica"
norte-americana. Acreditamos que a justificativa é muito mais profunda e encontra demasiada
relevância no perfil social do brasileiro, como procuraremos demonstrar a seguir.
4.1 Para Quem se Destina o Contrato Elaborado no Brasil?
Estudamos no item 2.1 quem seria o destinatário do contrato, se as partes
negociantes ou o tribunal. Concluímos que, enquanto o modelo contratual anglo-americano
visa à diminuição do oportunismo, procurando instruir o juiz sobre a vontade das partes
(inclusive sobre a interpretação do próprio texto contratual, como tratamos no item 3.1), o
modelo alemão procura exprimir a vontade das partes, servindo como verdadeiro guia daquilo
que foi transacionado.
Observamos que alguns grandes fatores dessa postura alemã se dão por conta (i)
do modelo de civil law, possibilitando a elaboração de contratos mais enxutos e diretos e
dando certa previsibilidade no âmbito dos tribunais; (ii) do número de players, que é
consideravelmente menor no mercado doméstico alemão, sendo que muitos deles acabam se
envolvendo em reiteradas transações e, assim, há uma necessidade inerente de confiança
40
mútua; e (iii) do perfil do cidadão alemão, que, ao contrário do norte-americano, não é um
sujeito tão "desconfiado" do seu vizinho.
Se trouxermos esses pontos acima à realidade brasileira, poderemos concluir que
o contrato elaborado no Brasil deveria seguir o mesmo modelo que aquele doméstico alemão.
Ora, (i) estamos sob o sistema de civil law, com uma legislação consideravelmente vasta
sobre a elaboração de contratos e sua interpretação; (ii) o número de players no Brasil é ainda
infinitamente menor do que aquele alemão; e (iii) contamos com um judiciário unificado em
todo o território nacional, de carreira, sem indicações políticas para os cargos em primeira
instância.
Esses elementos, como defendemos anteriormente, contribuem significativamente
no modelo jurídico desenvolvido pelas partes na ora de contratar. E basicamente todos os
argumentos que usamos para justificar o motivo pelo qual os contratos domésticos alemães
são mais concisos, diretos e dirigidos às partes, estão presentes aqui no Brasil, exceto um, que
trataremos logo mais.
Por que, então, adotamos um contrato vasto, prolixo, repetitivo de cláusulas já
definidas em lei, ao invés de um instrumento curto, objetivo e, consequentemente, de custo
consideravelmente mais baixo às partes envolvidas na transação?
Nesse sentido, mostra-se bastante pertinente a observação da professora Paula
Forgioni63
:
"A primeira e necessária advertência diz respeito à descuidada
importação de institutos, sem a consideração daquelas que Ascarelli
chamou de 'premissas implícitas' de cada ordenamento. Observou o
mestre italiano que, no estudo de institutos estrangeiros, as 'premissas
implícitas' próprias de cada sistema não podem ser desprezadas. No
entanto, essa singela recomendação não é sempre atendida, de sorte
que alguns simplesmente entornam a experiência estrangeira sobre
nosso sistema, pretendendo imprimir direcionamento que lhe é
estranho".
63
Teoria Geral dos Contratos Empresariais, Editora dos Tribunais, São Paulo: 2009, p. 60.
41
Acreditamos que o fator determinante dessa característica dos contratos brasileiros
é o elemento social. A prática empresarial aqui adotada foi, historicamente, sempre
influenciada pelos britânicos e, após, pelos nossos colegas estadunidenses.
Sabemos, aliás, que o direito não se atém na criação de novas figuras jurídicas
para tratar de coisas ainda não criadas no "mundo real". O direito não criou o cheque, por
exemplo, mas apenas o regulou. Da mesma forma, entendemos que (i) a prática empresarial
no Brasil, fortemente influenciada por britânicos e estadunidenses, adquiriu a forma e as
características dos instrumentos contratuais (tanto em fase de negociação, contratação e
execução) anglo-americanos; e (ii) esse modelo de contratação “fits like a glove” no perfil do
brasileiro.
Sobre o primeiro ponto, não é difícil compreendermos essa influência anglo-
americana nas nossas relações empresariais. Os primeiros movimentos de contratações
complexas se deram, de forma insipiente, no governo de Juscelino Kubitschek, por conta do
leve crescimento na indústria automobilística. Após, com o surto industrial ocorrido no
Governo Militar e, por fim, com o advento do Plano Real.
Em todas essas fases observamos a preponderância do capital internacional, já
acostumado com um determinado tipo de contratação. Junte-se a isso um mercado advocatício
extremamente minguado e inexperiente em práticas empresariais envolvendo operações cross-
border.
Tanto é que a primeira grande geração de advocacia empresarial no Brasil se deu
com o retorno do advogado José Martins Pinheiro Neto64
da Inglaterra ao Brasil, em 1942,
trazendo consigo, além do domínio da língua inglesa, conhecimento e contatos por lá
adquiridos.
Houve, inegavelmente, uma importação de um modelo contratual.
64
Fundador da famosa banca de advogados "Pinheiro Neto".
42
Sobre o segundo ponto, sabe-se que o povo brasileiro, pelo menos nos grandes
centros urbanos, é um povo extremamente desconfiado. Prova disso está no conhecido
“jeitinho brasileiro”, de tirar vantagem sempre nas relações que se envolve.
Um perfil de contratação voltado a mitigar esses possíveis oportunismos, a frear
esse ímpeto de tirar vantagens, caiu bem no perfil brasileiro.
É assim que em diversas situações nossos contratos parecem incorporar muito
mais princípios alienígenas, germinados em realidade completamente diversa da nossa, do que
aqueles que de fato determinam nossa essência (como no caso da boa-fé), gerando um risco
para a eficácia e efetividade do direito pátrio.
4.2 Exemplos de Cláusulas de Contratos Complexos no Brasil
Da mesma forma que estruturamos o item 2.2, para uma melhor visualização,
citaremos algumas cláusulas-padrão nos contratos complexos envolvendo grandes players no
mercado brasileiro.
Observe, no entanto, que nosso objetivo neste item 4.2 é ligeiramente diferente
daquele. Ao invés de compararmos cláusulas de modelos diversos para demonstrarmos como
um tem redação rebuscada, customizada, repetitiva e prolixa, enquanto o outro é curto e
direto, apresentaremos algumas cláusulas para provar que sua existência é como "órgão
vestigial": existindo ou não, o efeito é o mesmo.
Exemplos de definições frequentemente adotadas em contratos que têm expressa
previsão legal:
# Definição Contratual Previsão Legal
1.
“Afiliada” significa, em relação a uma
Pessoa, qualquer outra Pessoa que, direta
ou indiretamente, por meio de uma ou
mais Pessoas, Controla, é Controlada por
ou está sob Controle comum com a Pessoa
Arts. 265 e seguintes da Lei 6.404/76
("LSA"):
"Art. 265. A sociedade controladora e
suas controladas podem constituir, nos
termos deste Capítulo, grupo de
43
# Definição Contratual Previsão Legal
em questão. sociedades, mediante convenção pela qual
se obriguem a combinar recursos ou
esforços para a realização dos respectivos
objetos, ou a participar de atividades ou
empreendimentos comuns."
§ 1º A sociedade controladora, ou de
comando do grupo, deve ser brasileira, e
exercer, direta ou indiretamente, e de
modo permanente, o controle das
sociedades filiadas, como titular de
direitos de sócio ou acionista, ou
mediante acordo com outros sócios ou
acionistas.
(...)"
2.
“Controle” significa, com relação a uma
Pessoa, (i) o poder detido por uma outra
Pessoa de eleger, direta ou indiretamente,
a maioria dos administradores e de
determinar e conduzir as políticas e
administração de tal Pessoa, quer
isoladamente ou em conjunto com suas
Afiliadas; ou (ii) a titularidade, direta ou
indireta, por uma Pessoa e suas Afiliadas,
de pelo menos 50% (cinquenta por cento)
mais 1 (uma) ação/quota representativa
do capital social votante da Pessoa em
questão. Termos derivados de Controle,
como “Controlada”, “Controladora” e
“sob Controle comum”, terão significado
análogo ao de Controle.
Art. 116 da LSA:
"Art. 116. Entende-se por acionista
controlador a pessoa, natural ou jurídica,
ou o grupo de pessoas vinculadas por
acordo de voto, ou sob controle comum,
que:
a) é titular de direitos de sócio que lhe
assegurem, de modo permanente, a
maioria dos votos nas deliberações da
assembleia-geral e o poder de eleger a
maioria dos administradores da
companhia; e
b) usa efetivamente seu poder para dirigir
as atividades sociais e orientar o
funcionamento dos órgãos da companhia.
Parágrafo único. O acionista controlador
deve usar o poder com o fim de fazer a
companhia realizar o seu objeto e cumprir
sua função social, e tem deveres e
responsabilidades para com os demais
acionistas da empresa, os que nela
trabalham e para com a comunidade em
que atua, cujos direitos e interesses deve
lealmente respeitar e atender."
3.
“Pessoa” significa qualquer pessoa
natural, empresa, sociedade, associação,
trust, fundo de investimento, condomínio,
organização não constituída e qualquer
outra entidade, incluindo qualquer
Autoridade Governamental.
Arts. 1º, 2º, 40, 41, 44 e 45 da Lei
10.406/02 ("Código Civil"):
"Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e
deveres na ordem civil."
"Art. 2º A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida; mas a lei
põe a salvo, desde a concepção, os
direitos do nascituro."
44
# Definição Contratual Previsão Legal
"Art. 41. São pessoas jurídicas de direito
público interno:
I - a União;
II - os Estados, o Distrito Federal e os
Territórios;
III - os Municípios;
IV - as autarquias;
IV - as autarquias, inclusive as
associações públicas;
V - as demais entidades de caráter público
criadas por lei."
"Art. 42. São pessoas jurídicas de direito
público externo os Estados estrangeiros e
todas as pessoas que forem regidas pelo
direito internacional público."
"Art. 44. São pessoas jurídicas de direito
privado:
I - as associações;
II - as sociedades;
III - as fundações.
IV - as organizações religiosas;
V - os partidos políticos;
VI - as empresas individuais de
responsabilidade limitada."
Art. 12 da Lei 5.869/73 ("CPC"):
"Art. 12. Serão representados em juízo,
ativa e passivamente:
(...)
VII - as sociedades sem personalidade
jurídica, pela pessoa a quem couber a
administração dos seus bens;
(...)
IX - o condomínio, pelo administrador ou
pelo síndico."
4.
“Propriedade Intelectual” significa todas
e quaisquer (a) marcas, nomes comerciais,
nomes corporativos, logos, marcas de
serviço, patentes, trabalhos patenteáveis,
nomes de marcas, desenho industrial ou
de produto, nomes de fantasia ou de
produto, slogans, direitos de publicidade,
metodologias, programas de computador e
software (incluindo todos os códigos fonte,
códigos objeto, ferramentas de
Arts. 2, 8, 9, 10, 11, 95, 96, 97 e 123 da
Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade
Industrial):
"Art. 2º A proteção dos direitos relativos à
propriedade industrial, considerado o seu
interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do País, efetua-
se mediante:
I - concessão de patentes de invenção e de
modelo de utilidade;
45
# Definição Contratual Previsão Legal
desenvolvimento, arquivos, registros e
informações), invenções, modelos, pedido
de registro de patentes e divulgação de
patentes, e outros direitos ou informações
registradas, sejam ou não sujeitas a
registro por Lei, bem como toda
informação técnica relacionada; (b) sítios
de internet, domínios e toda propriedade
intelectual usada com relação a ou
contida na rede mundial de computadores;
(c) segredos de comercialização, incluindo
informações, ideias, pesquisa e
desenvolvimento, know-how, fórmulas,
composições, processos e técnicas de
produção, informações técnicas, desenhos,
especificações, listas de fornecedores e
clientes, informações de custo, preço e
negócios, planos de marketing e
propostas, confidenciais ou não; (d)
direitos ou licenças para uso de qualquer
um dos itens descritos; e (e) direitos
mundiais de (pendentes registros ou
pedidos de registro brasileiros e/ou
estrangeiros) quaisquer dos itens descritos
e quaisquer pedidos de registro, registros
e renovações relacionadas aos itens
descritos acima.
II - concessão de registro de desenho
industrial;
III - concessão de registro de marca;
(...)"
5.
“Tributos” significa qualquer tributo,
contribuição, cobrança, tarifa, taxa,
imposto ou outra cobrança
governamental, seja federal, estadual ou
municipal, incluindo, mas não limitado a,
imposto de renda, impostos retidos na
fonte, impostos sobre a circulação de
mercadorias, impostos sobre produtos,
importação, exportação, ad valorem,
contribuições sociais e previdenciárias,
impostos sobre serviços ou sobre
transações financeiras.
Arts. 3º e 5º da Lei 5.172/66 ("CTN"):
"Art. 3º Tributo é toda prestação
pecuniária compulsória, em moeda ou
cujo valor nela se possa exprimir, que não
constitua sanção de ato ilícito, instituída
em lei e cobrada mediante atividade
administrativa plenamente vinculada."
"Art. 5º Os tributos são impostos, taxas e
contribuições de melhoria."
Como é nítido, nossos contratos estão impregnados de disposições já tratadas em
lei. Considerável número de páginas e quantidade de tempo poderiam ser poupadas caso a
disposição contratual fizesse mera referência ao texto legal, limitando-se a abordar apenas o
eventual acordo sobre disposição diferente da regra geral expressa em lei.
46
4.3 Custos de Transação e Oportunismo
Tratamos no item 2.3 sobre o imenso custo envolvido no processo de mitigação de
oportunismo ao qual o player contratante sob o modelo anglo-americano está disposto a
desembolsar.
Aqui no Brasil as coisas não são tão diferentes.
Nas palavras da professora Paula Forgioni, "no momento da celebração, as partes
acreditam que estarão 'melhor com o contrato do que sem ele'"65
. Nesse sentido, só valerá a
pena a celebração de determinado contrato caso as partes entendam que o negócio
proporcionará mais vantagens que desvantagens.
O cálculo a ser feito para saber se “contratar” é melhor que “não contratar”
importa em análise, também, dos custos da transação. Gasta-se com financial advisors, com
advogados, com due diligences, além de alocar horas dos membros da administração da
empresa para a análise e negociação do negócio.
Ainda há um risco de vazamento de informações confidenciais a concorrentes,
como de insider trading e movimentos afins. Enfim, os custos são altos e, para valer a pena, o
deal precisa trazer benefícios mais consideráveis ainda.
Com a escolha do perfil de contratação, como falamos no item 4.1, o brasileiro
declarou que prefere gastar mais para ter mais segurança jurídica.
E é por isso que resolvemos comprar um pequeno mal hoje para evitar um grande
mal amanhã.
65
Teoria Geral dos Contratos Empresariais, op. cit., p. 60.
47
4.4 O Papel da Boa-Fé no Direito Brasileiro
Grande desafio para a interpretação dos contratos, especialmente os complexos,
no Brasil tem sido o princípio da boa-fé.
Pode-se elaborar o contrato mais customizado possível, pode-se tentar definir
todos os conceitos e premissas no instrumento contratual, pode-se tentar estabelecer os
critérios de responsabilização das partes e limitar a imposição de penalidades, mas se houver
uma quebra da boa-fé, todas essas disposições podem ser desconsideradas.
Como bem expressou o professor Calixto Salomão Filho: “[é] da amplitude
interpretativa da expressão boa-fé que decorre sua dificuldade de aplicação”66
.
Pelo princípio da boa-fé, busca-se a cooperação entre as partes na execução do
objetivo econômico do contrato. Mas não é só isso. Procura-se hoje a boa-fé desde as
tratativas, com responsabilidades pré-contratuais, como após o término da relação
obrigacional.
4.4.1 A Boa-Fé Durante as Tratativas
Para a celebração de um contrato, os contratantes podem se valer de uma fase
preliminar de tratativas. Nessa fase, não há um acordo definido, mas já é suscetível de gerar
direitos e obrigações.
Essa fase das tratativas é bastante comum no processo de celebração de contratos
empresariais complexos. Às vezes tal fase demonstra sua existência por meio de
comunicações trocadas, mas às vezes alguns instrumentos podem ser confeccionados,
apontando as diretrizes das negociações e a convergência de acordos, como nos casos de
66
Breves Acenos para uma Análise Estruturalista do Contrato, in Revista de Direito Mercantil, nº 141, jan/mar
de 2006, Malheiros, São Paulo, p.20.
48
acordo de intenções ou memorando de entendimentos não vinculantes. Há, inegavelmente,
custos envolvidos e, portanto, expectativas em torno das tratativas.
O professor Haroldo Verçosa trata brilhantemente sobre o assunto. A título
exemplificativo, estudando Vincenzo Roppo, o ilustre professor destaca: “(i) a atitude de se
deixar alguém participar de uma longa fase de tratativas objetivando a conclusão de um
determinado contrato, sem que a outra desde o início não tivesse a mínima intenção de fazê-
lo, o que seria baseado tão somente no interesse de se levantar o preço potencial de um bem
determinado; (ii) também seria o caso de se prender um sujeito a determinadas tratativas a fim
de vinculá-lo em uma negociação fingida, para o fim de afastá-lo de outro negócio em que o
agente tivesse interesse; e (iii) a ausência da necessária diligência nas tratativas feita por
algum interessado, de cuja falta resultasse posteriormente a recusa em contratar, alegando
tardiamente aquele que a contraparte não apresentava as necessárias condições técnicas que
seriam exigidas para o fechamento do acordo”67
.
Há, dessa forma, um dever objetivo das partes de informar corretamente a
contraparte sobre as circunstâncias do negócio. Não pode um, por exemplo, se valer de meias-
verdades (half-truths) para dar a entender, indiretamente, que todas as informações foram
repassadas, ou mesmo de forma a induzir a contraparte a erro.
Como aponta o professor Verçosa, “o silêncio, conforme as circunstâncias, é
passível de consistir em reserva mental, reprovável, vindo a acarretar a responsabilidade do
sujeito se dele surgirem prejuízos para a contraparte”68
.
Além do dever objetivo de informar, as partes têm o dever de clareza, além de
transparência e sigilo. Na fase de tratativas as partes podem ficar expostas a segredos
comerciais e estratégicos umas das outras. Há, assim, inegável risco de prejuízos e,
consequentemente, responsabilização.
67
Contratos Mercantis e a Teoria Geral dos Contratos: o Código Civil de 2002 e a Crise do Contrato, Quartier
Latin, São Paulo, 2010, p. 233.
68
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc., op. cit., p. 236.
49
4.4.2 A Boa-Fé na Execução do Contrato
No mesmo sentido de preservar a confiança entre as partes, a boa-fé se manifesta
durante a execução do contrato de algumas formas. Uma delas é proibindo o comportamento
contraditório das partes (venire contra factum proprium).
O efeito da aplicação da boa-fé, nesse contexto, se dá de forma mais efetiva no
momento da interpretação contratual. E isso deve ser feito desde o momento das tratativas,
mencionado acima.
Se uma parte vem se posicionando de uma forma determinada em relação a um
dado assunto, e, por conta de uma mudança na composição da sua administração passa a
interpretar determinada cláusula de forma diversa, há evidente quebra do dever de confiança,
gerando grande instabilidade na relação obrigacional entre as partes contratantes.
O princípio da boa-fé, como elemento componente da estrutura das relações
obrigacionais, incide sobre esse fato ao proibir a nova interpretação pretendida pela parte.
Atua, nesse caso, de forma negativa.
Da mesma forma apresentam-se os institutos da suppressio, surrectio e tu quoque.
A suppressio consiste na “situação do direito que, não tendo sido, em certas
circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de
outra forma, se contrariar a boa-fé”69
.
A surrectio, conforme o ensinamento do professor Humberto Theodoro Júnior,
opera em sentido inverso, ou seja, “o de constituir uma situação jurídica nova entre as partes
da relação obrigacional”70
.
69
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da Boa-Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1997,
p. 796.
70
O Contrato e sua Função Social: a boa-fé objetiva no ordenamento jurídico e a jurisprudência
contemporânea, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2014, p. 65.
50
A tu quoque, por sua vez, “traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela
qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação
jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído”71
.
De outro lado, a boa-fé se apresenta como um comando positivo ao instituir o
dever às partes de mitigar o próprio dano (duty to mitigate the loss. Nesse sentido, há uma
expectativa de que as partes procedam, mesmo diante de eventual inadimplemento, de forma
proba, cooperativa e leal.
Assim, os contratantes devem se atentar a tomar as medidas necessárias e
possíveis para que o dano não seja agravado, ou seja, o credor deve agir de forma a mitigar o
próprio dano por ele sofrido.
4.4.3 A Boa-Fé Após o Término do Contrato
O exaurimento das obrigações contratuais, seja por qualquer motivo (rescisão,
denúncia ou cumprimento total da obrigação), não afasta alguns deveres impostos às partes.
O ponto mais sensível nessa esfera diz respeito ao dever de confidencialidade.
Não podem as partes usar toda a informação a qual tiveram acesso sobre a contraparte, por
conta do vínculo contratual, em benefício próprio ou de terceiro, ou mesmo de forma a
prejudicar a parte com quem havia contratado.
Da mesma forma, têm-se também a vedação – salvo disposição contratual
contrária – à concorrência desleal, comum em contratos de aquisição. Impõe-se o dever
negativo a determinada parte de, por um prazo determinado, não atuar no mesmo ramo de
atividade da sociedade vendida, em dada localidade.
Esses posicionamentos já solidificados no direito brasileiro encontram grande
correspondência com seus equivalentes no direito alemão (e demais estados codificados
71
MENEZES CORDEIRO, op. cit. p. 837.
51
europeus). Ocorre que essa tendência contemporânea de limitar a liberdade contratual acaba
por, também, gerar incerteza diante de nossos contratos complexos extremamente
customizados e completos.
Deve-se levar em consideração, como ressaltou o professor Calixto Salomão, que
“[t]odas essas características fazem surgir um novo contrato, instrumentalizado aos interesses
da sociedade, representados pelas garantias institucionais. São elas o seu limite, impondo que
as obrigações nele contidas sejam dissecadas de forma a respeitar os interesses da sociedade
atingidos”72
.
72
Função Social do Contrato, in Doutrinas Essenciais – Obrigações e Contratos – Contratos: Princípios e
Limites, vol 3, org. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011, p. 681.
Tese de Láurea l Obede.PDF
Tese de Láurea l Obede.PDF
Tese de Láurea l Obede.PDF
Tese de Láurea l Obede.PDF
Tese de Láurea l Obede.PDF

Mais conteúdo relacionado

Destaque

Destaque (11)

Portada
PortadaPortada
Portada
 
Serviços em smartphones e tablets
Serviços  em smartphones e tabletsServiços  em smartphones e tablets
Serviços em smartphones e tablets
 
Certificado de competencia Brasil
Certificado de competencia BrasilCertificado de competencia Brasil
Certificado de competencia Brasil
 
Exercicío do tatu
Exercicío do tatuExercicío do tatu
Exercicío do tatu
 
Sorteo
SorteoSorteo
Sorteo
 
Manifestação 15 Dez 2012_Lisboa
Manifestação 15 Dez 2012_LisboaManifestação 15 Dez 2012_Lisboa
Manifestação 15 Dez 2012_Lisboa
 
Cursos e palestras - Prof. Miguel Gabriel Prazeres de Carvalho
Cursos e palestras - Prof. Miguel Gabriel Prazeres de CarvalhoCursos e palestras - Prof. Miguel Gabriel Prazeres de Carvalho
Cursos e palestras - Prof. Miguel Gabriel Prazeres de Carvalho
 
Memoria del servicio (1)
Memoria del servicio (1)Memoria del servicio (1)
Memoria del servicio (1)
 
Fase1LesmarGiraldo
Fase1LesmarGiraldoFase1LesmarGiraldo
Fase1LesmarGiraldo
 
Internet Explorer 9
Internet Explorer 9Internet Explorer 9
Internet Explorer 9
 
Maria luisaalonso2012
Maria luisaalonso2012Maria luisaalonso2012
Maria luisaalonso2012
 

Semelhante a Tese de Láurea l Obede.PDF

Article - postgraduation - Business Law
Article - postgraduation - Business LawArticle - postgraduation - Business Law
Article - postgraduation - Business LawJesse Gerva
 
Manual mediação para advogados
Manual mediação para advogadosManual mediação para advogados
Manual mediação para advogadosCristiane Lara
 
Manual de Mediação de Conflito para advogados
Manual de Mediação de Conflito para advogados Manual de Mediação de Conflito para advogados
Manual de Mediação de Conflito para advogados Ministério da Justiça
 
A comutatividade do_contrato_de_seguro
A comutatividade do_contrato_de_seguroA comutatividade do_contrato_de_seguro
A comutatividade do_contrato_de_seguroAna Clara Fortes
 
Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)
Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)
Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)Herbert Almeida
 
Contrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. Polido
Contrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. PolidoContrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. Polido
Contrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. PolidoEditora Roncarati
 
A Viga Mestra Dos Contratos De Engenharia
A Viga Mestra Dos Contratos De EngenhariaA Viga Mestra Dos Contratos De Engenharia
A Viga Mestra Dos Contratos De EngenhariaFernando Henrique Cunha
 
A viga mestra dos contratos de engenharia
A viga mestra dos contratos de engenhariaA viga mestra dos contratos de engenharia
A viga mestra dos contratos de engenhariaVIEX americas
 
Adimplemento substancial tcc
Adimplemento substancial tccAdimplemento substancial tcc
Adimplemento substancial tccFernando Alqualo
 
Jeronimo, patricia, licoes de direito comparado
Jeronimo, patricia, licoes de direito comparadoJeronimo, patricia, licoes de direito comparado
Jeronimo, patricia, licoes de direito comparadoDionisio Ussaca
 
COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...
COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...
COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...Mauricio Portugal Ribeiro
 
Arbitragem e Mediação e os desafios no Judiciário
Arbitragem e  Mediação e os desafios no JudiciárioArbitragem e  Mediação e os desafios no Judiciário
Arbitragem e Mediação e os desafios no JudiciárioPaulo Emerson Pereira
 
O código do consumidor e a internet
O código do consumidor e a internetO código do consumidor e a internet
O código do consumidor e a internetElvis José Alves
 

Semelhante a Tese de Láurea l Obede.PDF (20)

Article - postgraduation - Business Law
Article - postgraduation - Business LawArticle - postgraduation - Business Law
Article - postgraduation - Business Law
 
Título del artículo
Título del artículoTítulo del artículo
Título del artículo
 
AULA OAB XX ESTRATÉGIA DIREITO CIVIL 04
AULA OAB XX ESTRATÉGIA DIREITO CIVIL 04AULA OAB XX ESTRATÉGIA DIREITO CIVIL 04
AULA OAB XX ESTRATÉGIA DIREITO CIVIL 04
 
Manual mediação para advogados
Manual mediação para advogadosManual mediação para advogados
Manual mediação para advogados
 
TEEMA-Tribunal Elesiastico Extrajudicial de Mediação Arbitral Autad
TEEMA-Tribunal Elesiastico Extrajudicial de Mediação Arbitral AutadTEEMA-Tribunal Elesiastico Extrajudicial de Mediação Arbitral Autad
TEEMA-Tribunal Elesiastico Extrajudicial de Mediação Arbitral Autad
 
Manual de Mediação de Conflito para advogados
Manual de Mediação de Conflito para advogados Manual de Mediação de Conflito para advogados
Manual de Mediação de Conflito para advogados
 
Contratos
ContratosContratos
Contratos
 
A comutatividade do_contrato_de_seguro
A comutatividade do_contrato_de_seguroA comutatividade do_contrato_de_seguro
A comutatividade do_contrato_de_seguro
 
Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)
Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)
Lei 8666 - Atualizada e Esquematizada (2020-V2)
 
Crises Econômicas e Flexibilidade no Trabalho
Crises Econômicas e Flexibilidade no TrabalhoCrises Econômicas e Flexibilidade no Trabalho
Crises Econômicas e Flexibilidade no Trabalho
 
EXCERTOS
EXCERTOS EXCERTOS
EXCERTOS
 
Contrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. Polido
Contrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. PolidoContrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. Polido
Contrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. Polido
 
A Viga Mestra Dos Contratos De Engenharia
A Viga Mestra Dos Contratos De EngenhariaA Viga Mestra Dos Contratos De Engenharia
A Viga Mestra Dos Contratos De Engenharia
 
A viga mestra dos contratos de engenharia
A viga mestra dos contratos de engenhariaA viga mestra dos contratos de engenharia
A viga mestra dos contratos de engenharia
 
Adimplemento substancial tcc
Adimplemento substancial tccAdimplemento substancial tcc
Adimplemento substancial tcc
 
Jeronimo, patricia, licoes de direito comparado
Jeronimo, patricia, licoes de direito comparadoJeronimo, patricia, licoes de direito comparado
Jeronimo, patricia, licoes de direito comparado
 
COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...
COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...
COMO VIABILIZAR O USO DE ATERROS SANITARIOS OBJETO DE CONCESSAO OU PPP E REGU...
 
Arbitragem e Mediação e os desafios no Judiciário
Arbitragem e  Mediação e os desafios no JudiciárioArbitragem e  Mediação e os desafios no Judiciário
Arbitragem e Mediação e os desafios no Judiciário
 
Justiça Privada
Justiça PrivadaJustiça Privada
Justiça Privada
 
O código do consumidor e a internet
O código do consumidor e a internetO código do consumidor e a internet
O código do consumidor e a internet
 

Tese de Láurea l Obede.PDF

  • 1. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DEPARTAMENTO DE DIREITO INTERNACIONAL E COMPARADO OBEDE FRANKLIN MOURA E SILVA JUNIOR Nº USP: 7214849 IMPORTAÇÃO DE MODELOS DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS: UMA ANÁLISE DE DIREITO COMPARADO Orientador: Professor Doutor Wagner Menezes São Paulo 2015
  • 2. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DEPARTAMENTO DE DIREITO INTERNACIONAL E COMPARADO IMPORTAÇÃO DE MODELOS DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS: UMA ANÁLISE DE DIREITO COMPARADO Trabalho apresentado como exigência para a conclusão do curso de graduação em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Orientador: Professor Doutor Wagner Menezes. Obede Franklin Moura e Silva Junior Nº USP: 7214849 São Paulo 2015
  • 3. Nome: FRANKLIN M. E S. JR., Obede. Título: Importação de Modelos de Contratos Empresariais Complexos: Uma Análise de Direito Comparado. Trabalho apresentado como exigência para a conclusão do curso de graduação em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Orientador: Professor Doutor Wagner Menezes. Aprovado em: ______/______/______ Banca Examinadora Prof. ____________________________ Instituição:_________________________ Julgamento:______________________ Assinatura:_________________________ Prof. ____________________________ Instituição:_________________________ Julgamento:______________________ Assinatura:_________________________
  • 4. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus pais e ao meu irmão, meus referenciais de vida e conduta cristã.
  • 5. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela Sua infinita graça, pela família que tenho e, principalmente, por ter me concedido essa natureza irrequieta de cearense. Agradeço à minha mãe, Hailane, pela ética, força e persistência próprias de uma mulher extremamente forte e, sobretudo, cristã. Ao meu amigo, pai e pastor, nessa ordem de referência, Obede, pela coerência, ternura e sabedoria, muito além do que se espera de qualquer amigo, pai ou pastor. Ao meu irmão, Arnon, pelo cuidado, maturidade e prudência de um irmão mais novo e, ao mesmo tempo, mais velho. Devo tudo o que sou e o que tenho a essas três pessoas. Agradeço à minha avó e segunda mãe, a Sra. Valdelice, que, com sua doçura infinita, sempre me transmitiu os fundamentos da fé cristã, da ética protestante e a cultura do sertão. Ao meu avô, o Sr. Renato, pela sua caridade com os necessitados. Agradeço ao Prof. Wagner Menezes, pela parceria de futebol e pelas lições de direito internacional e de vida, além de ter delicadamente aceitado me orientar na elaboração deste trabalho. Agradeço, por fim, ao Prof. Mario Engler Pinto Jr., por toda a gentileza em me ajudar no desenvolvimento deste trabalho, baseado em um de seus brilhantes artigos.
  • 6. RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar, sobretudo sob uma perspectiva prática, os motivos pelos quais tem sido adotado no Brasil o modelo de negociação e elaboração de contratos empresariais complexos anglo-americano, em detrimento do modelo alemão, cuja realidade jurídico-legislativa é mais próxima da brasileira. Apresentam-se, assim, as peculiaridades próprias de cada um desses modelos, destacando-se aspectos jurídicos e sociais envolvidos na determinação da forma de contratar, tanto nos Estados Unidos da América quanto na Alemanha. Comparam-se cláusulas e distinguem-se os padrões de cada um dos modelos contratuais. Posteriormente, analisa-se o modelo brasileiro e seus excessos diante da legislação vigente. Conclui-se que, destarte a existência de uma legislação solidificada no Brasil em matéria de direito dos contratos, o modelo contratual anglo-americano se encaixa mais no perfil dos contratantes brasileiros, voltados à minimização de oportunismos, porém, ainda assim, poder-se-ia adotar no Brasil uma forma mais intermediária entre os modelos anglo-americano e alemão para uma maior eficiência de seus contratos. Palavras-chave: direito contratual; direito contratual anglo-americano; direito contratual alemão; contratos empresariais complexos; fusões e aquisições.
  • 7. ABSTRACT This thesis has the scope of analyzing, especially under a practical approach, the reasons by means of which the Anglo-American complex business contracting model has been adopted in Brazil, instead of its German counterpart, whose legislative and judiciary realities are closer to the Brazilian ones. The peculiarities of each of these models are presented, pointing out legal and social aspects involved in determining the contracting way in both the United States and Germany. Standard clauses in complex business contracts are compared and distinguished from the patterns of each of the contract models. Later, the Brazilian contracting style is analyzed, stressing its excesses under the Brazilian law. Finally, it is concluded that, although there is a codified legislation in Brazil regarding contract law, the Anglo-American contracting model seems to fit more properly in the contracting parties style in Brazil, aimed at the minimization of opportunism. It is also concluded that an intermediate solution in between both Anglo-American and German contracting styles should be adopted in Brazil for a greater contract efficiency. Key-words: contract law; Anglo-American contract law; German contract law; complex business contracts; mergers and acquisitions.
  • 8. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................8 2 ELABORAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS NOS SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO.................................................................10 2.1 O Processo de Negociação dos Contratos Complexos ..........................................11 2.2 Os Contratos e suas Cláusulas...............................................................................13 2.3 Evitando o Oportunismo........................................................................................15 2.4 O Papel do Processo Civil .....................................................................................17 2.5 O Papel da Tradição e Interações Sociais..............................................................20 2.6 O Papel da Boa-Fé.................................................................................................22 3 INTERPRETAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS NOS SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO.................................................................26 3.1 Problemas de Significado e de Linguagem ...........................................................28 3.2 Soluções Padronizadas...........................................................................................34 3.2.1 Soluções Padronizadas no Direito Contratual...........................................34 3.2.2 Outras Soluções Padronizadas...................................................................36 3.2.3 Soluções Padronizadas Podem Ser Adotadas nos Estados Unidos? .........38 4 O MODELO BRASILEIRO...........................................................................................39 4.1 Para Quem se Destina o Contrato Elaborado no Brasil?.......................................39 4.2 Exemplos de Cláusulas de Contratos Complexos no Brasil..................................42 4.3 Custos de Transação e Oportunismo .....................................................................46 4.4 O Papel da Boa-Fé no Direito Brasileiro...............................................................47 4.4.1 A Boa-Fé Durante as Tratativas................................................................47 4.4.2 A Boa-Fé na Execução do Contrato..........................................................49 4.4.3 A Boa-Fé Após o Término do Contrato....................................................50 5 CONCLUSÃO................................................................................................................52 6 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................54
  • 9. 8 1 INTRODUÇÃO Desde o desenvolvimento econômico experimentado pelas nações europeias a partir do século XV, especialmente com a necessidade de arrecadação de recursos para o financiamento da aventura marítima em direção às Índias e suas especiarias, o direito tem sido desafiado a regular novas formas de relacionamento entre partes contratantes. A complexificação da economia, portanto, exige uma complexificação dos contratos. Atualmente, contratos empresariais complexos – fusões, aquisições, joint ventures, contratos financeiros, contratos de leasing etc. – são particularmente difíceis de elaborar e de ler. O processo de negociação é longo, cansativo e, via de regra, requer do advogado muitos dias e noites de trabalho. E, quando enfim, algum litígio envolvendo algum desses tipos de contrato vai ao judiciário, juízes dificilmente têm tempo e conhecimento técnico para interpretar os termos e condições ali estabelecidos. Qual, pois, seria o destinatário buscado pelo advogado atual ao redigir um contrato empresarial complexo? As partes? Os tribunais? A resposta é especialmente importante para se definir a técnica de interpretação para tais contratos. Fato notório é que temos nos especializado num juridiquês incompreensível, que complica o simples e, em última instância, abre as portas para a loteria jurídica. O sistema brasileiro, nesse contexto, é interessantemente paradoxal: ao mesmo tempo em que contempla como princípio supremo da hermenêutica contratual a boa-fé objetiva, o que é típico de países com regime de civil law, produz contratos adornados com cláusulas extremamente esmiuçadas, na tentativa de dizer ao juiz qual era verdadeiramente a vontade das partes no momento da contratação, o que é próprio de países com regime de common law. Ora, se se tem uma série de definições, regras e condições já delimitadas na legislação dos países com direito codificado, como é o caso do Brasil, por que se escolhe justamente gastar cláusulas e cláusulas definindo o já definido, regulando o óbvio e dirimindo
  • 10. 9 o incontestável? O excesso na escrita, verificadamente, cria a falsa ideia de que aquilo que não está expressamente proibido no contrato está necessariamente permitido por ele. Curiosamente, enquanto escrevemos um contrato de compra e venda de ações em centenas de páginas, pouco obstando futuros litígios, o modelo contratual alemão o faz em algumas dezenas, com uma taxa de litígios consideravelmente inferior. Mas como o contrato alemão pode alcançar os objetivos das partes contratantes com muito menos rebuscamento? Nossa resposta desafia uma precipitada conclusão no direito dos contratos: que o processo de contratação nos Estados Unidos – e, consequentemente, também no Brasil –, com sua ênfase em contratos rebuscados, customizados e de alta complexidade, opera sensivelmente para ajudar as partes a ter o negócio que desejam. Tal como Claire Ariane Hill e Christopher King1 , acreditamos que essa customização dos contratos nos Estados Unidos tem uma explicação não tanto benevolente: isso reflete (i) uma cara e dispendiosa tentativa de impedir o oportunismo através da linguagem usada nos contratos, e (ii) um fracasso na criação e aceitação de soluções “boas o suficiente” para dirimir pontos não controversos que as partes normalmente enfrentam. Entendemos que o modelo contratual alemão se sai melhor nessas duas frentes. Ele, ao mesmo tempo em que corta parte dos custos excessivos com a elaboração de contratos “amarrados”, também cria e usa soluções padrões boas o suficiente para lidar com pontos não controversos. Para tentarmos compreender os questionamentos suscitados, bem como a razão para essa evidente incoerência no direito brasileiro, dividiremos a nossa pesquisa da seguinte forma: na primeira parte nós compararemos os modelos de contratos empresariais complexos dos sistemas anglo-americano e alemão, desmembrando tal análise em duas etapas: (a) elaboração e (b) interpretação. Na segunda parte nós trataremos da realidade brasileira, destacando (a) características do nosso sistema normativo, (b) o modelo por nós adotado e (c) os problemas por nós enfrentados devido a tal escolha. 1 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words?, Chicago-Kent Law Review, vol. 79, p. 890, 2004. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=596668. Acesso em 8 de setembro de 2014.
  • 11. 10 2 ELABORAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS NOS SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO O processo de elaboração de contratos empresariais complexos no sistema anglo- americano difere-se diametralmente daquele no sistema alemão. Para Avery Katz2 , isso se evidencia de uma forma bastante peculiar no direcionamento acadêmico de juristas e estudantes de direito. Para ele, a doutrina nos Estados Unidos têm se concentrado muito mais no eventual litígio judicial advindo dos contratos do que na vontade das partes no momento de redigi-los. Isso significa que os contratos empresariais complexos elaborados no sistema anglo-americano são elaborados objetivando principalmente o que será decidido no caso de haver um litígio contencioso. Dentro desse objetivo, portanto, cada uma das partes procura redações mais claras e completas em determinados momentos, e mais obscuras e incertas em outros, a depender do seu interesse. Horas e horas são trabalhadas nos escritórios de advocacia não para delimitar a real vontade das partes, mas para proteger seus clientes do adversário. E o resultado imediato nisso tudo só é benéfico ao próprio advogado, materializado nos honorários exorbitantes. Dessa forma, enquanto nos países de common law as partes procuram em seus contratos desencorajar violações, compensar a vítima dessas eventuais violações e assegurar o cumprimento do contrato através da customização máxima e complexa da linguagem, na Alemanha o mesmo objetivo é buscado – e alcançado, muitas vezes com maior êxito – com uma linguagem mais amena, flexível e aberta. Dado à complexidade e à singularidade do objeto desse tipo contratual (seja um investimento, a aquisição de ações de uma companhia etc.), além do fato de que a vontade das 2 Contractual Incompleteness: A Transactional Perspective. Case Western Reserve Law Review, setembro de 2005, p. 171: “[L]egal scholars should focus more on addressing the contractual decisions of private lawmakers (that is, transactional lawyers and their clients) and less on the decisions of public lawmakers (that is, courts and legislature)”. Paper disponível em http://law.cwru.edu/news/pdf/239_Contractual_ Incompleteness_A_Transactional_Perspective_-_Katz.pdf, p. 171 Último acesso em 30.10.2014.
  • 12. 11 partes dependerá de fatores que muitas vezes não são sabidos no momento da primeira minuta, articular contingências e decidir como lidar com elas de forma ex ante – como habitualmente é feito nos Estados Unidos – pode ser pior que deixar uma flexibilidade ex post – como é feito na Alemanha. O pragmatismo alemão leva a contratos muito mais enxutos, muitas vezes a metade ou dois terços do tamanho do contrato equivalente elaborado no sistema anglo- americano3 . É justamente esse o ponto de nosso interesse neste trabalho. 2.1 O Processo de Negociação dos Contratos Complexos Claire A. Hill4 explica bem como esse processo funciona no sistema anglo- americano. Primeiramente, as partes fazem menos do que deveriam para “completar” os contratos. Todos os pontos de potencial interesse para as partes são abordados na minuta, que, por sua vez, foi provavelmente usada para outra transação com escopo provavelmente diferente. A partir da remessa da primeira minuta por uma parte à outra, uma série de novas versões marcadas e mexidas aparecem. Esse é o processo de “customização” desses contratos. À medida que o processo de due diligence termina, as partes conseguem identificar as contingências materializadas e materializáveis, discutem preço, garantias, formas de solução de conflitos e, por fim, se desesperam para assinar o contrato. A ideia é que cada transação tenha seu “próprio” contrato, feito à sua imagem e semelhança. O momento de assinatura é um dos mais peculiares possíveis, principalmente porque, na maioria das vezes, as transações empresariais complexas têm dois momentos diferentes: a assinatura, ou signing, e o fechamento, ou closing. Essa separação entre signing e 3 HILL, Claire A.; KING, Christopher. Op. Cit., p. 894. 4 Bargaining in the Shadow of the Lawsuit: A Social Norms Theory of Incomplete Contracts. University of Minnesota, Legal Studies Research Paper Series. Research Paper No. 08-46, p. 2. Disponível em http://ssrn.com/abstract=1288689. Último acesso em 7.10.2014.
  • 13. 12 closing ocorre, principalmente, devido a uma série de condições suspensivas impostas e necessárias para o aperfeiçoamento do contrato, como no caso de uma avaliação de algum órgão regulador da concorrência. Partes e advogados se enclausuram em salas de reunião por dias e noites seguidos. Tudo o que é decidido no processo de negociação ali no momento é praticamente reduzido a termo na minuta contratual já completamente retalhada. A probabilidade de erro humano, assim, cresce exponencialmente com o passar das horas sem sono. O que se tem por fim: um documento enorme, muitas vezes com referências cruzadas erradas e, inevitavelmente, com suas lacunas. A negociação desse tipo de contrato na Alemanha, por sua vez, parte dos mesmos eventos, mas se materializam de forma consideravelmente diferente. Primeiramente, os contratos alemães5 não se destinam primordialmente a combater o oportunismo como nos seus pares anglo-americanos. Por ser um sistema de civil law, muitas cláusulas não precisam ser por demasiado extensas e explicadas, uma vez que o próprio direito já o faz e, portanto, não há necessidade de se repetir o óbvio. Além disso, como o mercado doméstico alemão é incomparavelmente menor que o anglo-americano – usado worldwide –, os agentes envolvidos normalmente são os mesmos. Não se procura, dessa maneira, tirar a máxima vantagem possível pois, se assim determinado indivíduo faz, ele ficará “marcado” pela sua própria comunidade. Fora isso, os escritórios têm a cultura de compartilhar suas minutas-padrão de tal forma que podemos visualizar cláusulas uniformes em contratos elaborados mesmo por diferentes escritórios. 5 Os contratos alemães que estamos descrevendo são somente aqueles domésticos. Tais contratos tendem a ser celebrados no mercado intermediário na Alemanha. Contratos para transações muito grandes tipicamente envolvem mais de uma jurisdição, sendo governados por algum direito estrangeiro e, portanto, minutados e negociados por um dos cinco grandes escritórios do “magic circle” britânico: Allen&Overy, Clifford Chance, Freshfields Bruckhaus Deringer, Linklaters e Slaughter and May.
  • 14. 13 Dois fatores, portanto, são extremamente importantes no condicionamento das relações contratuais nas diferentes comunidades: (i) o número de players atuantes no mercado e (ii) o grau de desconfiança social. 2.2 Os Contratos e suas Cláusulas Para melhor apresentarmos nosso ponto, analisaremos alguns modelos de cláusulas largamente utilizados nos contratos empresariais complexos anglo-americanos e alemães. Para facilitar nossa exposição, nosso paradigma será os contratos de M&A6 . Observemos esses dois modelos de cláusula de definição de foro: Cláusula anglo-americana Cláusula alemã: “The exclusive forum for the resolution of any dispute under or arising out of this agreement shall be the courts of general jurisdiction of [•] and both parties submit to the jurisdiction of such courts. The parties waive all objections to such forum based on forum non conveniens7 .” “Ausschließlicher Gerichtsstand ist [•]8 .” Outro exemplo de excessiva escrita pode ser comprovada nas cláusulas de outorga abaixo, comum em instrumentos de securitização: Cláusula anglo-americana Cláusula alemã: “[•] does hereby grant, bargain, sell, assign, transfer, convey, pledge and confirm, unto “Der Sicherungsgeber übereignet der Bank hiermit den gesamten jeweiligen Bestand 6 Os exemplos de cláusulas aqui abordados foram retirados do artigo de Claire A. Hill e Christopher King, How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words?, Op. Cit., p. 894-896. 7 Tradução livre e literal: "O foro exclusivo para a solução de qualquer litígio sob ou decorrente deste contrato será aquele dos tribunais de competência genérica de [●], e ambas as partes se submeterão à jurisdição de tais tribunais. As partes renunciam a todas as objeções a este foro baseadas em forum non conveniens". 8 Tradução livre e literal: "A jurisdição especial é [●]".
  • 15. 14 Cláusula anglo-americana Cláusula alemã: Indenture Trustee, its successors and assigns, for the security and benefit of the Indenture Trustee, for itself, and for the Holders from time to time a security interest in and lien on, all estate, right, title and interest of __in, to and under the following described property, agreements, rights, interests and privileges, whether now owned or hereafter acquired, arising or existing (which collectively (...), are herein called the “[•] Trustee Indenture Estate”).”9 an(...) der sich in (...) befindet und in Zukunft dorthin verbracht wird.”10 A língua alemã contribui ainda de certa forma para a redução do tamanho e na objetividade de seus contratos. Comprovemos nessas frases bastante utilizadas em contratos de M&A: Cláusula anglo-americana Cláusula alemã: “(...) including but not limited to(...)”11 “insbesondere”12 Nota-se, com os exemplos acima citados, a objetividade e concisão dos contratos alemães em detrimento dos seus equivalentes anglo-americanos. Por que, então, nós brasileiros escolhemos um e não o outro? É com o objetivo de compreender melhor essa nuance que se resvala no direito brasileiro que procuraremos estudar o tema. 9 Tradução livre e literal: "[●], por este instrumento, outorga, negocia, vende, cede, transfere, transmite, penhora e confirma, pela Escritura de Depositário, a seus sucessores e cessionários, para garantia e benefício do Depositário, para si e para os Titulares, de tempos em tempos, em garantia e penhor, todo imóvel, direito, título e garantias de ___, para e relacionados aos imóveis, contratos, direitos, garantias e privilégios, seja de sua propriedade agora ou no futuro (coletivamente denominados como [●]". 10 Tradução livre e literal: " O Segurador transfere/cede ao Banco o conjunto do respectivo estoque/acervo para ____ e que se encontra em _____ para lá ser levado futuramente." 11 Tradução livre e literal: "incluindo, mas não se limitando a (...)". 12 Tradução livre e literal: "especialmente".
  • 16. 15 2.3 Evitando o Oportunismo Por que as partes contratantes nos Estados Unidos incorrem em todos esses custos? Por que pretendem compreender todas as hipóteses e eventos possíveis e impossíveis nos seus contratos? Na opinião de Hill e King13 , os players anglo-americanos têm entrado numa “arms race”, na qual cada um procura prever as possíveis estratégias do outro em cada rodada de negociações. O resultado é esse modelo contratual anglo-americano típico, completamente customizado e extenso. Os participantes no processo acreditam, ou acabam persuadindo a si mesmos a acreditar, que “qualquer vírgula importa”. A demonstração de que esse modelo procura muito mais evitar disputas (ou uma vitória em caso de litígio) é que durante todo o período em que não há problemas encontrados pelas partes na vigência do contrato – e, por isso, não há qualquer necessidade de “enforcement” legal, as partes raramente (ou nunca) consultam o instrumento contratual. É somente quando o relacionamento contratual começa a descambar para a desconfiança que as partes procuram de fato levar em consideração as letras do contrato e sua literalidade. E, ainda assim, as chances de que a letra contratual fará uma real diferença no sentido de externalizar a vontade das partes no momento de celebração do contrato são mínimas, uma vez que nos Estados Unidos o resultado dos litígios são bastante incertos e imprevisíveis. Certamente seria muito melhor se as partes contratantes na modelo anglo- americano deixassem de adotar essa corrida armamentista na hora de negociar, elaborar e efetivamente executar seus contratos. No entanto, sabemos esse tipo de acordo é bastante difícil de ser feito e cumprido quando essa prática de “corrida armamentista” tem sido o modus operandi vigente. 13 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit. p. 902.
  • 17. 16 O modelo alemão, mais uma vez, tem por elemento intrínseco a regra do “stop sooner”14 no procedimento de customização. Um advogado na Alemanha pretendendo negociar no estilo anglo-americano mostra-se extremamente agressivo para os padrões locais, como dissemos anteriormente, bastante “doméstico” e baseado em relações de confiança entre players conhecidos um dos outros. Em contrapartida, se um advogado atuar nos Estados Unidos sem negociar cada um dos termos contratuais minuciosa e exaustivamente, com certeza será visto como alguém sem zelo e/ou competência institucional. Vale ressaltar que a forma de remuneração seja nos Estados Unidos, na Inglaterra ou Alemanha é a mesma: horas incorridas multiplicadas pelas taxas de honorários, o que, em tese, favoreceria o modelo de trabalho anglo-americano sob uma perspectiva do advogado. Dessa forma, aparentemente não há qualquer razão que explique o porquê de os advogados alemães terem menor incentivo, em comparação com o modelo anglo-americano, para - ou vontade de - gastar tempo negociando exaustivamente e revisando material. Alguém pode argumentar no sentido de dizer que nos Estados Unidos e Inglaterra esse modelo de negociação e elaboração de contratos demonstra forte zelo por parte do advogado. Um sócio que verifica no seu advogado júnior um cuidado nos detalhes, uma obsessão em cada palavra escrita, enfim, esse “zelo” no processo de elaboração do contrato, fica impressionado. Da mesma forma ficam os clientes em relação ao trabalho dos advogados contratados – se não ficarem impressionados, pelo menos não ficam aflitos. Na Alemanha, a mesma conduta não será recompensada dessa forma. E por que isso ocorre? Conforme já falamos, a comunidade de players na Alemanha (diga-se: advogados, executivos, negociadores, financial advisors etc.) tem sido relativamente homogênea. Esse tipo de comunidade estimula o desenvolvimento e a aplicação efetiva da norma “stop sooner” (“parar o quanto antes”), seja por uma questão de expectativas sociais inerentes às relações desses players, seja pelo cálculo de custos envolvidos. 14 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 903.
  • 18. 17 2.4 O Papel do Processo Civil Acreditamos que as diferenças do processo civil especificamente nos Estados Unidos e na Alemanha desempenham relevante papel no momento de negociar, elaborar e executar contratos. Um dos primeiros grandes trabalhos sobre o tema foi elaborado por John H. Langbein15 . O autor introduz seu estudo com a seguinte anedota do escritor belga Georges van Hecke16 : "He [van Hecke] told of a transaction in which an American company and a European company were planning to affiliate by exchanging shares. The lawyers for the American firm drafted two contracts to embrace the transaction. The combined drafts ran about 10,000 words in length. The European businessman had no prior experience with American lawyers, and when presented with the elephantine American drafts he was so shocked that he nearly renounced the deal. Thereupon it was decided to start over, and the European businessman arranged for his lawyer to prepare a counterdraft. 'The result was a document of 1400 words. It was found by the American party to include all the substance that was really needed, and it was readily executed by both parties and adequately performed.'"17 Van Hecke aponta três principais características que clarificam o motivo pelo qual os contratos nos Estados Unidos são muito mais detalhados que suas contrapartes europeias. A primeira seria por conta do perfeccionismo inerente dos empresários de lá. Segundo ele, o 15 Comparative Civil Procedure and the Style of Complex Contracts, Yale Law School, Faculty Scholarship Series, Paper 537, 1987, p. 381, disponível em http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/537/. Última visita em 14.7.2015. 16 In A Civilian Looks at the Common-Law Lawyer, International Contracts: Choice of Law and Language, Parker School of Foreign and Comparative Law, Universidade de Columbia, 1962. 17 Tradução livre: "Ele falou de uma transação na qual uma empresa estadunidense e uma empresa europeia planejavam se coligar trocando suas ações entre si. Os advogados da empresa estadunidense elaboraram minutas de dois contratos para abranger toda a operação. As minutas juntas somavam cerca de 10.000 palavras de extensão. O empresário europeu não tinha experiência prévia com advogados americanos e, quando apresentado às colossais minutas elaboradas pela parte estadunidense, ele ficou tão chocado que quase cancelou o negócio. Então, decidiu-se começar de novo, e o empresário europeu solicitou seu advogado para que preparasse uma contraminuta. 'O resultado foi um documento de 1.400 palavras. A parte estadunidense ficou satisfeita com tal documento, considerando que toda a substância essencial do negócio foi devidamente abordada, e foi prontamente celebrado pelas partes e devidamente cumprido.'"
  • 19. 18 "empresário médio" nos Estados Unidos está disposto a pagar pela perfeição na forma de altos honorários. E ele deseja esse perfeccionismo justamente para evitar que as eventualidades provenientes do contrato segam deixadas ao julgamento do judiciário. Nesse contexto vale reproduzir um pequeno extrato da obra clássica de James C. Freund, Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for Negotiating Corporate Acquisitions, na qual o autor ilustra cenas por ele vivenciadas nos processos de negociação e elaboração de contratos de fusões e aquisições nos Estados Unidos18 : "Scene 12 'Never leave well enough alone' [Monday, January 11. PRUDENT and PREPPIE are in Prudent's office.] PRUDENT: Now, Pete, even though all the major issues have been resolved, there are still a few edges we can pick up in drafting the necessary language. Let me show you, for example, how I think you ought to handle this registration provision..."19 Em segundo lugar, estaria o federalismo. Para van Hecke, quando um advogado nos Estados Unidos está preparando uma minuta de um contrato, ele não sabe em qual jurisdição um eventual litígio será julgado. Ele tem, portanto, que preparar um contrato que possa atingir seus objetivos em qualquer jurisdição em solo estadunidense. Em terceiro lugar, ele cita as diferenças entre países com direito codificado e não codificado. Para o autor, os advogados nos Estados Unidos elaboram seus contratos para combater a falta de juridicidade no próprio direito, manifesta num complexo de jurisprudências e multiplicidade de primeiras instâncias. Um dos belos argumentos de van Hecke é que os advogados atuantes em nações baseadas em common law, estando fundamentados no método causídico, acabam por se tornar mais sensíveis às nuances da prática, dos detalhes próprios do caso concreto. Enquanto isso, 18 Law Journal Press, 4ª edição, Nova Iorque: 1977, p. 528. O Capítulo 14 da referida obra retrata numa espécie de dramaturgia cenas corriqueiras por ele vivenciadas em determinada transação envolvendo companhia no ramo de softwares. 19 Tradução livre e literal: "Cena 12. Nunca deixe o 'bom o bastante' sozinho. [Segunda-feira, 11 de janeiro. PRUDENTE e INICIANTE estão no escritório de Prudente.] Prudente: Agora, Pete, mesmo com todos os maiores problemas resolvidos, ainda existem alguns pontos que podemos abordar elaborando uma minuta com uma redação mais adequada. Deixe-me mostrar a você, por exemplo, como eu acho que você deve lidar com essa cláusula de registro..."
  • 20. 19 os advogados atuantes em países sob civil law, sendo treinados com direito codificado, tendem a enfatizar mais princípios doutrinários. Ele conclui, dessa forma, que quanto um advogado nos Estados Unidos e um europeu desejam dizer a mesma coisa, o advogado estadunidense necessariamente usará mais palavras. Langbein posiciona sua linha de argumento nas diferenças de direito processual e suas respectivas instituições nos Estados Unidos e na Europa continental. Para ele, faz mais sentido procurar a explicação das diferenças entre os modelos contratuais anglo-americanos e europeus a partir dessa perspectiva, e não da tradicional "code law vs case law". Para Langbein, o direito processual nos Estados Unidos é ineficiente20 , além de ser caro, lento, imprevisível e ineficaz no que concerne ao desencorajamento de demandas frívolas. Diante desse cenário, o empresário prefere diminuir as eventualidades e imprevisibilidades de seus contratos através do preciosismo linguístico. Nos Estados Unidos, por exemplo, cada parte contratante presume de antemão que a outra parte pode causar consideráveis dificuldades através, especialmente, da apresentação voluntária de interpretações erradas de cláusulas. A parte diz que quer alguma coisa, escreve algo diferente mas reafirma que aquilo que pretende dizer com a cláusula escrita é o que as partes haviam negociado. Lá, diferentemente da Alemanha e demais países de common law, essa parte que agiu de má-fé poderá sim prevalecer no judiciário. E mesmo que essa parte não prevaleça no judiciário, poderá ser causadora de grandes custos à parte inocente na fase pré-litigiosa (custos com alocação de pessoal para elaboração de notificações e produção de provas, por exemplo). Essa estratégia de apresentar cláusulas a partir de erros conscientes de interpretação (strategic misinterpretation) pode, dessa forma, valer a pena nos Estados Unidos. O processo civil alemão, de outro lado, impõe limites à aplicação dessa strategic misinterpretation. Primeiro que há uma supremacia do princípio da boa-fé, pelo qual as partes 20 HECKE, Georges Van., op. cit., p. 386.
  • 21. 20 não ficam adstritas à literalidade do contrato, além da regra do “perdeu, pagou”. Tudo isso, via de regra, acaba por desestimular a parte faltosa a procurar resolver seus litígios no judiciário. Essa atuação do princípio da boa-fé no contexto do processo civil alemão permite, ainda, que o próprio juiz não fique preso ao contrato, mas, antes, deva procurar saber qual foi a intenção das partes no momento da celebração do contrato. Outros instrumentos pré- contratuais ou acessórios, além de documentos diversos, portanto, devem ser utilizados para delimitar a vontade das partes e identificar eventual má-fé de alguma delas. O interessante é que o sistema alemão confere muito poder aos seus juízes. E, dessa forma, deve ter formas eficientes de assegurar que esse poder seja usado de forma justa. É por isso que os juízes na Alemanha não são eleitos nem apontados por meio de um processo político. Eles são selecionados a partir de méritos intelectuais e acadêmicos, e, em seguida, são submetidos a um processo de treinamento especializado para esse fim. Além disso, o crescimento na carreira é baseado no julgamento exclusivo dos seus pares, e não por elementos externos21 . Importante destacar que no direito processual na Europa continental, essencialmente de civil Law, o juiz é aquele que analisa evidencias, examina provas e ouve testemunhas, sem que haja a possibilidade de júri nos julgamentos de casos envolvendo litígios contratuais como os aqui suscitados22 . 2.5 O Papel da Tradição e Interações Sociais Como já falamos anteriormente, as partes contratantes na Alemanha não procuram compelir o oportunismo tanto quanto naqueles contratos de modelo anglo-americano. 21 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words. op. cit., p. 905. 22 LANGBEIN, John H., The German Advantage in Civil Procedure, 52 U. Chi. L. Rev. 823 (1985), p. 826-828. Disponível em http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/536/. Última visualização em 5.7.2015.
  • 22. 21 Falamos que isso ocorre por duas razões principais: (i) a regra do “parar o quanto antes” (stop sooner) no processo de customização dos contratos e (ii) a estrutura do processo civil alemão. Outra razão possível, defendida por Hill e King23 , é o papel da tradição e das interações sociais como determinações nos processos de negociação, elaboração e execução dos contratos. A comunidade de players na Alemanha é pequena, quando comparada com aquela dos Estados Unidos. Na Alemanha, muitas indústrias estão concentradas em determinadas regiões, sem grandes dispersões. Assim, muitas transações ocorrem entre partes já acostumadas a transacionar. Além disso, as associações comerciais na Alemanha têm maior relevância que aquelas nos Estados Unidos. Em se tratando especificamente de contratos de M&A, observamos que aquisições feitas por players externos – e, consequentemente, assessorados por advogados de fora da comunidade –, como por exemplo por fundos de private equity, não têm tido considerável importância em termos quantitativos na Alemanha24 . Para finalizar esse ponto, o mercado de ações na Alemanha, em termos de controle societário ou participação relevante, não é tão disperso como o mercado nos Estados Unidos. Na Alemanha, os bancos detêm consideráveis participações em várias companhias. Segundo Eric Nowak25 , é bem comum encontrar um mesmo banco envolvido nos dois lados de uma transação. 23 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 907. 24 Vide Constantin Christofidis e Olivier Debande, Financing Innovative Firms Through Venture Capital, disponível em http://www.eib.org/attachments/pj/vencap.pdf. Último acesso em 5.7.2015. 25 Recent Developments in German Capital Markets and Corporate Governance, Journal of Applied Corporate Finance, vol. 14, nº 3, 2001. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=316123. Último acesso em 5.7.2015.
  • 23. 22 Todos esses fatores contribuem significativamente para um modelo de negociação não tão voltado para compelir o oportunismo das partes como assim o é nos contratos de modelo anglo-americano. 2.6 O Papel da Boa-Fé O direito material alemão impõe obrigações de boa-fé consideravelmente mais fortes que o direito nos Estados Unidos. Algumas dessas obrigações são dispositivas, outras são cogentes. O Código Civil alemão ("BGB") assim dispõe: "Seção 242. O devedor tem o dever de cumprir sua obrigação de acordo com os requisitos da boa-fé, levando em consideração a prática habitual"26 . Conforme observação de Reinhard Zimmermann e Simon Whittaker27 , essa Seção 242 do BGB tem sido usada largamente por partes e juízes para interferir nas relações contratuais no sentido de evitar graves injustiças. Hill e King sustentam que essa Seção 242 do BGB tem tido uma aplicação muito mais vasta do que a literalidade de seu texto poderia expressar28 . Tal Seção 242 impõe o dever às partes de agir em boa-fé durante a negociação de um contrato, e a garantia dada pelo vendedor numa aquisição ("culpa in contrahendo"). Essa disposição, dessa forma, pode fazer com que o vendedor seja responsabilizado por uma insuficiente divulgação de informações ao comprador, algo que, via de regra, não ocorreria nos Estados Unidos. A boa-fé, nesse sentido, assume papel consideravelmente relevante, seja na negociação ou execução de determinado contrato. Num contexto onde esse instituto impera, 26 "An obligor has a duty to perform according to the requirements of good faith, taking customary practice into consideration". Tradução livre. Versão em língua inglesa disponível em http://www.gesetze-im- internet.de/englisch_bgb/englisch_bgb.html#p0725. Último acesso em 6.7.2015. 27 Good Faith in European Contract Law, Cambridge, England, 1996, p. 25. Disponível em http://www.loc.gov/catdir/samples/cam032/99037679.pdf. Último acesso em 6.7.2015. 28 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 910.
  • 24. 23 supostamente, as partes contratantes são desestimuladas a agirem de forma incoerente, "mudando de ideia" no decorrer do dos processos de elaboração e execução contratual. Diante de uma ofensa à boa-fé observada em juízo, determinada provisão contratual poderá ser completamente ignorada. Ocorre que nos contratos complexos de modelo anglo-americano há uma tendência maior entre as partes em confiar apenas no estabelecido na cláusula de representações e garantias (representations and warranties). É a literalidade do contrato que indica a dimensão da interpretação desse instrumento. Na Alemanha, esse processo é diferente. A boa-fé deve agir de tal forma que a relação de confiança deve estar presente em tudo aquilo estabelecido no contrato e, ainda além, na relação das partes prévia à celebração do contrato e durante a execução deste. O exercício interpretativo das normas estabelecidas nos contratos, em especial aquela de representações e garantias, sob o princípio da boa-fé, deve, dessa forma, levar em consideração as práticas costumeiras no mercado daquela localidade, além das práticas intersubjetivas, conforme falamos acima. Como bem ressaltou Jeffrey Lipshaw, na atividade interpretativa, em se tratado de contratos de M&A, nós projetamos vários conceitos - confiança, representações, garantias - numa realidade de relacionamento entre vendedor e comprador29 . Para o mencionado autor, transformar as representações prestadas no âmbito de um contrato de M&A em meias- verdades ou omissões, e ignorar suas diferenças, é ignorar o significado de confiança. Essa é uma crítica direta ao modelo anglo-americano. Também nessa perspectiva, Claire Hill e Erin O'Hara defendem que o papel do direito não deve necessariamente ser de encorajamento ou desencorajamento de confiança entre as partes, mas de otimização dessa relação30 . 29 Of Fine Lines, Blunt Instruments, and Half-Truths: Business Acquisition Agreements and the Right to Lie, p. 31-32. Disponível em http://www.theconglomerate.org/2006/02/contracting_to_.html. Última visita em 13.7.2015. 30 A Cognitive Theory of Trust, MInessota Legal Studies Research Paper No. 05-51, Dezembro de 2005, disponível em http://ssrn.com/abstract=869423. Última visita em 13.7.2015.
  • 25. 24 Esses autores sustentam que os doutrinadores nos Estados Unidos pressupõem que a confiança entre as partes é totalmente benéfica, ou totalmente maléfica, sem considerar que a relação de confiança e desconfiança pode coexistir na mesma relação obrigacional. Na tese deles, o direito deve se preocupar em criar condições favoráveis para o encorajamento da confiança, nos momentos em que a confiança é mais benéfica para as partes, e para a desconfiança, naquelas situações contrárias. Um exemplo dessa relação confiança/desconfiança pode facilmente ser observado nas atividades que envolvem inspeção/monitoramento de obrigações contraídas (o que envolve uma desconfiança inerente), e, de outro lado, uma atividade de liderança/administração (o que implica confiança). De qualquer forma, seja em relação de confiança ou desconfiança, a boa-fé deve servir, como expôs Stephen Bainbridge, como um "lubrificante para reduzir o atrito social"31 . William A. Sahlman, no seu artigo How to Write a Great Business Plan32 , diz que é muito comum que os players envolvidos numa negociação se tornem extremamente criativos, elaborando vários tipos de modelos de recompensa e de opções (de compra e de venda de stock), o que, muitas vezes, colaboram para um maior atrito entre as partes negociantes. Ele33 , numa tentativa de mitigar essa fricção entre as partes, destaca as características de casos bem sucedidos: Eles são simples; Eles são justos; Eles enfatizam mais a confiança entre as partes do que desenvolvem "amarras legais"; Eles não se implodem caso sua aplicação prática se dê de forma minimamente diferente do previsto; Eles não incentivam comportamentos destrutivos ou competitivos entre as partes; e 31 Corporate Decision-Making and the Moral Rights of Employees: Participatory Management and Natural Law, Setembro de 1998, p. 37. Disponível em http://ssrn.com/abstract=132528. Última visita em 13.7.2015. 32 Harvard Business Review, julho-agosto de 1997, p. 107, disponível em https://hbr.org/1997/07/how-to-write- a-great-business-plan. Última visita em 13.7.2015. 33 Professor na Escola de Administração de Empresas de Harvard.
  • 26. 25 Eles são escritos numa pilha de papel não superior a meio centímetro de altura34 . Como mostrado, o processo de elaboração dos contrato leva em consideração elementos objetivos, subjetivos e intersubjetivos. As diferenças entre os modelos contratuais anglo-americano e alemão se apresentam em cada um desses elementos de forma bastante clara. A linguagem mais enxuta, a forma objetiva de lidar socialmente, um mercado de players mais reduzido e que costumam negociar entre si, uma tradição jurídica baseada em common law ou civil law, entre outras coisas, demonstram essas disparidades latentes. 34 "No greater than one-quarter inch thick", op. cit., p. 107.
  • 27. 26 3 INTERPRETAÇÃO DE CONTRATOS EMPRESARIAIS COMPLEXOS NOS SISTEMAS ANGLO-AMERICANO E ALEMÃO De acordo com Alan Schwartz e Robert Scott35 , há um efetivo consenso entre tribunais e doutrinadores que o objetivo principal da interpretação contratual é fazer com que o aplicador da lei encontre a "resposta correta" para o cumprimento do contrato. A busca dessa "resposta correta" seria a solução para o problema contratual enfrentado pelas partes, com frequência provenientes de cláusulas ambíguas, vagas, omissas ou em lacunas contratuais. A ideia principal é, dessa forma, determinar o que as partes de fato intentaram no momento da negociação e celebração do referido contrato. Segundo os mencionados autores, há duas justificativas para a busca dessa resposta correta. A primeira parte de uma perspectiva baseada na autonomia das partes. Essa leitura sustenta que o exercício de coerção pelo Estado contra uma pessoa deve ser justificado. Uma justificativa plausível para tanto seria dizer que os tribunais interferem nessa relação obrigacional no sentido de obrigar as partes a cumprirem o que elas efetivamente acordaram. Dessa forma, o aplicador do direito deve apenas encontrar o que as partes tinham acordado (ou intentavam acordar) para que esse objetivo seja alcançado. A segunda justificativa parte de uma perspectiva baseada na eficiência. As partes, a partir dessa visão, contratam para maximizar as vantagens que o negócio objeto do contrato pode criar. 35 Contract Theory and the Limits of Contract Law, University of Virginia School of Law, Law and Economics Research Paper nº 03-1, Yale Law Journal, vol. 113, 2003, p. 31. Disponível em http://papers.ssrn.com/abstract=397000. Última visita em 6.8.2015.
  • 28. 27 Esse alvo é inatingível se o aplicador do direito falhar ao compelir as partes a cumprir algo que ambas não almejavam, ou seja, caso o tribunal submeta as partes a uma solução diferente daquela dada pelas próprias partes. Assim, o tribunal deve estar certo de que a solução pretendida pelas partes (aquela pretérita, presente no momento de negociação e execução contratual) será efetivamente adotada. Nesse sentido, Schwartz e Scott defendem que as regras de interpretação contratual devem ser padrão e mandatórias, uma vez que conceder soberania para as partes delimitarem não somente a escrita, mas também a interpretação contratual pode levar a um imbróglio considerável, já que cada parte poderá ter uma "interpretação" diferenciada das "regras de interpretação". O foco é buscar segurança jurídica. Essa é uma grande diferença entre os modelos contratuais anglo-americanos e suas contrapartes alemães. Conforme abordamos anteriormente, na Alemanha há uma diversidade de normas padrão codificadas e de abrangência nacional, além dos comentários ao BGB, servindo para uma unificação na aplicação da norma. Isso favorece para uma maior segurança jurídica no momento de interpretar os contratos. As regras já foram definidas e todos os players já estão cientes delas. Dessa forma, evita-se buscar a exaustão na escrita e facilita o trabalho do juiz, muitas vezes não especializado na matéria envolvendo contratos complexos. Nos Estados Unidos, devido a todos os pontos já mencionados, como a diversidade de jurisdições, a falta de codificação e a variedade de players, além da tradição social, os advogados procuram se ater nos contratos não somente sobre a obrigação ali acordada, mas também sobre regras procedimentais sobre o próprio contrato. Isso gera horas a mais de trabalho e, consequentemente, custos adicionais às partes, além de elevar a probabilidade de eventuais gaps e dúvidas na hora de aplicar cada cláusula. Afinal, como dissemos, o excesso de escrita pode muito bem criar a falsa ideia do que aquilo que não está expressamente proibido, necessariamente está permitido.
  • 29. 28 3.1 Problemas de Significado e de Linguagem Schwartz e Scott levantam dois questionamentos sobre o processo de interpretação que muitas vezes se misturam36 : (i) o que a linguagem empregada no contrato quer dizer? e (ii) em que "linguagem"37 o contrato foi escrito? Para demonstrar que esses dois pontos são distintos e não devem ser confundidos, os referidos autores propõe que suponhamos dois grupos de comunidades linguísticas. O primeiro grupo, chamado aqui de M, consiste de um uma única comunidade linguística. Essa comunidade M é composta de juízes, advogados, empresários, conselheiros, diretores etc. Os membros de M se comunicam através da "língua majoritária", porque é a linguagem que as pessoas normalmente usam quando pretendem se comunicar entre si. O segundo grupo, chamado aqui de P, consiste de uma variedade de comunidades linguísticas. Cada comunidade integrante de P é composta de indivíduos que atuam num mesmo grupo de negócios. Dessa forma, o grupo P contém uma infinidade de comunidades, uma vez que há uma infinidade de grupos de negócio. Os membros do grupo P podem elaborar seus contratos na língua de seus respectivos pares, ou na "língua majoritária". Assim, a simples existência de uma variedade de comunidades linguísticas contribui para o surgimento de problemas na hora de identificar qual "grupo linguístico" foi tomado por base na hora de elaboração do contrato. Se as partes concordam sobre a linguagem com a qual o contrato foi escrito, o dever dos tribunais será limitado a encontrar o que as partes quiseram dizer com aquela específica linguagem. 36 Schwartz e Scoot, op. cit., p. 32. 37 A palavra empregada pelos autores, language, no texto original, permite a tradução tanto para "língua", como "linguagem". Como a ideia desenvolvida pelos autores faz referência à comunidades linguísticas, ou seja, grupos de pessoas com uma certa "linguagem" própria, adotamos aqui, em tradução livre, o vocábulo "linguagem", para que se evite qualquer ambiguidade como "idioma".
  • 30. 29 De outra lado, se as partes não concordam sobre qual foi a real linguagem utilizada por base na elaboração do contrato, o juiz deverá primeiramente descobrir se as partes escreveram o referido instrumento na "língua majoritária" ou numa língua privada, específica, própria da atividade negocial que atuam. Uma questão que é levantada pelos autores mencionados é se os tribunais deveriam criar incentivos para que as partes usem a língua majoritária na preparação de seus contratos, interpretando tais contratos como se sempre tivessem sido escritos nesse grupo linguístico, ou se as partes devem ter a liberdade de escrever com a linguagem que optarem. Um exemplo abordado no referido trabalho diz respeito ao vocábulo "esposa". Na linguagem técnica, a luz do direito, esposa é um status alcançado mediante o cumprimento de requisitos legais. Uma mulher é esposa de um homem quando ambos decidem se casar e, formalmente, preenchem todos os requisitos legais, culminando com uma certidão de casamento. No entanto, determinado indivíduo pode muito bem elaborar um testamento pelo qual deixa tudo para sua "esposa", referindo-se a mulher com qual tem vivido publicamente por décadas, mas não estando casado legalmente com ela. Para a comunidade que o conhece, muito certamente o termo "esposa" utilizado no documento não gerará qualquer dúvida. Mas para terceiros? E qual o eventual interesse desse terceiro? De uma forma contrária defende Steven L. Harris38 . Para o referido autor, as partes apenas deveriam descrever no contrato as respectivas regras de interpretação caso a desejável interpretação fuja às definições usuais dos termos empregados, seja em conformidade com o dicionário, seja em conformidade com o sentido atribuído pela atividade negocial sobre a qual o contrato dispõe. Harris sustenta: "Parties who wished to use language in a manner that would counteract the meaning otherwise attributed to it by the interpretive device (i.e., the dictionary or the relevant usage of trade) would need first to appreciate the need to do so. That is, they would need to be informed of the rule of interpretation (which is no small assumption) 38 Rules for Interpreting Incomplete Contracts: A Cautionary Note, Louisiana Law Review, vol. 62, nº 4, 2002, p. 1281. Disponível em: http://digitalcommons.law.lsu.edu/lalrev/vol62/iss4/13. Última visita em 25.8.2015.
  • 31. 30 and to realize that the meaning they ascribe (in their hands) to crucial terms differs from that of the interpretive device."39 Nesse contexto, mais uma vez as distinções entre um sistema de leis codificado e outro baseado em casos jurisprudenciais se tornam evidentes. Para mitigar esse exercício interpretativo pelo juiz, as partes nos Estados Unidos procuram delimitar ao máximo a língua utilizada nos seus contratos. É justamente por isso que os contratos complexos nos Estados Unidos seguem uma ordem lógica e estrutural para delimitar tanto "contexto", quanto a "linguagem" utilizada ali, deixando claro a quem for lê-lo (principalmente o juiz) o sentido mais próximo que as partes pretendem conferir ao instrumento. Dessa forma, os contratos sob o modelo anglo-americano destacam, inicialmente um "Whereas" (traduzido para o português como "Considerandos"), pelo qual as partes indicam o contexto no qual o contrato está sendo celebrado. Muitos contratos complexos nesse modelo anglo-americano ainda contemplam páginas e páginas de "Definições". Procura-se definir termos como "dia útil", "afiliada", "coligada" etc. Exemplos de "definições" frequentemente encontradas nos contratos de transações complexas sob o modelo anglo-americano: "'Affiliate' means, in relation to a Person, any Person that (i) directly or indirectly Controls such Person, (ii) is Controlled, directly or indirectly, by such Person, or (iii) is under, direct or indirect, common Control with such Person."40 "'Applicable Law' means any constitution, statute, law, regulation, rule, ruling, order, writ, injunction, judgment or decree of or by any 39 Tradução livre: "Partes que desejam usar a linguagem de uma forma que iria contrariar o significado de outra forma que lhe foi atribuída pelo dispositivo interpretativo (i.e. o dicionário ou o uso comumente usado no comércio) precisaria primeiro estudar a necessidade de fazê-lo. Ou seja, eles teriam de ser informados sobre as regras de interpretação (que não são uma suposição pequena) e teriam que perceber que o significado que eles atribuem (em suas mãos) para termos relevantes difere daquela do dispositivo interpretativo". 40 Tradução livre: "'Afiliada' significa, em relação a uma Pessoa, qualquer outra Pessoa que, direta ou indiretamente, por meio de uma ou mais Pessoas, Controla, é Controlada por ou está sob Controle comum com a Pessoa em questão.
  • 32. 31 Governmental Authority as in effect and applicable to such Person or its business, operations, properties or assets."41 “'Business Day' means any day (excluding Saturdays and Sundays) on which commercial banks generally are open for the transactions of normal banking business.42 "'Buyer' shall have the meaning ascribed to it in the introduction preceding the recitals."43 “'Dollar' means the currency in full force and effect in the United States of America."44 “'Party' shall have the meaning ascribed to it in the introduction preceding the recitals."45 “'Person' means any Governmental Authority or any individual, firm, partnership, corporation, limited liability company, joint venture, trust, unincorporated organization or other entity or organization, whether or not a legal entity."46 Após o estabelecimento dessas definições, passa-se a utilizá-las no corpo do contrato mediante o uso de termos iniciados com letra maiúscula. Sendo que, todos os termos não iniciados dessa maneira devem ser interpretados de acordo com a linguagem comum, ou a "linguagem majoritária", como falamos acima. Observe-se que muitos dos termos mencionados nos exemplos dados são definidos na lei ou estão pacificados na linguagem majoritária que um indivíduo não familiarizado com esse tipo de contrato pode facilmente achar tais termos redundantes. 41 Tradução livre: "'Direito Aplicável' significa qualquer constituição, estatuto, lei, regulamento, regra, decisão, ordem, mandado, liminar, sentença ou decreto de ou por qualquer Autoridade Governamental, em vigor e aplicável a tal Pessoa ou seus negócios, operações, propriedades ou ativos". 42 Tradução livre: "'Dia Útil' significa qualquer dia (excluindo sábados e domingos) nos quais os bancos comerciais normalmente operam para transações bancárias comuns". 43 Tradução livre: "'Comprador' deverá ter o significado a ele atribuído na introdução anterior aos Considerandos". 44 Tradução livre: "'Dollar' significa a moeda vigente nos Estados Unidos da América". 45 Tradução livre: "'Parte' deverá ter o significado atribuído na introdução anterior aos Considerandos". 46 Tradução livre: "'Pessoa' significa qualquer pessoa natural, empresa, sociedade, associação, trust, fundo de investimento, condomínio, organização não constituída e qualquer outra entidade, incluindo qualquer Autoridade Governamental.
  • 33. 32 Além disso, muitos desses contratos apresentam as chamadas "Rules of Construction", pelas quais as partes indicam regras interpretativas referentes ao próprio instrumento. Exemplos de "Rules of Construction" comumente encontradas em contratos de compra e venda de quotas ou ações são: 1. "All article, section, exhibit and schedule references used in this Agreement are to articles, sections, exhibits and schedules in this Agreement unless otherwise specified. The schedules and exhibits attached to this Agreement constitute a part of this Agreement and are incorporated herein for all purposes".47 2. "The term “includes” or “including” shall mean “including without limitation.” The words “hereof,” “hereto,” “hereby,” “herein,” “hereunder” and words of similar import, when used in this Agreement, shall refer to this Agreement as a whole and not to any particular section or article in which such words appear. The singular shall include the plural and vice versa".48 3. "Whenever this Agreement refers to a number of days, such number shall refer to calendar days unless Business Days are specified. Whenever any action must be taken hereunder on or by a day that is not a Business Day, then such action may be validly taken on or by the next Business Day."49 4. "Reference to a given agreement, instrument, document or Applicable Law is a reference to that agreement, instrument, document or Applicable Law as modified, amended, supplemented and restated through the date as of which such reference is made and, as to any Applicable Law, any successor Applicable Law".50 47 Tradução livre: "As referências a quaisquer documentos ou instrumentos incluem todos os respectivos anexos, aditivos, substituições, consolidações e complementações, exceto se de outra forma expressamente previsto." 48 Tradução livre: "Os termos 'inclui' ou 'incluindo' significam 'incluindo, sem limitação'. Os termos 'neste instrumento', 'por este instrumento', 'por meio deste' e semelhantes, quando usadas neste Contrato, devem referir-se a este Contrato como um todo e não a qualquer seção ou cláusula nas quais a referida palavra aparece. A palavra no singular deverá incluir o plural e vice versa". 49 Tradução livre: "Sempre que o presente Contrato referir-se a um número de dias, tal número deverá referir-se a dias corridos, salvo se Dias Úteis. Sempre que qualquer ação deva ser tomada nos termos deste Contrato em determinado dia que não seja Dia Útil, então esta ação poderá ser validamente tomada no dia imediatamente seguinte ao Dia Útil." 50 Tradução livre: "Referência a um dado contrato, instrumento, documento ou Lei Aplicável é uma referência àquele contrato, instrumento, documento ou Lei Aplicável, tais como modificados, alterados, complementados ou atualizados até a data a partir da qual a referência é feita, tal como para Leis Aplicáveis sucessoras".
  • 34. 33 5. "The captions in this Agreement are for convenience only and shall not be considered a part of or affect the construction or interpretation of any provision of this Agreement".51 Outras regras que têm sido bastante utilizadas nos contratos anglo-americanos são as chamadas material adverse change ("MAC") e material adverse effect ("MAE"). Essas cláusulas permitem que um comprador cancele, sem custos, o negócio caso alguma alteração ou efeito adversos atinjam o negócio de forma relevante. Ronald Gilson e Alan Schwartz tratam primordialmente sobre o tema no trabalho "Understanding MACs: Moral Hazard in Acquisitions"52 . Uma justificativa para o frequente uso dessas cláusulas, para os mencionados autores, está na natureza da interpretação judicial. Os advogados esperam que a interpretação de uma MAC ou MAE dada em determinado caso pelo tribunal pode ser influenciada pela prática das partes em outra transação: "A number of factors may have influenced this diffusion. Perhaps most interesting, the spread may have been due to the nature of judicial interpretation. Lawyers would expect that judicial construction of a traditional MAC term in a particular transaction would be influenced by changes in MAC terms in other transactions. In particular, how a court resolves the ambiguity in the traditional MAC formulation may be influenced by the practice of parties in other transactions to resolve the ambiguity explicitly."53 Em outras palavras: dentro do cenário de incertezas gerado pelo sistema jurídico norte-americano, o uso de tais mecanismos podem trazer um pouco mais de "bom senso", algo já inerente às concepções de boa-fé adotadas por países de civil law, pois, como já tratamos anteriormente, nesse sistema não há necessidade de se prever esses tipos de regras, uma vez que o direito codificado já fez esse trabalho. 51 Tradução livre: "As legendas deste Contrato são apenas para conveniência e não devem ser consideradas parte deste Contrato ou efeito de construção ou interpretação de qualquer cláusula deste Contrato. 52 Columbia Law School, Center for Law and Economic Studies, Paper nº 245; Stanford Law School, John M. Olin Program in Law and Economics, Paper nº 278; Yale Law School, Center for Law, Economics and Public Policy, Paper nº 292, p. 43. Disponível em http://ssrn.com/abstract=515105. Última visita em 25.8.2015. 53 Tradução livre: "Um número de fatores pode influenciar essa difusão. Talvez mais interessante, a propagação pode ter sido devido à natureza da interpretação judicial. Advogados esperariam que a construção judicial de uma tradicional cláusula MAC numa determinada transação poderia ser influenciada por mudanças numa cláusula MAC em outra transação. Particularmente, como um tribunal resolve uma ambiguidade de uma tradicional formulação de uma MAC poderá influenciar, pela prática das partes, outras transações para solucionar ambiguidades explícitas".
  • 35. 34 Em adendo, ao contrário dos modelos anglo-americanos, os contratos alemães não tem por destinatário final o juiz, mas as partes. É por isso que tais regras não têm razão de ser dentro do modelo alemão. 3.2 Soluções Padronizadas O direito contratual alemão contribui para que as partes lidem com questões "não controversas", pontos não centrais dentro de uma determinada transação, por conter soluções padronizadas para problemas comuns nas transações. Essas soluções apresentadas pelo direito alemão favorecem diretamente para uma redução dos custos de transação. Vejamos abaixo alguns exemplos dessas soluções padronizadas presentes no direito contratual alemão. 3.2.1 Soluções Padronizadas no Direito Contratual De acordo com Hill e King54 , há muito mais lei contratual codificada aplicável a negócios complexos na Alemanha que nos Estados Unidos. Além disso, uma vez que a Alemanha tem um sistema de civil law com apenas uma jurisdição, a lei é geralmente bastante uniforme em todo o território nacional. O direito contratual alemão dispõe, ainda, de muitos comentários ao BGB detalhados (como o Palandt), que são considerados como fontes de direito. Essas regras de direito contratual estão basicamente descritas no Direito Alemão das Obrigações, parte do Código Civil alemão (BGB). O Direito das Obrigações tem um 54 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 912.
  • 36. 35 capítulo contendo regras pertinentes a todas obrigações, incluindo obrigações contratuais (§§ 241 - 304 BGB). As regras aplicáveis às obrigações contratuais abordam interpretação, cumprimento e inadimplemento. Conforme já mencionamos anteriormente, em comparação com o sistema legal estadunidense o direito alemão dispõe de muito mais regras aplicáveis a eventuais "gaps" contratuais. Nos Estados Unidos, a maior parte dessas regras aplicáveis ao preenchimento de lacunas contratuais estão no Artigo 2º do UCC55 , voltada apenas a venda de bens e, portanto, não compreendendo a maioria das transações complexas. Importante destacar que no direito contratual alemão a definição de conceitos no Direito das Obrigações inclui cumprimento substancial do contrato, alocação de risco em caso de erro, há especificação de quando o prazo para notificações começa a correr, incluindo notificações de inadimplemento (§ 187), quando esse período se encerra (§ 188), o número de dias a serem contados num mês e num ano (§ 191), além de definir "dia útil" (§ 193), "afiliado", "coligada", "bem imóvel" (§§ 94-98), e muitos outros termos que encontramos nas "Definições", incluídas nos contratos sob o modelo anglo-americano. Como nos Estados Unidos não há essa especificação presente nos códigos de leis, há a necessidade de incorporá-la e descrevê-la no próprio corpo do contrato, que passa a ser a fonte única dessas disposições. A título exemplificativo, a Seção 463 do BGB apresenta uma provisão sobre os procedimentos para exercício de direito de preferência. Se as partes concordarem com a aplicação de direito de preferência de acordo com o disposto no BGB, poderão utilizar uma mera sentença do gênero: "A outorga a B direito de preferência na aquisição das ações detidas por A na Companhia". As partes, portanto, não precisam se debruçar sobre cláusulas e mais cláusulas repetindo o procedimento que já foi devidamente estabelecido por lei. E, dessa forma, caso as 55 Disponível em https://www.law.cornell.edu/ucc/2/article2. Última visita em 5.8.2015.
  • 37. 36 partes decidam alterar apenas alguma parte do procedimento ordinário presente no BGB, elas poderão apenas especificar exatamente o que será diferente. Em palavras mais claras: o direito contratual alemão dispõe de muitas provisões padrão que contribuem diretamente para uma redução na extensão e repetição de seus contratos, e, consequentemente, uma diminuição de eventuais dúvidas na interpretação deles. Essas disposições padrão no direito contratual alemão são muitas vezes disponíveis para eleição: as partes podem ou não adotá-las. E as partes costumam adotá-las56 . O direito alemão é ainda mais apto que o direito contratual nos Estados Unidos para respeitar as especificações, acordadas pelas partes, de uma quantia relativa a indenizações. Nos Estados Unidos, esse tipo de disposição pode muito facilmente ser considerada inaplicável se tiver "aberta demais". É justamente por isso que as partes devem elaborar suas disposições sobre indenização de forma bastante minuciosa para que a chance de invalidação dessa cláusula pelas cortes seja minimizada. O direito contratual alemão dispõe, em paralelo às especificações acima mencionadas, sobre provisões particulares a determinados tipos de contratos, como compra e venda, mútuo, locação, empreitada etc., o que não ocorre com tanta riqueza de detalhes no direito contratual nos Estados Unidos e Inglaterra. 3.2.2 Outras Soluções Padronizadas O início da elaboração contratual, baseada numa minuta comumente "padrão", é algo que difere enormemente entre os modelos contratuais anglo-americano e alemão. 56 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 914.
  • 38. 37 Um exemplo da perspectiva norte americana nesse "first drafting" é descrito na obra, citada anteriormente, de James Freund57 : "You must recognize that each transaction has its own individualized thumbprint. (...) I want to call special attention to one cardinal sin that I find young (and often mature) lawyers commit time and again. The ABC deal comes in to the office. The partner evaluates it, calls in an associate, gives him the facts, and tells him to prepare a draft 'modeled on the XYZ acquisition that we did in January (...) What the associate should have done, of course, was to go back to the first draft of the XYZ deal in the files, and mark that up".58 Sob o ponto de vista das práticas contratuais alemãs, as coisas são bem diferentes. Algumas soluções fora do direito também podem ser encontradas na Alemanha. Exemplos bastante comuns são as minutas disponibilizadas pelas associações de comércio. Esse tipo de associação tem considerável espaço na Alemanha, o que não ocorre nos Estados Unidos. Como o direito alemão bem permite, as cláusulas adotadas por determinada associação de comércio podem ser tomadas como referência. Por exemplo, um contrato de mútuo pode ser consideravelmente curto porque ele pode incorporar por referência as condições gerais estabelecidas nos Termos e Condições Gerais dos Bancos, uma minuta padrão59 . Talvez ainda mais impressionante é o fato de que as bancas de advogados na Alemanha normalmente disponibilizam suas minutas - e essas minutas são mais facilmente adotadas por outros advogados. Nos Estados Unidos e Inglaterra, mesmo dentro de um escritório especializado em M&A, por exemplo, cada equipe ou mesmo advogado tem sua própria minuta e "jeito de escrever"60 . 57 Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for Negotiating Corporate Acquisitions, op. cit., p. 141-142. 58 Tradução livre: "Você deve reconhecer que cada transação tem sua impressão digital própria. (...) Eu quero chamar a atenção em especial de um pecado capital que eu vejo jovens advogados (e, muito frequentemente, sêniores também) cometendo comumente. O negócio ABC chega ao escritório. O sócio responsável avalia, chama o associado, apresenta-lhe os fatos e pede-lhe que prepare uma minuta 'modelada na aquisição de XYZ que fizemos em janeiro (...). O que o associado deveria fazer, claro, seria voltar para a primeira minuta do negócio XYZ e então marcá-la". 59 Vide How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 915. 60 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 915.
  • 39. 38 3.2.3 Soluções Padronizadas Podem Ser Adotadas nos Estados Unidos? Hill e King tecem a seguinte pergunta: "se soluções padronizadas são tão vantajosas, por que elas não podem ser alcançadas nos Estados Unidos?"61 . Conforme já mencionamos supra, uma primeira razão está no federalismo estadunidense. Enquanto na Alemanha o direito civil é federal, nos Estados Unidos há 50 leis estaduais lidando sobre o assunto, além do sistema de common law. Além disso, caso as associações de comércio - que não têm tanta relevância quanto na Alemanha - nos Estados Unidos tentassem uniformizar as minutas contratuais, tal iniciativa poderia ser considerada ilícita diante das leis antitruste (Seção 1 do Sherman Act). Na Alemanha, como dissemos, há uma maior homogeneidade nas transações locais. As partes normalmente se conhecem, o que favorece uma maior confiança no momento da negociação e execução dos contratos. Nos Estados Unidos essa homogeneidade é praticamente impossível de existir. Há não somente uma diversidade de players locais, como transações cross-border, o que faz com que as partes lidem com uma infinidade de jurisdições. Não se pode desconsiderar, inclusive, a influência da cultura do povo, que acaba por influenciar a forma de negociar e executar relações obrigacionais. Sabe-se que o povo estadunidense é desconfiado e tende a pensar que cada um, a qualquer momento, pode tirar uma vantagem sobre o outro. Nesse sentido, as bancas de advogados disputam entre si justamente na perspectiva do quem tem a "cover everything form"62 , além de advogados treinados para discutir sobre todos os pontos existentes. 61 How Do German Contracts Do As Much With Fewer Words, op. cit., p. 921. 62 Ou: uma minuta capaz de cobrir todos os pontos relevantes de uma infinidade de transações.
  • 40. 39 4 O MODELO BRASILEIRO Volvendo nossos olhares ao direito pátrio, observamos que, por aqui, basicamente todos os documentos elaborados no âmbito das negociações complexas de fusões e aquisições seguem o modelo anglo-americano. Para fins deste trabalho, esclarecemos que, ao tratarmos de contratos empresariais complexos diante do “modelo brasileiro”, estamos nos referindo aos contratos domésticos, celebrados aqui e envolvendo partes brasileiras. A nossa investigação para determinar o porquê desse evento inusitado, tendo em vista o fato de que nosso ordenamento jurídico se assemelha muito mais àquele alemão, é nosso desafio aqui. E, deve-se alertar, que a resposta não pode ser dada somente e exclusivamente com base em argumentos jurídicos ou mesmo de "supremacia econômica" norte-americana. Acreditamos que a justificativa é muito mais profunda e encontra demasiada relevância no perfil social do brasileiro, como procuraremos demonstrar a seguir. 4.1 Para Quem se Destina o Contrato Elaborado no Brasil? Estudamos no item 2.1 quem seria o destinatário do contrato, se as partes negociantes ou o tribunal. Concluímos que, enquanto o modelo contratual anglo-americano visa à diminuição do oportunismo, procurando instruir o juiz sobre a vontade das partes (inclusive sobre a interpretação do próprio texto contratual, como tratamos no item 3.1), o modelo alemão procura exprimir a vontade das partes, servindo como verdadeiro guia daquilo que foi transacionado. Observamos que alguns grandes fatores dessa postura alemã se dão por conta (i) do modelo de civil law, possibilitando a elaboração de contratos mais enxutos e diretos e dando certa previsibilidade no âmbito dos tribunais; (ii) do número de players, que é consideravelmente menor no mercado doméstico alemão, sendo que muitos deles acabam se envolvendo em reiteradas transações e, assim, há uma necessidade inerente de confiança
  • 41. 40 mútua; e (iii) do perfil do cidadão alemão, que, ao contrário do norte-americano, não é um sujeito tão "desconfiado" do seu vizinho. Se trouxermos esses pontos acima à realidade brasileira, poderemos concluir que o contrato elaborado no Brasil deveria seguir o mesmo modelo que aquele doméstico alemão. Ora, (i) estamos sob o sistema de civil law, com uma legislação consideravelmente vasta sobre a elaboração de contratos e sua interpretação; (ii) o número de players no Brasil é ainda infinitamente menor do que aquele alemão; e (iii) contamos com um judiciário unificado em todo o território nacional, de carreira, sem indicações políticas para os cargos em primeira instância. Esses elementos, como defendemos anteriormente, contribuem significativamente no modelo jurídico desenvolvido pelas partes na ora de contratar. E basicamente todos os argumentos que usamos para justificar o motivo pelo qual os contratos domésticos alemães são mais concisos, diretos e dirigidos às partes, estão presentes aqui no Brasil, exceto um, que trataremos logo mais. Por que, então, adotamos um contrato vasto, prolixo, repetitivo de cláusulas já definidas em lei, ao invés de um instrumento curto, objetivo e, consequentemente, de custo consideravelmente mais baixo às partes envolvidas na transação? Nesse sentido, mostra-se bastante pertinente a observação da professora Paula Forgioni63 : "A primeira e necessária advertência diz respeito à descuidada importação de institutos, sem a consideração daquelas que Ascarelli chamou de 'premissas implícitas' de cada ordenamento. Observou o mestre italiano que, no estudo de institutos estrangeiros, as 'premissas implícitas' próprias de cada sistema não podem ser desprezadas. No entanto, essa singela recomendação não é sempre atendida, de sorte que alguns simplesmente entornam a experiência estrangeira sobre nosso sistema, pretendendo imprimir direcionamento que lhe é estranho". 63 Teoria Geral dos Contratos Empresariais, Editora dos Tribunais, São Paulo: 2009, p. 60.
  • 42. 41 Acreditamos que o fator determinante dessa característica dos contratos brasileiros é o elemento social. A prática empresarial aqui adotada foi, historicamente, sempre influenciada pelos britânicos e, após, pelos nossos colegas estadunidenses. Sabemos, aliás, que o direito não se atém na criação de novas figuras jurídicas para tratar de coisas ainda não criadas no "mundo real". O direito não criou o cheque, por exemplo, mas apenas o regulou. Da mesma forma, entendemos que (i) a prática empresarial no Brasil, fortemente influenciada por britânicos e estadunidenses, adquiriu a forma e as características dos instrumentos contratuais (tanto em fase de negociação, contratação e execução) anglo-americanos; e (ii) esse modelo de contratação “fits like a glove” no perfil do brasileiro. Sobre o primeiro ponto, não é difícil compreendermos essa influência anglo- americana nas nossas relações empresariais. Os primeiros movimentos de contratações complexas se deram, de forma insipiente, no governo de Juscelino Kubitschek, por conta do leve crescimento na indústria automobilística. Após, com o surto industrial ocorrido no Governo Militar e, por fim, com o advento do Plano Real. Em todas essas fases observamos a preponderância do capital internacional, já acostumado com um determinado tipo de contratação. Junte-se a isso um mercado advocatício extremamente minguado e inexperiente em práticas empresariais envolvendo operações cross- border. Tanto é que a primeira grande geração de advocacia empresarial no Brasil se deu com o retorno do advogado José Martins Pinheiro Neto64 da Inglaterra ao Brasil, em 1942, trazendo consigo, além do domínio da língua inglesa, conhecimento e contatos por lá adquiridos. Houve, inegavelmente, uma importação de um modelo contratual. 64 Fundador da famosa banca de advogados "Pinheiro Neto".
  • 43. 42 Sobre o segundo ponto, sabe-se que o povo brasileiro, pelo menos nos grandes centros urbanos, é um povo extremamente desconfiado. Prova disso está no conhecido “jeitinho brasileiro”, de tirar vantagem sempre nas relações que se envolve. Um perfil de contratação voltado a mitigar esses possíveis oportunismos, a frear esse ímpeto de tirar vantagens, caiu bem no perfil brasileiro. É assim que em diversas situações nossos contratos parecem incorporar muito mais princípios alienígenas, germinados em realidade completamente diversa da nossa, do que aqueles que de fato determinam nossa essência (como no caso da boa-fé), gerando um risco para a eficácia e efetividade do direito pátrio. 4.2 Exemplos de Cláusulas de Contratos Complexos no Brasil Da mesma forma que estruturamos o item 2.2, para uma melhor visualização, citaremos algumas cláusulas-padrão nos contratos complexos envolvendo grandes players no mercado brasileiro. Observe, no entanto, que nosso objetivo neste item 4.2 é ligeiramente diferente daquele. Ao invés de compararmos cláusulas de modelos diversos para demonstrarmos como um tem redação rebuscada, customizada, repetitiva e prolixa, enquanto o outro é curto e direto, apresentaremos algumas cláusulas para provar que sua existência é como "órgão vestigial": existindo ou não, o efeito é o mesmo. Exemplos de definições frequentemente adotadas em contratos que têm expressa previsão legal: # Definição Contratual Previsão Legal 1. “Afiliada” significa, em relação a uma Pessoa, qualquer outra Pessoa que, direta ou indiretamente, por meio de uma ou mais Pessoas, Controla, é Controlada por ou está sob Controle comum com a Pessoa Arts. 265 e seguintes da Lei 6.404/76 ("LSA"): "Art. 265. A sociedade controladora e suas controladas podem constituir, nos termos deste Capítulo, grupo de
  • 44. 43 # Definição Contratual Previsão Legal em questão. sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns." § 1º A sociedade controladora, ou de comando do grupo, deve ser brasileira, e exercer, direta ou indiretamente, e de modo permanente, o controle das sociedades filiadas, como titular de direitos de sócio ou acionista, ou mediante acordo com outros sócios ou acionistas. (...)" 2. “Controle” significa, com relação a uma Pessoa, (i) o poder detido por uma outra Pessoa de eleger, direta ou indiretamente, a maioria dos administradores e de determinar e conduzir as políticas e administração de tal Pessoa, quer isoladamente ou em conjunto com suas Afiliadas; ou (ii) a titularidade, direta ou indireta, por uma Pessoa e suas Afiliadas, de pelo menos 50% (cinquenta por cento) mais 1 (uma) ação/quota representativa do capital social votante da Pessoa em questão. Termos derivados de Controle, como “Controlada”, “Controladora” e “sob Controle comum”, terão significado análogo ao de Controle. Art. 116 da LSA: "Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender." 3. “Pessoa” significa qualquer pessoa natural, empresa, sociedade, associação, trust, fundo de investimento, condomínio, organização não constituída e qualquer outra entidade, incluindo qualquer Autoridade Governamental. Arts. 1º, 2º, 40, 41, 44 e 45 da Lei 10.406/02 ("Código Civil"): "Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil." "Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro."
  • 45. 44 # Definição Contratual Previsão Legal "Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno: I - a União; II - os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; III - os Municípios; IV - as autarquias; IV - as autarquias, inclusive as associações públicas; V - as demais entidades de caráter público criadas por lei." "Art. 42. São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público." "Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades; III - as fundações. IV - as organizações religiosas; V - os partidos políticos; VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada." Art. 12 da Lei 5.869/73 ("CPC"): "Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (...) VII - as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração dos seus bens; (...) IX - o condomínio, pelo administrador ou pelo síndico." 4. “Propriedade Intelectual” significa todas e quaisquer (a) marcas, nomes comerciais, nomes corporativos, logos, marcas de serviço, patentes, trabalhos patenteáveis, nomes de marcas, desenho industrial ou de produto, nomes de fantasia ou de produto, slogans, direitos de publicidade, metodologias, programas de computador e software (incluindo todos os códigos fonte, códigos objeto, ferramentas de Arts. 2, 8, 9, 10, 11, 95, 96, 97 e 123 da Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial): "Art. 2º A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua- se mediante: I - concessão de patentes de invenção e de modelo de utilidade;
  • 46. 45 # Definição Contratual Previsão Legal desenvolvimento, arquivos, registros e informações), invenções, modelos, pedido de registro de patentes e divulgação de patentes, e outros direitos ou informações registradas, sejam ou não sujeitas a registro por Lei, bem como toda informação técnica relacionada; (b) sítios de internet, domínios e toda propriedade intelectual usada com relação a ou contida na rede mundial de computadores; (c) segredos de comercialização, incluindo informações, ideias, pesquisa e desenvolvimento, know-how, fórmulas, composições, processos e técnicas de produção, informações técnicas, desenhos, especificações, listas de fornecedores e clientes, informações de custo, preço e negócios, planos de marketing e propostas, confidenciais ou não; (d) direitos ou licenças para uso de qualquer um dos itens descritos; e (e) direitos mundiais de (pendentes registros ou pedidos de registro brasileiros e/ou estrangeiros) quaisquer dos itens descritos e quaisquer pedidos de registro, registros e renovações relacionadas aos itens descritos acima. II - concessão de registro de desenho industrial; III - concessão de registro de marca; (...)" 5. “Tributos” significa qualquer tributo, contribuição, cobrança, tarifa, taxa, imposto ou outra cobrança governamental, seja federal, estadual ou municipal, incluindo, mas não limitado a, imposto de renda, impostos retidos na fonte, impostos sobre a circulação de mercadorias, impostos sobre produtos, importação, exportação, ad valorem, contribuições sociais e previdenciárias, impostos sobre serviços ou sobre transações financeiras. Arts. 3º e 5º da Lei 5.172/66 ("CTN"): "Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada." "Art. 5º Os tributos são impostos, taxas e contribuições de melhoria." Como é nítido, nossos contratos estão impregnados de disposições já tratadas em lei. Considerável número de páginas e quantidade de tempo poderiam ser poupadas caso a disposição contratual fizesse mera referência ao texto legal, limitando-se a abordar apenas o eventual acordo sobre disposição diferente da regra geral expressa em lei.
  • 47. 46 4.3 Custos de Transação e Oportunismo Tratamos no item 2.3 sobre o imenso custo envolvido no processo de mitigação de oportunismo ao qual o player contratante sob o modelo anglo-americano está disposto a desembolsar. Aqui no Brasil as coisas não são tão diferentes. Nas palavras da professora Paula Forgioni, "no momento da celebração, as partes acreditam que estarão 'melhor com o contrato do que sem ele'"65 . Nesse sentido, só valerá a pena a celebração de determinado contrato caso as partes entendam que o negócio proporcionará mais vantagens que desvantagens. O cálculo a ser feito para saber se “contratar” é melhor que “não contratar” importa em análise, também, dos custos da transação. Gasta-se com financial advisors, com advogados, com due diligences, além de alocar horas dos membros da administração da empresa para a análise e negociação do negócio. Ainda há um risco de vazamento de informações confidenciais a concorrentes, como de insider trading e movimentos afins. Enfim, os custos são altos e, para valer a pena, o deal precisa trazer benefícios mais consideráveis ainda. Com a escolha do perfil de contratação, como falamos no item 4.1, o brasileiro declarou que prefere gastar mais para ter mais segurança jurídica. E é por isso que resolvemos comprar um pequeno mal hoje para evitar um grande mal amanhã. 65 Teoria Geral dos Contratos Empresariais, op. cit., p. 60.
  • 48. 47 4.4 O Papel da Boa-Fé no Direito Brasileiro Grande desafio para a interpretação dos contratos, especialmente os complexos, no Brasil tem sido o princípio da boa-fé. Pode-se elaborar o contrato mais customizado possível, pode-se tentar definir todos os conceitos e premissas no instrumento contratual, pode-se tentar estabelecer os critérios de responsabilização das partes e limitar a imposição de penalidades, mas se houver uma quebra da boa-fé, todas essas disposições podem ser desconsideradas. Como bem expressou o professor Calixto Salomão Filho: “[é] da amplitude interpretativa da expressão boa-fé que decorre sua dificuldade de aplicação”66 . Pelo princípio da boa-fé, busca-se a cooperação entre as partes na execução do objetivo econômico do contrato. Mas não é só isso. Procura-se hoje a boa-fé desde as tratativas, com responsabilidades pré-contratuais, como após o término da relação obrigacional. 4.4.1 A Boa-Fé Durante as Tratativas Para a celebração de um contrato, os contratantes podem se valer de uma fase preliminar de tratativas. Nessa fase, não há um acordo definido, mas já é suscetível de gerar direitos e obrigações. Essa fase das tratativas é bastante comum no processo de celebração de contratos empresariais complexos. Às vezes tal fase demonstra sua existência por meio de comunicações trocadas, mas às vezes alguns instrumentos podem ser confeccionados, apontando as diretrizes das negociações e a convergência de acordos, como nos casos de 66 Breves Acenos para uma Análise Estruturalista do Contrato, in Revista de Direito Mercantil, nº 141, jan/mar de 2006, Malheiros, São Paulo, p.20.
  • 49. 48 acordo de intenções ou memorando de entendimentos não vinculantes. Há, inegavelmente, custos envolvidos e, portanto, expectativas em torno das tratativas. O professor Haroldo Verçosa trata brilhantemente sobre o assunto. A título exemplificativo, estudando Vincenzo Roppo, o ilustre professor destaca: “(i) a atitude de se deixar alguém participar de uma longa fase de tratativas objetivando a conclusão de um determinado contrato, sem que a outra desde o início não tivesse a mínima intenção de fazê- lo, o que seria baseado tão somente no interesse de se levantar o preço potencial de um bem determinado; (ii) também seria o caso de se prender um sujeito a determinadas tratativas a fim de vinculá-lo em uma negociação fingida, para o fim de afastá-lo de outro negócio em que o agente tivesse interesse; e (iii) a ausência da necessária diligência nas tratativas feita por algum interessado, de cuja falta resultasse posteriormente a recusa em contratar, alegando tardiamente aquele que a contraparte não apresentava as necessárias condições técnicas que seriam exigidas para o fechamento do acordo”67 . Há, dessa forma, um dever objetivo das partes de informar corretamente a contraparte sobre as circunstâncias do negócio. Não pode um, por exemplo, se valer de meias- verdades (half-truths) para dar a entender, indiretamente, que todas as informações foram repassadas, ou mesmo de forma a induzir a contraparte a erro. Como aponta o professor Verçosa, “o silêncio, conforme as circunstâncias, é passível de consistir em reserva mental, reprovável, vindo a acarretar a responsabilidade do sujeito se dele surgirem prejuízos para a contraparte”68 . Além do dever objetivo de informar, as partes têm o dever de clareza, além de transparência e sigilo. Na fase de tratativas as partes podem ficar expostas a segredos comerciais e estratégicos umas das outras. Há, assim, inegável risco de prejuízos e, consequentemente, responsabilização. 67 Contratos Mercantis e a Teoria Geral dos Contratos: o Código Civil de 2002 e a Crise do Contrato, Quartier Latin, São Paulo, 2010, p. 233. 68 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc., op. cit., p. 236.
  • 50. 49 4.4.2 A Boa-Fé na Execução do Contrato No mesmo sentido de preservar a confiança entre as partes, a boa-fé se manifesta durante a execução do contrato de algumas formas. Uma delas é proibindo o comportamento contraditório das partes (venire contra factum proprium). O efeito da aplicação da boa-fé, nesse contexto, se dá de forma mais efetiva no momento da interpretação contratual. E isso deve ser feito desde o momento das tratativas, mencionado acima. Se uma parte vem se posicionando de uma forma determinada em relação a um dado assunto, e, por conta de uma mudança na composição da sua administração passa a interpretar determinada cláusula de forma diversa, há evidente quebra do dever de confiança, gerando grande instabilidade na relação obrigacional entre as partes contratantes. O princípio da boa-fé, como elemento componente da estrutura das relações obrigacionais, incide sobre esse fato ao proibir a nova interpretação pretendida pela parte. Atua, nesse caso, de forma negativa. Da mesma forma apresentam-se os institutos da suppressio, surrectio e tu quoque. A suppressio consiste na “situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé”69 . A surrectio, conforme o ensinamento do professor Humberto Theodoro Júnior, opera em sentido inverso, ou seja, “o de constituir uma situação jurídica nova entre as partes da relação obrigacional”70 . 69 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da Boa-Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1997, p. 796. 70 O Contrato e sua Função Social: a boa-fé objetiva no ordenamento jurídico e a jurisprudência contemporânea, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2014, p. 65.
  • 51. 50 A tu quoque, por sua vez, “traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído”71 . De outro lado, a boa-fé se apresenta como um comando positivo ao instituir o dever às partes de mitigar o próprio dano (duty to mitigate the loss. Nesse sentido, há uma expectativa de que as partes procedam, mesmo diante de eventual inadimplemento, de forma proba, cooperativa e leal. Assim, os contratantes devem se atentar a tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado, ou seja, o credor deve agir de forma a mitigar o próprio dano por ele sofrido. 4.4.3 A Boa-Fé Após o Término do Contrato O exaurimento das obrigações contratuais, seja por qualquer motivo (rescisão, denúncia ou cumprimento total da obrigação), não afasta alguns deveres impostos às partes. O ponto mais sensível nessa esfera diz respeito ao dever de confidencialidade. Não podem as partes usar toda a informação a qual tiveram acesso sobre a contraparte, por conta do vínculo contratual, em benefício próprio ou de terceiro, ou mesmo de forma a prejudicar a parte com quem havia contratado. Da mesma forma, têm-se também a vedação – salvo disposição contratual contrária – à concorrência desleal, comum em contratos de aquisição. Impõe-se o dever negativo a determinada parte de, por um prazo determinado, não atuar no mesmo ramo de atividade da sociedade vendida, em dada localidade. Esses posicionamentos já solidificados no direito brasileiro encontram grande correspondência com seus equivalentes no direito alemão (e demais estados codificados 71 MENEZES CORDEIRO, op. cit. p. 837.
  • 52. 51 europeus). Ocorre que essa tendência contemporânea de limitar a liberdade contratual acaba por, também, gerar incerteza diante de nossos contratos complexos extremamente customizados e completos. Deve-se levar em consideração, como ressaltou o professor Calixto Salomão, que “[t]odas essas características fazem surgir um novo contrato, instrumentalizado aos interesses da sociedade, representados pelas garantias institucionais. São elas o seu limite, impondo que as obrigações nele contidas sejam dissecadas de forma a respeitar os interesses da sociedade atingidos”72 . 72 Função Social do Contrato, in Doutrinas Essenciais – Obrigações e Contratos – Contratos: Princípios e Limites, vol 3, org. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011, p. 681.