Projeto Simultaneidade no Vila Flores (dezembro 2013)
Seminário Econ Alternativa
1. O Seminário Internacional de
Economia Alternativa surgiu através da
parceria entre Goethe-Institut Porto
Alegre e a Associação Cultural Vila
Flores, firmada no ano de 2015. Ambas
instituições tinham interesse em
desenvolver atividades que discutissem
questões atuais sobre relações de trocas.
Com a vinda do teórico alemão Joseph
Vogl para Porto Alegre, o Goethe-Institut
estava interessado em colocar
professores e estudiosos em debate
sobre a as características e desafios da
situação econômica atual. Já o Vila
Flores, através do desenvolvimento de
um projeto de moeda alternativa, tinha
interesse em experiências de grupos/
pessoas/instituições que trabalham com
economia alternativa e são hoje
referências no campo. O projeto do
seminário internacional Compartilhar e
Trocar foi construído pelas duas
instituições durante três meses,
culminando em três dias de atividades
realizadas nos dois espaços. O
seminário contou com 105 inscritos.
No dia 19 de novembro de 2015,
no auditório do Goethe-Institut, os
professores Joseph Vogl (Alemanha),
Ricardo Orzi (Argentina), Luiz Inácio
Gaiger (Brasil) e Gláucia Campregher
(Brasil), debateram sobre perspectivas
econômicas atuais, moeda social e
economia solidária. No dia 20, no Vila
Flores, Solange Mânica (Clube de
Trocas de Novo Hamburgo), Ana
Mercedes Icaza (Núcleo de Estudos em
Gestão Alternativa da UFRGS) e Maria
do Carmo Bittencourt (OSCIP Guayí –
Democracia, Participação e
Solidariedade) realizaram relatos de
suas respectivas experiências práticas
com economia alternativa. No dia 21, no
Vila Flores, um grupo de trabalho
conversou sobre as questões discutidas
nas atividades anteriores e utilizou, para
a discussão sobre moedas alternativas, o
jogo Currency Lab, da artista e
pesquisadora Lenara Verle.
COMPARTILHAR E TROCAR
Seminário Internacional de Economia Alternativa
Programação
// PALESTRAS
19 de novembro de 2015
19h às 21h30
Auditório do Goethe-Institut Porto Alegre
(24 de Outubro, 112. Porto Alegre/RS)
Tradução simultânea
19h15
Joseph Vogl (Alemanha. Humboldt
University/Princeton University)
Relações de poder no regime econômico
atual e distorções correlacionadas nos
processos de tomada de decisão política
com relação à economia
19h50
Ricardo Orzi (Argentina, Universidad
Nacional de Luján)
Ligações entre dispositivos de moeda
social e a possível formação de um
subsistema de Economia Social e
Solidária (ESS)
20h15
Luiz Inácio Gaiger (Brasil. UNISINOS)
A diversidade das Ciências Econômicas e
a economia solidária no Brasil.
20h40
O debate será mediado por Gláucia
Campregher, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
21h15
Confraternização
// PAINÉIS DE EXPERIÊNCIAS
20 de novembro
18h30 às 22h
Vila Flores (Rua São Carlos, 759. Porto
Alegre/RS)
18h30
Introdução
19h20
Relato de experiência de Solange Carmen
Mânica do Clube de Trocas de Novo
Hamburgo.
20h
Intervalo
20h30
Relato de experiência de Ana Mercedes
Sarria Icaza do Núcleo de Estudos em
Gestão Alternativa da UFRGS.
21h20
Relato de experiência de Maria do Carmo
Bittencourt da OSCIP Guayí –
Democracia, Participação e
Solidariedade.
// GRUPO DE TRABALHO
21 de novembro
9h30 às 14h
Vila Flores (Rua São Carlos, 759)
O artista visual Marcelo Monteiro,
integrante do Estúdio Hybrido, coletivo
sediado no Vila Flores, desenvolveu um selo
especialmente para a identidade visual do
evento. O selo foi elaborado através da
técnica de xilogravura.
Programação
Porto Alegre | Rio Grande do Sul | Brasil | 2015
2. Prof. Joseph Vogl (Alemanha – Universidade
Humboldt, Universidade de Princeton)
Joseph Vogl é professor de Literatura Alemã, Estudos
Culturais e Midiáticos na Universidade Humboldt, em Berlim. Vogl
também é professor visitante permanente na Universidade de
Princeton, Estados Unidos. Além da pesquisa nas áreas de teoria
literária, história literária e meios de comunicação, com
publicações sobre Kafka, Goethe, Stifter, Fontane, Brentano, é
conhecido por seu intensivo trabalho sobre economia moderna e
contemporânea, analisando teorias financeiras a partir da
perspectiva da história cultural. Suas publicações mais recentes
são: Calculation and Passion – A poetics of Economic Man
(2002), On Hesitation (2007), Debit and Credit. Television
Conversations, com Alexander Kluge (2009), The Specter of
Capital (2010) e Der Souveränitätseffekt (2015). The Specter of
Capital recebeu amplo reconhecimento nas áreas de estudos
culturais e economia.
Prof. Luiz Gaiger (Brasil – Universidade do Vale do
Rio dos Sinos)
Luiz Inácio Gaiger é professor titular no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (Unisinos), Brasil. É PhD em Sociologia pela
Universidade Católica de Louvain, Bélgica e, desde 2000, é
pesquisador do CNPq. Na Unisinos, foi coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, bem como
Diretor-Geral de Pesquisa e coordenador da Cátedra UNESCO
em Trabalho e Sociedade Solidária, de 2005 a 2014. Foi membro
do conselho do diretor da Sociedade Brasileira de Sociologia
(2009-2011). Luiz Inácio Gaiger tem uma experiência acadêmica
em participação cidadã, movimentos sociais, economia solidária e
empreendedorismo social. Coordenou o primeiro projeto de
pesquisa nacional sobre economia solidária, apoiada pela Rede
Interuniversitária UNITRABALHO, onde também estava envolvido
na coordenação do Programa de Economia Solidária, e como
representante do Programa no Fórum Brasileiro de Economia
Solidária. Ele coordena, com o Prof. José Luis Coraggio (UNGS /
Argentina), a Rede Latino-Americana de Pesquisadores em
economia social e solidária (RILESS), e é co-diretor do Otra
Economía Journal. Seu último livro é A Economia Solidária no
Brasil: Uma Análise de Dados Nacionais (editado em colaboração
com o Grupo de Pesquisa Ecosol, 2014, São Leopoldo).
Prof. Ricardo Orzi (Argentina – Universidad
Nacional de Luján)
Ricardo Orzi é Professor Adjunto Ordinario da Universidade
Nacional de Luján (UNLu) e leciona seminários de pós-graduação
na Universidade de Buenos Aires (UBA), Quilmes (UNQ) e
General Sarmiento (UNGS). É economista (UBA) e especializou-se
em economias alternativas com o professor José Luis Coraggio
(Master de Economia Social, UNGS). Atualmente está conluindo
um PhD em Antropologia Econômica. Desde 2005, tem estudado
sistemas monetários alternativos e mercados solidários Argentina
e em outros países da América Latina e Europa. Neste contexto,
ele publicou dois livros sobre o assunto e várias publicações e
artigos. Faz parte do comitê acadêmico da Revista Prólogos
(Programa de Estudos em História, Política e Direito, UNLu) e é
pesquisador da Rede Latino-Americana de Pesquisadores em
Economia Social e Solidária (RILESS). Seu interesse consiste em
estudar as formas pelas quais os sistemas monetários
complementares transformam as relações sociais de produção,
distribuição e consumo dominante, promovendo valores
semelhantes aos que motivam os empreendimentos da economia
social e solidária (ESS). Seu livro mais recente é Moneda Social y
Mercados Solidarios II: La moneda social como lazo social
(Editorial CICCUS, 2012).
Profª. Drª. Gláucia Angélica Campregher (Brasil –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Gláucia Campregher é graduada em Ciências Econômicas
pela Universidade Federal de Viçosa (MG), com mestrado e
doutorado pela Unicamp, com os temas “Desdobramentos lógico-
históricos da ontologia do trabalho em Marx” e “Para uma crítica
da economia política do não-trabalho”. Trabalhou por 12 anos na
Universidade Federal de Uberlandia (MG), de onde afastou-se
para atuar no executivo estadual no RS. Tornou à academia para
lecionar na área de macroeconomia e economia brasileira na
graduação e pós-graduação da Unisinos, também no RS. Hoje
leciona na UFRGS e pesquisa temas relacionados às novas formas
de articulação do trabalho, seja ao nível mais empírico – em
empreendimentos solidários, em arranjos produtivos locais ou na
internet -, seja ao nível mais teórico – como estes poderiam
implicar na construção de formas de sociabilidade pós-capitalista.
Palestrantes @ Auditório do Goethe-Institut Porto Alegre
Foto: Carol de Góes
4. Painéis de Experiência
No segundo dia do seminário, representantes de iniciativas com vasto conhecimento sobre
Economia Solidária e moedas alternativas compartilharam suas experiências:
Profª. Drª. Ana Mercedes Sarria Icaza (Brasil – Universidade Federal
do Rio Grande do Sul)
Doutora em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica, é
professora do Departamento de Ciências Administrativas da Escola de Administração da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde leciona no curso de Administração de
Organizações Públicas e Sociais. Possui experiência em pesquisa, processos de educação
popular e elaboração e avaliação de projetos na Nicarágua, Bélgica e Brasil. Há mais de
15 anos no ensino superior, trabalha com as temáticas de movimentos sociais, economia
solidária e políticas públicas. É professora atuante no Núcleo de Estudos em Gestão
Alternativa da UFRGS.
Profª. Solange Carmen Mânica (Brasil - Clube de Trocas de Novo
Hamburgo)
Diretora e Coordenadora no Centro de Educação Ambiental Ernest Sarlet SMED Novo
Hamburgo.
Maria do Carmo Bittencourt (Brasil - OSCIP Guayí |Democracia,
Participação e Solidariedade)
Assessoria e articulação nacional da Rede de Economia Solidária e Feminista - RESF,
mantida pela OSCIP Guayí.
LINKS
PARA MAIS INFORMAÇÕES
Blog do Seminário
compartilharetrocar.wordpress.com
Artigo de Camila Gonzatto no site do
Instituto Goethe
http://www.goethe.de/ins/br/lp/kul/
dub/med/pt14941748.htm
Vídeo produzido durante o Seminário
https://goo.gl/bcHhhf
Livros Moneda Social y mercados
solidarios I e II de Ricardo Orzi
https://unlu.academia.edu/
RicardoOrzi
Clube de Trocas de Novo Hamburgo
http://cirandas.net/pampavivo
Núcleo de Estudos em Gestão
Alternativa da UFRGS
https://www.ufrgs.br/
gestaoalternativa/
Guayí - Democracia, Participação e
Solidariedade
http://guayi.org.br
Foto: Aline Bueno
5. The Currency Lab Game
Por Lenara Verle
O Vila Flores é um centro cultural independente e espaço
criativo que está desenvolvendo sua moeda própria no sul do
Brasil, em Porto Alegre. A moeda se chama “Tigrão”, nome do
simpático cachorro pit-bull da vizinhança. Em parceria com o
Instituto Goethe, eles promoveram o evento “Compartilhar e
Trocar”.
Após dois dias de painéis e discussões sobre economia e
moedas comunitárias, o terceiro dia teve um formato mais
interativo, através do jogo de tabuleiro CurrencyLab (Laboratório
de Moedas). No jogo há cartas apresentando desafios, que
devem ser vencidos através das cartas de estratégias sorteadas
para cada grupo de jogadores. Ambos são baseados em
situações reais enfrentadas por moedas alternativas atuais e
históricas.
Através do jogo iniciamos uma discussão sobre os possíveis
desafios que o time poderá enfrentar durante o desenvolvimento
de sua moeda.
Em uma das rodadas do jogo, um dos grupos escolheu a
estratégia de “enquadrar sua moeda como um projeto de arte
para receber financiamento”. Durante a discussão, a estratégia foi
questionada por uma integrante de outro grupo que tem
experiência prática em solicitar financiamento para projetos
artísticos através do Ministério da Cultura. Ela alertou que seria
difícil enquadrar esse projeto nas regras dos editais de
financiamento atuais. Como resultado, o grupo acabou optando
por uma estratégia alternativa.
O jogo foi originalmente criado em inglês, e em outras
ocasiões havíamos jogado em alemão, porém com as cartas em
inglês e traduzindo à medida que jogávamos. Neste caso, como o
grupo era grande e não havia tantas pessoas fluentes em inglês,
achamos melhor imprimir uma versão em português das cartas.
Apesar de ser uma tradução preliminar, a idéia é lançar em breve
a versão oficial do jogo em português, e também em alemão.
Link para download do jogo:
www.coinspiration.org/game
Foto: Aline Bueno
O jogo é desenvolvido por Lenara Verle, artista e pesquisadora em arte e tecnologia e professora licenciada da UNISINOS, no curso
de Comunicação Digital. Cursa doutorado em História da Arte na Frankfurt Universität, Alemanha e é mestre em Media Studies pela
New School University, New York.
Contato: lenara@coinspiration.org
Fotos: Ilan Katin
6. DEPOIMENTOS
“Como interessada no assunto, mas praticamente
leiga, finalizo a experiência com a felicidade de
poder ter aprendido tanto e através de pessoas que,
unindo teoria e prática, nos mostraram que um
modelo de consumo e de relações comerciais mais
humano é perfeitamente possível.”
Karin Yuki Lopes
“Achei Currency Lab um jogo muito
interessante. Gostei dos propósitos,
das estratégias e dos desafios. Sair
da zona de conforto para buscar
soluções nem sempre ‘on the box’
nos obriga a sermos criativos e
inovadores. Parabéns.”
Debora Chaves Herjean
“O conflito vem com o tempo. Vimos que no início
estávamos todos concordando com as decisões, mas
por falta de segurança. No final já discordávamos e
conseguimos ver outras saídas. Entendemos que o
consenso sem debate também não é sempre a
melhor saída.”
“Encontré al seminario muy productivo tanto em términos
academicos como desde la práctica. En este sentido se constata
que la idea de crear una moneda es un proyecto que mobiliza
mucho a los grupos. Y aquí en Vila Flores, donde los proyectos
están funcionando, se creó un ambiente de trabajo muy
interesante que será óptimo para seguir en el proceso de la
creación de esta moneda ‘cultural’.”
Ricardo Orzi
“A economia de trocas de saberes que se
criou nestes três dias de seminário reflete
muito a necessidade que temos de criar
relações não baseadas apenas no valor
monetário. Reflete nosso desejo humano
constante de criar, interagir e fazer
intercâmbios que fortaleçam os nossos laços
de humanidade. Penso que é destes laços e
experiências que precisamos nos alimentar
para seguir vivendo a abundância e não a
escassez.”
Antonia Wallig
Foto: Aline Bueno
7. Nas minhas ponderações anteriores – no meu livro The
Spectre of Capital, do original em alemão Das Gespent des
Kapitals – tentei demonstrar essencialmente duas coisas: primeiro,
como a economia clássica, neoclássica, bem como a liberal
poderia ser vista como a soma da ilusão teórica, da utopia social e
da moralidade burguesa; como a economia se estabeleceu dessa
forma, chegando à teoria dos mercados eficientes, o dogma de
que os mercados e, em específico, os mercados financeiros se
caracterizam pela igualdade de seus jogadores, que têm o mesmo
acesso à informação – para garantir a melhor distribuição de
oportunidade possível e a perfeita alocação da riqueza. O outro
aspecto que foquei é o fato de que os modelos discutidos nessas
teorias econômicas, essencialmente modelos de balanço e
equilíbrio, não conseguem entender o que aconteceu, de fato,
nesse tipo de mercado financeiro nos últimos 30 anos. Além disso,
esses modelos provavelmente contribuíram significativamente para
a produção da mesma instabilidade que eles têm tanto problema
em explicar. As teorias populares que correspondem a esses
modelos se mostraram ingênuas, ignorantes, cegas ou
simplesmente insensíveis às dinâmicas e dramas dos mercados
financeiros nas últimas décadas, em que crises financeiras não
foram a exceção, mas sim a regra. Esta visão cética – tenho essa
impressão – está agora lentamente se fazendo notar mesmo na
própria economia.
Hoje (com relação ao recente livro The Sovereignty Effect),
gostaria de tentar apresentar uma perspectiva diferente e
modificada. Gostaria que vocês voltassem a atenção para outro
assunto, focando em duas coisas, a saber, as particularidades do
poder e as relações de poder no regime econômico atual e a
distorção correlacionada nos processos de tomada de decisão
política com relação à economia, uma distorção que foi
substituindo a última dita crise e se tornou óbvia e dramática. Eu
também gostaria de apresentar a minha tese ou hipótese: o atual
regime econômico – que podemos ou, de fato, devemos chamar de
capitalismo –, este atual regime econômico produz “efeitos de
soberania” descontrolados e incontroláveis, que determinam
diretamente o destino de nossas sociedades. Essa é a tese, mas é
claro que tratarei aqui menos de respostas do que de perguntas e
apresentarei significativamente mais perguntas que respostas.
Para começar, gostaria de relembrar como a atual crise se
desenvolveu ao longo dos últimos cinco anos, quais são as fases
dessa crise, qual o potencial para escalação, quais dinâmicas de
escalação se tornaram evidentes. Vocês vão lembrar: tudo
começou com a crise da dívida privada, isto é, com o colapso do
mercado hipotecário norte- americano em 2007 e 2008. Após esse
primeiro momento, ela se transformou rapidamente em uma crise
global de liquidez, que se deveu em grande parte à estrutura dos
mercados financeiros, isto é, à interdependência dos grandes
jogadores e suas práticas comerciais correspondentes,
especialmente o comércio de derivativos. Essa foi a segunda fase.
Agora a terceira fase: a crise de liquidez rapidamente se
transformou em uma crise do orçamento público ou uma crise da
dívida de soberania, iniciada por programas de resgate financeiro,
ou na terminologia europeia, “pacotes de ajuda”, através de
várias formas e métodos de resgate bancário e através da criação
de dinheiro barato ou até mesmo de graça. E o quarto e mais
recente acontecimento: tudo isso levou ao que eu gostaria de
chamar de esclerose crescente dos processos de tomada de
decisão política, a uma crise de governança, se vocês preferirem,
combinada com uma difícil ou desconfortável ou nebulosa
distribuição de competências entre autoridades políticas, agentes
econômicos e, claro, procedimentos democráticos. Seria possível
dizer que ela está se tornando uma crise de todo o sistema
capitalista, incluindo suas instituições políticas e fundamentos
legais. Isso fica especialmente evidente na Europa. Com as tensões
entre os governos eleitos, as reivindicações nacionais por
soberania, as autoridades da União Europeia, as comissões de
especialistas e as redes transnacionais (Harold James discutiu isso
profundamente em seu mais recente livro Making the European
Monetary Union) – com essas tensões todas, a Europa é o palco
ideal para esse drama. A Europa é o palco ideal para a esclerose
dos processos de tomada de decisão política, para esta crise de
governança.
Mas talvez já seja possível reconhecer uma quinta e última
fase desta crise. No entanto, o ato final deste drama conclui –
acredito que a crise (ou o que quer que seja) vai servir para
ajudar a restabelecer o mesmo sistema que a gerou. Isso já está
aparente. As pessoas estão trabalhando arduamente para
restabelecer a ordem econômica de 2007, com garantias de
estado, moeda barata, deficit brakes, com ainda mais
conglomeração na indústria financeira e menos agentes
financeiros. 2009 foi um dos melhores anos de todos os tempos
para Wall Street; os funcionários da Goldman Sachs nunca
ganharam tanto dinheiro como em 2009. E em 2010 havia mais
milionários no mundo que em 2007 (mas também houve um
aumento de 60 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza
absoluta, segundo a agência de classificação Cap Gemini). De
qualquer forma, desde 2008 somas gigantescas de dinheiro
público vêm sendo privatizadas com sucesso.
Mas talvez seja possível dizer que entre o colapso de 2008 e
o reinício – que já começou –, que neste intervalo, ficou evidente
que todos os mecanismos, a disfunção e o tumulto foram os
condutores da economia financeira global e vão continuar a
conduzir sua instabilidade também. Acho que também é possível
reconhecer, em um estilo quase de livro didático, as linhas e frentes
problemáticas que irão motivar futuras batalhas políticas ou que
devem, ao menos, motivá-las. E acredito que devemos analisar
aqui, isto é, por esta perspectiva, todas as relações de poder no
regime econômico. É o que gostaria de fazer agora, com três teses
preliminares, talvez ainda incompletas e precisando de uma
revisão.
Primeira tese. Sabemos hoje que as negociações caóticas
para o resgate do Lehman Brothers, em que autoridades dos
governos norte-americanos e britânicos, representantes do Banco
Central, grandes investidores e bancos estiveram envolvidos –
sabemos hoje que essas negociações, que ocorreram entre sexta-
feira, 12 de setembro a domingo, 14 de setembro de 2008,
formam o enredo de um conto digno de Heinrich von Kleist, isto é,
essas negociações se caracterizaram por circunstâncias infelizes,
intenções em parte boas, em parte ruins, por mudanças bruscas de
fortuna, por súbita peripetaia, por acidentes, teimosia mesquinha,
erros e mal-entendidos. E sabemos hoje – o jornalista James
Stewart escreveu uma matéria detalhada no The New Yorker – que
as conversas telefônicas e encontros informais entre Henry Paulsen
(que saiu da Goldman Sachs para se tornar Secretário da
Fazenda), Ben Bernanke, Timothy Geithner, Hector Sants (da
Autoridade de Serviços Financeiros Britânicos), Kennet Lewis
(Presidente do Bank of America), Bob Diamond (Presidente da
Barclays), Warren Buffet, J. Cristopher Flowers e diversos
representantes da JP Morgan, Citigroup, Credit Suisse, Merill
Lynch, Morgan, Goldamn Sachs – que esses encontros e conversas
The Sovereignty Effect
Por Joseph Vogl
8. fracassaram no domingo, por muito pouco, e então colocaram em
movimento a maior crise econômica mundial desde 1929. No fim,
tiveram que admitir: “Não sabemos como isso aconteceu”.
Esse conto financeiro kleistiano parece ser um bom exemplo, uma
boa ilustração de como as decisões de impacto global são
tomadas no regime econômico: em reuniões improvisadas entre
agentes políticos e econômicos, públicos e privados, com um prazo
final ditado pelos mercados financeiros… tudo isso determinou em
setembro de 2008 o destino de nossas economias e sociedades.
Poderíamos dizer que as negociações caóticas durante o resgate
do Lehman Brothers – ou a crise política europeia atual –
representam o que eu gostaria de chamar de uma informalização
de significativas decisões políticas, isto é, uma informalização em
termos tanto de procedimentos quanto de autoridades. Comissões
de especialistas, conselhos governamentais, comitês ad hoc, os
ditos Troikas (na Europa) e outros assumiram de fato o papel de
governo e são legitimados somente pela situação extraordinária,
por eventos extraordinários e estados de exceção. Seria possível
chamar isso de um estilo particular de política, e em termos de
percepção política ou uma taxonomia política, gostaria de
caracterizar essas atividades, esta política de medidas
emergenciais de forma mais precisa – na esperança de encontrar
um conceito significativo para entender esta situação.
A primeira característica e o ponto inicial para a coisa toda é –
como eu já disse – uma situação de emergência, uma situação
excepcional, se preferir, um tipo de estresse político que força a
ação política de uma forma ou outra. Não é possível não agir. Isso
era verdade em 2008 e é verdade hoje, sob a bandeira de salvar
o euro. A primeira característica é a compulsão de agir.
Segunda característica: essa situação incomum se reflete, acredito,
em reações e medidas incomuns ou, pelo menos, nada cotidianas.
Essas medidas – e todos sabem quais são – operam em um espaço
sem regras; elas exploram regras que não estão legalmente
definidas; frequentemente passam por cima de normas legais ou as
suspendem temporariamente; normas como, por exemplo, leis
orçamentárias. E, por fim, elas levam a consequências que são
irreversíveis; elas, portanto, têm um certo senso de finalidade.
Após essas decisões, o mundo está simplesmente diferente.
Terceira característica: essas medidas não somente estão
relacionadas ao interesse público ou ao bem comum (o que quer
que seja), como são legitimadas pelo interesse público e o bem
comum. Mas para ser eficiente, elas devem ser decididas sem o
controle público; pense nas consultas sobre o resgate da Lehman
Brothers, negociações secretas, ou pense sobre as reuniões
secretas do governo no início do resgate ao euro, que só vieram à
luz devido a diversas indiscrições e vazamentos. Seu lugar, seu
palco é obscuro.
Quarta característica, e esta é fundamental: essas medidas devem
obedecer uma determinada economia de tempo. Elas são
prescritas ou ditadas pelas dinâmicas de eventos financeiros, isto
é, pela velocidade desses eventos e seu potencial para súbita
escalação. Em todas essas medidas, sempre é uma questão do
momento kairológico, o kairós, o momento propício: um imperativo
temporal que necessariamente está em desacordo com a
deliberalidade da tomada de decisão democrática, com sua longa
duração e até mesmo atraso, com a aceitação da sociedade civil.
Por um lado, os ditames de curto prazo dos eventos financeiros e,
por outro, a longa duração dos procedimentos democráticos, civis
e mesmo jurídicos para aceitação e tomada de decisão.
Isso necessariamente leva – e esta é uma quinta característica – a
um dilema político, e o uso de medidas extraordinárias – como
tentei delinear aqui – necessariamente colide com as normas
imanentes do próprio sistema político, com as normas dos
procedimentos democráticos, com as normas dos procedimentos
parlamentares, talvez até mesmo com as normas da lei e da justiça
(isto é, as normas do Rechtsstaat: não é coincidência que as
medidas para resgatar o euro foram questionadas na corte
constitucional alemã). Existem, portanto, problemas inevitáveis de
legitimação De fato, existem furos na legitimidade desse estilo de
política.
Por fim, acho que é possível registrar outras duas características:
primeira, estamos lidando com medidas ou decisões em que o
bem-estar de um ou outro grupo social está sendo sacrificado – é
uma necessidade –, pelo benefício do bem comum, pela nação, ou
outro valor maior. Os debates europeus sobre a Grécia
demonstram isso claramente. A Chanceler Angela Merkel colocou
a situação de forma bem direta: “As regras não podem ser
orientadas à fraqueza, mas à força. Esta é uma mensagem difícil.
Mas é uma necessidade econômica. Isso deve ter consequências
para a União Europeia” (James, 384). Nos Estados Unidos, os
resgates financeiros de grandes instituições (como a AIG) foram
feitos às custas de proprietários individuais. Há um sacrifício
“necessário”. E, por outro lado, como já sugeri, o que está
acontecendo aqui é uma prática de governança que se caracteriza
por consórcios de agentes políticos e econômicos, públicos e
privados. Seria quase possível falar enfática e informalmente em
“comitês de bem-estar” ou “soviéticos financeiros”, que
adquiriram, ao menos temporariamente, um poder de ação quase
soberano.
Essas são as características que eu gostaria de usar para descobrir
as políticas de tomada de medidas. Primeiro, uma situação
incomum; e segundo, as medidas incomuns correlacionadas, que,
terceiro, são tomadas sem o controle ou supervisão do público, e
quarto, sob significativa pressão de tempo e com uma certa
coação. Quinto, interesses privados são sacrificados. E sexto, tudo
isso acontece em comitês mais ou menos informais. Se buscamos,
então, uma compreensão conceitual desse perfil de ação, se
presumimos que as análises políticas sempre envolvem trabalho
conceitual, se queremos, então, utilizar uma abordagem conceitual
ou sistemática aqui, precisamos certamente olhar para um campo
mais antigo, para a tradição mais antiga da raison d’etat, ou
“razão de estado”, para um tipo de ação política que busca
reafirmar o status quo – as coisas como estão – por todos os
meios possíveis, independentemente de qualquer forma de
governo. Mas tem mais. Com um pouco de precisão filológica, que
eu gostaria de considerar minha área de expertise, com essa
precisão, todas as características e componentes que tentei
delinear aqui apontam para um tipo de ação que foi descrita por
um bibliotecário e secretário de cardeal francês no século 17 (ele
foi, entre outras coisas, o bibliotecário do Cardeal Jules Mazarin).
Esse bibliotecário, secretário de estado e jurista, que se chamava
Gabriel Naudé, provavelmente não seja tão desconhecido assim.
Em 1639 ele descreveu detalhadamente o tipo de ação que eu
delineei aqui e chamou de coup d’état. Em seu livro
Considérations Politiques sur les Coups-d’État (Considerações
Políticas sobre Golpes de Estado, que foi publicado somente em
uma edição de 20 cópias), Naudé propôs um tipo de mecânica
política ou teoria de forças, uma teoria barroca de poder, um guia
político para o segredo e a prudência, uma ciência política
“agridoce”; e ao fazer isso, ele juntou a maioria dos elementos
que eu descrevi: uma situação de estresse político, casus extremis
necessitate, uma súbita, extraordinária e singular intervenção pelo
regente, o deixar de lado das considerações legais, o sacrifício
necessário dos interesses privados seguindo um critério e a favor
do bem comum e, acima de tudo, correlacionado com o citado
acima, a preservação, não o rompimento, da ordem política atual.
A questão do golpe de estado está relacionada à busca por meios
adequados em um caso concreto para alcançar um objetivo
concreto. É uma questão de ações extraordinárias em situações
9. extraordinárias, que não podem ser generalizadas e, portanto,
permanecem sempre além de qualquer regra, por assim dizer.
E essa seria minha primeira, um tanto enfática, tese, para ter um
panorama claro, talvez mais que nítido, da situação política atual.
A emergência financeira dos últimos anos provocou uma forma de
ação governamental que, em sua lógica, em seu efeito e em sua
informalidade, circula na esfera de um constante coup d’état, um
termo que entendo como técnico, um terminus technicus e não
como polêmico. (A propósito, com o Mecanismo Europeu de
Estabilidade (MEE), o fundo de resgate permanente, cuja
constitucionalidade é frequentemente questionada na Alemanha,
tais estruturas são intencionalmente perpetuadas. O poder de
decisão pertence a um dito “conselho do governante”, que pode
decidir a qualquer momento empregar os fundos, até 700 bilhões
de euros; e os membros desse conselho do governante são
supostamente completamente imunes a qualquer investigação ou
perseguição; ninguém tem poder para mandar contra o que eles
fazem; estão fora de qualquer forma de controle jurídico e
parlamentar: uma organização quase soberana.) Em termos gerais,
estamos lidando com autoridades e procedimentos de tomada de
decisão informais, em que questões de procedimentos democráticos
– por definição – não desempenham mais qualquer papel.
Segunda tese. Considerando tudo, parece-me inútil pensar, como
sempre, no estado e nos mercados, na política e na economia
como opositores ou antagonistas. Pelo contrário, acho que uma
oposição desse tipo – estado e mercado – distorce nossa visão de
prática governamental e tomada de medida econômica. Acredito
que essa oposição não consegue fazer justiça à organização de
poder no sistema econômico atual. E acho que essa oposição
tampouco descreve ou entende suficientemente as dinâmicas e a
história do capitalismo em capítulos como a crise atual. A
propósito, vocês todos sabem que o sistema de mercados
financeiros atual só pôde ser estabelecido na década de 1980, com
a ajuda de frequentes intervenções políticas por Thatcher e
Reagan. E gostaria de relembrar aqui, como exemplo, um 11 de
setembro diferente do que o que vocês lembram. Foi o 11 de
setembro de 1973, o dia do golpe militar no Chile, que possibilitou
a combinação de duas facetas entre governo autoritário e
liberalismo de mercado. No dia seguinte, 12 de setembro, o Chile
tinha um programa econômico de quinhentas páginas, o chamado
“tijolo”, ditado pela Escola de Chicago, sob a liderança de Milton
Friedman. Este documento continha tudo que nos diz respeito hoje,
e que também concerne o Chile hoje: privatização de empresas,
privatização da educação, da saúde e do cuidado ao idoso,
desregulamentação dos mercados, especialmente mercados
financeiros, cortes orçamentários para programas sociais e, claro, a
destruição dos sindicatos chilenos. O que quero sugerir é: esse e
outros exemplos, bem como nosso sistema econômico como tal,
aparecem para exigir uma perspectiva fundamentalmente
estereoscópica, que pode acompanhar a coevolução dos estados e
mercados, das estruturas políticas e das dinâmicas econômicas. O
desenvolvimento do capitalismo como um todo – aqui eu sigo as
instruções de autores como Braudel e Wallerstein – só pode ser
explicável por uma sinergia de instituições políticas e forças
econômicas; o desenvolvimento do capitalismo – como na Holanda
nos séculos 16 e 17, que Marx chamou de “nação capitalista por
excelência” – se deve a uma acumulação de riqueza, que só foi
possível pelas redes financeiras, instituições de crédito público,
estruturas monopolísticas e garantias de estado. Uma associação
entre empresários holandeses, por exemplo, que foi uma das
primeiras empresas com ações, a Companhia das Índias Orientais,
recebeu imediatamente poderes de soberania (o direito de entrar
em guerra e de assinar tratados) na Índia Oriental – e essa foi uma
das primeiras grandes empresas a acumular incríveis riquezas.
E esta ligação, se posso acrescentar, já era parte da doutrina do
assim chamado liberalismo, por sua história e seu formato atual. O
que é chamado liberalismo, o que é chamado de liberalismo
econômico, historicamente nunca existiu como a regra que obedece
a mecanismos puros de mercado. Muito pelo contrário. Desde o
século 18, o foco do liberalismo é tentar regular o campo social
totalmente através de princípios econômicos. Desde o surgimento
dos estados territoriais europeus, boa governança significa
governança econômica. E isso queria dizer uma transformação
significativa das estruturas de comando e de controle. O liberalismo
desde o século 18 é indissociável de um estilo de governo que, ao
introduzir estruturas de mercado, espera uma otimização da prática
de governança por si só. O mercado deve supostamente completar
e aperfeiçoar as práticas governamentais. Isso se torna ainda mais
evidente, eu acho, nos programas e práticas atuais do que se
chama neoliberalismo. Desde a década de 1980, economistas –
incluindo vencedores do Prêmio Nobel como Gary S. Becker, de
quem vocês podem ter ouvido falar – falam de forma bastante
afirmativa sobre um “imperialismo econômico”, que é a resposta à
questão de como todas as áreas da vida social podem se submeter
aos “princípios econômicos”: educação, saúde, família, procriação,
sexualidade, amizade, relacionamentos, criminalidade, em resumo,
tudo que pode ser chamado de “capital humano”. Preços sombra
são, então, definidos para instituições educacionais; preços sombra
para cuidados com crianças ou altruísmo, com o objetivo de criar
“incentivos” nessas áreas. E desde a década de 1980,
micromercados, concorrência e o barulho da concorrência foram
implantados com sucesso no cerne da sociedade. Por último, mas
não menos importante, a chamada “Nova Gestão Pública” está
tentando trabalhar com as instituições públicas, com as estruturas
administrativas, de forma que possam ser adaptadas e se tornar um
ídolo para o mercado. Quando as pessoas falam em
“governança”, elas querem dizer: a consequente fusão das
estruturas burocráticas com as dinâmicas econômicas. Um aparato
de governo sombrio parece – como Janine Wedel menciona em seu
livro Shadow Elite – não estar diminuindo, mas aumentando.
Minha segunda e agora previsível tese, portanto, seria: a oposição
de estado e mercado, de estruturas políticas e dinâmicas
econômicas, é, no máximo, uma lenda liberalista, que
provavelmente surgiu da batalha bastante legítima contra os
remanescentes do feudalismo e do absolutismo. Esta lenda
certamente teve a função de ser uma narrativa inspirada na
batalha pela liberdade individual e emancipação civil. Mas essa
oposição distorce nossa visão de relações de poder concretas no
“capitalismo democrático”, e no que tange o capitalismo
democrático, estou muito mais interessado nas funções de uma
máquina governamental bipolar, em que política e economia
consequentemente influenciam uma à outra. Essa prática
governamental só pode ser entendida hoje como um complexo
político-econômico. Gostaria de entender isso como um desafio
(ainda não finalizado) a uma teoria política realista: a questão de
como a organização de poder está entrelaçada com a produção
de valor ou de valor sobressalente.
Minha terceira e última tese: considerando esses emaranhados, que
apenas delineei aqui, é possível observar ou registrar uma
mudança desde a década de 1970, penso, talvez até uma drástica
reorganização das relações de poder. Isso se percebe, é claro, no
crescimento do poder de organizações transnacionais, como a
OMC, o FMI, o Banco Mundial, a OCDE, isto é, organizações em
que as políticas de programas de austeridade, de “programas de
ajuste estrutural” iniciaram: a implementação de reformas de
política econômica, mas também, por exemplo, reformas de
políticas educacionais internacionais. Mas acredito acima de tudo
que a liberalização dos mercados financeiros – e isso é
fundamental do meu ponto de vista – aumentou a codependência
entre sistemas de mercados globais e estados nação. A dita
desregulamentação dos mercados, especialmente mercados
10. financeiros, não criou somente novas condições e oportunidades
para o acúmulo de capital; também precisa ser entendido como
uma nova ordem de governo, como a concretização de novas
estruturas na coordenação da economia e do poder estatal.
Chegamos a uma situação que se caracteriza por um financiamento
de instituições e estruturas estatais.
Para onde devemos olhar para ter uma visão de tudo isso, para
registrar essas mudanças na estrutura de poder? Acho que tudo
isso se torna especialmente claro quando vemos o papel, a função
e o status de bancos federais, nacionais e centrais, que
representam um fator essencial nesse sistema. Não gostaria de me
aprofundar mais na história dessas instituições, mas gostaria de
ressaltar que bancos federais e centrais foram criados, em sua
maioria, desde o século 17 como empresas privadas, que então
receberam um monopólio estatal para a autorização de notas
bancárias e dinheiro, um monopólio para a criação de moeda. Este
foi o caso em 1694 com o Banco da Inglaterra, e este foi o caso
muito tempo depois, em 1913 e após longos debates, com o Banco
Central nos Estados Unidos. Mesmo em sua forma, em sua estrutura
institucional, esses bancos centrais são híbridos público-privado,
interfaces público-privado, ou se preferir, conversores entre
interesses públicos e privados. Com esses bancos, uma ligação
fundamental estado-finança se criou. O crédito público, isto é, a
dívida estatal, foi causada não somente pelo estabelecimento de
estados territoriais fortes, mas também por um sistema de impostos
confiável, exércitos, e o poder da seguridade estatal. A função dos
bancos nacionais e o crédito público era poder oferecer garantias
estatais para empreendedores privados e, como vocês sabem, não
é função deles servir como “credor dos últimos recursos”, isto é,
eles regulam a circulação de dívida e crédito; eles são a pré-
condição para o estabelecimento de estruturas de financiamento
estáveis. E acredito que é possível reconhecer nesses bancos a
instalação de um novo contrato social: a instalação de relações de
obrigação econômicas e sociais que estão implícitas na circulação
de crédito, na circulação de dívida. Os bancos centrais são, de
qualquer forma, novos fatores na organização de poderes políticos
e econômicos. Ao menos desde o século 19, uma mudança no
poder de instituições políticas para bancos centrais vem
acontecendo. É interessante que por volta de 1800, observadores
alemães, românticos alemães, os representantes do romantismo
político, como Adam Müller, já diziam, por exemplo, que o Banco
da Inglaterra havia se tornado o verdadeiro “Centro” do Estado
Inglês, que o Banco da Inglaterra era a “personalidade de todas as
pessoas” e o “paladino do bem-estar estatal” e que o crédito
público era, de fato, a alma do estado – os bancos centrais são, de
qualquer forma, as agências centrais do capitalismo financeiro
emergente.
E aqui, acredito, é possível ver uma mudança significativa desde a
década de 1970, isto é, desde o fim do Acordo de Bretton Woods.
Vocês conhecem as consequências do intervalo, o cancelamento
desse acordo. Vou listar alguns elementos fundamentais: taxas
cambiais flutuantes, o desregulamento dos mercados financeiros, a
chamada revolução derivativa, a liberação dos mercados
financeiros a partir da bolsa de valores, a fusão dos mercados de
ação e financeiro (1986), a eliminação do Ato de Glass Steagall
(1999), a multiplicação da razão de volume de troca nos mercados
financeiros para os mercados de bens e serviços – só um exemplo:
em 2007, o volume dos mercados financeiros era 73 vezes maior
que o Produto Interno Bruto (PIB) mundial, mas isso é somente uma
nota de rodapé. Nesses mercados, que vêm emergindo
gradualmente desde a década de 1970, que se estabeleceram na
década de 1990, uma dinâmica se estabeleceu e passou a interagir
diretamente com a função política e pública dos bancos centrais.
Deixe-me concluir, sugerindo rapidamente o que isso envolve.
Novos instrumentos financeiros, derivativos aparecem, e esses
derivativos têm uma capacidade miraculosa e artística – isso é
fundamental – de transformar qualquer forma possível de capital
em dinheiro, isto é, de torná-lo líquido. Esses derivativos funcionam
como substitutos para o dinheiro, como dinheiro em potencial. Isso
significa que os próprios mercados financeiros agora têm a
habilidade de criar dinheiro, de criar liquidez. E isso significa, por
sua vez – e acho que isso não é um show secundário ou subtrama
–, que houve uma transferência do monopólio de liquidez dos
bancos centrais para os mercados financeiros. Seria possível dizer,
portanto: o valor das moedas – e tudo que está atrelado a ele,
todas as consequências que têm para as economias nacionais – o
valor das moedas tem uma nova base; essa base é a
comercialização privada com produtos financeiros privados. Isso
tem, ao menos, três consequências – que posso somente indicar
aqui e fazer generalizações bem amplas (estou me apoiando em
alguns estudos para tal).
Primeiro. Com essa criação de liquidez, isto é, com a eliminação da
fronteira entre dinheiro e capital financeiro privado, a quantia de
dinheiro é liberada do limite atualmente existente. Qualquer
orientação acerca de somas concretas de dinheiro se torna difícil
ou ilusória. E as políticas monetárias de bancos centrais, que ainda
possuem modelos de equilíbrio acionário, essas políticas
monetárias praticamente atingem seu limite. Ou falando de um
modo mais simples: estamos lidando com a incontrolabilidade das
somas de dinheiro em circulação.
Segunda consequência. Bancos centrais começam a assumir um
novo papel. Como ficou evidente na última crise, esses bancos, que
uma vez foram “credores dos últimos recursos”, isso é, uma rede de
segurança para os mercados de capital, tornaram- se investidores
ou tomadores dos últimos recursos. Bancos centrais e estados
monetizaram as obrigações dos mercados de capital, e tornaram-se
jogadores nesses mercados, e isso significa: as dívidas dos bancos
privados são financiadas através de empréstimos em bancos
privados. Estamos, portanto, lidando com processos
contrabalançados, mas conectados. A nacionalização das dívidas
privadas corresponde à privatização das dívidas nacionais. Os
mercados financeiros estão diretamente integrados à administração
das dívidas públicas.
A terceira e última consequência – e acho que essa é a
consequência mais dramática para nós – é que a interdependência
entre dinâmicas de mercado e estruturas estatais intensifica. Ou
mais precisamente, as reservas de soberania estão sendo
transferidas. O financiamento das últimas décadas levou não
somente ao grave acúmulo de capital em determinadas mãos
privadas, como também – na análise de Jeffrey Winters – a uma
poderosa oligarquia, que força uma política radical de “defesa da
riqueza” através de meios democráticos formais. O mercado e seus
agentes tornaram-se uma espécie de Deus Credor, cuja autoridade
formal decide sobre moedas, economias nacionais, sistemas sociais,
infraestruturas públicas, poupanças privadas e mais. Esta é a minha
última tese: a flutuação ou transferência de componentes de
soberania política e o poder de tomar decisões para as dinâmicas,
para as operações e os agentes, para o poder de decisão do
mercado financeiro.
Deixe-me resumir brevemente e então finalizar minha palestra. Com
minhas três teses brevemente analisadas, quis trazer à tona um
pouco das relações de poder em nosso regime econômico,
observando o funcionamento de uma máquina bipolar, que se
caracteriza pela interdependência – também se poderia dizer
interpenetração – do estado e do mercado. Em jogo estavam –
11. deixe-me relembrar as teses – primeiro, uma informalização dos
consórcios políticos e procedimentos de tomada de decisão;
segundo, os imperativos da governança econômica, isto é, a
colaboração de agentes políticos e econômicos (especialmente na
doutrina liberalista); e três, a flutuação ou transferência de reservas
de soberania para as dinâmicas de mercado. Em diversos respeitos,
então, é possível falar aqui – e por isso o título da minha palestra –
dos efeitos da soberania, dos efeitos de um poder de quase
soberania que se libertou de seu código político, formal, legal ou
institucional e uniu a política à instabilidade ou aos riscos dos
mercados financeiros. Vistos juntos, a informalização das decisões
políticas, as máximas da governança econômica e a transferência
de reservas de soberania – tudo representa tanto um desafio
prático quanto teórico. Por outro lado, somente essas intervenções
políticas, que reduzem a dependência das instituições estatais dos
mercados e mercados financeiros em particular podem abrir uma
perspectiva em que os procedimentos de tomada de decisão
retornam ao horizonte do processo democrático. Todos os planos
ou projetos atuais (como os deficit brakes, o “pacto fiscal” na
Europa), todos os “regimes de austeridade” têm um efeito colateral
fatal: eles programam uma ligação direta de economias nacionais e
sociedade ao poder de decisão, mas também à instabilidade dos
mercados financeiros.
Por outro lado – e isso seria uma consequência teórica – a questão
da soberania deve ser separada da aplicação para todos os
propósitos de teorias políticas mais antigas e deve ser reformulada
no terreno político-econômico. A soberania, neste aspecto, não
perdeu somente seu lugar; provavelmente é melhor falar de uma
reserva ambulante de soberania, de um arcano flutuante. E, com
relação à soberania, não é mais o indivíduo que decide sobre o
estado de exceção – como disse Carl Schmitt –, a soberania é
quem faz isso – como nos anos recentes –, transformando seus
próprios riscos diretamente em perigos para todo mundo.
COMUNES | BUENOS AIRES +
KULTURSYMPOSIUM | WEIMAR
Como desdobramentos do Seminário Internacional de
Economia Alternativa, membros da Associação Cultural Vila
Flores foram convidados para participar de dois eventos
promovidos pelo Instituto Goethe e seus parceiros na
Argentina e na Alemanha.
Em maio de 2016, acontecerá o Encontro Internacional
Comunes em Buenos Aires, na Argentina. Na ocasião,
também estará presente Ricardo Orzi. Durante quatro dias,
serão tratados os seguintes temas: economias colaborativas,
cultura livre, produção de pares, cultura cooperativa, novos
direitos, tecnologias colaborativas, abundância, comunidade,
cultura de redes e economias emergentes.
Site do evento: http://encuentrocomunes.com
Já o Kultursymposium, em Weimar, tratará do tema "The
Sharing Game: Exchange in Culture and Society," de 1 a 3 de
junho de 2016 e reunirá artistas, jovens acadêmicos e
estudantes com especialistas e líderes de todo o mundo. O
filósofo e estudioso Joseph Vogl também participará do
encontro. Além do clássico formato de palestras e painéis de
discussões, o evento contará com metodologias de diálogo
como os Worldcafes, performances e intervenções artísticas.
Site do evento: http://www.goethe.de/ges/prj/ksw_neu/
12. Correalização:
COMPARTILHAR E TROCAR
Seminário Internacional de Economia Alternativa
Goethe-Institut Porto Alegre
Rua 24 de Outubro, 112. Bairro Independência. POA/RS.
http://www.goethe.de/ins/br/poa/ptindex.htm?wt_sc=portoalegre
Associação Cultural Vila Flores
Rua São Carlos, 759. Bairro Floresta. POA/RS.
www.vilaflores.net