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Baixar para ler offline
um mapeamento
da loucura
antes e depois
da reforma
psiquiátrica
Patricia Sereno Zylberman
DUPLA PENITÊNCIA:
obra Alvo
de Bispo
do Rosário
Trabalho de Conclusão de Curso em
Comunicação - Jornalismo apresentado em
2015 na Faculdade de Jornalismo da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Sob a
orientação do Prof. Sílvio Roberto Mieli.
Dedico o meu livro ao meu avô Reynaldo.
A pessoa que mais sentia orgulho de mim
independente do que eu fizesse. Saudades.
AGRADECIMENTO
	
Primeiramente, agradeço ao meu orientador
Silvio Mieli que aceitou esse tema tão fora dos
padrões jornalísticos e me acalmou quando
tive meus medos e estresses ao longo do ano.
Gostaria de agradecer aos meus pais, Deborah
e Claudio, que aguentaram minhas mudanças
de humor repentinas, sempre tentando me
acalmar e afirmar que tudo daria certo. Em
especial à minha mãe que me introduziu a
esse mundo e me mostrou os diferentes lados e
questões da “loucura”.
Às minhas amigas e amigos por me apoiarem
nesse tema tão difícil e me respeitarem nos
momentos em que tive minhas crises durante
esse difícil ano. Acho que o apoio que nós,
formandas da PUC, demos umas as outras foi
essencial, pois passamos a perceber que todas
tínhamos dificuldades e problemas no processo
de realizarmos o TCC.
Por fim, gostaria de agradecer especialmente
aos meus entrevistados que me concederam
uma parte de seu tempo, respeitando o fato de
que, ao menos no início do trabalho, eu não
soubesse os pormenores do tema.
“A loucura é relativa. Quem pode definir
o que é verdadeiramente são ou insano?”.
Woody Allen
SUMÁRIO
1. Introdução.....................................................................11
2. O Encarceramento Sucessivo da Loucura....................17
3. Juqueri Através dos Anos..............................................31
3.1 O Hospital Psiquiátrico..............................................38
3.2 O Hospital de Custódia..............................................52
4. A Reforma Psiquiátrica.................................................77
5. Fora dos Muros Manicomiais........................................87
5.1 Companhia Teatral Ueinss..........................................89
5.2 Centro de Atenção Psicossocial...................................98
5.3 Acompanhamento Terapêutico.................................104
5.4 Residências Terapêuticas..........................................112
6. Conclusão....................................................................121
7. Referências Bibliográficas...........................................125
11
1.	 Introdução
Recordo-me do dia em que decidi que iria tratar
do tema manicômio judiciário e hospital psiquiátrico
de Franco da Rocha e as novas terapias alternativas em
meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Lem-
bro-me, ainda mais, da reação das pessoas quando as
contei. Enquanto algumas simplesmente não tinham
conhecimento algum do tema, as que sabiam do que
se tratava acharam que eu deveria ter escolhido um
assunto mais simples para tratar ou simplesmente algo
menos perigoso e que eu era – veja a ironia – “louca”
de tentar estudar e entrar em contato com essas pesso-
as que, na visão do senso comum, estão longe de apre-
sentarem um grau aceitável de sanidade.
Sempre, com alguma dificuldade, explicava
que eu estava tentando sair da minha zona de confor-
to e que queria conhecer mais a fundo as pessoas que
tinham passado grande parte de suas vidas presas em
um local fechado, sem um tratamento humanizado e
que poucas vezes tiveram chance de contar suas histó-
rias. Meu intuito inicial era conversar com aqueles que
ainda estavam presos no manicômio judiciário André
Teixeira Lima I e II.
Com o início da pesquisa fui atrás da documen-
tação necessária para, não somente entrar na institui-
ção, como também conversar com os internos e fun-
cionários do local. Após meses de visitas ao Comitê
12
de Ética da Secretária de Administração Penitenciária
(SAP) e elaboração dos documentos necessários para a
visita, além de, com a ajuda de meu orientador, enviá-
-los à Plataforma Brasil para a análise de um juiz e os
demais membros de comitês de ética penitenciários
do país, foi no comitê de ética da PUC que a minha
procuração foi embargada.
Em razão disso e do atraso que tal fato me gerou,
tive que começar a analisar a questão do tratamento da
loucura e também das instituições de Franco da Ro-
cha permeando aqueles que ou tiveram algum contato
com elas ou que atuam em algum local de tratamento
alternativo a tal método de “terapia compulsória”. Por
sorte consegui falar também com um ex-paciente do
hospital psiquiátrico, o, também escritor, Walter Farias.
À primeira vista, achei que estivesse entran-
do em um campo em que, dificilmente, conseguiria
encontrar alguém disposto a falar e fui, felizmente,
surpreendida ao receber uma quantidade razoável de
respostas de pessoas dispostas a contar sua história.
O curioso é que, apesar de ser filha de uma
psicóloga bastante atuante nas questões da luta anti-
manicomial e da reforma psiquiátrica, eu nunca havia
tido muito contato direto com pessoas de distúrbio
mental e admito que, por vezes, compartilhava do
pensamento do senso comum: “será que eles podem
fazer algo comigo?”, “como devo reagir”, entre outros
temores sem fundamento. No entanto, com o passar
dos meses, fui obrigada a, cada vez mais, conviver
com os, como são usualmente chamados, “loucos” e
fui descontruindo, aos poucos, minha visão, até então
errada, sobre eles.
13
Na passeata pela Luta Antimanicomial em que
caminhamos do vão do MASP até o Hospital das Clí-
nicas, no dia 18 de maio deste ano, fui tocada pela
quantidade de pessoas lá presentes e pela intensidade
com que elas gritavam os gritos de guerra e a abertura
que deram para qualquer um que desejasse subir no
carro de som e falar o que está sentido. Isso eu não
havia presenciado em nenhuma outra passeata ou ma-
nifestação a que tive contato.
As relações que vim a estabelecer tanto com as
pessoas portadoras de algum distúrbio mental, como
em minha visita a um Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) – que virei comentar adiante – quanto com
aqueles que encontrei na passeata da luta antimanico-
mial, tanto profissionais como os chamados “loucos”
foram de suma importância ao encaminhamento do
trabalho, pois senti que devia a essas pessoas um “tra-
balho bem feito”.
Analisando toda a bibliografia a que tive conta-
to e as pessoas com que conversei passei a considerar
a questão da loucura e como ela é tratada pela socie-
dade. Qualquer um que não tem uma personalidade
condizente com a dos demais habitantes de um local,
é diferente e, assim, deve ser marginalizada, não po-
dendo conviver com os outros e, mesmo se puder, não
do mesmo modo como as outras pessoas o fazem. No
entanto, passei a me questionar: por que o diferente
assusta tanto a todos que deve ser excluído do conví-
vio social?
Pensando nisso, acabei lembrando daqueles
“loucos” que acabaram sendo presos em sanatórios,
porém hoje são considerados grandes mentes de seu
14
tempo. Um deles é Vincent Van Gogh, pintor holan-
dês que, ao ser considerado insano por uma tentativa
de suicídio falha e ansiedade, acabou sendo interna-
do por seus parentes em um manicômio, aonde con-
tinuou com seu trabalho pós-impressionista hoje tão
cultuado. Muitos estudiosos acreditam que sua ques-
tão mental foi um dos agravantes para sua produção
figurativa e o modo um tanto irreal com que repre-
sentava o mundo, sua marca registrada. Ou seja, se ele
não fosse “louco” ele poderia não ser detentor tama-
nha genialidade em sua arte.
O Brasil também teve alguns artistas expoen-
tes dos manicômios. O mais importante deles foi o
pernambucano Arthur Bispo do Rosário. Nascido na
cidade de Japaratuba, Sergipe, no ano de 1909, Bispo
do Rosário, como era chamado, viveu uma vida um
tanto corriqueira, trabalhando na Marinha, no Depar-
tamento de Tração e Bondes e até de boxeador. Porém,
após uma noite de alucinações que o fizeram pregar
que era um enviado de Deus, foi internado compul-
soriamente no Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro,
e depois transferido para a Colônia Juliano Moreira
em Jacarepaguá, sob um diagnóstico que o apontava
como esquizofrênico-paranóico, algo que fez com que
passasse grande parte de sua vida atrás das grades. O
interessante é que foi exatamente nesse sanatório que
o artista-plástico esteve em seu maior auge criativo re-
alizando inúmeras obras de arte com as sucatas lá pre-
sentes. Obras estas que foram, anos após sua morte,
expostas nos principais museus brasileiros.
Desse modo, podemos perceber que, muitas
vezes, a linha que divide a loucura da genialidade e,
15
mais ainda, a sanidade da insanidade é, muitas vezes,
bastante tênue e que é a sociedade que determina
quem são aqueles que devem ser excluídos da vida so-
cial e, mais ainda, quem é são e quem não é.
Isso se mostrou muito visível na fala de Walter
Farias quando eu perguntei a ele se ele se considerava
louco e ele, sem pestanejar, respondeu: “olha, eu não
me considero louco, mas eu sou”. Ou seja, para ele, sua
loucura é muito mais imposta pelas pessoas de fora
do que pela sua própria consciência. Pensando assim,
se pessoas como estas que citei são as insanas, devo
agradecer àqueles que, no início do meu estudo, pen-
saram que estavam me ofendendo ao me chamarem
de “louca”.
17
2.	 O Encarceramento Sucessivo
da Loucura
Chamar alguém de louco ainda é uma espécie
de xingamento. Uma pessoa que tem uma ideia um
pouco diferente do senso comum é um louco, alguém
que expõe seu pensamento de modo menos reticente,
ou que não se preocupa com o que os demais acham
de si, é louco. Ao mesmo tempo, um político corrupto
é um louco, um assassino em série é considerado lou-
co e uma pessoa como Hitler fez o que fez porque é,
“sem dúvida”, louco.
Apesar disso, a questão da loucura é, mais do
que tratá-la, o que fazer com ela e com os que, segundo
a sociedade e os critérios médicos, vivem qualquer di-
mensão de sofrimento mental, é algo que existe desde
praticamente o início das civilizações. A loucura e seu
entendimento caminharam paralelamente à história
da humanidade, portanto, segundo Berger, Morettin
e Braga Neto “a loucura sempre foi inevitável para
os homens. A história da loucura talvez seja, então, a
história de como os homens lidaram com o inevitável”
(Berger, Morettin e Braga Neto, 1991, p.17).
	Até a Idade Média, os loucos eram bem aceitos
pela comunidade. Sabe-se que na Grécia Antiga a lou-
cura era considerada um saber divino. Muitas vezes,
os insanos eram os oráculos das pólis gregas, sendo
não somente venerados como, por vezes, os conse-
lheiros dos representantes de tais civilizações. Desse
18
modo, os loucos eram parte importante da sociedade
grega e eram vistos como uma relação dos Homens
com o campo divino.
Apesar disso, alguns pensadores da época ques-
tionavam a parte divina das perturbações mentais. Na
visão de parte desses intelectuais, as pessoas enfermas e
que possuíam as chamadas “doenças da mente”, eram
vítimas da cólera dos Deuses e, portanto, o tratamento
de tais questões era algo de extrema periculosidade, e
só poderia ser feito por médicos-sacerdotes sob a fun-
damentação dos preceitos médicos-religiosos.
A perturbação mental foi definida, na
época de Homero, sob a perspectiva
da irracionalidade, no sentido em que
o pensamento e sentimentos huma-
nos eram lidos como transcendendo
o indivíduo (passivo, neste sentido) e
incontroláveis pelo sujeito. Mais tar-
de, Platão, sem dúvida um filósofo da
mente, ainda sob o ponto de vista da
irracionalidade, interpreta a loucura
como uma doença de leitura metafó-
rica ou a ser abordada em analogia
com as doenças do corpo.
(OLIVEIRA, Sandra, 2002, pg 106-120)
Anos depois, quando o patrono da medicina Hi-
pócrates entra em cena e passa a estudar essa questão,
as explicações demoníacas para as doenças da mente
são questionadas. Para o pensador, a loucura é prove-
niente de causas naturais. Ela se dá pelo não balan-
19
ceamento dos seus quatro temperamentos corporais
– sanguíneo, colérico, melancólico e fleumático - “es-
tes temperamentos indicariam a orientação emocional
predominante do indivíduo. Deste modo, o ‘bom’ fun-
cionamento da personalidade dependeria diretamen-
te da interação perfeita e ótima das forças internas e
externas” (OLIVEIRA, Sandra, 2002, pgs 106-120).
Ou seja, caso essas forças entrassem em algum confli-
to, poderia ocorrer um problema de personalidade, le-
vando, assim, ao que seria chamado de loucura. O filó-
sofo tratava seus pacientes que possuíam tal condição
com um regime específico, incluindo o uso de drogas
e acreditava ser de suma importância explicar aos por-
tadores desses distúrbios os motivos pelos quais essa
cólera se abateu sobre eles. Essa foi a primeira vez que
a loucura foi considerada algo diferente, a ser estuda-
do, e algum tratamento foi indicado a seus portadores.
Pouco se estudou da questão da loucura na épo-
ca da Roma Antiga. O que se sabe é que os romanos
aproveitaram muito do que já havia sido descoberto
na Grécia Antiga.
No fim da Idade Média, período devastado por
pestes e que também culmina com a hegemonia do
imaginário católico, os loucos passam a ser excluídos
da sociedade, para serem submetidos a tratamentos
desumanos. O terror e a atração que essas pessoas tra-
ziam aos demais habitantes dessa época os fazia serem
exaltados por obras de arte e cenas de loucura passam
a fazer parte de das pinturas de Bosch ou das peças de
teatro de Cervantes e até Shakespeare.
Paralelamente, a ascensão do renascimento se
intensifica e seus pensadores humanistas e iluministas
20
passam a glorificar a razão e a racionalidade, o que
significou o início da marginalização de qualquer um
que não estivesse com sua sanidade plenamente acei-
tável, iniciando-se pelos loucos. “Começa a se operar
outra transformação: a loucura ganha um caráter mo-
ral, passa a ser vista como um conjunto dos vícios do
homem – preguiça, avareza, indolência. De substan-
tivo transcendente passa a adjetivo desqualificador”
(BERGER, MORETTIN, Victorio, NETO, Braga,
1991, pg 18). A partir desse momento as pessoas que
fossem consideradas portadoras de distúrbios mentais
passavam a ser excluídas e colocadas em estabeleci-
mentos que as removiam imediatamente do contato
com o público. O filósofo Michel Foucault compara tal
ação ao que era feito aos leprosos algum tempo antes
e aos que possuíam doenças venéreas um pouco de-
pois. “Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alie-
nadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento,
e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para
eles e para aqueles que os excluem” (FOUCALT, Mi-
chel, 1972, pg 6).
Essas casas não tinham o intuito de tratamen-
to e, muito menos, de uma ressocialização e sim de
depósito humano, onde seus “moradores” deveriam
realizar trabalhos forçados para se livrar da ociosida-
de, que na visão dos especialistas da época eram seu
maior vício. A partir de então, os portadores de dis-
túrbios mentais estavam com seus dias de liberdade
contados.
O século XVII foi marcado pela criação de inú-
meras casas de internação por toda a Europa, os cha-
mados Hospitais Gerais. Foucault afirma que pelo me-
21
nos um em cada cem habitantes de Paris acabou, pelo
menos por um curto período, preso em um desses es-
tabelecimentos — Foucault chama esta situação de ä
grande internação. De fato, o século XVII define uma
mudança decisiva: por ordem do rei os loucos são
afastados à força, junto com os vagabundos, crimino-
sos e homossexuais, enfim, todos os que perturbavam
a ordem social. Por essa razão, qualquer um poderia
ser trancafiado em um desses locais, louco ou são, cri-
minoso ou honesto.
(...) sabe-se que os loucos, durante
um século e meio, foram postos sob
o regime desse internamento, e que
um dia foram descobertos nas salas
do Hospital Geral, nas celas das ‘ca-
sas de força’; percebe-se também que
estavam misturados pelas pessoas das
workhouses (…) a partir da metade do
século XVII, a loucura esteve ligada a
essa terra de internamentos, e ao ges-
to que designava essa terra como seu
local natural.
(FOUCALT, Michel, 1972, pg 48)
A internação daqueles que eram marginali-
zados pela sociedade na Inglaterra se iniciou algum
tempo antes do que na França, mais precisamente no
ano de 1575. Em um ato, a então rainha Elizabeth I
previa a construção de houses of correction (casas de cor-
reção) como forma de “punição dos vagabundos e alívio
dos pobres” (18 Elizabeth I, Cap III, 1575). Dentre os
22
preceitos daqueles que condenavam os que deveriam
ser enviados a tais locais, esse era o lugar dos loucos.
Durante as décadas que se seguiram, a Europa
passou a ser palco de milhares de casas de detenção, pri-
sões e hospitais com o intuito de retirar – à força – da so-
ciedade aqueles que, segundo ela mesma, não deveriam
conviver com os demais. É conhecido que o único Hos-
pital Geral de Paris comportava 6000 pessoas, o que con-
dizia, na época, a 1% da população da cidade francesa.
A situação daqueles que acabavam presos nesses
estabelecimentos eram precárias. O psiquiatra frances
Jean-Étienne Esquirol visitou um desses locais no sé-
culo XIX e descreveu o que encontrou:
Vi-os nus, cobertos de trapos, ten-
do apenas um pouco de palha para
abrigarem-se da fria umidade do chão
sobre o qual se estendiam. Vi-os mal
alimentados, sem ar para respirar, sem
água para matar a sede e sem as coisas
mais necessárias à vida. Vi-os entre-
gues a verdadeiros carcereiros, aban-
donados a sua brutal vigilância. Vi-os
em locais estreitos, sujos, infectos, sem
ar, sem luz, fechados em antros onde
se hesitaria em fechar os animais fero-
zes, e que o luxo dos governos mantém
com grandes despesas nas capitais.
(ESQUIROL,JeanÉtienne,1868,pg134)
Na passagem do século XVIII ao XIX, os mé-
dicos da chamada corrente alienista, Phillip Pinel
23
na França – sua importância foi tamanha que hospi-
tais psiquiátricos foram criados com seu nome pelo
Brasil e no mundo– e William Tuke na Inglaterra,
perceberam que, por se tratar de uma doença, a
loucura não deve ser dominada e sim tratada. Esse
tratamento, porém, colocava o médico como aquele
que detém a razão indubitável e, portanto, poderia
tomar quaisquer decisões sobre o que deveria ser
feito com aquele sujeito irracional, o louco. Nesse
momento, a loucura passa a ser considerada uma
doença mental.
Desse modo, “o psiquiatra emerge com uma
função ambígua: ao mesmo tempo em que vem para
tratar o paciente é eleito o protetor da sociedade con-
tra este mesmo louco que tenta curar” (BERGER,
MORETTIN, NETO, 1991, pg 21). Ou seja, o médico
e seu paciente passam a ter uma relação em que o tra-
tamento caminha paralelamente com a punição, ain-
da tratando-os como pessoas que, apesar de doentes,
devem ser excluídas da sociedade.
Sob essa mesma ideologia alienista proveniente
de Pinel e Tuke, foi inaugurado no Rio de Janeiro,
em 1852, o primeiro manicômio em solo brasileiro, o
Hospício Pedro II, que abrigava aqueles que haviam
sido recolhidos pela Santa Casa. Antes de sua criação,
os que demonstravam serem portadores de algum dis-
túrbio mental no Brasil, ou eram deixados largados a
sua própria sorte na rua, ou ficavam acorrentados nas
celas de prisões tradicionais.
Uma nação na qual a frase símbolo presente em
sua bandeira é a positivista “ordem e progresso”, não
poderia ser atrapalhada por aqueles que não estavam
24
com todas as suas faculdades mentais em perfeita or-
dem, ou seja, os loucos.
O conto de Machado de Assis (1839–1908), O
Alienista (1882), ilustra e satiriza essa época em que, sob
o pensamento positivista que regia todas as áreas do
país, os alienistas desejavam, no intuito de fazer com
que o Brasil avançasse cada vez mais, demarcar e reco-
nhecer quem era louco e quem era devidamente são.
Suponho o espírito humano uma vas-
ta concha, o meu fim...é ver se posso
extrair a pérola, que é a razão, por
outros termos, demarquemos defi-
nitivamente os limites da razão e da
loucura. A razão é o equilíbrio de to-
das as faculdades, fora daí, insânia,
insânia e só insânia.
(ASSIS, Machado, 1982, pg 20)
A personagem principal do livro de Machado
de Assis, Simão Bacamarte de certo modo satiriza os
alienistas brasileiros, sendo um deles o criador do
manicômio de Juquery, o médico Francisco Franco
da Rocha.
A história da loucura no Brasil caminha lado a
lado com a intolerância. O primeiro manicômio cria-
do no país, o Hospício Pedro II, tinha o intuito de ti-
rar das ruas e hospitais aqueles que eram vistos como
“impróprios”, que tornavam a cidade do Rio de Ja-
neiro um local feio aos olhos de quem passavam. Até
o local aonde foi construído o hospital psiquiátrico, a
Praia Vermelha, foi pensado com esse intuito de afas-
25
tamento, de exclusão. Pensamento este que se seguiu
durante a maior parte da questão psiquiátrica em solo
brasileiro.
Exclusão, eis aí, numa só palavra, a
tendência central da assistência psi-
quiátrica brasileira, desde seus pri-
mórdios até os dias de hoje, o grande
e sólido tronco de uma árvore que, se
deu e perdeu ramos ao longo de sua
vida e ao sabor das imposições dos
diversos momentos históricos, jamais
fletiu ao ataque de seus contestadores
e reformadores.
(Resende, Heitor, pg 36, 1987)
Ao longo dos anos, o Hospício, que desde 1890
passou a se chamar Hospício Nacional de Alienados,
acabou ficando superlotado, sendo necessária a cria-
ção de alguma alternativa para a internação dos por-
tadores de distúrbios mentais, que não fosse o locali-
zado na Praia Vermelha. Desse modo foram criadas
as Colônias de São Bento e a Colônia de Conde de
Mesquita. Aqueles que acabavam presos nesses locais
tinham, como uma alternativa ao tratamento, um mé-
todo de terapia associado ao trabalho, como a agrope-
cuária ou o artesanato.
Até então, somente as pessoas do sexo mascu-
lino eram colocadas nessas colônias. Somente no ano
de 1911 foi criada a Colônia de Alienadas, para a qual
eram destinadas as mulheres que estavam internadas no
— já superlotado — Hospício Nacional de Alienados.
26
Além do pioneiro sanatório localizado na Praia
Vermelha no Rio de Janeiro, algumas outras institui-
ções com o mesmo objetivo foram construídas no Bra-
sil ao longo do século XX. Em 1903 foi fundado em
Minas Gerais, o Hospital Colônia de Barbacena (na
cidade de mesmo nome). Considerado o maior hospi-
tal psiquiátrico do Brasil, com uma capacidade de até
200 leitos. No entanto, esse número ocupou somente
o campo teórico, tendo alcançado a marca de 5 mil
internos no ano de 1961.
Essa instituição foi cenário de um dos maiores
genocídios da história do país, com a morte de cerca
de 60 mil pessoas durante todos os anos em que esteve
em funcionamento até 1980. Para lá eram mandados
homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, al-
coolistas, mendigos, pessoas sem documentos e todos
os tipos de indesejados, inclusive, doentes mentais. Ou
seja, nem todos que estavam internados contra suas
vontades eram portadores de algum distúrbio mental.
Durante toda sua existência, o Hospital Colô-
nia de Barbacena foi duramente criticado pelo modo
como “cuidava” de seus pacientes. Segundo relatos, as
pessoas chegavam ao manicômio provenientes de to-
das as partes do país no chamado “trem de doido”, de
forma semelhante aos prisioneiros nazistas deporta-
dos para os campos de concentração. Os que estavam
a caminho de sua internação ficavam abarrotados no
vagão de carga desses trens, sem nenhum conforto ou
chance de serem liberados.
Na Colônia “Zoológica” de Barbacena, os inter-
nos eram tratados como animais, e o primeiro conta-
to com o local culminava com a perda da dignidade,
27
como foi explicitado no livro O Holocausto Brasileiro,
de Daniela Arbex.
Lá suas roupas eram arrancadas, seus
cabelos raspados e, seus nomes, apa-
gados. Nus no corpo e na identidade,
a humanidade sequestrada, homens,
mulheres e até mesmo crianças (...)
ignorados de tal modo que (...) co-
miam ratos e fezes, bebiam esgoto ou
urina, dormiam sobre capim, eram
espancados e violentados até a morte.
(ARBEX, Daniela, 2013, pg 14)
Os “tratamentos” destinados a eles eram bár-
baros. Dados da época indicam que os eletrochoques
aplicados aos presos eram tão fortes que a rede de luz
do município ficava sobrecarregada, acabando com a
força de toda a cidade. Crianças de 12 anos e até ido-
sos ficavam no mesmo ambiente, sendo submetidos
ao mesmo regime degradante. Segundo a jornalista
Daniela Arbex, a morte era algo cotidiano naquela
instituição. “Nos períodos de maior lotação, 16 pes-
soas morriam a cada dia e ao morrer, davam lucro.
Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacien-
tes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades
de medicina do país, sem que ninguém questionasse”
(ARBEX, Daniela, pg 14, 2013).
Os internos que não morriam e estavam en-
tregues à própria sorte no sanatório, ficavam sus-
cetíveis a doenças pelo fato de andarem nus – o
que não era algo que ocorria somente nesse hos-
28
pital psiquiátrico, como veremos mais a frente – e
em contato com fezes e animais como ratos e ba-
ratas. Além disso, entravam em contato direto com
a morte, pois os corpos que não eram vendidos às
faculdades de medicina tinham que ser queimados
com ácido no pátio central diante dos internos que
lá estivessem.
A superlotação do Hospital Colônia de Bar-
bacena chegou a níveis extremos quando, pela falta
de cama para todos, os pacientes tinham que dormir
em “leitos únicos”, uma “cama” produzida com uma
quantidade razoável de capim seco espalhado no chão
de cimento. “O frio de Barbacena era um agravan-
te, os internos dormiam em cima uns dos outros, e os
debaixo morriam. De manhã tiravam os cadáveres”,
contou o psiquiatra Jairo Toledo, diretor do Centro
Hospitalar Psiquiátrico Barbacena (CHPB) em entre-
vista ao jornal Tribuna de Minas, em 2011.
Em uma visita ao Hospital da cidade mineira,
em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, um
dos pioneiros no pensamento da desinstitucionaliza-
ção1
no país europeu, se horrorizou a tal modo com
¹ Franco Basaglia nasceu em Veneza, Itália, no ano de 1924. Após a 2ª Guerra
Mundial, se formou em medicina e passou a trabalhar no Hospital Psiquiátrico de
Gorizia. Em 1961 se tornou diretor do hospital e passou a questionar os métodos
empregados no tratamento dos pacientes. “Basaglia criticava a postura tradi-
cional da cultura médica, que transformava o indivíduo e seu corpo em meros
objetos de intervenção clínica” (FIOCRUZ, 1996). Além disso, ele era contrário à
psiquiatria clínica e hospitalar que partia do princípio do isolamento do “louco”.
Em 1970 foi nomeado o diretor do Hospital Provincial da cidade italiana de
Trieste e, lá promoveu um modo diferenciado de tratamento, “da qual faziam
parte serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital
geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias as-
sistidas (chamadas por ele de «grupos-apartamento») para os loucos” (FIOCRUZ,
1996). A OMS condecorou, em 1973, o Serviço Psiquiátrico de Trieste como prin-
cipal referência mundial para uma reformulação da assistência em saúde mental.
29
as condições do local que pediu, imediatamente, que
fosse fechado. Em uma coletiva de imprensa ele che-
gou a dizer: “Estive hoje num campo de concentração
nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma
tragédia como essa”.Após o fechamento desse mani-
cômio mineiro, aqueles que sobreviveram aos anos de
tortura, em sua grande maioria, continuaram tendo
que viver internados por conta da dificuldade de sua
ressocialização após anos de encarceramento. Isso não
é exceção desse hospital psiquiátrico, já que ocorreu
com muitos pacientes a partir do momento em que
os manicômios caíram na ilegalidade no ano de 2001.
Muitos outros hospitais psiquiátricos existiram
no Brasil durante o século XX e o modo de tratamen-
to não era menos bárbaro do que o de Barbacena. Um
deles, localizado no interior de São Paulo, mais preci-
samente na cidade de Franco da Rocha, foi considera-
do como uma das melhores instituições psiquiátricas
do mundo, com certeza a melhor da América Latina,
pelos principais veículos de imprensa do país e inte-
lectuais da área. Porém, os métodos a que seus inter-
nos eram submetidos talvez não mereçam ser chama-
dos de “tratamento”.
Basaglia lutou pelo fechamento dos hospitais psiquiátricos e conseguiu, em 1976,
que o Hospital Provincial de Trieste fechasse as portas. “Como consequência das
ações e dos debates iniciados por Franco Basaglia, no ano de 1978 foi aprovada,
na Itália, uma lei chamada ‘Lei 180’ ou ‘Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana’,
também conhecida como ‘Lei Franco Basaglia” (FIOCRUZ, 1996), que determi-
nava o fechamento das instituições manicomiais no país europeu.
31
3.	 Por Dentro dos Muros de Juqueri
“Construído o melhor hospital psiquiátrico da
América Latina”, já diziam os jornais no dia em que
o gigantesco complexo do Juqueri, então chamado
de Asylo dos Alienados de Juquery, foi inaugurado.
Psiquiatras de todas as partes do mundo vieram ao
interior de São Paulo para acompanhar o que, viria
a ser, o maior hospital psiquiátrico do Brasil.
O início de sua construção projetada pelo
importante arquiteto Francisco de Paula Ramos de
Azevedo teve início em 1895, porém, o complexo
hospitalar foi inaugurado, de acordo com dados
do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
(CRP), no dia 18 de maio – ironicamente o mesmo
dia em que se comemora hoje o dia da luta antima-
nicomial – de 1898, pelo psiquiatra Francisco Fran-
co da Rocha.
Com um terreno de cerca de 185 mil m², o local
abrangia parte dos municípios de Mairiporã, Caiei-
ras, Cajamar, Francisco Morato e Jundiaí. O complexo
abrigava, além de seu Hospital Central e suas colônias,
uma área de cultivo e plantação, na qual os pacientes
trabalhavam em um sistema similar ao da escravidão,
pois não recebiam nada em troca. Era a ideia da la-
borterapia, ou seja, o trabalho como uma atividade
terapêutica para os internos.
32
O nascimento do Juqueri inaugura
a medicina alienista de aviltamento
científico e ocorre num cenário re-
publicano ligado ao mercado, trans-
parecendo a característica higienista
do momento que tem como traço o
conceito de limpar as ruas, sanear a
imagem e o espaço urbanos, tirando
da vista tudo que implique em estor-
vo à produção: prostitutas, mendigos,
pobres, negros.
(CONSELHO REGIONAL DE PSI-
COLOGIA)
Os internos realizando trabalhos manuais na metade do século XX
Acervo
33
Naquele tempo, grande parte dos internos do
hospital psiquiátrico eram estrangeiros e homens,
mulheres e crianças ficavam presos juntos no mesmo
estabelecimento. Somente no ano de 1921, foi criada
a colônia especializada em receber mulheres.
Em 1929 o Asylo de Alienados de Juquery pas-
sa a se chamar Hospital e Colônia de Juqueri e, em
1944, homenageando o psiquiatra que acompanhou
sua criação, a cidade de Franco da Rocha se emancipa
do município de Mairiporã.
O ex-enfermeiro do complexo hospitalar, Walter
Farias explicitou, em recente palestra na Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que o Juqueri
– como passou a ser chamado – realizava alguns métodos
pouco humanizados de “tratamento”. Um desses méto-
dos era o coma insulínico, que consistia na aplicação de
uma quantidade indiscriminada de insulina para pacien-
tes não diabéticos, tal técnica os deixava dopados e com
pouca mobilidade; outro era a banhoterapia, na qual era
aplicado ao indivíduo um banho de mangueira extrema-
mente gelado como medida de punição e, em alguns ca-
sos, era liberada uma gota que caia na cabeça da pessoa
lentamente, às vezes por dias, algo similar a um sistema
de tortura. Entretanto os métodos mais conhecidos eram
o eletrochoque (ECT) e a polêmica lobotomia.
Farias acompanhou algumas aplicações de ECT
nos pacientes e contou como eram realizadas. Segundo
ele, “os pacientes escolhidos naquele dia para a terapia
eram colocados um ao lado do outro em uma sala. Para se
iniciar a aplicação dos choques, a pessoa era disposta dei-
tada no chão e, para segurá-la, sentava um enfermeiro em
cada braço e perna seu e um segurava sua cabeça. Logo
34
após, era colocado um pano em sua boca para que o pa-
ciente não mordesse a língua nem gritasse. A dupla de fios
era conectada em ambas as têmporas do indivíduo e a car-
ga elétrica era descarregada. Era muito impressionante”.
A lobotomia, por sua vez, é algo pouco comenta-
do nos corredores do Juqueri. Nunca foi comprovado
que tal tratamento era realmente realizado no complexo
hospitalar, porém, comenta-se que se viam constante-
mente no pátio e nas celas do local, pessoas com gran-
des cicatrizes na cabeça e que não falavam muito, nem
se locomoviam com frequência. Além disso, o subsolo do
Hospital Central, onde se comenta que era realizada a
terapia, foi aterrada em uma reforma após sua desati-
vação, impedindo qualquer investigação mais profunda.
Atentos aos novos conhecimentos cien-
tíficos e técnicos produzidos na Europa
e nos Estados Unidos, os médicos brasi-
leiros logo começaram a utilizar a psico-
cirurgia de Egaz Moniz em instituições
asilares. Em 1936, ano em que Freeman
e Moniz descreveram seus experimen-
tos a leucotomia passou a ser aplicada
em internos do hospital do Juquery, em
São Paulo. Neste, que foi o maior mani-
cômio da América Latina, Aloysio Mat-
tos Pimenta operou os dois primeiros
pacientes em agosto de 1936. Mais tar-
de muitos outros médicos foram treina-
dos e passaram a realizar lobotomias e
leucotomias em instituições brasileiras.
(MASIERO,AndréLuiz,vol.10n.2,2003)
35
	O manicômio judiciário só foi idealizado no
complexo de Juqueri no ano de 1927 devido, se-
gundo o site RedePsi, à iniciativa do professor de
medicina legal Alcântara Machado, que seguiu os
preceitos do decreto nº 1.132/1903 que determina-
va a construção de um local que abrigasse aqueles
que portavam algum distúrbio mental e cometiam
algum crime.
	
Em 1º de janeiro de 1934, o Manicô-
mio Judiciário de Franco da Rocha lo-
calizado as margens da Rodovia Luiz
Salomão Chama no Km 43, Vila Ra-
mos, Franco da Rocha, município de
São Paulo, recebeu os primeiros 150
pacientes, todos homens.
(CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008)
Pacientes estes que já eram assistidos anterior-
mente nas dependências do Hospital do Juqueri por
aquele que veio a se tornar o primeiro diretor da nova
instituição, o professor doutor André Teixeira Lima.
Somente nove anos após sua criação, em 1943,
foi criada a ala feminina do manicômio judiciário,
que tinha o intuito de abrigar aquelas mulheres com
transtornos mentais e que tinham alguma dívida com
a justiça.
Durante décadas, o sistema carcerário presente
nessa instituição permaneceu o mesmo, no entanto,
em 1989, um ano após a Secretária de Administra-
ção Penitenciária (SAP) passar a controlar o hospital,
foi implantado o Regime de Desinternação Progressi-
36
va que será explicado mais a frente, mas consiste, até
hoje, em uma área para auxiliar aqueles internos que
estão no processo de sair do manicômio judiciário.
O objetivo desta instituição é desti-
nar-se aos cuidados dos indivíduos
caracterizados sob o código penal
como incapazes de entender o caráter
ilícito do ato ou delito cometido, esta
primeira informação faz parte do art.
26 do Código Penal (...) tem a missão
de realizar laudos de Sanidade Men-
tal dos internos de ambos os sexos
anualmente e fazer tratamento e/ou
avaliação dos sentenciados e réus que
venham a sofrer de doença mental.
(CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008)
Em homenagem àquele que veio a se tornar
seu diretor por quase 30 anos, o Manicômio Judiciá-
rio agora é chamado de Hospital de Custódia e Tra-
tamento Psiquiátrico “Prof. André Teixeira Lima”.
Atualmente, o hospital de custódia de Franco da Ro-
cha conta com quatro alas, sendo que duas delas são
colônias masculinas com regime fechado, uma colô-
nia também com o mesmo regime para as mulheres e
uma de desinternação progressiva feminina.
O Juqueri, em seu auge nos anos 70, chegou
a abrigar oficialmente mais de 16 mil internos, mui-
to mais do que sua capacidade — número contestado
por pacientes e técnicos que passaram pelo hospital e
que atestam ser bem maior.
37
	Veremos adiante algumas histórias, tanto do
Hospital Psiquiátrico quanto do Manicômio Judiciá-
rio. Lembrando que, ironicamente, a insígnia da cida-
de de Franco da Rocha traz o lema traduzido do latim
“Ciência e Carinho”.
38
3.1 Hospital Psiquiátrico
O hospital psiquiátrico de Franco da Rocha era
constituído de oito pavilhões, também chamados de
colônias, com capacidade para 200 a 250 pessoas –
algo que não ocorria até os anos 70, pois se sabe que
haviam mais de 2000 em cada área.
Com o passar dos anos, as histórias daquele que
já foi chamado de uma das estruturas mais modernas
em psiquiatria, ficariam guardadas na memória das
suas testemunhas, já que muito pouco se escreveu so-
bre o assunto.
Uma dessas pessoas foi Walter Farias. Após uma
experiência como enfermeiro tanto do hospital psi-
quiátrico quanto do manicômio judiciário de Juqueri,
nos anos 70, teve um surto que o fez ficar internado
juntamente àqueles de quem tratou por alguns meses.
Ele contou sua história no livro co-escrito pelo jorna-
lista Daniel Navarro Sonim, o Capa Branca.
Em sua obra, Farias explicita os horrores que se
passaram tanto em seu tempo de funcionário, quanto
em seu período como interno; desde a falta de treino
concedido aos enfermeiros das unidades que nunca
haviam entrado em contato com pessoas portadoras
de distúrbios psicóticos, a relação dos internos com
esses funcionários e os tratamentos que eram desti-
nados a eles, até as mudanças que a cidade de Fran-
co da Rocha sofreu com o aumento de pacientes do
hospital. De acordo com o autor, pouco se sabia sobre
o que ocorria dentro do manicômio. As atrocidades
que lá ocorriam não eram noticiadas e, quando ele
39
decidiu se inscrever no concurso público que o em-
pregaria dentro de Juqueri, não tinha ideia do que
lhe esperava.
Em sua primeira visita ao hospital psiquiátri-
co, Walter Farias descreve o ambiente da instituição.
Se por um lado, o jardim florido com sua grama apa-
rada chamava atenção pelo cuidado e zelo, os corre-
dores e salas davam, ao autor do livro, uma sensação
de opressão.
O Hospital Central contava com cinco clínicas
femininas e cinco clínicas masculinas. Antes de serem
destinados a uma dessas clínicas, os pacientes passavam
até 21 dias em um local aonde tinham suas fotos tiradas
e digitais colhidas, além de sessões diárias com médicos
Um dos prédios da colônia do Complexo Juqueri
Acervo
40
e psiquiatras. Além das clínicas já mencionadas, havia
também clínicas médicas e cirúrgicas, lavanderia, um
pavilhão voltado à educação dos internos — o chama-
do “Pavilhão-Escola”—, um cemitério e consultórios
dentários. De acordo com o autor de O Capa Branca,
esse local, o qual chamava de “rotunda”, servia também
como um modo de isolar aqueles internos que estavam
em surto, mas não eram pacientes do hospital.
A entrada do Hospital Central após a desativação do Juqueri
IG
41
Quando a própria família não trazia
os pacientes para tratamento, tam-
bém se chamava polícia para levar
as pessoas que enlouqueciam de re-
pente, mesmo que fossem de outras
cidades ou estados. Quando um caso
desses chegava, um funcionário do
Juquery o recebia das mãos de um po-
licial e, se fosse necessário, tinha que
bater nele para acalmá-lo, amarrá-lo
e aplicar um calmante até conseguir
trancá-lo na cela da rotunda.
(FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na-
varro, 2014, pg 32)
Cada clínica continha um refeitório próprio -
com refeições distribuídas a partir de uma cozinha
central, que se localizava no pátio grande que ficava
na frente do refeitório da Terceira Clínica Masculina
– consultório psiquiátrico, salas de medicação, barbe-
aria, rouparia e banheiros para funcionários e pacien-
tes. “O curioso da disposição dos dormitórios é que
a escolha de quem dormiria nos dois andares era a
capacidade de utilizar ou não o banheiro sozinho. As-
sim, no andar de cima, ficavam os pacientes que con-
seguiam se manter limpos” (FARIAS, Walter, SONIM,
Daniel Navarro, 2014, pg 33).
O próprio Juqueri abrigava seus médicos em
uma pequena vila com cerca de dez casas, localizada
atrás do prédio da primeira clínica. Farias expõe que,
enquanto alguns médicos voltavam para São Paulo ou
outras cidades maiores que Franco da Rocha após o
42
dia de trabalho, alguns preferiam trazer suas famílias
para morar nos arredores da unidade.
Durante seu tempo como enfermeiro no hospital
psiquiátrico, Farias passou a questionar o modo como
seus pacientes eram tratados, ou melhor dizendo, dei-
xados à própria sorte. A Ala dos Acamados – que será
tratada mais adiante nesse subcapítulo – contava com
mais de cem pessoas que não tinham a menor possi-
bilidade de sair da cama e, por essa razão, precisavam
de cuidados 24h. Vendo as condições nas quais essas
pessoas eram deixadas, o (então) enfermeiro passou
a fazer hora-extra. Além disso, ele deixou de ser não
somente alguém que dá remédio sem nenhuma liga-
ção com eles, para se tornar quase um amigo, um con-
fidente que escutava o que os pacientes tinham para
compartilhar. Farias destaca seu amigo, o interno DB,
que queimou o seu colchão e que a partir desse dia,
passou a ser vigiado diariamente 24h por dia.
Apesar de alguns tentarem se defender ou até
somente atacar os funcionários, todos sabiam que esse
ataque traria de volta uma repressão bem mais forte. De
acordo com o co-autor do livro, Daniel Navarro Sonim,
“a briga ocorria entre eles mesmo, os funcionários eles
dificilmente ameaçavam. Porque quando ameaçavam um
enfermeiro ou segurança, a repressão seria bem maior”.
Uma lembrança que assombra até hoje muito
Walter Farias, e que ele contou em entrevista, é o perí-
odo em que passou internado no hospital psiquiátrico
de Franco da Rocha. Do outro lado do balcão, ele não
era mais o enfermeiro, o “capa branca”, e sim um mero
paciente, entregue à própria sorte como os demais.
Tudo se iniciou quando, após um breve período traba-
43
lhando no manicômio judiciário, teve um surto psicó-
tico que acarretou em um medo desmedido de voltar
ao trabalho por alguns dias. Um certo Dr. Gilles insistiu
para que ele fosse internado por poucas semanas, o que
acabou se estendendo para cerca de três meses.
No momento em que entendeu sua dura reali-
dade e que iria viver lado-a-lado daqueles que ajudou
a tratar, o enfermeiro passou a questionar se algum
dia sairia de lá.
O tratamento no Hospital Psiquiátrico
também representava um duro golpe
na minha vida. Eu cansei de ver su-
jeitos que entravam no Juqueri e não
saíam nunca mais, tanto do hospital
quanto da loucura. Abandonados
pela família sem um mísero pingo da
razão que ainda conseguiam conser-
var no início da internação, transfor-
mavam-se em animais irracionais in-
capazes de se comportar como seres
humanos considerados normais pelos
padrões da sociedade.
(FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na-
varro, 2014, pg 148)
Dias após ser internado, já sem cabelo, algo que
realizavam de praxe para conter a infestação de piolhos
do local, o agora paciente passou a reclamar de uma dor
de dente. Foi encaminhado ao consultório do dentista
no local e, o que ele achou que seria apenas um trata-
mento rápido acabou se tornando algo muito pior.
44
[Quando fui comunicado que teria
meus dentes arrancados à força e con-
tra a minha vontade] dei um salto da
cadeira e corri em direção da porta. O
funcionário me pegou pelo braço e o
auxiliar do dentista me acertou as cos-
telas com um chute certeiro. Desabei
no chão. Urrei de dor. O funcionário
se abaixou e, de lado, segurou minha
garganta com a mão direita e colocou
o joelho esquerdo na minha barriga.
Em seguida, o auxiliar aplicou uma in-
jeção no meu braço e entregou a cami-
sa de força ao meu acompanhante. O
dentista assistia àquela cena sem falar
nada (...) me debati um pouco, mas o
ajudante abriu um armário e retirou al-
gumas fitas de pano que serviram para
amarrar minhas pernas, braços, tron-
co e pescoço à cadeira. Mesmo assim,
ainda conseguia gritar e movimentar
minha cabeça. Para acabar com aquilo,
o auxiliar enfiou um trapo na minha
boca e capa branca segurou minha ca-
beça com as duas mãos e não largou
mais. Só então o dentista se aproximou
de mim e, apesar de a medicação ter
começado a fazer efeito, senti o doutor
arrancando meus dentes bons.
(FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na-
varro, 2014, pgs 157 – 158)
45
Com o tempo se passando e a possibilidade de
se libertar do hospital ficando mais distante, Farias,
assim como muitos dos internos, passou a beber. Se-
gundo ele, “não eram apenas os internos que bebiam
24 horas por dia, alguns funcionários também o fa-
ziam” e continuou, “sempre que eu tentava explicar
que havia trabalhado lá as pessoas acabavam ‘tirando
uma com a minha cara’ achavam que eu estava alu-
cinando ou algo assim, ser paciente era algo que me
impossibilitava de ser levado a sério”.
Seus tempos como paciente foram repletos de
tensão. Em seu livro, Farias lembra do dia em que
estava dormindo e acordou com gritos: um pacien-
te chamado Pena havia entrado no dormitório para
brigar com outro “maluco” – nas palavras do autor
– que, por raiva, quebrou uma vidraça e cortou a gar-
ganta do primeiro. O estardalhaço chamou a atenção
dos enfermeiros que acabaram prendendo o segundo
em uma camisa de força. Pena não morreu por muito
pouco. As armas brancas como vidro, caneta ou de-
mais utensílios que poderiam vir a machucar outro
paciente existiam em grande quantidade na unidade,
apesar da intensa busca dos funcionários.
Cansado de esperar a liberação proveniente do
doutor Gilles, seu psiquiatra, Walter Farias decidiu,
um belo dia, sair andando do pátio em que realizava
seu banho de sol e fugir do hospital psiquiátrico para
nunca mais voltar. A seu ver, essa seria a única manei-
ra de sair dali, pois o psiquiatra é quem manda na sua
vida e no seu futuro lá dentro. Segundo ele, “se ele
[o psiquiatra] falar para a sua família que você está
louco, que você não pode ir para casa, hein? Ele vai
46
dar laudo liberando? Ele não vai dar laudo liberando,
vai para o juiz, que por sua vez vai mandar pegar um
laudo com ele. É ele quem manda na sua vida, a partir
de um momento que está no meio”.
Já há mais de 40 anos fora do Hospital Psiqui-
átrico de Juqueri, o autor de O Capa Branca admite
que apenas de um assunto ele não gosta de falar: dos
presos políticos que acabavam internados naquela ins-
tituição sem uma necessidade explicitada,.
De fato o hospital serviu como prisão para per-
seguidos políticos que não possuíam quaisquer trans-
tornos mentais, mas acabavam trancafiados naquele
ambiente com pouca chance de serem libertos e, por
vezes, eram dados como desaparecidos. O psicólogo
Alan Saffioti afirma que conheceu uma mulher que tra-
balhou no hospital como auxiliar de enfermagem na-
quele período e que ela contava, muito “à boca peque-
na”, de um homem que conheceu naquelas condições.
“Ela me conta de um preso político
que foi levado para lá. No dia em que
chegou teve seus cabelos cortados, seus
dentes arrancados e foi imediatamente
levado a uma sessão de eletrochoque.
Segundo ela, ele virou um vegetal. Por
algum tempo a minha conhecida pas-
sou a conviver com ele, conversar e fo-
ram criando uma amizade, uma cum-
plicidade. Quando o preso se sentiu
um pouco mais confiante contou a ela
quem era e o motivo pelo qual estava
preso, o que fez com que ela passasse a
47
procurar a família dele que, ao ser co-
municada do local e do estado de seu
ente por uma carta anônima enviada a
eles [ela não podia de jeito nenhum di-
zer quem era], veio do Paraná, aonde
moravam, até Franco da Rocha lutar
pela sua soltura. Após muito tempo e
a vinda de polícia e repórteres ao lo-
cal ele foi solto. Passarem-se mais de
40 anos do acontecido e, mesmo as-
sim, quando ela me conta essa história
morre de medo de ser descoberta ”.
(Allan Saffioti)
Alan Saffioti teve seu primeiro contato com
o Hospital Psiquiátrico de Juqueri no ano de 1997,
quando ainda era um aluno de psicologia da Uni-
versidade de São Paulo (USP). No início, após con-
vencer o então psiquiatra responsável pelo Pronto
Socorro do local, conseguiu um estágio informal na
área por nove meses.
Saffioti lembra com pesar da sensação ao aden-
trar a Unidade de Longa Internação, como era cha-
mada. “O cheiro da colônia é uma coisa que não tem
como você entrar e sair igual, né? Em hospital psi-
quiátrico nenhum. Tem cheiro de miséria humana,
porque é muita gente junta, descuidada” e continuou,
“para mim tinha cara de abandono, maus tratos, si-
lenciamento lá é chamado de tratamento”.
Coincidentemente, o cheiro era algo que todos
que visitaram algum manicômio comentaram durante
meu trabalho. A higiene dos internos era praticamen-
48
te nula, e a equipe de enfermeiros não dava conta de
tantas pessoas. Esse fato ficou claro para o psicólogo
quando passou a trabalhar na Ala dos Acamados. Esta
contava com 110 camas lotadas e duas auxiliares de en-
fermagem para tratar dessas pessoas que necessitavam
de auxílio 24 horas, pois não conseguiam se mexer,
seja por questões psicológicas geradas por um trauma,
seja por questões motoras e, por conta disso, realiza-
vam suas necessidades fisiológicas na cama mesmo.
De acordo com Alan Saffioti, “aquele lugar fe-
dia a merda e você olhava pra aquelas duas pessoas
cuidando deles e falava, se elas começarem a limpar
agora o primeiro, quando chegarem ao último a me-
tade já vai estar suja de novo, pelo tempo que demora
pra você cuidar de verdade de alguém”.
Além da Ala dos Acamados, outro fato que cha-
mava a atenção de grande parte dos visitantes de tais
hospitais eram os chamados “nudistas de pátio”, por-
tadores de distúrbios mentais que se sentiam melhor
sem roupa e a tiravam para passar o dia. Segundo o
psicólogo, “isso é uma produção própria do hospital,
os pacientes só estão nessa condição por conta de
internação psiquiátrica, isso não é razão do proble-
ma originário dele, isso é por causa da instituciona-
lização”. Alguns pacientes estavam internados há 20,
30, 40 anos e isso, sem dúvida, afetava diretamente
o modo como se comportavam e suas relações inter-
pessoais.
Em seu trabalho no Pronto Socorro (PS), Sa-
ffioti atendia pessoas de fora e de dentro do hospital
de Juqueri. Por essa razão, entrava em contato, desde
pessoas que estavam lá apenas com o intuito de fugir
49
do trabalho, até casos mais graves de insônia e pessoas
que ouviam vozes. Os nove meses do psicólogo no PS
do hospital psiquiátrico foram, a seu ver, de extrema
importância. “Nesse período eu apanhei, tomei cus-
pida na cara, chute, fui confundido com um paciente
quando, por brincadeira, um psiquiatra me empres-
tou uma camiseta de quem era internado e todos fi-
cavam achando que fugi do Pronto Socorro, mas foi
muito interessante para a minha formação”.
Após a rápida experiência entre os anos de
1997 e 1998, o psicólogo voltou a trabalhar no com-
plexo hospitalar de Juqueri em março de 2005, onde
ficou por mais seis anos. Ele, nesse momento, foi re-
alocado no Hospital Dia de Juqueri - apesar de estar
em processo de fechamento após a lei antimanicomial
10.216/2001 ainda abrigava alguns pacientes que es-
tavam sendo realocados com suas famílias ou residên-
cias terapêuticas. Na visão do psicólogo, a relação com
os pacientes nesse tipo de tratamento era bastante ín-
tima. Saffioti conta que
Tinha uma paciente que eu gostava
muito dela, a Neide*, ela chegava
lá 7 da manhã, sendo que só abria
às 8 horas. Porque ela chegava as 7
e logo em seguida chegava o pesso-
al da copa e eles iam buscar o café
mais cedo. Então ela ia junto pra
ajudar, para passear. Não é só um
passeio assim, é uma forma de pen-
sar que está ajudando o pessoal da
copa, conversando. Ela ficava senta-
50
da na entrada, fumando um cigarro,
então todo mundo chegava, ela gri-
tava ‘bom dia!’ e já ia perguntando
‘oi! Tudo bem e tal? Você está bem
né?’. E quando não estava bem, com
a mesma altura que ela falava bom
dia ela falava ‘tudo bem? Você tá mal
hoje, hein?’. É outra relação, quase
familiar.
Em 2005, quatro anos após a lei antimanicomial
ser colocada em prática, infelizmente, ainda não era
possível notar grande diferença em relação ao trata-
mento para com os pacientes que restaram do hospital
psiquiátrico e os do manicômio judiciário. Tratamen-
tos como o temido eletrochoque já não eram mais re-
alizados, porém, nessa época, Saffioti afirma ter visto
de longe um paciente ser “lavado” com uma vassou-
ra de piaçava, algo inumano e que deveria era termi-
nantemente proibido. Outro tema tabu é a prática da
lobotomia. De acordo com o psicólogo, era comum
conhecer pacientes que estavam lá há décadas e pa-
reciam zumbis; não falavam muito, eram apenas som-
bras do que um dia foram e apresentavam uma grande
cicatriz na região da cabeça. “Tinha um preso quando
trabalhei, o coitado passou por lobotomia, teve todos
os dentes arrancados. O ‘cara’ não fala mais coisa com
coisa, não sabia onde estava, nem quem era, não sabia
data, estava em uma situação muito precária”.
Além de pacientes que habitam e habitaram
o complexo de Juqueri por décadas, alguns funcio-
nários também estão há uma grande quantidade de
51
tempo trabalhando naquelas instalações. Acredita-se
que cerca de 30 e poucas, ainda vivem no que uma vez
se chamou Hospital Psiquiátrico de Juqueri.
52
3.2 Hospital de Custódia
Aonde, antes, existia apenas o gigantesco com-
plexo de Juqueri, estão localizadas, desde 2001, as
unidade I (de internação) e a II (de desinternação)
do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de
“Professor André Teixeira Lima” (HTCP), na cidade
de Franco da Rocha, interior de São Paulo.
Atualmente, de acordo com o site oficial da Co-
ordenadoria de Saúde, o estabelecimento de 14 200
m² que é dividido por pavilhões femininos e masculi-
nos, conta com 528 presos na unidade I e 59 na uni-
dade II, a de desinternação. Todos os pavilhões con-
tém um número menor de internos do que o máximo
que comportaria, menos o feminino da Unidade I que
conta com 82 presas, sendo que sua capacidade é de
80 lugares. Por dentro das colônias, existe um local
chamado de Centro de Observação (C.O), cujo obje-
tivo é controlar o comportamento dos internos que
tem algum comportamento que, segundo eles, foge
padrões normais.
Desde maio de 2003 está em funcionamento,
no Hospital I, um setor que permita o trabalho dos
indivíduos presos no Hospital de Custódia e Trata-
mento Psiquiátrico. No local onde trabalham cerca de
trinta pacientes, recuperam-se móveis escolares, como
cadeiras e mesas. Em 2005, inaugurou-se uma oficina
de reciclagem de plástico.
A colônia feminina possui uma confecção de pa-
nos de prato, hortas, jardins e até uma padaria. Além
disso, conta com uma sala de aula, uma brinquedoteca
53
e um salão de recreação. Já nas colônias masculinas,
encontra-se uma área destinada à educação conten-
do três salas, uma biblioteca e sala de professores, na
qual, por vezes, exibe-se um filme.
Os internos são remunerados e rece-
bem salários regulares através da Co-
ordenadoria da Saúde. Alguns deles
são autorizados a vender produtos
fabricados na padaria do Hospital no
centro da cidade de Franco da Rocha.
Todos que manifestarem interesse
tem no Hospital de Custódia I, acesso
à educação do ensino fundamental.
(CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008)
Para compreender quem deve cumprir sua
sentença nos Hospitais de Custódia, deve-se começar
pelo funcionamento do sistema penal brasileiro. O có-
digo penal prevê que aqueles que forem a julgamento
e alegarem insanidade mental, são obrigados a passar
por uma sessão com um psicólogo ou psiquiatra que
estabelece um laudo declarando se o réu é portador
de algum distúrbio mental ou não. Caso o especialista
considere que a pessoa é impossibilitada de respon-
der por seus atos em uma prisão tradicional, ela passa
a ser considerada inimputável. Segundo a psicóloga
Adriana Eiko, que trabalhou anos no HTCP II, “a
pena não pode ser imputada porque de fato elas não
têm todas as faculdades mentais”.
A partir desse momento, o juiz concede a elas a
absolvição de seu crime e, em resposta, a obrigatorie-
54
dade de um tratamento compulsório. O suspeito ago-
ra é considerado em medida de segurança e é enviado
a um hospital de custódia, o que antes era chamado
de manicômio judiciário.
O que, à primeira vista, parece ser uma senten-
ça mais leve do que a direcionada àqueles que não
estão em medida de segurança, mostra-se muito pior
se analisarmos os pormenores. Um preso tradicional
tem, no dia do julgamento, sua pena determinada; é
exposto o tempo que ele ficará preso tendo a possibi-
lidade de diminuir sua pena se assim for aprovado. Já
a pessoa que é mandada para o hospital de custódia,
de acordo com a Lei de Execução Penal, tem apenas
o mínimo de seu tempo de exclusão decretado. Ou
seja, ao fim de cada período “mínimo”, o psiquiatra
ou psicólogo que acompanha o caso disponibiliza um
laudo afirmando ou não que aquela pessoa cessou sua
periculosidade e pode começar a passar pelo processo
de desinstitucionalização — saída do hospital. Desse
modo, existem pessoas que estão há mais de 40 anos
em cárcere no HTCP em Franco da Rocha, algo que
não está na constituição brasileira, visto que a pena
máxima no Brasil é de 30 anos.
Note-se que o termo “periculosidade” é alta-
mente questionado por aqueles que são contrários a
esse sistema empregado atualmente. “Nós fazemos
uma crítica a isso porque o conceito de periculosi-
dade reside numa compreensão de ser humano que
compreende esse sujeito como portador de caracte-
rísticas inatas ou tendenciais para o crime”, defen-
de Adriana Eiko. Algo que, segundo ela, nunca foi
comprovado.
55
A primeira vez que a periculosidade
do agente foi tratada na escola posi-
tiva, foi por Cesare Lombroso (1835 –
1909), em especial, buscava a caracte-
rizar o infrator pela antropobiologia,
fazendo um estudo em vinte e cinco
mil presos para chegar à concepção
dos traços físicos e biológicos dos de-
linquentes. Enrico Ferri (1856 – 1929),
além da antropobiologia, utilizou o
víeis sociológico do delinquente, sus-
tentando a tese de que as condições
sociais do ser humano além das bio-
lógicas também ensejariam o crime.
Outro importante científico nesta ce-
ara foi Rafael Garófalo (1851 – 1934),
buscou sistematizar a ciência jurídica,
explanando os postulados positivistas
para o direito penal, desenvolvendo o
conceito de periculosidade.
(FEITOSA, Isabella Britto, 2014, pg 3)
Em um trecho de seu livreto “Por uma Políti-
ca de Atenção Integral ao Louco Infrator”, Fernan-
da Otoni de Barros-Brisset questiona, justamente, a
questão da periculosidade e seu significado um tanto
subjetivo e pouco explicativo.
A presunção da periculosidade é ou-
tro absurdo que deveria desaparecer
dos textos normativos, assim como a
indeterminação do tempo da medida
56
de segurança e a própria lógica das
medidas de segurança. Contudo, ja-
mais as modificações da lei podem
caminhar no sentido de tratar o louco
como uma exceção, um caso apenas
para a saúde devido à sua condição
menos humana, à sua patologia.
(BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni,
2010, pg 30)
Um caso que abalou bastante a mídia brasileira
ao final do ano de 2003 foi o do assassinato, com re-
quintes de crueldade, da jovem Liana Friedenbach e
de seu namorado Felipe Caffé, em Embu Guaçu, inte-
rior de São Paulo. O chefe da quadrilha que assumiu o
crime foi o, então menor de idade, Roberto Aparecido
Alves Cardoso, o Champinha, que após completar sua
pena no estabelecimento para menores infratores, a
Fundação Casa, teve um laudo psiquiátrico afirmando
que ele era psicopata e que tinha uma alta periculosi-
dade. 	O então governador de São Paulo, José Serra
estabeleceu que ele deveria ser colocado em uma casa
que o deixasse fora do convívio social, apenas com ou-
tras pessoas com o mesmo laudo.
O poder público tem que proteger a
sociedade contra a violência (...) Par-
ticularmente no caso Champinha,
pois tive que construir na emergência
uma unidade para abriga-lo (como
havia terminado o prazo para mantê-
-lo internado, Champinha teve que
57
ser transferido para uma unidade de
saúde aonde está até hoje.
(SERRA, José. Meu Projeto é a Res-
posta Imediata aos Infratores. Estado
de SP, São Paulo, Junho 2015. Entre-
vista concedida a Marcelo Godoy)
Ou seja, ele não poderia ser preso em um cár-
cere tradicional pois���������������������������������já havia cumprido s�������������ua pena. Tra-
tou-se do caso como uma exceção ao Código Legisla-
tivo para que o jovem permanecesse preso.
O caso Champinha é um exemplo claro da ques-
tão da “periculosidade”. A partir do momento em que
o laudo psiquiátrico atestou que ele não poderia viver
em sociedade sem que voltasse a cometer crimes, ele
foi dado como “extremamente perigoso”. Algo que,
segundo muitos especialistas, é subjetivo e não atesta
nada, não passa de uma herança dos pensadores da
escola criminal positivista, que afirmavam que uma
pessoa poderia ser má, ou perigosa, em razão de sua
condição nata ou doença. Por outro lado, a própria
psiquiatra que cuida do caso de Champinha afirma
que se ele for posto em liberdade poderá reincidir em
seu crime.
Existem, nesse caso, especialistas que acreditam
que o modo como ele está sendo “tratado” não traz
nenhum benefício, caso da psicóloga Adriana Eiko.
“Existe o imponderável da vida; nem todo o tratamen-
to, nem com todo o cuidado nós conseguimos ter a cla-
reza que ele vai redundar numa positividade, em uma
mudança, tudo mais. Mas a certeza de que esse tipo de
internações, chamada de tratamento, essa certamente
58
não trará”, completa. Há os que creem que a soltura
desse criminoso seria nefasta para a sociedade, como
o advogado Ari Friedenbach pai de Liana, vítima de
Champinha, e atual vereador em São Paulo pelo parti-
do PROS. Segundo ele, “quando uma pessoa é psico-
pata ou algo do gênero não há cura. Ele é perigoso e
tem que ser colocado fora do convívio em sociedade”.
Além da questão paradoxal que a “periculosida-
de” do cidadão em medida de segurança traz, os hospi-
tais de custódia têm passado por algumas mudanças de
acordo com o perfil daqueles que estão presos em suas
dependências. Teoricamente, somente os criminosos
que apresentassem algum distúrbio mental deveriam
ser encaminhados para essa instituição mas, segundo
dados do livro A Custódia e o Tratamento Psiquiátrico no
Brasil de Débora Diniz, não é bem isso que acontece.
O censo de Débora foi realizado no ano de 2011
— quando ainda existiam 173 presos no HTCP II —
e analisou algumas características daqueles que estão
encarcerados no Hospital de Custódia André Teixeira
Lima II. Por ser o estabelecimento de desinstitucionali-
zação, grande parte das pessoas que habitavam o local
durante o estudo estavam em processo de saída da me-
dida de segurança. Porém, mesmo assim, já é possível
observar um pouco das particularidades daqueles que
estavam antes cumprindo pena no HTCP I.
No prédio de desinternação do hospital de cus-
tódia de Franco da Rocha, a idade média dos internos
era de 39 anos, sendo que 57% delas tinham de 20 a
39 anos. Isso, segundo Adriana Eiko, não é visto na
área de internação. O que antes da lei antimanicomial
era um local indicado somente àqueles que apresen-
59
tassem alguma questão mental mais seria está, nos
dias de hoje, repleto de pessoas com até 25 anos que
foram presas por alguma questão ligada às drogas.
De acordo com o censo comandado por Débora
Diniz, o que diferencia os internos do HTCP II de
Franco da Rocha com os que habitam os demais hos-
pitais de custódia no Brasil são as características físicas
de sua população.
	
No HCTP II-Franco da Rocha, pre-
tos e pardos somavam 42% (73) da
população e brancos, 56% (97). Entre
a população em medida de seguran-
ça, 44% (69) eram pretos ou pardos,
e entre a população em medida de
segurança por conversão de pena,
28% (4) eram pretos ou pardos. Nos
demais estabelecimentos do país, pre-
tos e pardos somavam 45% e brancos
somavam 38%.
(DINIZ, Débora, 2011, pg 323)
Outro importante fato apontado por Diniz é o da
concentração de homens e de mulheres nessa instituição.
Assim como nos demais estabeleci-
mentos, havia uma maior concentra-
ção de homens no HCTP II Franco
da Rocha. Havia 88% (153) de ho-
mens e 12% (20) de mulheres. Entre
a população em medida de seguran-
ça por conversão de pena havia uma
60
única mulher. No HCTP II-Franco da
Rocha, a relação era de uma mulher
para cada oito homens.
(DINIZ, Débora, 2011, pg 324)
Outra característica interessante abordada pelo
censo é o dos principais motivos pelos quais as pes-
soas em medida de segurança estavam internadas no
HTCP II. De acordo com Débora, o principal moti-
vo era o da esquizofrenia, abordando 38% dos casos.
Esse transtorno psiquiátrico condiz com os apontados
como dignos de serem mandados para um hospital de
custódia. Porém, o peculiar é que o segundo principal
caso, com 26% dos internos, é o de transtornos causa-
dos pelo uso excessivo de álcool e drogas.
De acordo com a psicóloga Adriana Eiko que,
além de ter trabalhado nessa unidade de Franco da
Rocha, milita pelo fechamento de tal instituição, essa
razão pela prisão é algo que tem aumentado cada vez
mais nos hospitais de custódia em geral. “Agora você
está encontrando uma população mais jovem e a ti-
pologia psiquiátrica tem a ver com o uso de drogas,
então são chamados de dependentes químicos. Então
você começa a entender todo o fluxo: a guerra contra
as drogas que ����������������������������������é o�������������������������������que tem aumentado o encarcera-
mento feminino e masculino e que está exterminando
a juventude negra na periferia é também o que está
ajudando a desviar quem são os sujeitos “incriminan-
tes”: os usuários de droga”.
Uma questão acerca do encarceramento em
hospitais de custódia é se essas pessoas que cometem
crime e são obrigadas a passar pelo tratamento com-
61
pulsório seriam mais bem tratadas se fossem presas
em prisões tradicionais. Eiko acha que não. Segundo
ela, “o sistema prisional atual tem uma lógica muito
própria. Se você não entra nessa lógica – por exem-
plo, o PCC – você acaba sendo sujeito a retaliações e
aqueles com transtornos mentais tinham uma maior
dificuldade nesse sentido. Os defensores públicos
mais aderidos fazem fiscalizações, vão aos presídios e
o que eles relatavam era isso, sujeito de medida de
segurança que era espancado toda noite porque às
vezes entrava em surto, entrava nesse circuito da pa-
ranoia, não conseguia dormir à noite, ficava gritan-
do, não tinha nenhum tipo de contenção química lá
porque não tem um psiquiatra para medicalizar esse
sujeito. A contenção era a ‘porrada’ mesmo”. Infeliz-
mente, em visitas a presídios pelo Brasil, esses defen-
sores acabaram percebendo que há uma quantidade
notável de pessoas que deveriam estar em medida
de segurança presentes em presídios comuns. Nesses
casos, por vezes, esses indivíduos, para fugir da reta-
liação dos outros presos, acabam sendo colocados no
que chamam de Medida de Proteção e Seguro Pessoa
(MPSP). Trata-se de uma cela pequena e afastada que
comporta todos aqueles que estão sendo maltratados
pelos outros presos, onde permanecem durante gran-
de parte de seu tempo e, para não entrarem em conta-
to com os outros, acabam perdendo privilégios como
um banho de sol.
No dia 19 de outubro deste ano, a Defensoria
Pública de São Paulo determinou a interdição da ala
psiquiátrica da Penitenciária III de Franco da Rocha
exatamente por esse motivo.
62
A Defensoria Pública de SP ingres-
sou na última semana com uma ação
civil pública em que pede a interdi-
ção da chamada “ala psiquiátrica” da
Penitenciária III de Franco da Ro-
cha. A ação pede, ainda, que sejam
realizadas as avaliações biopsicos-
sociais individualizadas de todas as
pessoas em cumprimento de medida
se segurança no prazo de 30 dias (...)
durante visitas realizadas pelo Nú-
cleo Especializado de Situação Car-
cerária da Defensoria, juntamente
com membros do Conselho Regional
de Psicologia e do Conselho Estadu-
al de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana, foi constatado que não há
equipe mínima de saúde apropriada
às demandas de saúde física e men-
tal das pessoas lá inseridas, que não
há qualquer plano terapêutico indi-
vidualizado para elas, entre diversas
outras irregularidades.
(Defensoria Pública de São Paulo,
DPE/SP, 2015)
De acordo com o documento divulgado pela
defensoria, as condições em que estas pessoas em
medida de segurança estavam submetidas eram pre-
cárias: vasos sanitários das celas estavam quebrados,
não tinham local próprio para realizar suas refeições,
havia problemas com os canos causando infiltrações e
63
alagamentos e não havia camas para todos os presos
obrigando alguns a dormir no chão.
Os Defensores Públicos responsáveis pelo caso,
Luana Medeiros, Verônica Sionti, Patrick Cacicedo e
Bruno Shimizu afirmam que as dependências desse
local não se comparam às de um hospital de custó-
dia no sentido de tratamento daqueles portadores de
transtornos psiquiátricos.
Para os Defensores Públicos, a cus-
tódia de pessoas com deficiência ou
transtorno mental em unidades pri-
sionais, como a Penitenciária III de
Franco da Rocha, viola frontalmente
os direitos fundamentais dessas pes-
soas e está em desacordo com toda a
legislação vigente sobre o tema. “É in-
tolerável a situação a que estão sendo
submetidos os presos diagnosticados
com deficiência ou transtorno men-
tal naquele local, podendo a situação
configurar, inclusive, tortura.”
(Defensoria Pública de São Paulo,
DPE/SP, 2015)
As pessoas em medida de segurança que se en-
contram nessas condições estão sendo “tratadas” em
prisões tradicionais, pois, segundo a resolução do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenci-
ária (CNPCP), enquanto não existirem hospitais de
custódia e tratamento psiquiátrico suficientes para
abrigar todos os que necessitam, eles devem ser man-
64
dados para os sistemas carcerários já existem. Porém,
mesmo na prisão tradicional, esses indivíduos, de
acordo com os direitos humanos, devem receber um
auxílio e tratamento especiais para seus casos como se
estivessem em um sistema de internação compulsória.
A vivência da psicóloga Adriana Eiko, enquan-
to trabalhava no HTCP II, demonstra que, apesar de
não ser o local ideal para o tratamento de pessoas com
transtornos psiquiátricos que cometeram crimes, fa-
zia-se o possível. De acordo com ela, “a desinternação
progressiva era bem interessante. Nós possuíamos um
contato mais profundo com os casos. Eu, por exem-
plo, trabalhava com apenas 20 mulheres. Tínhamos,
então, como acompanhar, eu as atendia diariamente,
fazia contato, falava com a família quase semanalmen-
te se não quinzenalmente, eu ia até a casa delas junto
com a condução do HTCP quando elas iam fazer visi-
ta ou as famílias vinham até lá para fazer entrevista”.
A maior dificuldade no processo de desinterna-
ção daqueles que estavam, por vezes, há décadas presos
em um hospital de custódia é o apoio da família. Se to-
das as famílias recebessem de bom grado seus parentes
internados, o tratamento dos psicólogos e psiquiatras
poderia ser passado ao grupo. No entanto, não é bem
isso que acontece. Na maioria dos casos, dá-se um pro-
cesso de estranhamento em relação ao parente interna-
do há muitos anos, sem contato com as novas gerações
que se seguiram à sua “prisão”. Também pode ocorrer
uma recusa em receber um “louco” em sua residência.
Nesses casos em que a família se recusa e abri-
gar o ex-interno, o trabalho da equipe de psicólogos e
psiquiatras fica mais intenso, pois precisa, além do lau-
65
do psiquiátrico que confirme a cessação de sua pericu-
losidade, ratificar que ele tem autonomia o suficiente
para viver bem fora da instituição, seja sozinho, seja
em residências ou comunidades terapêuticas – locais
onde pessoas com problemas de vício em álcool e dro-
gas podem residir por até 12 meses – ou até morarem
sozinhas e deslocarem-se aos centros. Uma equipe de-
cide se um paciente pode ir do HTCP I ao II. Segundo
Adriana Eiko, a desinternação deveria ser para todos,
mas “nem sempre o paciente está preparado para sair.
Um dos pacientes dizia que não queria sair dali, que
ele não sabia andar na rua, tinha medo. Ele apresenta-
va um quadro de deficiência cognitiva aguda”.
Esse processo deve ser realizado aos poucos para
que não haja muito estranhamento e afete o interno.
Ele deve ir resgatando vínculos internos, se possível,
com sua família e, aos poucos, ir “desinternando” a si
próprio. O CAPS, a família e os psicólogos do HTCP II
trabalham como que em uma rede, para que a inserção
daquela pessoa que ficou por anos excluída da socieda-
de possa ser o mais tranquilo possível. Por vezes, o in-
terno passa os finais de semana os as férias somente na
casa da família e depois volta para o hospital de custódia
para que, aos poucos, vá se acostumando à nova vida.
A psicóloga lembra-se de casos peculiares da-
quela unidade do hospital de custódia de Franco da
Rocha. “Lá morava uma paciente que estava há 10
anos internada e o laudo psiquiátrico sempre dava ne-
gativo na parte de cessação de periculosidade. Certo
dia, na visita com seu psiquiatra a mulher, que tinha
certeza que não passaria novamente no ‘teste’, jogou
uma cadeira nele e virou a mesa. Ela ficou alguns dias
66
presa na solitária e, é claro, seu laudo continuou nega-
tivo e ela ainda estava presa”.
Em alguns casos, até o próprio indivíduo deci-
de não voltar para sua família e consegue se organizar
de tal modo que sai do encarceramento e vai morar
sozinho, continuando o tratamento no CAPS ou, so-
mente, com apoio psicológico. Foi o que aconteceu
com uma paciente de Adriana Eiko que, trabalhando
como faxineira em várias casas em Franco da Rocha,
conseguiu se sustentar, alugou uma residência para
morar na cidade e reconstruiu a sua vida.
Uma questão que aflige aqueles que são comple-
tamente contra qualquer tipo de instituição, seja o hos-
pital psiquiátrico, seja o de custódia, é se existe alguma
alternativa a esse cárcere que abriga aqueles criminosos
que foram diagnosticados com algum distúrbio mental.
Após a aprovação da lei 10.216 em 2001, foi
possibilitada a criação de dois programas (o PAI-PJ e
o PAILI), para auxiliar, de modo menos encarcerador
do que os hospitais de custódia, pessoas com transtor-
nos psiquiátricos que haviam sido colocadas em medi-
da de segurança.
O primeiro, Programa de Atenção Integral ao Pa-
ciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-
-PJ), idealizado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais
em 2001, “se orienta pelos princípios da reforma psi-
quiátrica, promovendo o acesso a tratamento em saúde
mental na rede substitutiva ao modelo manicomial”.
Para que isso ocorra, o programa conta com
uma equipe composta por assistentes sociais, psicó-
logos e bacharéis em direito – que auxiliam os seus
usuários em suas questões jurídicas – todos atuando
67
em parceria com o Judiciário, Ministério Público e
Executivo. Segundo a cartilha divulgada pelo próprio
PAI-PJ, desde seu início até o ano de 2010 – até onde
se tem um censo – 755 casos foram acolhidos por ele,
sendo que destes, 489 se desligaram do programa.
O programa busca ouvir diariamente o pacien-
te e sua família tentando criar a, tão esperada, relação
entre eles. O PAI-PJ aponta três importantes passos
para o tratamento de seus usuários: o acompanha-
mento clínico, no qual há um auxílio bem próximo
de psicólogos e psiquiatras que criam, juntamente ao
paciente, uma rede com o sistema público de saúde;
o acompanhamento social, no qual os profissionais do
programa procuram manter um contato próximo com
a família, amigos, relações de trabalho, além de tentar
prover o máximo de assistência a essas pessoas na pro-
cura de trabalho, moradia e até documentos. Por fim,
há o acompanhamento jurídico que consiste na emis-
são de relatórios e pareceres judiciais que são enviados
às autoridades judiciais que cuidam de cada caso.
Inspirado na iniciativa mineira, o Programa In-
tegral de Atenção ao Infrator (o PAILI) é uma ideali-
zação do estado de Goiás que, assim como o anterior,
tem como intuito um tratamento alternativo ao hos-
pital de custódia, em casos de pessoas em medida de
segurança. Atualmente, o programa acompanha 243
pacientes em 77 cidades do estado e tem convênio
com o Sistema Único de Saúde (SUS) e os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS).
A equipe do PAILI é composta por assistentes
sociais, advogados, psicólogos, auxiliares administra-
tivos e acompanhantes terapêuticos, sendo que todos
68
tem um vínculo com a Secretária de Estado da Saúde
e realizam um processo similar ao PAI-PJ com relação
aos cuidados com o paciente.
De acordo com a psicóloga Adriana Eiko, um
tratamento mais humanizado para com estes indiví-
duos em medida de segurança gerou muitos frutos
positivos e quase nenhum caso de reincidência. “O
importante no tratamento dos pacientes com sofri-
mento mental é fazê-los tomar responsabilidade pelos
seus atos, mas isso só é possível depois de um longo
processo, a partir do qual o indivíduo consegue re-
pensar a própria vida, o que certamente não acontece
do outro lado do muro manicomial”, afirma.
	
Histórias do Hospital de Custódia de
Franco da Rocha
Entrada, desde o início até os dias de hoje, do Complexo de Juqueri que
abriga o Hospital de Custódia
IG
69
O manicômio judiciário do Juqueri ficou co-
nhecido por servir de cárcere a João Acácio Pereira
da Costa, o famoso Bandido da Luz Vermelha. O cri-
minoso era conhecido por invadir casas de bairros
nobres de São Paulo, assaltá-las e estuprar as vítimas
do sexo feminino. Ao adentrar as casas que assaltava,
usava um lenço cobrindo seu rosto e uma lanterna de
bocal vermelho, que virou sua marca registrada e foi
responsável pelo seu codinome. Ele foi sentenciado a
351 anos, nove meses e três dias de prisão por quatro
assassinatos, sete tentativas de homicídio e 77 assaltos.
Luz Vermelha, como era chamado por aqueles
que trabalhavam no local, foi preso por duas vezes no
Juqueri. Na primeira, no ano de 1967, recebia diaria-
mente, de acordo com os funcionários do então Ma-
nicômio Judiciário de Juqueri, visitas de jornalistas e
mulheres.
Meu primo, que o conheceu antes de
mim, dizia que o Luz Vermelha não
tinha contato com os outros deten-
tos. Não poderia ser diferente, pois
ele trazia do lado de fora das mura-
lhas uma fama que metia medo até
no mais valente dos presos. O sujeito
era tão respeitado que, se ele gostas-
se de um par de sapatos de um dos
visitantes, pedia para que o deixasse
como presente. Ninguém ousava de-
sobedecer.
(FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na-
varro, 2014, pg 128).
70
O criminoso ficou um total de 30 anos preso na
instituição tendo saído uma vez e retornado anos de-
pois. Em meados dos anos 70, sua segunda passagem,
o, então enfermeiro do manicômio judiciário, Walter
Farias admite que os tempos de fama de João Acácio
Pereira da Costa – que no ano de 1968 teve um filme
contando sua história, “O Bandido da Luz Vermelha”,
dirigido pelo importante expoente do cinema margi-
nal, Rogério Sganzerla – tinham acabado.
Sem visitas diárias, passava dia e noi-
te calado em uma cela comum, de
cinco metros quadrados, no térreo,
no lado direito do corredor de entra-
da do prédio. Um funcionário com
mais tempo de casa o vigiava sentado
em uma cadeira localizada no portão
que dava para o corredor; o temor da
direção era que uma faca, punhal ou
qualquer outro tipo de arma branca
chegasse até ele (...) uma das poucas
pessoas que ainda o visitavam espo-
radicamente, uma senhora da igreja.
(FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na-
varro, 2014, pg 128 - 129).
	
Entre os anos 1978 e 1979, o anestesista Odair
Marangoni trabalhou dentro dos muros da instituição.
Durante seu período no local, o médico acompanhou
o sofrimento de pacientes que, segundo ele, ficavam
largados na enfermaria – local em que passava a maior
parte de seu tempo. A seu ver, o atendimento aos pa-
71
cientes, — carentes de um olhar mais solidário por
parte dos funcionários, ou de visitas externas — “era
até desumano”. O médico chegou a entrar em contato
com o “temido” Bandido da Luz Vermelha e afirma
que ele não era portador de um distúrbio psiquiátrico
que o enquadraria como preso do manicômio judici-
ário. Segundo ele, “depois de certo período preso na
instituição constataram que ele não era ‘louco’”.
Além do famoso “Luz”, milhares de outros de-
tentos passarem pelo local. O livro “O Capa Branca”
aborda alguns deles, como Sansão. O detento, por
ser considerado um dos internos de maior periculo-
sidade, permanecia preso em um local chamado de
“cela surda” — cela em formato de L dividida por
duas portas de ferro que serviam de isolamento acús-
tico (para que os gritos não fossem ouvidos do lado
de fora).
No entanto, Sansão - que recebia esse nome
por sua força gigantesca que era um enorme empe-
cilho aos enfermeiros que cuidavam dele – incon-
formado por ter que ficar preso naquelas condições,
batia a cabeça com força na parede da cela. O que
impressionava a todos que passavam pelos corredo-
res próximos ao aposento do interno era o barulho
que tal ação ecoava. Diziam ser possível ouvir de ou-
tro andar a batida da cabeça de Sansão na cela surda,
e que o topo de sua cabeça já estava completamente
machucado e sua raiva apenas crescia tornando cada
vez mais impossível o trabalho dos enfermeiros que
cuidavam de seu “quarto”.
As brigas entre os detentos eram uma questão
bastante complicada para os enfermeiros. Nessas si-
72
tuações, por vezes, os internos confeccionavam sua
própria arma branca e tratavam de infectá-la a partir
de uma sofisticada forma de contaminação: primei-
ramente eles retiravam um pedaço do ferro da janela
ou de alguma parte da cela que estava mal coloca, em
seguida matavam ratos e demais animais desse gêne-
ro que rondavam seus aposentos, colocando-os, junta-
mente com o ferro, em um buraco cavado na própria
cela. Para que os enfermeiros e demais detentos não
percebessem o cheiro da carcaça do animal apodre-
cendo, às vezes por semanas, no buraco com o fer-
ro, eles colocavam seus dejetos pessoais em cima do
orifício. Em seguida, quando o objeto era retirado do
buraco, ele estava infectado com bactérias e bastava
um pequeno corte no oponente para contaminá-lo
mortalmente.
O abuso sexual era, também, uma forma de
violência um tanto frequente na instituição carcerária.
Walter Farias conta com pesar de sua relação conflituo-
sa com um detento chamado Charuto. De acordo com
um ex-enfermeiro e ex-interno do Juqueri, esse preso
era bastante respeitado pelos outros e tinha a terrível
“mania” de oferecer aos detentos novos na instituição
uma “proteção” em troca de favores sexuais. Perceben-
do tal situação, Farias tentou proteger os internos do
Charuto e acabou levando diversas ameaças do preso,
nunca realizadas.
Outro preso ameaçava diariamente que iria ar-
rancar seus próprios olhos. Apesar de pouco crentes,
os enfermeiros foram obrigados a deixa-lo trancafiado
em sua cela na maior parte do tempo. Em uma noite,
após o liberarem para passear no pátio, encontraram-
73
-no na quadra, em meio aos demais detentos, desacor-
dado, e sem os olhos.
Tanto no Hospital Psiquiátrico quanto no Ma-
nicômio Judiciário, a nudez era algo bastante comum.
Farias lembra que, por vezes, quando os internos rece-
biam alguma visita, os enfermeiros tentavam arrumá-
-los com uma roupa mais digna. Roupa esta que era
imediatamente tirada no momento em que voltavam
da visita. Ainda nos anos 80 tal prática ainda era bas-
tante comum. Na reportagem realizada pelo repórter
Goulart de Andrade para a TV Gazeta — “Goulart de
Andrade em Juqueri” - podem-se confirmar os relatos
que atestam essa situação: internos nus no pátio, com
escaras, em meio a fezes e dejetos espalhados pelos
corredores da instituição.
No programa, o desespero dos internos sub-
metidos a condições degradantes ������������������é perceptível. ���Em-
pilhados, imundos e tratados como animais. O banho,
segundo uma enfermeira do local, é dado no próprio
pátio com água quente retirada da cozinha.
Tanto o vídeo quanto o livro A Casa de Delí-
rio, do jornalista Douglas Tavolaro apontam a dança
como um método de passar o tempo no local. Por
vezes, homens e mulheres se encontram em uma das
salas para um baile. Esse é um dos únicos momen-
tos, de acordo com o jornalista, em que os presos
homens e mulheres podem conviver e, em alguns
casos, relacionamentos resultam de tal interação.
Em visita ao complexo penitenciário, a psicóloga
Vivian Crepaldi entrou em contato essa situação,
como conta em seu artigo “Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico”.
74
Neste dia estava acontecendo um
baile de integração entre os internos
das colônias feminina e masculina. A
psicóloga explicou que a intenção em
promover esse baile é a de fazer com
que os indivíduos possam ‘namorar’
e se ‘distrair’, nos contou que este
evento é realizado quinzenalmente.
Havia música ao fundo do discurso
explicativo (...) A psicóloga nos con-
tou que a homossexualidade lá é tole-
rada mesmo porque como ela relata:
na ‘condição’ em que se encontram
eles estão homossexuais apesar de
muitos não o serem. Ou seja, na ca-
lada da noite, dentro dos pavilhões
tudo pode ser experienciado. Muitos
deles mantêm relações sexuais com o
mesmo sexo e ainda assim tem uma
namorada (o) e a (o) encontra justa-
mente quinzenalmente nas festas que
promovem de integração entre as co-
lônias masculina e feminina.
(CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008).
77
4.	 A Reforma Psiquiátrica
O final da segunda metade do século XX foi
marcado pelo início do questionamento acerca da efi-
cácia e da humanidade dos tratamentos adotados para
os portadores de distúrbios mentais. Até então, aquele
que era diagnosticado ou somente considerado lou-
co era enviado, por vezes sem previsão de liberdade,
para os hospitais psiquiátricos ou colônias, que nada
mais eram do que enormes manicômios que abriga-
vam centenas ou milhares de pessoas com as mais di-
versas características.
O que começou a chamar a atenção de alguns
psicólogos e psiquiatras ao redor do mundo foram os
métodos “terapêuticos” aos quais esses internos aca-
bavam sendo expostos. Desde duchas frias, sangrias
(o doente mental tem parte de seu sangue retirado
por meio de cortes em seu corpo,), passando pelos
temidos eletrochoques (ECT), procedimento em que
a pessoa é amarrada a uma cama e tem uma alta carga
de eletricidade descarregada em sua cabeça através de
placas e até, em casos extremos, a lobotomia.
A última, considerada a mais invasiva das inter-
venções cirúrgicas, ocorre no cérebro e é realizada da
seguinte maneira: são seccionadas as vias que ligam
os lóbulos frontais ao tálamo e outras vias associadas.
A ideia de destinar tal operação de cunho tão radical
aos doentes mentais brasileiros, data do ano de 1935
e foi instuituída pelo médico português Egas Moniz,
78
em colaboração com o cirurgião Almeida Lima e o
psiquiatra Cid Sobral. Anos após o período em que
foi lançada, a descoberta de Moniz continuou sendo
cultuada pelos médicos e psiquiatras que tratavam de
psicóticos, como o artigo de 1949 explicita.
O tratamento cirúrgico de algumas
formas de doenças mentais, pela lo-
botomia, constitui um método tera-
pêutico de eficiência comprovada.
Todas as glórias do sucesso desta te-
rapêutica cabem a Egas Moniz, cuja
brilhante inteligência tem sido de-
dicada aos estudos da fisiopatologia
dos lobos frontais, desde a realização
do Congresso Internacional de Neu-
rologia em Londres, em 1935, até
este novo Congresso em que obtém
êle os mais brilhantes louros de sua
vitória científica.
(LONGO, Paulino W; PIMENTA,
Mattos A; ARRUDA, 1949, pg 1)
	
	A literatura da época afirma que os pacientes
que passassem por tal operação perdiam grande parte
de sua capacidade de fala e compreensão de situações
tornando-se “zumbis-humanos”. Tais práticas objeti-
vavam tornar os pacientes mais dóceis aos tratamen-
tos e ao convívio social, ou por serem esquizofrênicas e
terem algum surto ou por apenas não aceitarem estar
naquela situação, perturbando os próprios médicos e
enfermeiros das instituições.
79
Pioneiro na questão da reforma psiquiátrica,
o psiquiatra italiano Franco Basaglia foi um dos pri-
meiros a questionar tais métodos de tratamento e
iniciar um processo de crítica e de tentativa de trans-
formação do saber da época e dos métodos aplica-
dos nas instituições psiquiátricas. Apesar de iniciado
na Itália, esse movimento se propagou pelo resto do
mundo e teve um grande impacto no Brasil a partir
da década de 80. O impacto da influência das ideias
de Franco Basaglia pode ser mensurado a partir de
várias iniciativas pelo mundo afora, inclusive no Bra-
sil. Em 18 de maio – data que foi, após, oficializada
como o dia da luta da antimanicomial e, na qual, de-
zenas de passeatas sobre o tema ocorrem pelo país
- de 1987, durante o II Congresso Nacional de Tra-
balhadores da Saúde Mental, realizado na cidade de
Bauru (interior de São Paulo), foi elaborada a “Carta
de Bauru”, o primeiro documento brasileiro que pe-
dia a extinção dos manicômios:
O manicômio é expressão de uma
estrutura, presente nos diversos me-
canismos de opressão desse tipo de
sociedade (...)Lutar pelos direitos de
cidadania dos doentes mentais signi-
fica incorporar-se à luta de todos os
trabalhadores por seus direitos míni-
mos à saúde, justiça e melhores con-
dições de vida.
(Bauru, dezembro de 1987 - II Con-
gresso Nacional de Trabalhadores em
Saúde Mental)
80
Além disso, a “Carta” pedia o fim da medicali-
zação o que, segundo seus elaboradores, não passava
da mercantilização da doença mental, a venda sem
precedentes de remédios que, por vezes, acabavam
prejudicando os pacientes. “A ‘Carta de Bauru’ resul-
tou na I Conferência de Saúde Mental e na Luta Ma-
nicomial”, afirma a psicóloga Deborah Sereno, em seu
artigo Sobre a Ética no Acompanhamento Terapêutico
(Psic. Rev. São Paulo, volume 21, n.2, 217-232, 2012).
A partir de então, a reforma psiquiátrica e, com
ela, a luta antimanicomial, passou a gerar frutos, em
especial no ano de 1989. Esse ano marcou o fecha-
mento da Clínica Anchieta, em Santos, pela então
prefeita Telma de Souza, estabelecimento psiquiátri-
co que, após a averiguação de denúncias, descobriu-
-se que realizava os mais variados métodos desumanos
de tratamento, desde choques elétricos até espanca-
mento e confinamento, o que lhe rendeu o apelido de
“Casa dos Horrores”.
Além disso, na mesma época, o então depu-
tado Paulo Delgado (PT/MG) elaborou o projeto de
lei nº 3657/1989, que pedia “a extinção progressiva
dos manicômios e sua substituição por outros recursos
assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica
compulsória”.
Porém, somente em 6 de abril de 2001, a lei
10.216, que proibia a existência de qualquer manicô-
mio e internação involuntária seria sancionada. Se-
gundo a nova legislação, A pessoa visando um trata-
mento psicológico tem direito, dentre outras coisas,
após a criação da lei uma série de possibilidades antes
inimagináveis. Além do fato de que a internação psi-
81
quiátrica só poderá ocorrer em última instância e com
a presença de um laudo que indique essa razão.
[a pessoa a quem a lei se aplica tem di-
reito de] ser tratada com humanidade
e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua saúde, visando alcan-
çar sua recuperação pela inserção na
família, no trabalho e na comunida-
de; ter acesso ao melhor tratamento
do sistema de saúde, consentâneo
às suas necessidades; ser tratada em
ambiente terapêutico pelos meios
menos invasivos possíveis; ser tratada
em ambiente terapêutico pelos meios
menos invasivos possíveis (...)”
(BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril
de 2001)
O fechamento sucessivo das instituições psi-
quiátricas expôs a necessidade do Estado prover um
auxílio posterior aos egressos desses hospitais psiqui-
átricos, pois alguns passaram grande parte de suas vi-
das internados, e, com isso, foi sancionada outra lei,
a de n. 10.708 de 31 de julho de 2003. Ela prevê uma
“assistência, acompanhamento e integração social,
fora da unidade hospitalar, de pessoas acometidas de
transtornos mentais, com longa história de interna-
ção psiquiátrica (dois ou mais anos)” (BRASIL, Lei nº
10.708, de 31 de julho de 2003).
A criação dessa lei proporcionou a elaboração
de diferentes programas de auxílios psicossociais,
82
dentre eles os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial),
as Residências Terapêuticas – ambos serão abordados
adiante – e o programa “De Volta Para Casa”. O úl-
timo consiste na reintegração desses ex-internos dos
manicômios à suas famílias de modo que possam reto-
mar, o mais próximo possível, suas vidas pré-interna-
ção. Algo que se mostrou, ao mesmo tempo, de suma
importância, mas de difícil execução.
Imagens da Passeata pela Luta Antimanicomial
do dia 18 de maio de 2015
83
84
85
87
5.	 Fora dos Muros Manicomiais
A ilegalidade dos manicômios e seu fechamen-
to determinado pela lei antimanicomial 10.216 de
2001, fez surgir a necessidade da criação, ou ao me-
nos aprofundamento, de novos ambientes para o con-
tínuo tratamento daqueles que antes estavam conde-
nados a viverem reclusos por longos períodos nessas
instituições.
Não é possível chamar esses “ambientes” de
tratamentos ou terapia, muitas vezes pela caracterís-
tica médica que esses termos trazem ou também pela
necessidade de desconectar as pessoas que estavam
nos manicômios dos tratamentos que recebiam diaria-
mente nesses locais.
Muitas alternativas aos tratamentos antes em-
pregados passam a ser aplicadas, como por exemplo,
o projeto “De Volta Para Casa. O programa atua na di-
fícil tarefa de reinserção dos portadores de distúrbios
mentais no convívio social, fornecendo todo o auxílio
e suporte necessário, seja terapêutico, seja na forma
de atividades lúdicas e de lazer.
É importante salientar que a relação dos pacien-
tes com instituições que utilizam métodos repressivos,
agressivos e violentos exercem tamanha influência em
suas vidas findo o tratamento, que a situação passa a
exigir um novo ciclo de análise posterior tratamento.
Pensando nisso, a teoria da esquizoanálise,
cunhada por Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu li-
88
vro “O Anti Édipo”, questiona, dentre diversos outros
temas, a relação entre o indivíduo e as instituições.
Desse modo, de acordo com o professor De-
partamento de Filosofia e no Núcleo de Estudos da
Subjetividade do Pós-Graduação em Psicologia Clíni-
ca da PUC-SP e estudioso e tradutor de parte da obra
de Gilles Deleuze, Peter Pál Pelbart, a relação de uma
pessoa com transtornos mentais e o Hospital Dia, um
hospital psiquiátrico ou de custódia, deve ser trata-
da também de dentro para fora. Ou seja, não é ape-
nas o sujeito em questão que está doente e precisa ser
tratado, a própria instituição precisa se curar, já que
ela mesmo está enferma. Então, um modo de se “me-
dicar” tais locais é a criação de terapias alternativas,
que ofereçam novas formas de tratamento para os que
passam por sofrimentos mentais.
89
5.1 Companhia Teatral Ueinss
Foi um paciente do hospital-dia2
“ACasa”, em
1996, que, notando a falta de uma atividade que agre-
gasse uma grande quantidade de pessoas portadoras
de distúrbios psicóticos, mas que não fosse algo volta-
do somente aos membros do hospital ou aos seus fa-
miliares e, sim, ao grande público, que deu a ideia ao
filósofo, professor da PUC e então funcionário da ins-
tituição, Peter Pál Pelbart para a criação de um novo
grupo, a Companhia Teatral Ueinss.
“O paciente disse que queria fazer teatro, mas
teatro de verdade, não apenas apresentações de louco
para louco”, nem somente para apresentar às famílias
na festa de final de ano e acatei, juntamente a outros
funcionários, essa decisão”, contou Pelbart.
Considerando a ideia desse paciente de exte-
riorizar as atividades desenvolvidas na “Casa”, Peter
Pelbart convidou o diretor de teatro Renato Cohen
que trouxe seu colega Sérgio Pena para que, juntos,
tomassem a dianteira do projeto.
Inicialmente o filósofo ficou impressionado
pelo modo como a atividade foi construindo possibili-
dades de inclusão social. “Esse olhar diferente direcio-
nado aos pacientes suscitava, para eles, uma situação
muito distinta do que seria o Hospital Dia; eles não
eram mais pacientes, não eram doentes, eram atores,
2
O Hospital Dia é um método de atendimento que busca, a todo custo, desins-
titucionalizar os pacientes, mesmo antes do cumprimento da lei antimanicomial
nº 10.216/2001. Neles, o paciente e sua família tem atenção integral em um am-
biente clínico.
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  • 4. Dedico o meu livro ao meu avô Reynaldo. A pessoa que mais sentia orgulho de mim independente do que eu fizesse. Saudades.
  • 5.
  • 6. AGRADECIMENTO Primeiramente, agradeço ao meu orientador Silvio Mieli que aceitou esse tema tão fora dos padrões jornalísticos e me acalmou quando tive meus medos e estresses ao longo do ano. Gostaria de agradecer aos meus pais, Deborah e Claudio, que aguentaram minhas mudanças de humor repentinas, sempre tentando me acalmar e afirmar que tudo daria certo. Em especial à minha mãe que me introduziu a esse mundo e me mostrou os diferentes lados e questões da “loucura”. Às minhas amigas e amigos por me apoiarem nesse tema tão difícil e me respeitarem nos momentos em que tive minhas crises durante esse difícil ano. Acho que o apoio que nós, formandas da PUC, demos umas as outras foi essencial, pois passamos a perceber que todas tínhamos dificuldades e problemas no processo de realizarmos o TCC. Por fim, gostaria de agradecer especialmente aos meus entrevistados que me concederam uma parte de seu tempo, respeitando o fato de que, ao menos no início do trabalho, eu não soubesse os pormenores do tema.
  • 7.
  • 8. “A loucura é relativa. Quem pode definir o que é verdadeiramente são ou insano?”. Woody Allen
  • 9.
  • 10. SUMÁRIO 1. Introdução.....................................................................11 2. O Encarceramento Sucessivo da Loucura....................17 3. Juqueri Através dos Anos..............................................31 3.1 O Hospital Psiquiátrico..............................................38 3.2 O Hospital de Custódia..............................................52 4. A Reforma Psiquiátrica.................................................77 5. Fora dos Muros Manicomiais........................................87 5.1 Companhia Teatral Ueinss..........................................89 5.2 Centro de Atenção Psicossocial...................................98 5.3 Acompanhamento Terapêutico.................................104 5.4 Residências Terapêuticas..........................................112 6. Conclusão....................................................................121 7. Referências Bibliográficas...........................................125
  • 11.
  • 12. 11 1. Introdução Recordo-me do dia em que decidi que iria tratar do tema manicômio judiciário e hospital psiquiátrico de Franco da Rocha e as novas terapias alternativas em meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Lem- bro-me, ainda mais, da reação das pessoas quando as contei. Enquanto algumas simplesmente não tinham conhecimento algum do tema, as que sabiam do que se tratava acharam que eu deveria ter escolhido um assunto mais simples para tratar ou simplesmente algo menos perigoso e que eu era – veja a ironia – “louca” de tentar estudar e entrar em contato com essas pesso- as que, na visão do senso comum, estão longe de apre- sentarem um grau aceitável de sanidade. Sempre, com alguma dificuldade, explicava que eu estava tentando sair da minha zona de confor- to e que queria conhecer mais a fundo as pessoas que tinham passado grande parte de suas vidas presas em um local fechado, sem um tratamento humanizado e que poucas vezes tiveram chance de contar suas histó- rias. Meu intuito inicial era conversar com aqueles que ainda estavam presos no manicômio judiciário André Teixeira Lima I e II. Com o início da pesquisa fui atrás da documen- tação necessária para, não somente entrar na institui- ção, como também conversar com os internos e fun- cionários do local. Após meses de visitas ao Comitê
  • 13. 12 de Ética da Secretária de Administração Penitenciária (SAP) e elaboração dos documentos necessários para a visita, além de, com a ajuda de meu orientador, enviá- -los à Plataforma Brasil para a análise de um juiz e os demais membros de comitês de ética penitenciários do país, foi no comitê de ética da PUC que a minha procuração foi embargada. Em razão disso e do atraso que tal fato me gerou, tive que começar a analisar a questão do tratamento da loucura e também das instituições de Franco da Ro- cha permeando aqueles que ou tiveram algum contato com elas ou que atuam em algum local de tratamento alternativo a tal método de “terapia compulsória”. Por sorte consegui falar também com um ex-paciente do hospital psiquiátrico, o, também escritor, Walter Farias. À primeira vista, achei que estivesse entran- do em um campo em que, dificilmente, conseguiria encontrar alguém disposto a falar e fui, felizmente, surpreendida ao receber uma quantidade razoável de respostas de pessoas dispostas a contar sua história. O curioso é que, apesar de ser filha de uma psicóloga bastante atuante nas questões da luta anti- manicomial e da reforma psiquiátrica, eu nunca havia tido muito contato direto com pessoas de distúrbio mental e admito que, por vezes, compartilhava do pensamento do senso comum: “será que eles podem fazer algo comigo?”, “como devo reagir”, entre outros temores sem fundamento. No entanto, com o passar dos meses, fui obrigada a, cada vez mais, conviver com os, como são usualmente chamados, “loucos” e fui descontruindo, aos poucos, minha visão, até então errada, sobre eles.
  • 14. 13 Na passeata pela Luta Antimanicomial em que caminhamos do vão do MASP até o Hospital das Clí- nicas, no dia 18 de maio deste ano, fui tocada pela quantidade de pessoas lá presentes e pela intensidade com que elas gritavam os gritos de guerra e a abertura que deram para qualquer um que desejasse subir no carro de som e falar o que está sentido. Isso eu não havia presenciado em nenhuma outra passeata ou ma- nifestação a que tive contato. As relações que vim a estabelecer tanto com as pessoas portadoras de algum distúrbio mental, como em minha visita a um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) – que virei comentar adiante – quanto com aqueles que encontrei na passeata da luta antimanico- mial, tanto profissionais como os chamados “loucos” foram de suma importância ao encaminhamento do trabalho, pois senti que devia a essas pessoas um “tra- balho bem feito”. Analisando toda a bibliografia a que tive conta- to e as pessoas com que conversei passei a considerar a questão da loucura e como ela é tratada pela socie- dade. Qualquer um que não tem uma personalidade condizente com a dos demais habitantes de um local, é diferente e, assim, deve ser marginalizada, não po- dendo conviver com os outros e, mesmo se puder, não do mesmo modo como as outras pessoas o fazem. No entanto, passei a me questionar: por que o diferente assusta tanto a todos que deve ser excluído do conví- vio social? Pensando nisso, acabei lembrando daqueles “loucos” que acabaram sendo presos em sanatórios, porém hoje são considerados grandes mentes de seu
  • 15. 14 tempo. Um deles é Vincent Van Gogh, pintor holan- dês que, ao ser considerado insano por uma tentativa de suicídio falha e ansiedade, acabou sendo interna- do por seus parentes em um manicômio, aonde con- tinuou com seu trabalho pós-impressionista hoje tão cultuado. Muitos estudiosos acreditam que sua ques- tão mental foi um dos agravantes para sua produção figurativa e o modo um tanto irreal com que repre- sentava o mundo, sua marca registrada. Ou seja, se ele não fosse “louco” ele poderia não ser detentor tama- nha genialidade em sua arte. O Brasil também teve alguns artistas expoen- tes dos manicômios. O mais importante deles foi o pernambucano Arthur Bispo do Rosário. Nascido na cidade de Japaratuba, Sergipe, no ano de 1909, Bispo do Rosário, como era chamado, viveu uma vida um tanto corriqueira, trabalhando na Marinha, no Depar- tamento de Tração e Bondes e até de boxeador. Porém, após uma noite de alucinações que o fizeram pregar que era um enviado de Deus, foi internado compul- soriamente no Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, e depois transferido para a Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, sob um diagnóstico que o apontava como esquizofrênico-paranóico, algo que fez com que passasse grande parte de sua vida atrás das grades. O interessante é que foi exatamente nesse sanatório que o artista-plástico esteve em seu maior auge criativo re- alizando inúmeras obras de arte com as sucatas lá pre- sentes. Obras estas que foram, anos após sua morte, expostas nos principais museus brasileiros. Desse modo, podemos perceber que, muitas vezes, a linha que divide a loucura da genialidade e,
  • 16. 15 mais ainda, a sanidade da insanidade é, muitas vezes, bastante tênue e que é a sociedade que determina quem são aqueles que devem ser excluídos da vida so- cial e, mais ainda, quem é são e quem não é. Isso se mostrou muito visível na fala de Walter Farias quando eu perguntei a ele se ele se considerava louco e ele, sem pestanejar, respondeu: “olha, eu não me considero louco, mas eu sou”. Ou seja, para ele, sua loucura é muito mais imposta pelas pessoas de fora do que pela sua própria consciência. Pensando assim, se pessoas como estas que citei são as insanas, devo agradecer àqueles que, no início do meu estudo, pen- saram que estavam me ofendendo ao me chamarem de “louca”.
  • 17.
  • 18. 17 2. O Encarceramento Sucessivo da Loucura Chamar alguém de louco ainda é uma espécie de xingamento. Uma pessoa que tem uma ideia um pouco diferente do senso comum é um louco, alguém que expõe seu pensamento de modo menos reticente, ou que não se preocupa com o que os demais acham de si, é louco. Ao mesmo tempo, um político corrupto é um louco, um assassino em série é considerado lou- co e uma pessoa como Hitler fez o que fez porque é, “sem dúvida”, louco. Apesar disso, a questão da loucura é, mais do que tratá-la, o que fazer com ela e com os que, segundo a sociedade e os critérios médicos, vivem qualquer di- mensão de sofrimento mental, é algo que existe desde praticamente o início das civilizações. A loucura e seu entendimento caminharam paralelamente à história da humanidade, portanto, segundo Berger, Morettin e Braga Neto “a loucura sempre foi inevitável para os homens. A história da loucura talvez seja, então, a história de como os homens lidaram com o inevitável” (Berger, Morettin e Braga Neto, 1991, p.17). Até a Idade Média, os loucos eram bem aceitos pela comunidade. Sabe-se que na Grécia Antiga a lou- cura era considerada um saber divino. Muitas vezes, os insanos eram os oráculos das pólis gregas, sendo não somente venerados como, por vezes, os conse- lheiros dos representantes de tais civilizações. Desse
  • 19. 18 modo, os loucos eram parte importante da sociedade grega e eram vistos como uma relação dos Homens com o campo divino. Apesar disso, alguns pensadores da época ques- tionavam a parte divina das perturbações mentais. Na visão de parte desses intelectuais, as pessoas enfermas e que possuíam as chamadas “doenças da mente”, eram vítimas da cólera dos Deuses e, portanto, o tratamento de tais questões era algo de extrema periculosidade, e só poderia ser feito por médicos-sacerdotes sob a fun- damentação dos preceitos médicos-religiosos. A perturbação mental foi definida, na época de Homero, sob a perspectiva da irracionalidade, no sentido em que o pensamento e sentimentos huma- nos eram lidos como transcendendo o indivíduo (passivo, neste sentido) e incontroláveis pelo sujeito. Mais tar- de, Platão, sem dúvida um filósofo da mente, ainda sob o ponto de vista da irracionalidade, interpreta a loucura como uma doença de leitura metafó- rica ou a ser abordada em analogia com as doenças do corpo. (OLIVEIRA, Sandra, 2002, pg 106-120) Anos depois, quando o patrono da medicina Hi- pócrates entra em cena e passa a estudar essa questão, as explicações demoníacas para as doenças da mente são questionadas. Para o pensador, a loucura é prove- niente de causas naturais. Ela se dá pelo não balan-
  • 20. 19 ceamento dos seus quatro temperamentos corporais – sanguíneo, colérico, melancólico e fleumático - “es- tes temperamentos indicariam a orientação emocional predominante do indivíduo. Deste modo, o ‘bom’ fun- cionamento da personalidade dependeria diretamen- te da interação perfeita e ótima das forças internas e externas” (OLIVEIRA, Sandra, 2002, pgs 106-120). Ou seja, caso essas forças entrassem em algum confli- to, poderia ocorrer um problema de personalidade, le- vando, assim, ao que seria chamado de loucura. O filó- sofo tratava seus pacientes que possuíam tal condição com um regime específico, incluindo o uso de drogas e acreditava ser de suma importância explicar aos por- tadores desses distúrbios os motivos pelos quais essa cólera se abateu sobre eles. Essa foi a primeira vez que a loucura foi considerada algo diferente, a ser estuda- do, e algum tratamento foi indicado a seus portadores. Pouco se estudou da questão da loucura na épo- ca da Roma Antiga. O que se sabe é que os romanos aproveitaram muito do que já havia sido descoberto na Grécia Antiga. No fim da Idade Média, período devastado por pestes e que também culmina com a hegemonia do imaginário católico, os loucos passam a ser excluídos da sociedade, para serem submetidos a tratamentos desumanos. O terror e a atração que essas pessoas tra- ziam aos demais habitantes dessa época os fazia serem exaltados por obras de arte e cenas de loucura passam a fazer parte de das pinturas de Bosch ou das peças de teatro de Cervantes e até Shakespeare. Paralelamente, a ascensão do renascimento se intensifica e seus pensadores humanistas e iluministas
  • 21. 20 passam a glorificar a razão e a racionalidade, o que significou o início da marginalização de qualquer um que não estivesse com sua sanidade plenamente acei- tável, iniciando-se pelos loucos. “Começa a se operar outra transformação: a loucura ganha um caráter mo- ral, passa a ser vista como um conjunto dos vícios do homem – preguiça, avareza, indolência. De substan- tivo transcendente passa a adjetivo desqualificador” (BERGER, MORETTIN, Victorio, NETO, Braga, 1991, pg 18). A partir desse momento as pessoas que fossem consideradas portadoras de distúrbios mentais passavam a ser excluídas e colocadas em estabeleci- mentos que as removiam imediatamente do contato com o público. O filósofo Michel Foucault compara tal ação ao que era feito aos leprosos algum tempo antes e aos que possuíam doenças venéreas um pouco de- pois. “Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alie- nadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem” (FOUCALT, Mi- chel, 1972, pg 6). Essas casas não tinham o intuito de tratamen- to e, muito menos, de uma ressocialização e sim de depósito humano, onde seus “moradores” deveriam realizar trabalhos forçados para se livrar da ociosida- de, que na visão dos especialistas da época eram seu maior vício. A partir de então, os portadores de dis- túrbios mentais estavam com seus dias de liberdade contados. O século XVII foi marcado pela criação de inú- meras casas de internação por toda a Europa, os cha- mados Hospitais Gerais. Foucault afirma que pelo me-
  • 22. 21 nos um em cada cem habitantes de Paris acabou, pelo menos por um curto período, preso em um desses es- tabelecimentos — Foucault chama esta situação de ä grande internação. De fato, o século XVII define uma mudança decisiva: por ordem do rei os loucos são afastados à força, junto com os vagabundos, crimino- sos e homossexuais, enfim, todos os que perturbavam a ordem social. Por essa razão, qualquer um poderia ser trancafiado em um desses locais, louco ou são, cri- minoso ou honesto. (...) sabe-se que os loucos, durante um século e meio, foram postos sob o regime desse internamento, e que um dia foram descobertos nas salas do Hospital Geral, nas celas das ‘ca- sas de força’; percebe-se também que estavam misturados pelas pessoas das workhouses (…) a partir da metade do século XVII, a loucura esteve ligada a essa terra de internamentos, e ao ges- to que designava essa terra como seu local natural. (FOUCALT, Michel, 1972, pg 48) A internação daqueles que eram marginali- zados pela sociedade na Inglaterra se iniciou algum tempo antes do que na França, mais precisamente no ano de 1575. Em um ato, a então rainha Elizabeth I previa a construção de houses of correction (casas de cor- reção) como forma de “punição dos vagabundos e alívio dos pobres” (18 Elizabeth I, Cap III, 1575). Dentre os
  • 23. 22 preceitos daqueles que condenavam os que deveriam ser enviados a tais locais, esse era o lugar dos loucos. Durante as décadas que se seguiram, a Europa passou a ser palco de milhares de casas de detenção, pri- sões e hospitais com o intuito de retirar – à força – da so- ciedade aqueles que, segundo ela mesma, não deveriam conviver com os demais. É conhecido que o único Hos- pital Geral de Paris comportava 6000 pessoas, o que con- dizia, na época, a 1% da população da cidade francesa. A situação daqueles que acabavam presos nesses estabelecimentos eram precárias. O psiquiatra frances Jean-Étienne Esquirol visitou um desses locais no sé- culo XIX e descreveu o que encontrou: Vi-os nus, cobertos de trapos, ten- do apenas um pouco de palha para abrigarem-se da fria umidade do chão sobre o qual se estendiam. Vi-os mal alimentados, sem ar para respirar, sem água para matar a sede e sem as coisas mais necessárias à vida. Vi-os entre- gues a verdadeiros carcereiros, aban- donados a sua brutal vigilância. Vi-os em locais estreitos, sujos, infectos, sem ar, sem luz, fechados em antros onde se hesitaria em fechar os animais fero- zes, e que o luxo dos governos mantém com grandes despesas nas capitais. (ESQUIROL,JeanÉtienne,1868,pg134) Na passagem do século XVIII ao XIX, os mé- dicos da chamada corrente alienista, Phillip Pinel
  • 24. 23 na França – sua importância foi tamanha que hospi- tais psiquiátricos foram criados com seu nome pelo Brasil e no mundo– e William Tuke na Inglaterra, perceberam que, por se tratar de uma doença, a loucura não deve ser dominada e sim tratada. Esse tratamento, porém, colocava o médico como aquele que detém a razão indubitável e, portanto, poderia tomar quaisquer decisões sobre o que deveria ser feito com aquele sujeito irracional, o louco. Nesse momento, a loucura passa a ser considerada uma doença mental. Desse modo, “o psiquiatra emerge com uma função ambígua: ao mesmo tempo em que vem para tratar o paciente é eleito o protetor da sociedade con- tra este mesmo louco que tenta curar” (BERGER, MORETTIN, NETO, 1991, pg 21). Ou seja, o médico e seu paciente passam a ter uma relação em que o tra- tamento caminha paralelamente com a punição, ain- da tratando-os como pessoas que, apesar de doentes, devem ser excluídas da sociedade. Sob essa mesma ideologia alienista proveniente de Pinel e Tuke, foi inaugurado no Rio de Janeiro, em 1852, o primeiro manicômio em solo brasileiro, o Hospício Pedro II, que abrigava aqueles que haviam sido recolhidos pela Santa Casa. Antes de sua criação, os que demonstravam serem portadores de algum dis- túrbio mental no Brasil, ou eram deixados largados a sua própria sorte na rua, ou ficavam acorrentados nas celas de prisões tradicionais. Uma nação na qual a frase símbolo presente em sua bandeira é a positivista “ordem e progresso”, não poderia ser atrapalhada por aqueles que não estavam
  • 25. 24 com todas as suas faculdades mentais em perfeita or- dem, ou seja, os loucos. O conto de Machado de Assis (1839–1908), O Alienista (1882), ilustra e satiriza essa época em que, sob o pensamento positivista que regia todas as áreas do país, os alienistas desejavam, no intuito de fazer com que o Brasil avançasse cada vez mais, demarcar e reco- nhecer quem era louco e quem era devidamente são. Suponho o espírito humano uma vas- ta concha, o meu fim...é ver se posso extrair a pérola, que é a razão, por outros termos, demarquemos defi- nitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o equilíbrio de to- das as faculdades, fora daí, insânia, insânia e só insânia. (ASSIS, Machado, 1982, pg 20) A personagem principal do livro de Machado de Assis, Simão Bacamarte de certo modo satiriza os alienistas brasileiros, sendo um deles o criador do manicômio de Juquery, o médico Francisco Franco da Rocha. A história da loucura no Brasil caminha lado a lado com a intolerância. O primeiro manicômio cria- do no país, o Hospício Pedro II, tinha o intuito de ti- rar das ruas e hospitais aqueles que eram vistos como “impróprios”, que tornavam a cidade do Rio de Ja- neiro um local feio aos olhos de quem passavam. Até o local aonde foi construído o hospital psiquiátrico, a Praia Vermelha, foi pensado com esse intuito de afas-
  • 26. 25 tamento, de exclusão. Pensamento este que se seguiu durante a maior parte da questão psiquiátrica em solo brasileiro. Exclusão, eis aí, numa só palavra, a tendência central da assistência psi- quiátrica brasileira, desde seus pri- mórdios até os dias de hoje, o grande e sólido tronco de uma árvore que, se deu e perdeu ramos ao longo de sua vida e ao sabor das imposições dos diversos momentos históricos, jamais fletiu ao ataque de seus contestadores e reformadores. (Resende, Heitor, pg 36, 1987) Ao longo dos anos, o Hospício, que desde 1890 passou a se chamar Hospício Nacional de Alienados, acabou ficando superlotado, sendo necessária a cria- ção de alguma alternativa para a internação dos por- tadores de distúrbios mentais, que não fosse o locali- zado na Praia Vermelha. Desse modo foram criadas as Colônias de São Bento e a Colônia de Conde de Mesquita. Aqueles que acabavam presos nesses locais tinham, como uma alternativa ao tratamento, um mé- todo de terapia associado ao trabalho, como a agrope- cuária ou o artesanato. Até então, somente as pessoas do sexo mascu- lino eram colocadas nessas colônias. Somente no ano de 1911 foi criada a Colônia de Alienadas, para a qual eram destinadas as mulheres que estavam internadas no — já superlotado — Hospício Nacional de Alienados.
  • 27. 26 Além do pioneiro sanatório localizado na Praia Vermelha no Rio de Janeiro, algumas outras institui- ções com o mesmo objetivo foram construídas no Bra- sil ao longo do século XX. Em 1903 foi fundado em Minas Gerais, o Hospital Colônia de Barbacena (na cidade de mesmo nome). Considerado o maior hospi- tal psiquiátrico do Brasil, com uma capacidade de até 200 leitos. No entanto, esse número ocupou somente o campo teórico, tendo alcançado a marca de 5 mil internos no ano de 1961. Essa instituição foi cenário de um dos maiores genocídios da história do país, com a morte de cerca de 60 mil pessoas durante todos os anos em que esteve em funcionamento até 1980. Para lá eram mandados homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, al- coolistas, mendigos, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive, doentes mentais. Ou seja, nem todos que estavam internados contra suas vontades eram portadores de algum distúrbio mental. Durante toda sua existência, o Hospital Colô- nia de Barbacena foi duramente criticado pelo modo como “cuidava” de seus pacientes. Segundo relatos, as pessoas chegavam ao manicômio provenientes de to- das as partes do país no chamado “trem de doido”, de forma semelhante aos prisioneiros nazistas deporta- dos para os campos de concentração. Os que estavam a caminho de sua internação ficavam abarrotados no vagão de carga desses trens, sem nenhum conforto ou chance de serem liberados. Na Colônia “Zoológica” de Barbacena, os inter- nos eram tratados como animais, e o primeiro conta- to com o local culminava com a perda da dignidade,
  • 28. 27 como foi explicitado no livro O Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex. Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apa- gados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até mesmo crianças (...) ignorados de tal modo que (...) co- miam ratos e fezes, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violentados até a morte. (ARBEX, Daniela, 2013, pg 14) Os “tratamentos” destinados a eles eram bár- baros. Dados da época indicam que os eletrochoques aplicados aos presos eram tão fortes que a rede de luz do município ficava sobrecarregada, acabando com a força de toda a cidade. Crianças de 12 anos e até ido- sos ficavam no mesmo ambiente, sendo submetidos ao mesmo regime degradante. Segundo a jornalista Daniela Arbex, a morte era algo cotidiano naquela instituição. “Nos períodos de maior lotação, 16 pes- soas morriam a cada dia e ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacien- tes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse” (ARBEX, Daniela, pg 14, 2013). Os internos que não morriam e estavam en- tregues à própria sorte no sanatório, ficavam sus- cetíveis a doenças pelo fato de andarem nus – o que não era algo que ocorria somente nesse hos-
  • 29. 28 pital psiquiátrico, como veremos mais a frente – e em contato com fezes e animais como ratos e ba- ratas. Além disso, entravam em contato direto com a morte, pois os corpos que não eram vendidos às faculdades de medicina tinham que ser queimados com ácido no pátio central diante dos internos que lá estivessem. A superlotação do Hospital Colônia de Bar- bacena chegou a níveis extremos quando, pela falta de cama para todos, os pacientes tinham que dormir em “leitos únicos”, uma “cama” produzida com uma quantidade razoável de capim seco espalhado no chão de cimento. “O frio de Barbacena era um agravan- te, os internos dormiam em cima uns dos outros, e os debaixo morriam. De manhã tiravam os cadáveres”, contou o psiquiatra Jairo Toledo, diretor do Centro Hospitalar Psiquiátrico Barbacena (CHPB) em entre- vista ao jornal Tribuna de Minas, em 2011. Em uma visita ao Hospital da cidade mineira, em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, um dos pioneiros no pensamento da desinstitucionaliza- ção1 no país europeu, se horrorizou a tal modo com ¹ Franco Basaglia nasceu em Veneza, Itália, no ano de 1924. Após a 2ª Guerra Mundial, se formou em medicina e passou a trabalhar no Hospital Psiquiátrico de Gorizia. Em 1961 se tornou diretor do hospital e passou a questionar os métodos empregados no tratamento dos pacientes. “Basaglia criticava a postura tradi- cional da cultura médica, que transformava o indivíduo e seu corpo em meros objetos de intervenção clínica” (FIOCRUZ, 1996). Além disso, ele era contrário à psiquiatria clínica e hospitalar que partia do princípio do isolamento do “louco”. Em 1970 foi nomeado o diretor do Hospital Provincial da cidade italiana de Trieste e, lá promoveu um modo diferenciado de tratamento, “da qual faziam parte serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias as- sistidas (chamadas por ele de «grupos-apartamento») para os loucos” (FIOCRUZ, 1996). A OMS condecorou, em 1973, o Serviço Psiquiátrico de Trieste como prin- cipal referência mundial para uma reformulação da assistência em saúde mental.
  • 30. 29 as condições do local que pediu, imediatamente, que fosse fechado. Em uma coletiva de imprensa ele che- gou a dizer: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”.Após o fechamento desse mani- cômio mineiro, aqueles que sobreviveram aos anos de tortura, em sua grande maioria, continuaram tendo que viver internados por conta da dificuldade de sua ressocialização após anos de encarceramento. Isso não é exceção desse hospital psiquiátrico, já que ocorreu com muitos pacientes a partir do momento em que os manicômios caíram na ilegalidade no ano de 2001. Muitos outros hospitais psiquiátricos existiram no Brasil durante o século XX e o modo de tratamen- to não era menos bárbaro do que o de Barbacena. Um deles, localizado no interior de São Paulo, mais preci- samente na cidade de Franco da Rocha, foi considera- do como uma das melhores instituições psiquiátricas do mundo, com certeza a melhor da América Latina, pelos principais veículos de imprensa do país e inte- lectuais da área. Porém, os métodos a que seus inter- nos eram submetidos talvez não mereçam ser chama- dos de “tratamento”. Basaglia lutou pelo fechamento dos hospitais psiquiátricos e conseguiu, em 1976, que o Hospital Provincial de Trieste fechasse as portas. “Como consequência das ações e dos debates iniciados por Franco Basaglia, no ano de 1978 foi aprovada, na Itália, uma lei chamada ‘Lei 180’ ou ‘Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana’, também conhecida como ‘Lei Franco Basaglia” (FIOCRUZ, 1996), que determi- nava o fechamento das instituições manicomiais no país europeu.
  • 31.
  • 32. 31 3. Por Dentro dos Muros de Juqueri “Construído o melhor hospital psiquiátrico da América Latina”, já diziam os jornais no dia em que o gigantesco complexo do Juqueri, então chamado de Asylo dos Alienados de Juquery, foi inaugurado. Psiquiatras de todas as partes do mundo vieram ao interior de São Paulo para acompanhar o que, viria a ser, o maior hospital psiquiátrico do Brasil. O início de sua construção projetada pelo importante arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo teve início em 1895, porém, o complexo hospitalar foi inaugurado, de acordo com dados do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP), no dia 18 de maio – ironicamente o mesmo dia em que se comemora hoje o dia da luta antima- nicomial – de 1898, pelo psiquiatra Francisco Fran- co da Rocha. Com um terreno de cerca de 185 mil m², o local abrangia parte dos municípios de Mairiporã, Caiei- ras, Cajamar, Francisco Morato e Jundiaí. O complexo abrigava, além de seu Hospital Central e suas colônias, uma área de cultivo e plantação, na qual os pacientes trabalhavam em um sistema similar ao da escravidão, pois não recebiam nada em troca. Era a ideia da la- borterapia, ou seja, o trabalho como uma atividade terapêutica para os internos.
  • 33. 32 O nascimento do Juqueri inaugura a medicina alienista de aviltamento científico e ocorre num cenário re- publicano ligado ao mercado, trans- parecendo a característica higienista do momento que tem como traço o conceito de limpar as ruas, sanear a imagem e o espaço urbanos, tirando da vista tudo que implique em estor- vo à produção: prostitutas, mendigos, pobres, negros. (CONSELHO REGIONAL DE PSI- COLOGIA) Os internos realizando trabalhos manuais na metade do século XX Acervo
  • 34. 33 Naquele tempo, grande parte dos internos do hospital psiquiátrico eram estrangeiros e homens, mulheres e crianças ficavam presos juntos no mesmo estabelecimento. Somente no ano de 1921, foi criada a colônia especializada em receber mulheres. Em 1929 o Asylo de Alienados de Juquery pas- sa a se chamar Hospital e Colônia de Juqueri e, em 1944, homenageando o psiquiatra que acompanhou sua criação, a cidade de Franco da Rocha se emancipa do município de Mairiporã. O ex-enfermeiro do complexo hospitalar, Walter Farias explicitou, em recente palestra na Pontifícia Uni- versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que o Juqueri – como passou a ser chamado – realizava alguns métodos pouco humanizados de “tratamento”. Um desses méto- dos era o coma insulínico, que consistia na aplicação de uma quantidade indiscriminada de insulina para pacien- tes não diabéticos, tal técnica os deixava dopados e com pouca mobilidade; outro era a banhoterapia, na qual era aplicado ao indivíduo um banho de mangueira extrema- mente gelado como medida de punição e, em alguns ca- sos, era liberada uma gota que caia na cabeça da pessoa lentamente, às vezes por dias, algo similar a um sistema de tortura. Entretanto os métodos mais conhecidos eram o eletrochoque (ECT) e a polêmica lobotomia. Farias acompanhou algumas aplicações de ECT nos pacientes e contou como eram realizadas. Segundo ele, “os pacientes escolhidos naquele dia para a terapia eram colocados um ao lado do outro em uma sala. Para se iniciar a aplicação dos choques, a pessoa era disposta dei- tada no chão e, para segurá-la, sentava um enfermeiro em cada braço e perna seu e um segurava sua cabeça. Logo
  • 35. 34 após, era colocado um pano em sua boca para que o pa- ciente não mordesse a língua nem gritasse. A dupla de fios era conectada em ambas as têmporas do indivíduo e a car- ga elétrica era descarregada. Era muito impressionante”. A lobotomia, por sua vez, é algo pouco comenta- do nos corredores do Juqueri. Nunca foi comprovado que tal tratamento era realmente realizado no complexo hospitalar, porém, comenta-se que se viam constante- mente no pátio e nas celas do local, pessoas com gran- des cicatrizes na cabeça e que não falavam muito, nem se locomoviam com frequência. Além disso, o subsolo do Hospital Central, onde se comenta que era realizada a terapia, foi aterrada em uma reforma após sua desati- vação, impedindo qualquer investigação mais profunda. Atentos aos novos conhecimentos cien- tíficos e técnicos produzidos na Europa e nos Estados Unidos, os médicos brasi- leiros logo começaram a utilizar a psico- cirurgia de Egaz Moniz em instituições asilares. Em 1936, ano em que Freeman e Moniz descreveram seus experimen- tos a leucotomia passou a ser aplicada em internos do hospital do Juquery, em São Paulo. Neste, que foi o maior mani- cômio da América Latina, Aloysio Mat- tos Pimenta operou os dois primeiros pacientes em agosto de 1936. Mais tar- de muitos outros médicos foram treina- dos e passaram a realizar lobotomias e leucotomias em instituições brasileiras. (MASIERO,AndréLuiz,vol.10n.2,2003)
  • 36. 35 O manicômio judiciário só foi idealizado no complexo de Juqueri no ano de 1927 devido, se- gundo o site RedePsi, à iniciativa do professor de medicina legal Alcântara Machado, que seguiu os preceitos do decreto nº 1.132/1903 que determina- va a construção de um local que abrigasse aqueles que portavam algum distúrbio mental e cometiam algum crime. Em 1º de janeiro de 1934, o Manicô- mio Judiciário de Franco da Rocha lo- calizado as margens da Rodovia Luiz Salomão Chama no Km 43, Vila Ra- mos, Franco da Rocha, município de São Paulo, recebeu os primeiros 150 pacientes, todos homens. (CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008) Pacientes estes que já eram assistidos anterior- mente nas dependências do Hospital do Juqueri por aquele que veio a se tornar o primeiro diretor da nova instituição, o professor doutor André Teixeira Lima. Somente nove anos após sua criação, em 1943, foi criada a ala feminina do manicômio judiciário, que tinha o intuito de abrigar aquelas mulheres com transtornos mentais e que tinham alguma dívida com a justiça. Durante décadas, o sistema carcerário presente nessa instituição permaneceu o mesmo, no entanto, em 1989, um ano após a Secretária de Administra- ção Penitenciária (SAP) passar a controlar o hospital, foi implantado o Regime de Desinternação Progressi-
  • 37. 36 va que será explicado mais a frente, mas consiste, até hoje, em uma área para auxiliar aqueles internos que estão no processo de sair do manicômio judiciário. O objetivo desta instituição é desti- nar-se aos cuidados dos indivíduos caracterizados sob o código penal como incapazes de entender o caráter ilícito do ato ou delito cometido, esta primeira informação faz parte do art. 26 do Código Penal (...) tem a missão de realizar laudos de Sanidade Men- tal dos internos de ambos os sexos anualmente e fazer tratamento e/ou avaliação dos sentenciados e réus que venham a sofrer de doença mental. (CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008) Em homenagem àquele que veio a se tornar seu diretor por quase 30 anos, o Manicômio Judiciá- rio agora é chamado de Hospital de Custódia e Tra- tamento Psiquiátrico “Prof. André Teixeira Lima”. Atualmente, o hospital de custódia de Franco da Ro- cha conta com quatro alas, sendo que duas delas são colônias masculinas com regime fechado, uma colô- nia também com o mesmo regime para as mulheres e uma de desinternação progressiva feminina. O Juqueri, em seu auge nos anos 70, chegou a abrigar oficialmente mais de 16 mil internos, mui- to mais do que sua capacidade — número contestado por pacientes e técnicos que passaram pelo hospital e que atestam ser bem maior.
  • 38. 37 Veremos adiante algumas histórias, tanto do Hospital Psiquiátrico quanto do Manicômio Judiciá- rio. Lembrando que, ironicamente, a insígnia da cida- de de Franco da Rocha traz o lema traduzido do latim “Ciência e Carinho”.
  • 39. 38 3.1 Hospital Psiquiátrico O hospital psiquiátrico de Franco da Rocha era constituído de oito pavilhões, também chamados de colônias, com capacidade para 200 a 250 pessoas – algo que não ocorria até os anos 70, pois se sabe que haviam mais de 2000 em cada área. Com o passar dos anos, as histórias daquele que já foi chamado de uma das estruturas mais modernas em psiquiatria, ficariam guardadas na memória das suas testemunhas, já que muito pouco se escreveu so- bre o assunto. Uma dessas pessoas foi Walter Farias. Após uma experiência como enfermeiro tanto do hospital psi- quiátrico quanto do manicômio judiciário de Juqueri, nos anos 70, teve um surto que o fez ficar internado juntamente àqueles de quem tratou por alguns meses. Ele contou sua história no livro co-escrito pelo jorna- lista Daniel Navarro Sonim, o Capa Branca. Em sua obra, Farias explicita os horrores que se passaram tanto em seu tempo de funcionário, quanto em seu período como interno; desde a falta de treino concedido aos enfermeiros das unidades que nunca haviam entrado em contato com pessoas portadoras de distúrbios psicóticos, a relação dos internos com esses funcionários e os tratamentos que eram desti- nados a eles, até as mudanças que a cidade de Fran- co da Rocha sofreu com o aumento de pacientes do hospital. De acordo com o autor, pouco se sabia sobre o que ocorria dentro do manicômio. As atrocidades que lá ocorriam não eram noticiadas e, quando ele
  • 40. 39 decidiu se inscrever no concurso público que o em- pregaria dentro de Juqueri, não tinha ideia do que lhe esperava. Em sua primeira visita ao hospital psiquiátri- co, Walter Farias descreve o ambiente da instituição. Se por um lado, o jardim florido com sua grama apa- rada chamava atenção pelo cuidado e zelo, os corre- dores e salas davam, ao autor do livro, uma sensação de opressão. O Hospital Central contava com cinco clínicas femininas e cinco clínicas masculinas. Antes de serem destinados a uma dessas clínicas, os pacientes passavam até 21 dias em um local aonde tinham suas fotos tiradas e digitais colhidas, além de sessões diárias com médicos Um dos prédios da colônia do Complexo Juqueri Acervo
  • 41. 40 e psiquiatras. Além das clínicas já mencionadas, havia também clínicas médicas e cirúrgicas, lavanderia, um pavilhão voltado à educação dos internos — o chama- do “Pavilhão-Escola”—, um cemitério e consultórios dentários. De acordo com o autor de O Capa Branca, esse local, o qual chamava de “rotunda”, servia também como um modo de isolar aqueles internos que estavam em surto, mas não eram pacientes do hospital. A entrada do Hospital Central após a desativação do Juqueri IG
  • 42. 41 Quando a própria família não trazia os pacientes para tratamento, tam- bém se chamava polícia para levar as pessoas que enlouqueciam de re- pente, mesmo que fossem de outras cidades ou estados. Quando um caso desses chegava, um funcionário do Juquery o recebia das mãos de um po- licial e, se fosse necessário, tinha que bater nele para acalmá-lo, amarrá-lo e aplicar um calmante até conseguir trancá-lo na cela da rotunda. (FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na- varro, 2014, pg 32) Cada clínica continha um refeitório próprio - com refeições distribuídas a partir de uma cozinha central, que se localizava no pátio grande que ficava na frente do refeitório da Terceira Clínica Masculina – consultório psiquiátrico, salas de medicação, barbe- aria, rouparia e banheiros para funcionários e pacien- tes. “O curioso da disposição dos dormitórios é que a escolha de quem dormiria nos dois andares era a capacidade de utilizar ou não o banheiro sozinho. As- sim, no andar de cima, ficavam os pacientes que con- seguiam se manter limpos” (FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Navarro, 2014, pg 33). O próprio Juqueri abrigava seus médicos em uma pequena vila com cerca de dez casas, localizada atrás do prédio da primeira clínica. Farias expõe que, enquanto alguns médicos voltavam para São Paulo ou outras cidades maiores que Franco da Rocha após o
  • 43. 42 dia de trabalho, alguns preferiam trazer suas famílias para morar nos arredores da unidade. Durante seu tempo como enfermeiro no hospital psiquiátrico, Farias passou a questionar o modo como seus pacientes eram tratados, ou melhor dizendo, dei- xados à própria sorte. A Ala dos Acamados – que será tratada mais adiante nesse subcapítulo – contava com mais de cem pessoas que não tinham a menor possi- bilidade de sair da cama e, por essa razão, precisavam de cuidados 24h. Vendo as condições nas quais essas pessoas eram deixadas, o (então) enfermeiro passou a fazer hora-extra. Além disso, ele deixou de ser não somente alguém que dá remédio sem nenhuma liga- ção com eles, para se tornar quase um amigo, um con- fidente que escutava o que os pacientes tinham para compartilhar. Farias destaca seu amigo, o interno DB, que queimou o seu colchão e que a partir desse dia, passou a ser vigiado diariamente 24h por dia. Apesar de alguns tentarem se defender ou até somente atacar os funcionários, todos sabiam que esse ataque traria de volta uma repressão bem mais forte. De acordo com o co-autor do livro, Daniel Navarro Sonim, “a briga ocorria entre eles mesmo, os funcionários eles dificilmente ameaçavam. Porque quando ameaçavam um enfermeiro ou segurança, a repressão seria bem maior”. Uma lembrança que assombra até hoje muito Walter Farias, e que ele contou em entrevista, é o perí- odo em que passou internado no hospital psiquiátrico de Franco da Rocha. Do outro lado do balcão, ele não era mais o enfermeiro, o “capa branca”, e sim um mero paciente, entregue à própria sorte como os demais. Tudo se iniciou quando, após um breve período traba-
  • 44. 43 lhando no manicômio judiciário, teve um surto psicó- tico que acarretou em um medo desmedido de voltar ao trabalho por alguns dias. Um certo Dr. Gilles insistiu para que ele fosse internado por poucas semanas, o que acabou se estendendo para cerca de três meses. No momento em que entendeu sua dura reali- dade e que iria viver lado-a-lado daqueles que ajudou a tratar, o enfermeiro passou a questionar se algum dia sairia de lá. O tratamento no Hospital Psiquiátrico também representava um duro golpe na minha vida. Eu cansei de ver su- jeitos que entravam no Juqueri e não saíam nunca mais, tanto do hospital quanto da loucura. Abandonados pela família sem um mísero pingo da razão que ainda conseguiam conser- var no início da internação, transfor- mavam-se em animais irracionais in- capazes de se comportar como seres humanos considerados normais pelos padrões da sociedade. (FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na- varro, 2014, pg 148) Dias após ser internado, já sem cabelo, algo que realizavam de praxe para conter a infestação de piolhos do local, o agora paciente passou a reclamar de uma dor de dente. Foi encaminhado ao consultório do dentista no local e, o que ele achou que seria apenas um trata- mento rápido acabou se tornando algo muito pior.
  • 45. 44 [Quando fui comunicado que teria meus dentes arrancados à força e con- tra a minha vontade] dei um salto da cadeira e corri em direção da porta. O funcionário me pegou pelo braço e o auxiliar do dentista me acertou as cos- telas com um chute certeiro. Desabei no chão. Urrei de dor. O funcionário se abaixou e, de lado, segurou minha garganta com a mão direita e colocou o joelho esquerdo na minha barriga. Em seguida, o auxiliar aplicou uma in- jeção no meu braço e entregou a cami- sa de força ao meu acompanhante. O dentista assistia àquela cena sem falar nada (...) me debati um pouco, mas o ajudante abriu um armário e retirou al- gumas fitas de pano que serviram para amarrar minhas pernas, braços, tron- co e pescoço à cadeira. Mesmo assim, ainda conseguia gritar e movimentar minha cabeça. Para acabar com aquilo, o auxiliar enfiou um trapo na minha boca e capa branca segurou minha ca- beça com as duas mãos e não largou mais. Só então o dentista se aproximou de mim e, apesar de a medicação ter começado a fazer efeito, senti o doutor arrancando meus dentes bons. (FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na- varro, 2014, pgs 157 – 158)
  • 46. 45 Com o tempo se passando e a possibilidade de se libertar do hospital ficando mais distante, Farias, assim como muitos dos internos, passou a beber. Se- gundo ele, “não eram apenas os internos que bebiam 24 horas por dia, alguns funcionários também o fa- ziam” e continuou, “sempre que eu tentava explicar que havia trabalhado lá as pessoas acabavam ‘tirando uma com a minha cara’ achavam que eu estava alu- cinando ou algo assim, ser paciente era algo que me impossibilitava de ser levado a sério”. Seus tempos como paciente foram repletos de tensão. Em seu livro, Farias lembra do dia em que estava dormindo e acordou com gritos: um pacien- te chamado Pena havia entrado no dormitório para brigar com outro “maluco” – nas palavras do autor – que, por raiva, quebrou uma vidraça e cortou a gar- ganta do primeiro. O estardalhaço chamou a atenção dos enfermeiros que acabaram prendendo o segundo em uma camisa de força. Pena não morreu por muito pouco. As armas brancas como vidro, caneta ou de- mais utensílios que poderiam vir a machucar outro paciente existiam em grande quantidade na unidade, apesar da intensa busca dos funcionários. Cansado de esperar a liberação proveniente do doutor Gilles, seu psiquiatra, Walter Farias decidiu, um belo dia, sair andando do pátio em que realizava seu banho de sol e fugir do hospital psiquiátrico para nunca mais voltar. A seu ver, essa seria a única manei- ra de sair dali, pois o psiquiatra é quem manda na sua vida e no seu futuro lá dentro. Segundo ele, “se ele [o psiquiatra] falar para a sua família que você está louco, que você não pode ir para casa, hein? Ele vai
  • 47. 46 dar laudo liberando? Ele não vai dar laudo liberando, vai para o juiz, que por sua vez vai mandar pegar um laudo com ele. É ele quem manda na sua vida, a partir de um momento que está no meio”. Já há mais de 40 anos fora do Hospital Psiqui- átrico de Juqueri, o autor de O Capa Branca admite que apenas de um assunto ele não gosta de falar: dos presos políticos que acabavam internados naquela ins- tituição sem uma necessidade explicitada,. De fato o hospital serviu como prisão para per- seguidos políticos que não possuíam quaisquer trans- tornos mentais, mas acabavam trancafiados naquele ambiente com pouca chance de serem libertos e, por vezes, eram dados como desaparecidos. O psicólogo Alan Saffioti afirma que conheceu uma mulher que tra- balhou no hospital como auxiliar de enfermagem na- quele período e que ela contava, muito “à boca peque- na”, de um homem que conheceu naquelas condições. “Ela me conta de um preso político que foi levado para lá. No dia em que chegou teve seus cabelos cortados, seus dentes arrancados e foi imediatamente levado a uma sessão de eletrochoque. Segundo ela, ele virou um vegetal. Por algum tempo a minha conhecida pas- sou a conviver com ele, conversar e fo- ram criando uma amizade, uma cum- plicidade. Quando o preso se sentiu um pouco mais confiante contou a ela quem era e o motivo pelo qual estava preso, o que fez com que ela passasse a
  • 48. 47 procurar a família dele que, ao ser co- municada do local e do estado de seu ente por uma carta anônima enviada a eles [ela não podia de jeito nenhum di- zer quem era], veio do Paraná, aonde moravam, até Franco da Rocha lutar pela sua soltura. Após muito tempo e a vinda de polícia e repórteres ao lo- cal ele foi solto. Passarem-se mais de 40 anos do acontecido e, mesmo as- sim, quando ela me conta essa história morre de medo de ser descoberta ”. (Allan Saffioti) Alan Saffioti teve seu primeiro contato com o Hospital Psiquiátrico de Juqueri no ano de 1997, quando ainda era um aluno de psicologia da Uni- versidade de São Paulo (USP). No início, após con- vencer o então psiquiatra responsável pelo Pronto Socorro do local, conseguiu um estágio informal na área por nove meses. Saffioti lembra com pesar da sensação ao aden- trar a Unidade de Longa Internação, como era cha- mada. “O cheiro da colônia é uma coisa que não tem como você entrar e sair igual, né? Em hospital psi- quiátrico nenhum. Tem cheiro de miséria humana, porque é muita gente junta, descuidada” e continuou, “para mim tinha cara de abandono, maus tratos, si- lenciamento lá é chamado de tratamento”. Coincidentemente, o cheiro era algo que todos que visitaram algum manicômio comentaram durante meu trabalho. A higiene dos internos era praticamen-
  • 49. 48 te nula, e a equipe de enfermeiros não dava conta de tantas pessoas. Esse fato ficou claro para o psicólogo quando passou a trabalhar na Ala dos Acamados. Esta contava com 110 camas lotadas e duas auxiliares de en- fermagem para tratar dessas pessoas que necessitavam de auxílio 24 horas, pois não conseguiam se mexer, seja por questões psicológicas geradas por um trauma, seja por questões motoras e, por conta disso, realiza- vam suas necessidades fisiológicas na cama mesmo. De acordo com Alan Saffioti, “aquele lugar fe- dia a merda e você olhava pra aquelas duas pessoas cuidando deles e falava, se elas começarem a limpar agora o primeiro, quando chegarem ao último a me- tade já vai estar suja de novo, pelo tempo que demora pra você cuidar de verdade de alguém”. Além da Ala dos Acamados, outro fato que cha- mava a atenção de grande parte dos visitantes de tais hospitais eram os chamados “nudistas de pátio”, por- tadores de distúrbios mentais que se sentiam melhor sem roupa e a tiravam para passar o dia. Segundo o psicólogo, “isso é uma produção própria do hospital, os pacientes só estão nessa condição por conta de internação psiquiátrica, isso não é razão do proble- ma originário dele, isso é por causa da instituciona- lização”. Alguns pacientes estavam internados há 20, 30, 40 anos e isso, sem dúvida, afetava diretamente o modo como se comportavam e suas relações inter- pessoais. Em seu trabalho no Pronto Socorro (PS), Sa- ffioti atendia pessoas de fora e de dentro do hospital de Juqueri. Por essa razão, entrava em contato, desde pessoas que estavam lá apenas com o intuito de fugir
  • 50. 49 do trabalho, até casos mais graves de insônia e pessoas que ouviam vozes. Os nove meses do psicólogo no PS do hospital psiquiátrico foram, a seu ver, de extrema importância. “Nesse período eu apanhei, tomei cus- pida na cara, chute, fui confundido com um paciente quando, por brincadeira, um psiquiatra me empres- tou uma camiseta de quem era internado e todos fi- cavam achando que fugi do Pronto Socorro, mas foi muito interessante para a minha formação”. Após a rápida experiência entre os anos de 1997 e 1998, o psicólogo voltou a trabalhar no com- plexo hospitalar de Juqueri em março de 2005, onde ficou por mais seis anos. Ele, nesse momento, foi re- alocado no Hospital Dia de Juqueri - apesar de estar em processo de fechamento após a lei antimanicomial 10.216/2001 ainda abrigava alguns pacientes que es- tavam sendo realocados com suas famílias ou residên- cias terapêuticas. Na visão do psicólogo, a relação com os pacientes nesse tipo de tratamento era bastante ín- tima. Saffioti conta que Tinha uma paciente que eu gostava muito dela, a Neide*, ela chegava lá 7 da manhã, sendo que só abria às 8 horas. Porque ela chegava as 7 e logo em seguida chegava o pesso- al da copa e eles iam buscar o café mais cedo. Então ela ia junto pra ajudar, para passear. Não é só um passeio assim, é uma forma de pen- sar que está ajudando o pessoal da copa, conversando. Ela ficava senta-
  • 51. 50 da na entrada, fumando um cigarro, então todo mundo chegava, ela gri- tava ‘bom dia!’ e já ia perguntando ‘oi! Tudo bem e tal? Você está bem né?’. E quando não estava bem, com a mesma altura que ela falava bom dia ela falava ‘tudo bem? Você tá mal hoje, hein?’. É outra relação, quase familiar. Em 2005, quatro anos após a lei antimanicomial ser colocada em prática, infelizmente, ainda não era possível notar grande diferença em relação ao trata- mento para com os pacientes que restaram do hospital psiquiátrico e os do manicômio judiciário. Tratamen- tos como o temido eletrochoque já não eram mais re- alizados, porém, nessa época, Saffioti afirma ter visto de longe um paciente ser “lavado” com uma vassou- ra de piaçava, algo inumano e que deveria era termi- nantemente proibido. Outro tema tabu é a prática da lobotomia. De acordo com o psicólogo, era comum conhecer pacientes que estavam lá há décadas e pa- reciam zumbis; não falavam muito, eram apenas som- bras do que um dia foram e apresentavam uma grande cicatriz na região da cabeça. “Tinha um preso quando trabalhei, o coitado passou por lobotomia, teve todos os dentes arrancados. O ‘cara’ não fala mais coisa com coisa, não sabia onde estava, nem quem era, não sabia data, estava em uma situação muito precária”. Além de pacientes que habitam e habitaram o complexo de Juqueri por décadas, alguns funcio- nários também estão há uma grande quantidade de
  • 52. 51 tempo trabalhando naquelas instalações. Acredita-se que cerca de 30 e poucas, ainda vivem no que uma vez se chamou Hospital Psiquiátrico de Juqueri.
  • 53. 52 3.2 Hospital de Custódia Aonde, antes, existia apenas o gigantesco com- plexo de Juqueri, estão localizadas, desde 2001, as unidade I (de internação) e a II (de desinternação) do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de “Professor André Teixeira Lima” (HTCP), na cidade de Franco da Rocha, interior de São Paulo. Atualmente, de acordo com o site oficial da Co- ordenadoria de Saúde, o estabelecimento de 14 200 m² que é dividido por pavilhões femininos e masculi- nos, conta com 528 presos na unidade I e 59 na uni- dade II, a de desinternação. Todos os pavilhões con- tém um número menor de internos do que o máximo que comportaria, menos o feminino da Unidade I que conta com 82 presas, sendo que sua capacidade é de 80 lugares. Por dentro das colônias, existe um local chamado de Centro de Observação (C.O), cujo obje- tivo é controlar o comportamento dos internos que tem algum comportamento que, segundo eles, foge padrões normais. Desde maio de 2003 está em funcionamento, no Hospital I, um setor que permita o trabalho dos indivíduos presos no Hospital de Custódia e Trata- mento Psiquiátrico. No local onde trabalham cerca de trinta pacientes, recuperam-se móveis escolares, como cadeiras e mesas. Em 2005, inaugurou-se uma oficina de reciclagem de plástico. A colônia feminina possui uma confecção de pa- nos de prato, hortas, jardins e até uma padaria. Além disso, conta com uma sala de aula, uma brinquedoteca
  • 54. 53 e um salão de recreação. Já nas colônias masculinas, encontra-se uma área destinada à educação conten- do três salas, uma biblioteca e sala de professores, na qual, por vezes, exibe-se um filme. Os internos são remunerados e rece- bem salários regulares através da Co- ordenadoria da Saúde. Alguns deles são autorizados a vender produtos fabricados na padaria do Hospital no centro da cidade de Franco da Rocha. Todos que manifestarem interesse tem no Hospital de Custódia I, acesso à educação do ensino fundamental. (CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008) Para compreender quem deve cumprir sua sentença nos Hospitais de Custódia, deve-se começar pelo funcionamento do sistema penal brasileiro. O có- digo penal prevê que aqueles que forem a julgamento e alegarem insanidade mental, são obrigados a passar por uma sessão com um psicólogo ou psiquiatra que estabelece um laudo declarando se o réu é portador de algum distúrbio mental ou não. Caso o especialista considere que a pessoa é impossibilitada de respon- der por seus atos em uma prisão tradicional, ela passa a ser considerada inimputável. Segundo a psicóloga Adriana Eiko, que trabalhou anos no HTCP II, “a pena não pode ser imputada porque de fato elas não têm todas as faculdades mentais”. A partir desse momento, o juiz concede a elas a absolvição de seu crime e, em resposta, a obrigatorie-
  • 55. 54 dade de um tratamento compulsório. O suspeito ago- ra é considerado em medida de segurança e é enviado a um hospital de custódia, o que antes era chamado de manicômio judiciário. O que, à primeira vista, parece ser uma senten- ça mais leve do que a direcionada àqueles que não estão em medida de segurança, mostra-se muito pior se analisarmos os pormenores. Um preso tradicional tem, no dia do julgamento, sua pena determinada; é exposto o tempo que ele ficará preso tendo a possibi- lidade de diminuir sua pena se assim for aprovado. Já a pessoa que é mandada para o hospital de custódia, de acordo com a Lei de Execução Penal, tem apenas o mínimo de seu tempo de exclusão decretado. Ou seja, ao fim de cada período “mínimo”, o psiquiatra ou psicólogo que acompanha o caso disponibiliza um laudo afirmando ou não que aquela pessoa cessou sua periculosidade e pode começar a passar pelo processo de desinstitucionalização — saída do hospital. Desse modo, existem pessoas que estão há mais de 40 anos em cárcere no HTCP em Franco da Rocha, algo que não está na constituição brasileira, visto que a pena máxima no Brasil é de 30 anos. Note-se que o termo “periculosidade” é alta- mente questionado por aqueles que são contrários a esse sistema empregado atualmente. “Nós fazemos uma crítica a isso porque o conceito de periculosi- dade reside numa compreensão de ser humano que compreende esse sujeito como portador de caracte- rísticas inatas ou tendenciais para o crime”, defen- de Adriana Eiko. Algo que, segundo ela, nunca foi comprovado.
  • 56. 55 A primeira vez que a periculosidade do agente foi tratada na escola posi- tiva, foi por Cesare Lombroso (1835 – 1909), em especial, buscava a caracte- rizar o infrator pela antropobiologia, fazendo um estudo em vinte e cinco mil presos para chegar à concepção dos traços físicos e biológicos dos de- linquentes. Enrico Ferri (1856 – 1929), além da antropobiologia, utilizou o víeis sociológico do delinquente, sus- tentando a tese de que as condições sociais do ser humano além das bio- lógicas também ensejariam o crime. Outro importante científico nesta ce- ara foi Rafael Garófalo (1851 – 1934), buscou sistematizar a ciência jurídica, explanando os postulados positivistas para o direito penal, desenvolvendo o conceito de periculosidade. (FEITOSA, Isabella Britto, 2014, pg 3) Em um trecho de seu livreto “Por uma Políti- ca de Atenção Integral ao Louco Infrator”, Fernan- da Otoni de Barros-Brisset questiona, justamente, a questão da periculosidade e seu significado um tanto subjetivo e pouco explicativo. A presunção da periculosidade é ou- tro absurdo que deveria desaparecer dos textos normativos, assim como a indeterminação do tempo da medida
  • 57. 56 de segurança e a própria lógica das medidas de segurança. Contudo, ja- mais as modificações da lei podem caminhar no sentido de tratar o louco como uma exceção, um caso apenas para a saúde devido à sua condição menos humana, à sua patologia. (BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni, 2010, pg 30) Um caso que abalou bastante a mídia brasileira ao final do ano de 2003 foi o do assassinato, com re- quintes de crueldade, da jovem Liana Friedenbach e de seu namorado Felipe Caffé, em Embu Guaçu, inte- rior de São Paulo. O chefe da quadrilha que assumiu o crime foi o, então menor de idade, Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, que após completar sua pena no estabelecimento para menores infratores, a Fundação Casa, teve um laudo psiquiátrico afirmando que ele era psicopata e que tinha uma alta periculosi- dade. O então governador de São Paulo, José Serra estabeleceu que ele deveria ser colocado em uma casa que o deixasse fora do convívio social, apenas com ou- tras pessoas com o mesmo laudo. O poder público tem que proteger a sociedade contra a violência (...) Par- ticularmente no caso Champinha, pois tive que construir na emergência uma unidade para abriga-lo (como havia terminado o prazo para mantê- -lo internado, Champinha teve que
  • 58. 57 ser transferido para uma unidade de saúde aonde está até hoje. (SERRA, José. Meu Projeto é a Res- posta Imediata aos Infratores. Estado de SP, São Paulo, Junho 2015. Entre- vista concedida a Marcelo Godoy) Ou seja, ele não poderia ser preso em um cár- cere tradicional pois���������������������������������já havia cumprido s�������������ua pena. Tra- tou-se do caso como uma exceção ao Código Legisla- tivo para que o jovem permanecesse preso. O caso Champinha é um exemplo claro da ques- tão da “periculosidade”. A partir do momento em que o laudo psiquiátrico atestou que ele não poderia viver em sociedade sem que voltasse a cometer crimes, ele foi dado como “extremamente perigoso”. Algo que, segundo muitos especialistas, é subjetivo e não atesta nada, não passa de uma herança dos pensadores da escola criminal positivista, que afirmavam que uma pessoa poderia ser má, ou perigosa, em razão de sua condição nata ou doença. Por outro lado, a própria psiquiatra que cuida do caso de Champinha afirma que se ele for posto em liberdade poderá reincidir em seu crime. Existem, nesse caso, especialistas que acreditam que o modo como ele está sendo “tratado” não traz nenhum benefício, caso da psicóloga Adriana Eiko. “Existe o imponderável da vida; nem todo o tratamen- to, nem com todo o cuidado nós conseguimos ter a cla- reza que ele vai redundar numa positividade, em uma mudança, tudo mais. Mas a certeza de que esse tipo de internações, chamada de tratamento, essa certamente
  • 59. 58 não trará”, completa. Há os que creem que a soltura desse criminoso seria nefasta para a sociedade, como o advogado Ari Friedenbach pai de Liana, vítima de Champinha, e atual vereador em São Paulo pelo parti- do PROS. Segundo ele, “quando uma pessoa é psico- pata ou algo do gênero não há cura. Ele é perigoso e tem que ser colocado fora do convívio em sociedade”. Além da questão paradoxal que a “periculosida- de” do cidadão em medida de segurança traz, os hospi- tais de custódia têm passado por algumas mudanças de acordo com o perfil daqueles que estão presos em suas dependências. Teoricamente, somente os criminosos que apresentassem algum distúrbio mental deveriam ser encaminhados para essa instituição mas, segundo dados do livro A Custódia e o Tratamento Psiquiátrico no Brasil de Débora Diniz, não é bem isso que acontece. O censo de Débora foi realizado no ano de 2011 — quando ainda existiam 173 presos no HTCP II — e analisou algumas características daqueles que estão encarcerados no Hospital de Custódia André Teixeira Lima II. Por ser o estabelecimento de desinstitucionali- zação, grande parte das pessoas que habitavam o local durante o estudo estavam em processo de saída da me- dida de segurança. Porém, mesmo assim, já é possível observar um pouco das particularidades daqueles que estavam antes cumprindo pena no HTCP I. No prédio de desinternação do hospital de cus- tódia de Franco da Rocha, a idade média dos internos era de 39 anos, sendo que 57% delas tinham de 20 a 39 anos. Isso, segundo Adriana Eiko, não é visto na área de internação. O que antes da lei antimanicomial era um local indicado somente àqueles que apresen-
  • 60. 59 tassem alguma questão mental mais seria está, nos dias de hoje, repleto de pessoas com até 25 anos que foram presas por alguma questão ligada às drogas. De acordo com o censo comandado por Débora Diniz, o que diferencia os internos do HTCP II de Franco da Rocha com os que habitam os demais hos- pitais de custódia no Brasil são as características físicas de sua população. No HCTP II-Franco da Rocha, pre- tos e pardos somavam 42% (73) da população e brancos, 56% (97). Entre a população em medida de seguran- ça, 44% (69) eram pretos ou pardos, e entre a população em medida de segurança por conversão de pena, 28% (4) eram pretos ou pardos. Nos demais estabelecimentos do país, pre- tos e pardos somavam 45% e brancos somavam 38%. (DINIZ, Débora, 2011, pg 323) Outro importante fato apontado por Diniz é o da concentração de homens e de mulheres nessa instituição. Assim como nos demais estabeleci- mentos, havia uma maior concentra- ção de homens no HCTP II Franco da Rocha. Havia 88% (153) de ho- mens e 12% (20) de mulheres. Entre a população em medida de seguran- ça por conversão de pena havia uma
  • 61. 60 única mulher. No HCTP II-Franco da Rocha, a relação era de uma mulher para cada oito homens. (DINIZ, Débora, 2011, pg 324) Outra característica interessante abordada pelo censo é o dos principais motivos pelos quais as pes- soas em medida de segurança estavam internadas no HTCP II. De acordo com Débora, o principal moti- vo era o da esquizofrenia, abordando 38% dos casos. Esse transtorno psiquiátrico condiz com os apontados como dignos de serem mandados para um hospital de custódia. Porém, o peculiar é que o segundo principal caso, com 26% dos internos, é o de transtornos causa- dos pelo uso excessivo de álcool e drogas. De acordo com a psicóloga Adriana Eiko que, além de ter trabalhado nessa unidade de Franco da Rocha, milita pelo fechamento de tal instituição, essa razão pela prisão é algo que tem aumentado cada vez mais nos hospitais de custódia em geral. “Agora você está encontrando uma população mais jovem e a ti- pologia psiquiátrica tem a ver com o uso de drogas, então são chamados de dependentes químicos. Então você começa a entender todo o fluxo: a guerra contra as drogas que ����������������������������������é o�������������������������������que tem aumentado o encarcera- mento feminino e masculino e que está exterminando a juventude negra na periferia é também o que está ajudando a desviar quem são os sujeitos “incriminan- tes”: os usuários de droga”. Uma questão acerca do encarceramento em hospitais de custódia é se essas pessoas que cometem crime e são obrigadas a passar pelo tratamento com-
  • 62. 61 pulsório seriam mais bem tratadas se fossem presas em prisões tradicionais. Eiko acha que não. Segundo ela, “o sistema prisional atual tem uma lógica muito própria. Se você não entra nessa lógica – por exem- plo, o PCC – você acaba sendo sujeito a retaliações e aqueles com transtornos mentais tinham uma maior dificuldade nesse sentido. Os defensores públicos mais aderidos fazem fiscalizações, vão aos presídios e o que eles relatavam era isso, sujeito de medida de segurança que era espancado toda noite porque às vezes entrava em surto, entrava nesse circuito da pa- ranoia, não conseguia dormir à noite, ficava gritan- do, não tinha nenhum tipo de contenção química lá porque não tem um psiquiatra para medicalizar esse sujeito. A contenção era a ‘porrada’ mesmo”. Infeliz- mente, em visitas a presídios pelo Brasil, esses defen- sores acabaram percebendo que há uma quantidade notável de pessoas que deveriam estar em medida de segurança presentes em presídios comuns. Nesses casos, por vezes, esses indivíduos, para fugir da reta- liação dos outros presos, acabam sendo colocados no que chamam de Medida de Proteção e Seguro Pessoa (MPSP). Trata-se de uma cela pequena e afastada que comporta todos aqueles que estão sendo maltratados pelos outros presos, onde permanecem durante gran- de parte de seu tempo e, para não entrarem em conta- to com os outros, acabam perdendo privilégios como um banho de sol. No dia 19 de outubro deste ano, a Defensoria Pública de São Paulo determinou a interdição da ala psiquiátrica da Penitenciária III de Franco da Rocha exatamente por esse motivo.
  • 63. 62 A Defensoria Pública de SP ingres- sou na última semana com uma ação civil pública em que pede a interdi- ção da chamada “ala psiquiátrica” da Penitenciária III de Franco da Ro- cha. A ação pede, ainda, que sejam realizadas as avaliações biopsicos- sociais individualizadas de todas as pessoas em cumprimento de medida se segurança no prazo de 30 dias (...) durante visitas realizadas pelo Nú- cleo Especializado de Situação Car- cerária da Defensoria, juntamente com membros do Conselho Regional de Psicologia e do Conselho Estadu- al de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, foi constatado que não há equipe mínima de saúde apropriada às demandas de saúde física e men- tal das pessoas lá inseridas, que não há qualquer plano terapêutico indi- vidualizado para elas, entre diversas outras irregularidades. (Defensoria Pública de São Paulo, DPE/SP, 2015) De acordo com o documento divulgado pela defensoria, as condições em que estas pessoas em medida de segurança estavam submetidas eram pre- cárias: vasos sanitários das celas estavam quebrados, não tinham local próprio para realizar suas refeições, havia problemas com os canos causando infiltrações e
  • 64. 63 alagamentos e não havia camas para todos os presos obrigando alguns a dormir no chão. Os Defensores Públicos responsáveis pelo caso, Luana Medeiros, Verônica Sionti, Patrick Cacicedo e Bruno Shimizu afirmam que as dependências desse local não se comparam às de um hospital de custó- dia no sentido de tratamento daqueles portadores de transtornos psiquiátricos. Para os Defensores Públicos, a cus- tódia de pessoas com deficiência ou transtorno mental em unidades pri- sionais, como a Penitenciária III de Franco da Rocha, viola frontalmente os direitos fundamentais dessas pes- soas e está em desacordo com toda a legislação vigente sobre o tema. “É in- tolerável a situação a que estão sendo submetidos os presos diagnosticados com deficiência ou transtorno men- tal naquele local, podendo a situação configurar, inclusive, tortura.” (Defensoria Pública de São Paulo, DPE/SP, 2015) As pessoas em medida de segurança que se en- contram nessas condições estão sendo “tratadas” em prisões tradicionais, pois, segundo a resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenci- ária (CNPCP), enquanto não existirem hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico suficientes para abrigar todos os que necessitam, eles devem ser man-
  • 65. 64 dados para os sistemas carcerários já existem. Porém, mesmo na prisão tradicional, esses indivíduos, de acordo com os direitos humanos, devem receber um auxílio e tratamento especiais para seus casos como se estivessem em um sistema de internação compulsória. A vivência da psicóloga Adriana Eiko, enquan- to trabalhava no HTCP II, demonstra que, apesar de não ser o local ideal para o tratamento de pessoas com transtornos psiquiátricos que cometeram crimes, fa- zia-se o possível. De acordo com ela, “a desinternação progressiva era bem interessante. Nós possuíamos um contato mais profundo com os casos. Eu, por exem- plo, trabalhava com apenas 20 mulheres. Tínhamos, então, como acompanhar, eu as atendia diariamente, fazia contato, falava com a família quase semanalmen- te se não quinzenalmente, eu ia até a casa delas junto com a condução do HTCP quando elas iam fazer visi- ta ou as famílias vinham até lá para fazer entrevista”. A maior dificuldade no processo de desinterna- ção daqueles que estavam, por vezes, há décadas presos em um hospital de custódia é o apoio da família. Se to- das as famílias recebessem de bom grado seus parentes internados, o tratamento dos psicólogos e psiquiatras poderia ser passado ao grupo. No entanto, não é bem isso que acontece. Na maioria dos casos, dá-se um pro- cesso de estranhamento em relação ao parente interna- do há muitos anos, sem contato com as novas gerações que se seguiram à sua “prisão”. Também pode ocorrer uma recusa em receber um “louco” em sua residência. Nesses casos em que a família se recusa e abri- gar o ex-interno, o trabalho da equipe de psicólogos e psiquiatras fica mais intenso, pois precisa, além do lau-
  • 66. 65 do psiquiátrico que confirme a cessação de sua pericu- losidade, ratificar que ele tem autonomia o suficiente para viver bem fora da instituição, seja sozinho, seja em residências ou comunidades terapêuticas – locais onde pessoas com problemas de vício em álcool e dro- gas podem residir por até 12 meses – ou até morarem sozinhas e deslocarem-se aos centros. Uma equipe de- cide se um paciente pode ir do HTCP I ao II. Segundo Adriana Eiko, a desinternação deveria ser para todos, mas “nem sempre o paciente está preparado para sair. Um dos pacientes dizia que não queria sair dali, que ele não sabia andar na rua, tinha medo. Ele apresenta- va um quadro de deficiência cognitiva aguda”. Esse processo deve ser realizado aos poucos para que não haja muito estranhamento e afete o interno. Ele deve ir resgatando vínculos internos, se possível, com sua família e, aos poucos, ir “desinternando” a si próprio. O CAPS, a família e os psicólogos do HTCP II trabalham como que em uma rede, para que a inserção daquela pessoa que ficou por anos excluída da socieda- de possa ser o mais tranquilo possível. Por vezes, o in- terno passa os finais de semana os as férias somente na casa da família e depois volta para o hospital de custódia para que, aos poucos, vá se acostumando à nova vida. A psicóloga lembra-se de casos peculiares da- quela unidade do hospital de custódia de Franco da Rocha. “Lá morava uma paciente que estava há 10 anos internada e o laudo psiquiátrico sempre dava ne- gativo na parte de cessação de periculosidade. Certo dia, na visita com seu psiquiatra a mulher, que tinha certeza que não passaria novamente no ‘teste’, jogou uma cadeira nele e virou a mesa. Ela ficou alguns dias
  • 67. 66 presa na solitária e, é claro, seu laudo continuou nega- tivo e ela ainda estava presa”. Em alguns casos, até o próprio indivíduo deci- de não voltar para sua família e consegue se organizar de tal modo que sai do encarceramento e vai morar sozinho, continuando o tratamento no CAPS ou, so- mente, com apoio psicológico. Foi o que aconteceu com uma paciente de Adriana Eiko que, trabalhando como faxineira em várias casas em Franco da Rocha, conseguiu se sustentar, alugou uma residência para morar na cidade e reconstruiu a sua vida. Uma questão que aflige aqueles que são comple- tamente contra qualquer tipo de instituição, seja o hos- pital psiquiátrico, seja o de custódia, é se existe alguma alternativa a esse cárcere que abriga aqueles criminosos que foram diagnosticados com algum distúrbio mental. Após a aprovação da lei 10.216 em 2001, foi possibilitada a criação de dois programas (o PAI-PJ e o PAILI), para auxiliar, de modo menos encarcerador do que os hospitais de custódia, pessoas com transtor- nos psiquiátricos que haviam sido colocadas em medi- da de segurança. O primeiro, Programa de Atenção Integral ao Pa- ciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI- -PJ), idealizado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 2001, “se orienta pelos princípios da reforma psi- quiátrica, promovendo o acesso a tratamento em saúde mental na rede substitutiva ao modelo manicomial”. Para que isso ocorra, o programa conta com uma equipe composta por assistentes sociais, psicó- logos e bacharéis em direito – que auxiliam os seus usuários em suas questões jurídicas – todos atuando
  • 68. 67 em parceria com o Judiciário, Ministério Público e Executivo. Segundo a cartilha divulgada pelo próprio PAI-PJ, desde seu início até o ano de 2010 – até onde se tem um censo – 755 casos foram acolhidos por ele, sendo que destes, 489 se desligaram do programa. O programa busca ouvir diariamente o pacien- te e sua família tentando criar a, tão esperada, relação entre eles. O PAI-PJ aponta três importantes passos para o tratamento de seus usuários: o acompanha- mento clínico, no qual há um auxílio bem próximo de psicólogos e psiquiatras que criam, juntamente ao paciente, uma rede com o sistema público de saúde; o acompanhamento social, no qual os profissionais do programa procuram manter um contato próximo com a família, amigos, relações de trabalho, além de tentar prover o máximo de assistência a essas pessoas na pro- cura de trabalho, moradia e até documentos. Por fim, há o acompanhamento jurídico que consiste na emis- são de relatórios e pareceres judiciais que são enviados às autoridades judiciais que cuidam de cada caso. Inspirado na iniciativa mineira, o Programa In- tegral de Atenção ao Infrator (o PAILI) é uma ideali- zação do estado de Goiás que, assim como o anterior, tem como intuito um tratamento alternativo ao hos- pital de custódia, em casos de pessoas em medida de segurança. Atualmente, o programa acompanha 243 pacientes em 77 cidades do estado e tem convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A equipe do PAILI é composta por assistentes sociais, advogados, psicólogos, auxiliares administra- tivos e acompanhantes terapêuticos, sendo que todos
  • 69. 68 tem um vínculo com a Secretária de Estado da Saúde e realizam um processo similar ao PAI-PJ com relação aos cuidados com o paciente. De acordo com a psicóloga Adriana Eiko, um tratamento mais humanizado para com estes indiví- duos em medida de segurança gerou muitos frutos positivos e quase nenhum caso de reincidência. “O importante no tratamento dos pacientes com sofri- mento mental é fazê-los tomar responsabilidade pelos seus atos, mas isso só é possível depois de um longo processo, a partir do qual o indivíduo consegue re- pensar a própria vida, o que certamente não acontece do outro lado do muro manicomial”, afirma. Histórias do Hospital de Custódia de Franco da Rocha Entrada, desde o início até os dias de hoje, do Complexo de Juqueri que abriga o Hospital de Custódia IG
  • 70. 69 O manicômio judiciário do Juqueri ficou co- nhecido por servir de cárcere a João Acácio Pereira da Costa, o famoso Bandido da Luz Vermelha. O cri- minoso era conhecido por invadir casas de bairros nobres de São Paulo, assaltá-las e estuprar as vítimas do sexo feminino. Ao adentrar as casas que assaltava, usava um lenço cobrindo seu rosto e uma lanterna de bocal vermelho, que virou sua marca registrada e foi responsável pelo seu codinome. Ele foi sentenciado a 351 anos, nove meses e três dias de prisão por quatro assassinatos, sete tentativas de homicídio e 77 assaltos. Luz Vermelha, como era chamado por aqueles que trabalhavam no local, foi preso por duas vezes no Juqueri. Na primeira, no ano de 1967, recebia diaria- mente, de acordo com os funcionários do então Ma- nicômio Judiciário de Juqueri, visitas de jornalistas e mulheres. Meu primo, que o conheceu antes de mim, dizia que o Luz Vermelha não tinha contato com os outros deten- tos. Não poderia ser diferente, pois ele trazia do lado de fora das mura- lhas uma fama que metia medo até no mais valente dos presos. O sujeito era tão respeitado que, se ele gostas- se de um par de sapatos de um dos visitantes, pedia para que o deixasse como presente. Ninguém ousava de- sobedecer. (FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na- varro, 2014, pg 128).
  • 71. 70 O criminoso ficou um total de 30 anos preso na instituição tendo saído uma vez e retornado anos de- pois. Em meados dos anos 70, sua segunda passagem, o, então enfermeiro do manicômio judiciário, Walter Farias admite que os tempos de fama de João Acácio Pereira da Costa – que no ano de 1968 teve um filme contando sua história, “O Bandido da Luz Vermelha”, dirigido pelo importante expoente do cinema margi- nal, Rogério Sganzerla – tinham acabado. Sem visitas diárias, passava dia e noi- te calado em uma cela comum, de cinco metros quadrados, no térreo, no lado direito do corredor de entra- da do prédio. Um funcionário com mais tempo de casa o vigiava sentado em uma cadeira localizada no portão que dava para o corredor; o temor da direção era que uma faca, punhal ou qualquer outro tipo de arma branca chegasse até ele (...) uma das poucas pessoas que ainda o visitavam espo- radicamente, uma senhora da igreja. (FARIAS, Walter, SONIM, Daniel Na- varro, 2014, pg 128 - 129). Entre os anos 1978 e 1979, o anestesista Odair Marangoni trabalhou dentro dos muros da instituição. Durante seu período no local, o médico acompanhou o sofrimento de pacientes que, segundo ele, ficavam largados na enfermaria – local em que passava a maior parte de seu tempo. A seu ver, o atendimento aos pa-
  • 72. 71 cientes, — carentes de um olhar mais solidário por parte dos funcionários, ou de visitas externas — “era até desumano”. O médico chegou a entrar em contato com o “temido” Bandido da Luz Vermelha e afirma que ele não era portador de um distúrbio psiquiátrico que o enquadraria como preso do manicômio judici- ário. Segundo ele, “depois de certo período preso na instituição constataram que ele não era ‘louco’”. Além do famoso “Luz”, milhares de outros de- tentos passarem pelo local. O livro “O Capa Branca” aborda alguns deles, como Sansão. O detento, por ser considerado um dos internos de maior periculo- sidade, permanecia preso em um local chamado de “cela surda” — cela em formato de L dividida por duas portas de ferro que serviam de isolamento acús- tico (para que os gritos não fossem ouvidos do lado de fora). No entanto, Sansão - que recebia esse nome por sua força gigantesca que era um enorme empe- cilho aos enfermeiros que cuidavam dele – incon- formado por ter que ficar preso naquelas condições, batia a cabeça com força na parede da cela. O que impressionava a todos que passavam pelos corredo- res próximos ao aposento do interno era o barulho que tal ação ecoava. Diziam ser possível ouvir de ou- tro andar a batida da cabeça de Sansão na cela surda, e que o topo de sua cabeça já estava completamente machucado e sua raiva apenas crescia tornando cada vez mais impossível o trabalho dos enfermeiros que cuidavam de seu “quarto”. As brigas entre os detentos eram uma questão bastante complicada para os enfermeiros. Nessas si-
  • 73. 72 tuações, por vezes, os internos confeccionavam sua própria arma branca e tratavam de infectá-la a partir de uma sofisticada forma de contaminação: primei- ramente eles retiravam um pedaço do ferro da janela ou de alguma parte da cela que estava mal coloca, em seguida matavam ratos e demais animais desse gêne- ro que rondavam seus aposentos, colocando-os, junta- mente com o ferro, em um buraco cavado na própria cela. Para que os enfermeiros e demais detentos não percebessem o cheiro da carcaça do animal apodre- cendo, às vezes por semanas, no buraco com o fer- ro, eles colocavam seus dejetos pessoais em cima do orifício. Em seguida, quando o objeto era retirado do buraco, ele estava infectado com bactérias e bastava um pequeno corte no oponente para contaminá-lo mortalmente. O abuso sexual era, também, uma forma de violência um tanto frequente na instituição carcerária. Walter Farias conta com pesar de sua relação conflituo- sa com um detento chamado Charuto. De acordo com um ex-enfermeiro e ex-interno do Juqueri, esse preso era bastante respeitado pelos outros e tinha a terrível “mania” de oferecer aos detentos novos na instituição uma “proteção” em troca de favores sexuais. Perceben- do tal situação, Farias tentou proteger os internos do Charuto e acabou levando diversas ameaças do preso, nunca realizadas. Outro preso ameaçava diariamente que iria ar- rancar seus próprios olhos. Apesar de pouco crentes, os enfermeiros foram obrigados a deixa-lo trancafiado em sua cela na maior parte do tempo. Em uma noite, após o liberarem para passear no pátio, encontraram-
  • 74. 73 -no na quadra, em meio aos demais detentos, desacor- dado, e sem os olhos. Tanto no Hospital Psiquiátrico quanto no Ma- nicômio Judiciário, a nudez era algo bastante comum. Farias lembra que, por vezes, quando os internos rece- biam alguma visita, os enfermeiros tentavam arrumá- -los com uma roupa mais digna. Roupa esta que era imediatamente tirada no momento em que voltavam da visita. Ainda nos anos 80 tal prática ainda era bas- tante comum. Na reportagem realizada pelo repórter Goulart de Andrade para a TV Gazeta — “Goulart de Andrade em Juqueri” - podem-se confirmar os relatos que atestam essa situação: internos nus no pátio, com escaras, em meio a fezes e dejetos espalhados pelos corredores da instituição. No programa, o desespero dos internos sub- metidos a condições degradantes ������������������é perceptível. ���Em- pilhados, imundos e tratados como animais. O banho, segundo uma enfermeira do local, é dado no próprio pátio com água quente retirada da cozinha. Tanto o vídeo quanto o livro A Casa de Delí- rio, do jornalista Douglas Tavolaro apontam a dança como um método de passar o tempo no local. Por vezes, homens e mulheres se encontram em uma das salas para um baile. Esse é um dos únicos momen- tos, de acordo com o jornalista, em que os presos homens e mulheres podem conviver e, em alguns casos, relacionamentos resultam de tal interação. Em visita ao complexo penitenciário, a psicóloga Vivian Crepaldi entrou em contato essa situação, como conta em seu artigo “Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico”.
  • 75. 74 Neste dia estava acontecendo um baile de integração entre os internos das colônias feminina e masculina. A psicóloga explicou que a intenção em promover esse baile é a de fazer com que os indivíduos possam ‘namorar’ e se ‘distrair’, nos contou que este evento é realizado quinzenalmente. Havia música ao fundo do discurso explicativo (...) A psicóloga nos con- tou que a homossexualidade lá é tole- rada mesmo porque como ela relata: na ‘condição’ em que se encontram eles estão homossexuais apesar de muitos não o serem. Ou seja, na ca- lada da noite, dentro dos pavilhões tudo pode ser experienciado. Muitos deles mantêm relações sexuais com o mesmo sexo e ainda assim tem uma namorada (o) e a (o) encontra justa- mente quinzenalmente nas festas que promovem de integração entre as co- lônias masculina e feminina. (CREPALDI, Vivian, REDE PSI, 2008).
  • 76.
  • 77.
  • 78. 77 4. A Reforma Psiquiátrica O final da segunda metade do século XX foi marcado pelo início do questionamento acerca da efi- cácia e da humanidade dos tratamentos adotados para os portadores de distúrbios mentais. Até então, aquele que era diagnosticado ou somente considerado lou- co era enviado, por vezes sem previsão de liberdade, para os hospitais psiquiátricos ou colônias, que nada mais eram do que enormes manicômios que abriga- vam centenas ou milhares de pessoas com as mais di- versas características. O que começou a chamar a atenção de alguns psicólogos e psiquiatras ao redor do mundo foram os métodos “terapêuticos” aos quais esses internos aca- bavam sendo expostos. Desde duchas frias, sangrias (o doente mental tem parte de seu sangue retirado por meio de cortes em seu corpo,), passando pelos temidos eletrochoques (ECT), procedimento em que a pessoa é amarrada a uma cama e tem uma alta carga de eletricidade descarregada em sua cabeça através de placas e até, em casos extremos, a lobotomia. A última, considerada a mais invasiva das inter- venções cirúrgicas, ocorre no cérebro e é realizada da seguinte maneira: são seccionadas as vias que ligam os lóbulos frontais ao tálamo e outras vias associadas. A ideia de destinar tal operação de cunho tão radical aos doentes mentais brasileiros, data do ano de 1935 e foi instuituída pelo médico português Egas Moniz,
  • 79. 78 em colaboração com o cirurgião Almeida Lima e o psiquiatra Cid Sobral. Anos após o período em que foi lançada, a descoberta de Moniz continuou sendo cultuada pelos médicos e psiquiatras que tratavam de psicóticos, como o artigo de 1949 explicita. O tratamento cirúrgico de algumas formas de doenças mentais, pela lo- botomia, constitui um método tera- pêutico de eficiência comprovada. Todas as glórias do sucesso desta te- rapêutica cabem a Egas Moniz, cuja brilhante inteligência tem sido de- dicada aos estudos da fisiopatologia dos lobos frontais, desde a realização do Congresso Internacional de Neu- rologia em Londres, em 1935, até este novo Congresso em que obtém êle os mais brilhantes louros de sua vitória científica. (LONGO, Paulino W; PIMENTA, Mattos A; ARRUDA, 1949, pg 1) A literatura da época afirma que os pacientes que passassem por tal operação perdiam grande parte de sua capacidade de fala e compreensão de situações tornando-se “zumbis-humanos”. Tais práticas objeti- vavam tornar os pacientes mais dóceis aos tratamen- tos e ao convívio social, ou por serem esquizofrênicas e terem algum surto ou por apenas não aceitarem estar naquela situação, perturbando os próprios médicos e enfermeiros das instituições.
  • 80. 79 Pioneiro na questão da reforma psiquiátrica, o psiquiatra italiano Franco Basaglia foi um dos pri- meiros a questionar tais métodos de tratamento e iniciar um processo de crítica e de tentativa de trans- formação do saber da época e dos métodos aplica- dos nas instituições psiquiátricas. Apesar de iniciado na Itália, esse movimento se propagou pelo resto do mundo e teve um grande impacto no Brasil a partir da década de 80. O impacto da influência das ideias de Franco Basaglia pode ser mensurado a partir de várias iniciativas pelo mundo afora, inclusive no Bra- sil. Em 18 de maio – data que foi, após, oficializada como o dia da luta da antimanicomial e, na qual, de- zenas de passeatas sobre o tema ocorrem pelo país - de 1987, durante o II Congresso Nacional de Tra- balhadores da Saúde Mental, realizado na cidade de Bauru (interior de São Paulo), foi elaborada a “Carta de Bauru”, o primeiro documento brasileiro que pe- dia a extinção dos manicômios: O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos me- canismos de opressão desse tipo de sociedade (...)Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais signi- fica incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos míni- mos à saúde, justiça e melhores con- dições de vida. (Bauru, dezembro de 1987 - II Con- gresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental)
  • 81. 80 Além disso, a “Carta” pedia o fim da medicali- zação o que, segundo seus elaboradores, não passava da mercantilização da doença mental, a venda sem precedentes de remédios que, por vezes, acabavam prejudicando os pacientes. “A ‘Carta de Bauru’ resul- tou na I Conferência de Saúde Mental e na Luta Ma- nicomial”, afirma a psicóloga Deborah Sereno, em seu artigo Sobre a Ética no Acompanhamento Terapêutico (Psic. Rev. São Paulo, volume 21, n.2, 217-232, 2012). A partir de então, a reforma psiquiátrica e, com ela, a luta antimanicomial, passou a gerar frutos, em especial no ano de 1989. Esse ano marcou o fecha- mento da Clínica Anchieta, em Santos, pela então prefeita Telma de Souza, estabelecimento psiquiátri- co que, após a averiguação de denúncias, descobriu- -se que realizava os mais variados métodos desumanos de tratamento, desde choques elétricos até espanca- mento e confinamento, o que lhe rendeu o apelido de “Casa dos Horrores”. Além disso, na mesma época, o então depu- tado Paulo Delgado (PT/MG) elaborou o projeto de lei nº 3657/1989, que pedia “a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória”. Porém, somente em 6 de abril de 2001, a lei 10.216, que proibia a existência de qualquer manicô- mio e internação involuntária seria sancionada. Se- gundo a nova legislação, A pessoa visando um trata- mento psicológico tem direito, dentre outras coisas, após a criação da lei uma série de possibilidades antes inimagináveis. Além do fato de que a internação psi-
  • 82. 81 quiátrica só poderá ocorrer em última instância e com a presença de um laudo que indique essa razão. [a pessoa a quem a lei se aplica tem di- reito de] ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcan- çar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunida- de; ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis (...)” (BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001) O fechamento sucessivo das instituições psi- quiátricas expôs a necessidade do Estado prover um auxílio posterior aos egressos desses hospitais psiqui- átricos, pois alguns passaram grande parte de suas vi- das internados, e, com isso, foi sancionada outra lei, a de n. 10.708 de 31 de julho de 2003. Ela prevê uma “assistência, acompanhamento e integração social, fora da unidade hospitalar, de pessoas acometidas de transtornos mentais, com longa história de interna- ção psiquiátrica (dois ou mais anos)” (BRASIL, Lei nº 10.708, de 31 de julho de 2003). A criação dessa lei proporcionou a elaboração de diferentes programas de auxílios psicossociais,
  • 83. 82 dentre eles os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), as Residências Terapêuticas – ambos serão abordados adiante – e o programa “De Volta Para Casa”. O úl- timo consiste na reintegração desses ex-internos dos manicômios à suas famílias de modo que possam reto- mar, o mais próximo possível, suas vidas pré-interna- ção. Algo que se mostrou, ao mesmo tempo, de suma importância, mas de difícil execução. Imagens da Passeata pela Luta Antimanicomial do dia 18 de maio de 2015
  • 84. 83
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  • 88. 87 5. Fora dos Muros Manicomiais A ilegalidade dos manicômios e seu fechamen- to determinado pela lei antimanicomial 10.216 de 2001, fez surgir a necessidade da criação, ou ao me- nos aprofundamento, de novos ambientes para o con- tínuo tratamento daqueles que antes estavam conde- nados a viverem reclusos por longos períodos nessas instituições. Não é possível chamar esses “ambientes” de tratamentos ou terapia, muitas vezes pela caracterís- tica médica que esses termos trazem ou também pela necessidade de desconectar as pessoas que estavam nos manicômios dos tratamentos que recebiam diaria- mente nesses locais. Muitas alternativas aos tratamentos antes em- pregados passam a ser aplicadas, como por exemplo, o projeto “De Volta Para Casa. O programa atua na di- fícil tarefa de reinserção dos portadores de distúrbios mentais no convívio social, fornecendo todo o auxílio e suporte necessário, seja terapêutico, seja na forma de atividades lúdicas e de lazer. É importante salientar que a relação dos pacien- tes com instituições que utilizam métodos repressivos, agressivos e violentos exercem tamanha influência em suas vidas findo o tratamento, que a situação passa a exigir um novo ciclo de análise posterior tratamento. Pensando nisso, a teoria da esquizoanálise, cunhada por Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu li-
  • 89. 88 vro “O Anti Édipo”, questiona, dentre diversos outros temas, a relação entre o indivíduo e as instituições. Desse modo, de acordo com o professor De- partamento de Filosofia e no Núcleo de Estudos da Subjetividade do Pós-Graduação em Psicologia Clíni- ca da PUC-SP e estudioso e tradutor de parte da obra de Gilles Deleuze, Peter Pál Pelbart, a relação de uma pessoa com transtornos mentais e o Hospital Dia, um hospital psiquiátrico ou de custódia, deve ser trata- da também de dentro para fora. Ou seja, não é ape- nas o sujeito em questão que está doente e precisa ser tratado, a própria instituição precisa se curar, já que ela mesmo está enferma. Então, um modo de se “me- dicar” tais locais é a criação de terapias alternativas, que ofereçam novas formas de tratamento para os que passam por sofrimentos mentais.
  • 90. 89 5.1 Companhia Teatral Ueinss Foi um paciente do hospital-dia2 “ACasa”, em 1996, que, notando a falta de uma atividade que agre- gasse uma grande quantidade de pessoas portadoras de distúrbios psicóticos, mas que não fosse algo volta- do somente aos membros do hospital ou aos seus fa- miliares e, sim, ao grande público, que deu a ideia ao filósofo, professor da PUC e então funcionário da ins- tituição, Peter Pál Pelbart para a criação de um novo grupo, a Companhia Teatral Ueinss. “O paciente disse que queria fazer teatro, mas teatro de verdade, não apenas apresentações de louco para louco”, nem somente para apresentar às famílias na festa de final de ano e acatei, juntamente a outros funcionários, essa decisão”, contou Pelbart. Considerando a ideia desse paciente de exte- riorizar as atividades desenvolvidas na “Casa”, Peter Pelbart convidou o diretor de teatro Renato Cohen que trouxe seu colega Sérgio Pena para que, juntos, tomassem a dianteira do projeto. Inicialmente o filósofo ficou impressionado pelo modo como a atividade foi construindo possibili- dades de inclusão social. “Esse olhar diferente direcio- nado aos pacientes suscitava, para eles, uma situação muito distinta do que seria o Hospital Dia; eles não eram mais pacientes, não eram doentes, eram atores, 2 O Hospital Dia é um método de atendimento que busca, a todo custo, desins- titucionalizar os pacientes, mesmo antes do cumprimento da lei antimanicomial nº 10.216/2001. Neles, o paciente e sua família tem atenção integral em um am- biente clínico.