2. PREFÁCIO ... 11
CAPÍTULO I - O Centenário da Loja ... 13
CAPÍTULO II - Todos À Mesa ... 25
CAPÍTULO III – Karel ... 35
CAPÍTULO IV - A Relojoaria ... 47
CAPÍTULO V - A Invasão ... 58
CAPÍTULO VI - O Quarto Secreto ... 71
CAPÍTULO VII – Eusie ... 82
CAPÍTULO VIII - Nuvens Escuras ... 99
CAPÍTULO IX - A Batida ... 111
CAPÍTULO X - Scheveningen, a Penitenciária ... 121
CAPÍTULO XI - O Tenente ... 139
CAPÍTULO XII - Vught, o Campo de Concentração ... 147
CAPÍTULO XIII - Ravensbruck, o Campo de Extermínio ... 163
CAPÍTULO XIV - A Blusa Azul ...175
CAPÍTULO XV - As Três Visões ... 191
Epílogo ... 207
Três Maneiras de Aplicar a Mensagem Deste Livro À Sua
Vida ... 209
***
O Refúgio Secreto
Uma história como esta, com elementos de “suspense”, ternura,
humor e terror, só aparece uma vez em cada geração.
No início de O Refúgio Secreto, a Corrie deixa escapar o
grito: “Ah! Pai, Betsie, se eu soubesse, teria eu feito o que
fiz? Teria eu tido coragem? Mas como poderia eu prever? Como
poderia eu supor que esse velhinho de cabelos brancos, a quem
todas as crianças de Haarlem chamavam avô, seria sepultado
por estranhos, num túmulo desconhecido?
“E Betsie, com o seu vestido de gola de renda e o dom de
difundir beleza ao seu redor, como poderia ela pensar que a
pessoa a quem eu mais queria, seria forçada a aparecer nua
numa sala cheia de homens?”
Estas coisas aconteceram - e outras piores - e desse grande
sofrimento saiu uma das mais notáveis mulheres do nosso
tempo, trazendo uma mensagem que precisa ser ouvida por todos
aqueles que se esforçam para encontrar uma vida com mais
sentido neste conturbado século XX. Estes terríveis
acontecimentos narrados em O Refúgio Secreto não pertencem
apenas a um momento da História, mas a todos os que se lhe
seguiram.
Com a facilidade de ver sempre o lado prático de tudo, o que
a tornou uma das mais procuradas conferencistas dos nossos
dias, a Corrie mostra-nos como podemos amar a quem nos odeia,
3. como podemos entrar no céu estando no meio do inferno, como
podemos manter a lucidez num mundo que perdeu a razão.
O Refúgio Secreto é um livro que o leitor não abandona
facialmente. Somente depois de ler a última página é que se
apercebe de que o que leu não é apenas uma aventura
emocionante. Nas nossas mãos encontra-se a chave da solução
dos nossos problemas.
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Prefácio
Durante todo o tempo em que fizemos os nossos trabalhos de
pesquisa para o livro O Contrabandista de Deus, um nome
desapontou várias vezes: Corrie ten Boom. Essa mulher
extraordinária - que estava com os seus setenta e cinco anos
quando ouvimos falar dela pela primeira vez - era o melhor
“companheiro de viagem” do Irmão André. As histórias
fascinantes que este nos contou a seu respeito, no Oriente -
onde era conhecida pelo nome honroso de “Velha avó” - e
noutras partes do mundo, vinham-lhe à memória com tal
frequência, que acabamos por lhe pedir que parasse com aquela
torrente de recordações. “Ela não vai poder figurar neste
livro”, dissemos. “Ela sozinha é um livro!”
São estas coisas que a gente diz sem querer insinuar nada.
Em Maio de 1968, estávamos na Alemanha, e fomos assistir ao
culto numa certa igreja. Um homem estava a contar os horrores
que tinha sofrido num campo de concentração nazista. A sua
expressão era ainda mais eloquente do que as suas palavras;
os olhos guardavam a lembrança da dor; as mãos tremiam - mãos
que não conseguiam esquecer... Seguiu-se lhe no púlpito uma
mulher de cabelos brancos, alta e forte, calçando sapatos
grossos, cujo rosto, pelo contrário, irradiava alegria, paz e
amor. Ela relatava os mesmos factos. Também ela tinha estado
num campo de concentração, também tinha presenciado as mesmas
cenas brutais e sofrido as mesmas perdas. Enquanto que os
sentimentos dele eram perfeitamente compreensíveis, os dela
davam que pensar.
Terminado o culto, deixámo-nos ficar para lhe falar. Assim
que principiamos a conversa, percebemos logo que se tratava
da Corrie ten Boom, de quem o André nos tinha falado.
O maravilhoso ministério de consolar e aconselhar da Corrie
ten Boom tinha começado no campo de concentração, onde ela
encontrou um “... Esconderijo contra o vento... Refúgio
contra a tempestade... Sombra de grande rocha em terra seca”.
Ali
4. 12
também aprendeu a verdade de que, quando o pior acontece, o
melhor ainda está para vir.
Em palestras posteriores, chegamos a conhecer bem esta mulher
admirável. Com ela visitamos a casa estreita, tipicamente
holandesa - apenas uma sala a toda a largura - onde, até aos
cinquenta anos, ela levou uma vida pacata de solteirona, a
concertar relógios e a cuidar da irmã mais velha e do pai
idoso, sem nem sequer sonhar que um mundo de aventuras e
desventuras lhe estava a bater à porta. Visitamos aquela casa
do sul da Holanda, em cujo jardim a jovem Corrie entregou ao
Karel o seu coração, e também a espaçosa mansão de Haarlem,
onde, em plena guerra, o Pickwick serviu bom café aos amigos.
E no meio de tudo isso, tivemos a nítida impressão de que não
olhávamos para o passado, mas sim, para o futuro. Era como se
aqueles lugares e aquelas pessoas nos estivessem a falar não
sobre factos já passados, mas sobre o mundo que nos esperava,
na década de 70. Já demos, algumas vezes, connosco a pôr em
prática os segredos espirituais que com ela aprendemos a
respeito de como suportar uma separação;
Como se contentar com pouco;
Como se sentir seguro no meio da insegurança;
Como ter forças para perdoar;
Como Deus usa as fraquezas;
Como lidar com pessoas problemáticas;
Como encarar a morte;
Como amar os inimigos;
O que fazer quando o mau é vitorioso;
Mencionamos o facto de que tudo o que nos contava era muito
prático, e que essas lembranças do passado estavam a lançar
luz sobre alguns dos nossos problemas actuais. “Mas é para
isso que o passado serve”, respondeu. “Cada experiência que
Deus nos concede, cada pessoa que passa pela nossa vida, faz
parte da nossa preparação para um futuro que somente Ele vê”.
Cada experiência, cada pessoa: o pai, que era o melhor
relojoeiro da Holanda, mas que sempre se esquecia de mandar
as contas dos consertos; A mãe, cujo corpo se lhe tornara em
prisão, mas cujo espírito vagueava livremente; A Betsie, que
com três batatas e um bocadinho de folhas de chá já usadas,
sabia organiza uma festinha. Ao fitar os olhos brilhantes
daquela mulher forte, quase desejamos que essas pessoas
tenham feito parte da nossa vida também.
Depois, naturalmente, vimos que afinal faziam John e
Elizabeth Sherríll.
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5. CAPÍTULO I
O Centenário da Loja
Saltei da cama naquela manhã com uma preocupação - o dia
estaria claro ou não? Na Holanda em Janeiro, geralmente o
tempo e úmido, frio e o céu fica nublado. De vez em quando,
porém, num raro dia de magia e encanto, brilha um sol de
inverno. Cheguei à janela do quarto, e debrucei-me até onde
pude. Do Beje era sempre muito difícil ver o céu. Dei com uma
parede de tijolos, que era o fundo douta construção antiga
desse atulhado centro de Haarlem. Esticando o pescoço ao
máximo para ver melhor, consegui divisar, lá em cima, uma
nesga do céu cor de pérola, por sobre o emaranhado dos
telhados e chaminés tortas. O dia da nossa festa ia ser
calorento.
Tirei o meu vestido novo do nosso velho guarda-roupa de pés a
abanar, encostado a parede, e ensaiei uns passos de valsa. O
quarto do pai era por baixo do meu, mas aos setenta e sete
anos, ele dormia a bom dormir."Esta era uma das vantagens da
velhice", pensei, enquanto enfiava os braços pelas mangas e
dava uma olhadela ao espelho para ver como estava.
Embora em 1937 algumas mulheres já usassem as saias pela
altura dos joelhos, eu ainda usava a minha bem compridas.
Tu não estas a ficar nada nova, comentei para mim mesma.
Talvez fosse o facto de vestir um vestido novo que me levasse
a olhar para mim mesma com um pouco mais de atenção do que
geralmente fazia quarenta e cinco anos, solteira, e já meio
pesadona.
A minha irmã Betsie, embora fosse sete anos mais velhos do
que eu, ainda era graciosa e esbelta. Às vezes, as pessoas
paravam na rua para a admirarem. Sei muito bem que não era
por causa da roupa. A nossa relojoaria nunca nos permitira
muito luxo, mas quando a Betsie vestia um vestido novo,
parecia que ela sofria uma transformação.
Comigo - antes que a Betsie resolvesse modificar-me - era
muito diferente: as bainhas dependuradas, as meias rasgadas,
a gola torta. Desta vez,
porém - pensei afastando-me do espelho o máximo que me
permitia o pequeno espaço do quarto - o efeito daquele
vestido novo, castanho-escuro, era excelente.
Lá em baixo a campainha tocou. Convidados, já! Abri a porta e
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desci rapidamente a escada em espiral e íngreme. Essa escada
6. não tinha sido feita quando a casa, de início. Na verdade,
havia duas casas. A da frente tinha a estrutura típica das
casas de Haarlem - três andares, duas divisões no comprimento
e uma na largura. A certa altura da sua existência, a parede
de trás tinha sido demolida para que ela fosse unida à que
lhe ficava ao fundo, e que era ainda mais estreita e esguia -
tinha apenas três quartos, uns sobre os outros. Entre as duas
casas, estavam à escada estreita, em caracol.
Embora eu tivesse descido depressa, a Betsie chegou à porta
primeiro. Um ramo enorme tapava a entrada. Assim que ela o
segurou, o rapazinho que o trouxe apareceu detrás dele.
"Lindo dia para a festa", disse, procurando olhar para dentro
da sala como se o café e o bolo já estivessem servidos. Mais
tarde, ele viria, assim como, ao que parecia, toda a gente de
Haarlem.
Procuramos o cartão entre as flores.
"Pickwick!" Gritamos ao mesmo tempo.
O Pickwick era um freguês nosso, imensamente rico; era ele
quem comprava os nossos melhores relógios. Muitas vezes,
subia connosco à parte residencial da casa, que ficava por
cima da loja. O seu verdadeiro nome era Herman Sluring, mas,
entre nós, chamávamos-lhe Pickwick, porque se parecia muito
com o desenho que ilustrava um dos nossos volumes de Dickens.
Herman era, sem dúvida, o homem mais feio de Haarlem. Baixo,
muito gordo, calvo e tão estrábico que, ao falarmos com ele,
nunca sabíamos se estava a olhar para a gente ou para a
pessoa do lado; tinha tanto de bom e generoso como de feio.
As flores tinham sido entregues na porta lateral que era
utilizada pela família e que dava para um beco estreito.
Levamos o ramo para a loja. Primeiro chegava-se à oficina dos
consertos. Ali estava a banca alta do pai, na qual ele
trabalhara durante tantos anos, para executar o seu trabalho
delicado e minucioso, considerado um dos melhores da Holanda.
Ao centro, estava a minha banca; junto à minha, estava a do
Hans, o aprendiz, e, próximo da parede, a do velho
Christoffels.
Na frente, ficava a parte comercial, com o balcão de tampo de
vidro, cheio de relógios, e onde atendíamos os fregueses.
Todos os relógios de parede davam às sete horas quando ali
entramos com a "corbeille" e começamos a ver qual seria o
melhor lugar para a colocar. Desde criança que gostava muito
de entrar naquela sala e ouvir o murmúrio agradável de
centenas de tique-taques. O aposento estava escuro, pois os
estores das janelas ainda se encontravam descidos.
Destranquei a porta e saí para a rua. As outras lojas, o
oculista que ficava ao lado, a de roupas, a padaria e a casa
de peles do outro lado da rua, estavam ainda fechadas e sem
7. sinal de vida.
Afastei os estores e fiquei algum tempo a admirar a montra de
que, agora, tanto eu como a Betsie gostávamos. Estávamos
sempre a ver qual seria a melhor maneira de a arranjar. Eu
gostaria de colocar ali muitos
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relógios, tantos quantos ela comportasse, mas a Betsie
afirmava que seria melhor expor apenas dois ou três dos mais
bonitos, talvez sobre um fundo de cetim ou
seda,artisticamente arranjado. Esse arranjo, dizia ela, seria
mais elegante e atraente. Dessa vez, porém, estivemos de
acordo. Pusemos ali uma coleção de relógios - despertadores e
de bolso - todos com pelo menos cem anos de idade, que
havíamos pedido emprestados aos amigos e conhecidos que
possuíam lojas de antiguidades. Comemorávamos nesse dia o
centenário da loja. Fora nessa data, em Janeiro de 1837, que
o pai do meu pai colocara na janela a placa: Relojoaria ten
Boom.
Ouvi os sinos das igrejas de Haarlem baterem às sete horas
durante os dez minutos seguintes, dando uma demonstração de
completo desdém pela precisão do tempo. Por último, na
praceta a meio quarteirão abaixo, o grande sino da Igreja de
São Bravo deu as sete pancadas. Deixei-me ficar para ali a
contá-las, embora estivesse muito frio naquela manhã de
Janeiro. Agora, em Haarlem, toda a gente tinha rádio, mas eu
lembrava-me do tempo em que a vida da cidade era regulada
pelo sino de São Bravo.
Apenas os funcionários do caminho de ferro e outras pessoas
que precisavam saber a hora exacta vinham à nossa loja
consultar o relógio astronômico. Todas as semanas, o pai ia a
Amsterdã, de comboio, para acertar o seu cronômetro pelo
Observatório Naval. Ele tinha muito orgulho pelo facto do
relógio astronômico nunca se atrasar nem adiantar mais do que
dois segundos por semana. Voltei a entrar na loja. Lá estava
ele, brilhando no alto do seu pedestal, mas agora sem
qualquer importância.
Novamente a campainha da porta: mais flores! Aquilo continuou
durante cerca de uma hora - "corbeilles" grandes e pequenas,
trabalhos caseiros e vasos de cerâmica com plantas
ornamentais. Embora a festa fosse em honra da loja, o afecto
da cidade era dirigido ao meu pai. "O bom velho de Haarlem",
era como lhe chamavam; e, pareciam todos dispostos a provar
que ele era querido. Quando a sala da frente e a oficina
ficaram cheias, começamos a levar as coisas para os dois
quartos que ficavam por cima da loja. Esses quartos eram
8. conhecidos por nós como "os quartos da Tia Jans", embora ela
já tivesse falecido há vinte anos. A tia Jans era a irmã mais
velha da minha mãe. Parecia que estava ainda ali, com a
pesada mobília escura que nos tinha deixado. A Betsie colocou
no chão um vaso de tulipas de estufa, deu um passo para trás
e soltou uma exclamação de prazer.
"Corrie, vê como isto alegrou o ambiente!"
Pobre Betsie! O Beje está tão cercado, tão comprimido entre
outras casas que as mudas de flores que ela plantava em
caixas nas janelas, todas as primaveras, nunca se
desenvolviam o bastante para dar flores.
Ás 7:45 chegou o Hans, o aprendiz, e às 8 horas, a Toos,
nossa empregada de balcão e guarda-livros. A Toos era uma
dessas pessoas que estão sempre de má cara. O seu constante
mau-humor impedira-a
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de permanecer num só emprego por muito tempo, até que, há dez
anos atrás, veio trabalhar connosco. A gentil cortesia do meu
pai tinha-lhe abrandado o gênio. Embora preferisse morrer a
admitir isso, ela gostava muito dele, tanto quanto detestava
o resto das pessoas. Deixamos a porta a cargo do Hans e da
Toos e subimos para tomar o café.
Só três pratos pensaram enquanto punha a mesa. A sala de
jantar era na casa de trás, num andar acima do da loja.
Subia-se por um lance de cinco degraus. Com uma única janela
que dava para o beco lateral, esta sala era, para mim, a sala
principal. Quando era criança, tapando a mesa com um grande
cobertor, eu fazia dela a minha tenda ou uma caverna de
piratas. Aqui faziam os meus deveres, quando estudante. Aqui
a mãe lia Dickens em voz alta para nós, nas noites de
inverno, enquanto as brasas da lareira de tijolos estalavam e
cobria de reflexos vermelhos o azulejo que tinha entalhado a
frase: "Jesus é vitorioso!”
Agora utilizávamos apenas uma parte da mesa, eu, o pai e
Betsie; mas, para mim, era como se o resto da família ainda
se encontrasse ali. Dum lado a cadeira da mãe, acolá o lugar
das três tias (mais duas irmãs da mãe que,além da tia Jans,
tinham morado connosco). A minha irmã Nollie sentava-se ao
meu lado, e o Willem, o único filho homem, ao lado do pai.
A Noellie e o Willem já tinham casado há vários anos e tinham
as suas próprias casas; a mãe e as tias já não estavam
connosco, mas ainda me parecia vê-los todos ali.
As suas cadeiras não tinham permanecido vazias por muito
tempo. O pai não suportava a idéia de ter uma casa sem
crianças, e por isso, sempre que ouvia falar dum pequenino
9. sem tecto, uma carinha nova surgia à nossa mesa. Com essa
relojoaria que nunca rendia muito, ele arranjou maneira de
alimentar, vestir e calçar mais de onze crianças, depois dos
seus quatro filhos estarem criados. Agora, porém, também
estes onze tinham crescido e casado ou saído de casa para
trabalhar. Assim, coloquei apenas três pratos na mesa.
A Betsie trouxe café da cozinha, que era contígua à sala de
jantar e pouco maior que um armário embutido, e tirou o pão
da gaveta. Quando ela o colocava na mesa, ouvimos os passos
do pai a descer a escada. Agora ele descia sempre
vagarosamente aqueles degraus em espiral; mas pontual, como
um dos seus próprios relógios, entrou na sala na hora exacta
em que entrava quando eu era pequena: às 8:10.
"Pai", disse eu beijando-o e aspirando o aroma dos charutos
que impregnava a sua barba longa, “o dia da nossa festa está
lindo!”.
Os seus cabelos e barba eram brancos como a nossa melhor
toalha, que a Betsie pusera na mesa para este dia especial.
Os seus olhos azuis, ao fitarem-nos com agrado, através dos
óculos grossos, eram meigos e alegres.
"Querida Corrie, minha Betsie! Como estão bonitas!”
A seguir, sentou-se, inclinou a cabeça e deu graças pelo pão,
e depois continuou alegremente:
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"A vossa mãe teria adorado estes vestidos novos, e ficaria
alegre de as: ver as duas tão bonitas!"
Nós as duas fixamos os olhos no café para não rirmos. Estes
"vestidos novos" eram a tristeza das nossas sobrinhas que
estavam sempre a querer
convencer-nos a usarmos roupas de cores mais claras, saias
mais curtas e decotes mais baixos. Embora fôssemos bem
conservadoras no nosso modo de vestir, a verdade é que a mãe
nunca tivera um vestido mais claro do que esse meu castanho
ou que o azul-escuro da Betsie. No tempo da mãe, as mulheres
casadas e as solteiras de uma "certa idade” só usava vestidos
pretos. Nunca vi a minha mãe nem as minhas tias com vestidos
douta cor.
"A mãe ia gostar de tudo hoje!" Interveio a Betsie. “Lembras-
te como ela gostava de festas?”
A mãe fazia um bolo e um café em questão de instantes. E já
que ela conhecia quase toda a gente em Haarlem,
principalmente os pobres, os doentes e os abandonados, não
havia um dia que não fosse - como ela dizia - "um dia de
festa para alguém".
Nós ficamos a conversar durante o café, como se deve fazer em
10. dias assim, e começamos a recordar o tempo em que a mãe
vivia. Depois retrocedemos mais e falamos do tempo em que o
pai era criança e morava nesta mesma casa.
"Nasci mesmo nesta sala", disse ele como se já não nos
tivesse dito isto uma centena de vezes.”Só que, naquela
época, não era a sala de jantar, era um quarto. A cama era
dentro de uma espécie de armário embutido na parede; não
havia janelas, nem iluminação directa, nem ar puro. Fui o
primeiro que consegui sobreviver. Não sei quantos nasceram
antes de mim e morreram. A minha mãe estava tuberculosa, e
eles não conheciam as regras de higiene, nem sabiam nada
sobre o contágio pelo ar, e não pensavam em afastar as
criancinhas da pessoa doente”. Foi um dia cheio de
recordações, um dia de invocação do passado. Nunca poderíamos
adivinhar, quando estávamos ali sentados - duas solteironas
de meia-idade e um velho - que, em vez de recordações,
estávamos para enfrentar acontecimentos com os quais nunca
tínhamos sonhado. Desventuras e angústias, horrores e
alegrias, aguardavam-nos, dentro em pouco, e não o sabíamos.
Ah! Pai, Betsie, se eu soubesse, teria eu feito o que fiz?
Teria tido coragem?
Mas como poderia eu prever? Como poderia eu supor que esse
velhinho de cabelos brancos a quem todas as crianças de
Haarlem chamavam avô seria sepultado por estranhos, num
túmulo desconhecido? E Betsie, com o seu vestido de gola de
renda a difundir beleza ao seu redor, como poderia ela pensar
que a pessoa a quem eu mais queria, seria forçada a
comparecer nua numa sala cheia de homens? Naquele momento,
naquela sala de jantar, tais possibilidades eram impossíveis.
O pai levantou-se e pegou na velha Bíblia de cantoneiras de
bronze.
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A Toos e o Hans bateram à porta e entraram. Outro regulamento
fixo no Beje era a leitura da Bíblia às 8:30 em ponto, a que
deviam assistir todos os que;
Estivessem em casa. O pai abriu o livro, e eu e a Betsie
contivemos a respiração. Naturalmente, hoje, quando tínhamos
tanta coisa a fazer, ele não leria um capítulo inteiro!
Mas ele já a estava a abrir na passagem de Lucas onde tinha
ficado na
véspera - e o livro de Lucas tinha capítulos tão longos! Com
o dedo no lugar, o pai ergueu os olhos.
"Onde está o Christofells?" Perguntou. O Christofells era o
outro empregado da loja, um velhinho encurvado e miúdo, que
parecia mais velho que o pai, embora fosse dez anos mais
11. novos. Lembrei-me do primeiro dia em que aparecera na nossa
casa, há seis ou sete anos atrás. Estava tão andrajoso e
tinha uma aparência tão infeliz, que pensei que fosse um dos
mendigos que sabiam que o Beje era o lugar certo para se
conseguir uma boa refeição de graça. Estava a ponto de o
encaminhar à cozinha, onde a Betsie tinha sempre uma panela
de sopa quentinha, quando solenemente ele me informou que
estava à procura de emprego e tinha vindo primeiro a nós,
oferecer os seus préstimos. Fiquei, a saber, então, que o
Christofells pertencia a uma classe já quase totalmente
desaparecida, a dos relojoeiros ambulantes, que percorriam o
país a pé, regulando e consertando os relógios de pêndulo que
eram o orgulho de todas as fazendas holandesas. Mas se eu
fiquei surpresa ao ver o ar sério e grave daquele homenzinho
de aspecto miserável, fiquei ainda muito mais ao ver que o
pai lhe deu o emprego imediatamente.
"Estes consertadores ambulantes", disse-me mais tarde, “são
os melhores que existem. Conseguem consertar qualquer defeito
apenas com as ferramentas que trazem consigo”. E isto ficou
provado nos anos seguintes, pois todo o povo de Haarlem lhe
trazia relógios. O que ele fazia com o dinheiro do seu
salário, nunca soube; ele continuava tão mal vestido como
antes. O pai falou-lhe a esse respeito um pouco, mas não
muito, pois, fora o seu desalinho, o traço mais forte da sua
personalidade.
Hoje, pela primeira vez, o Christofells estava atrasado.
O pai limpou os óculos ao guardanapo e começou a ler, fazendo
a sua voz grave demorar-se prazerosamente nalgumas palavras.
Quando chegou ao fim da página, ouvimos os passos arrastados
do Christofells a subir a escada. A porta abriu-se, e todos
nos admiramos. O Christofells estava impecável. Trajava um
fato novo, preto e um colete xadrez, também novo, camisa
imaculadamente branca de colarinho gomado, e gravata
estampada. Esforcei-me para desviar os olhos de tal
espetáculo, pois a expressão do seu rosto proibia-nos
qualquer comentário.
"Christofells, meu prezado amigo", disse o pai na sua maneira
formal e antiquada, "que alegria vê-lo neste... é... dia tão
auspicioso”.E, apressadamente, retomou a leitura
interrompida.
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Antes que ele terminasse o capítulo, as campainhas - da
entrada lateral e da
loja - começaram a tocar. A Betsie correu a fazer mais café e
a meter as "tortas" no forno, enquanto eu e a Toos corríamos
12. para as portas. Parecia que cada pessoa de Haarlem queria ser
a primeira a cumprimentar o pai. Daí a pouco, uma torrente de
convidados estava a subir até aos quartos da Tia Jans, onde
ele se encontrava, meio escondido por entre as flores.
Eu estava a conduzir um dos nossos convidados mais idosos,
pela escada acima, quando a Betsie me segurou no braço.
"Corrie, vamos precisar já das xícaras da Noellie. Como
vamos...?"
"Vou buscar!”. A Noellie e o marido viriam à tarde, logo que
os filhos chegassem da escola. Desci rapidamente, peguei no
casaco e na bicicleta, e já a empurrava pela porta quando a
voz da Betsie me deteve:
"Corrie, o teu vestido novo!"
Dei meia volta, subi ao quarto e mudei o vestido novo pelo
mais velho que possuía; e, saí pedalando pela rua acidentada.
Eu gostava imenso de ir à casa da Noellie. Ela morava a quase
dois quilômetros dali, num bairro afastado daquele velho
centro atulhado de prédios. Lá, as ruas eram mais largas e
rectas, e até o céu parecia mais amplo. Atravessei a praceta
e depois a ponte sobre o canal, e rodei pela estrada,
deliciando-me com o fraco sol de inverno. A Noellie residia
na Rua Bosen Hoven, num conjunto residencial, de casas
geminadas, todas iguais, com cortinas brancas e vasos de
plantas na janela. Enquanto virava a esquina, nunca poderia
imaginar que, num dia de verão, quando os bulbos de jacinto
de um viveiro próximo estivessem prontos para o plantio, eu
travaria a bicicleta e ficaria ali parada com o coração aos
pulos, sem coragem de me aproximar mais, com receio de
enfrentar o que se estava a passar no interior daquelas
cortinas.
Hoje, porém, ziguezaguei pela calçada e entrei pela porta
dentro, sem bater.
"Noellie, a casa já está cheia! Tu precisas ver! Precisamos
das xícaras agora”.
A Noellie veio da cozinha com o rosto redondo corado pelo
calor do forno.
"Já estão arrumadas perto da porta. Ah! Eu queria ir contigo,
mas tenho que acabar de assar os biscoitos, e prometi ao Flip
e às crianças que esperaria por eles”.
"Vocês vão todos, não vão?”
"Sim, Corrie. O Peter também vai”. E ela começou a colocar as
xícaras no bagageiro. Como uma boa tia eu queria amar os meus
sobrinhos igualmente, mas Peter... Bem, Peter era Peter. Com
treze anos, ele era um prodígio;
Musical - embora um bocado maroto - mas era todo o meu
orgulho.
"Ele até escreveu uma música especial para comemorar a data",
13. disse!
20
A Noellie. "Segura aqui. Vais ter que carregar com este saco.
Tem cuidado”.
O Beje estava mais cheio que nunca, quando voltei. No beco
lateral havia tantas bicicletas que tive que deixar a minha à
esquina da rua. O prefeito de Haarlem
já lá estava, de casaca, e com a corrente de ouro do relógio
de bolso bem à vista. Estavam lá o chefe dos correios, o
condutor do carro, e meia dúzia de guardas, da esquadra
policial que ficava perto.
Depois do almoço, começaram a chegar às crianças e, como
sempre faziam, foram direitas ao pai. As mais velhas
sentavam-se no chão, à volta dele; as menores iam para o seu
colosso porque, além dos seus brilhantes olhos azuis e da sua
longa barba cheirando a charuto, ele carregava consigo o
tique-taque de dezenas de relógios. Um relógio deixado numa
prateleira funciona de maneira diferente do que quando em uso
e, por isso, o pai trazia sempre nos bolsos os que estivessem
a funcionar naquele momento. Todos os seus casacos tinham
quatro grandes bolsos internos, cada um com doze divisões,
para doze relógios. Assim, onde quer que ele fosse, ia com
ele o alegre ruído de centenas de engrenagenzinhas. Agora,
com uma criança em cada perna, e mais dez à volta, ele
retirou de um dos bolsos a cruzeta de dar corda, cujas quatro
pontas eram de formatos diferentes para servirem em cada
tipo. Com um piparote, fê-la girar rapidamente, brilhando...
Brilhando...
A Betsie parou à porta com uma bandeja de bolo nas mãos.
"Ele nem repara na presença doutas pessoas", disse. Eu estava
a descer a escada com alguns pratos vazios, quando alguém lá
em baixo deixou escapar uma exclamação abafada de espanto, o
que me advertiu que o Pickwick chegara. Nós que lhe queríamos
bem, nunca nos lembrávamos do choque que o seu aspecto
causava aos outros. Corri à porta, apresentei-o à esposa de
um negociante de Amsterdã, e depois o acompanhei lá acima.
Ele afundou o seu corpanzil numa cadeira ao lado da do pai,
olhou-me - um olho em mim e outro no tecto - e disse:
"Cinco torrões, por favor”.
O Pickwick adorava crianças tanto quanto o pai, mas enquanto
estas gostavam do pai à primeira vista, ele tinha de lutar
para as conquistar. Tinha, porém, um truque que nunca
falhava. Entreguei-lhe a sua xícara de café muito doce -
cinco torrões - e vi-o a olhar à volta, simulando grande
consternação.
14. "Mas, Cornélia", exclamou, "não há uma mesa aqui para eu
colocar a minha xícara”.
Correu o olho por perto mais uma vez para ver se as crianças
lhe estavam a dar atenção. "Por acaso eu trouxe a minha
própria mesa!". Em seguida, plantou a xícara com o pires na
sua avantajada pança.
Nunca vi uma só criança que resistisse àquilo. Em poucos
momentos, um bom número delas tinha-se reunido à volta dele.
Mais tarde, a Noellie chegou com a família.
21
“Tia Corrie", gritou-me o Peter com fingida inocência, "mas a
senhora não aparenta cem anos”. Antes que eu pudesse
responder-lhe com um tabefe, já ele estava sentado ao piano
da tia Jans, enchendo a casa com as suas melodias. Algumas
pessoas começaram a apresentar-lhe os seus pedidos: canções
populares, corais de Bach, hinos, e daí a pouco, toda a gente
estavam a cantar.
Quantos de nós que estávamos ali naquela tarde alegre
iríamos, dentro em breve, encontrar-nos novamente em
circunstâncias bem diferentes! O Peter, os polícias, o feio e
querido Pickwick, todos os que estavam ali - e ainda o meu
irmão Willem e a família. Eu perguntava a mim mesma por que
estavam eles tão atrasados. O Willem morava com a esposa e
filhos em Hilversum, a cerca de quarenta e cinco km de
Haarlem, mas, mesmo assim, já deviam ter chegado.
De repente, a música parou, e o Peter, do seu posto elevado
na banqueta do piano, anunciou:
"Avô, vem aí a concorrência!"
Olhei para fora. O Senhor e a Sra. D. Kan, proprietários da
outra relojoaria da rua, estavam justamente a virar a esquina
para entrar no beco. Pelos padrões de Haarlem eles eram
novatos ali, pois se tinham estabelecido em 1910, havia
apenas 27 anos, portanto. Todavia, como eles vendiam muito
mais do que nós, achei que o comentário do Peter era bem a
expressão da verdade. O pai, entretanto, não gostou.
"Concorrente não, Peter", disse-lhe com desaprovação,
"colega!" E tirando dos joelhos a criança que lá estava,
colocou-se no topo da escada para receber os Kan. Ele tomava
as frequentes visitas do Senhor Kan à loja como as de um bom
amigo.
"O senhor não está a ver o que ele quer?" Explodia eu depois
do homem se afastar. "Ele só quer saber os nossos preços para
vender mais barato!"
Na loja dele, os relógios exibiam os preços escritos em
algarismos bem grandes, e sempre cinco guílderes abaixo dos
15. nossos.
O rosto do pai iluminava-se com uma expressão de surpresa,
como sempre acontecia nos raros momentos em que ele pensava
no lado comercial do negócio.
"Mas Corrie, quem lhe compra ganha!" E depois acrescentava:
"Como é que ele consegue vender tão barato?"
O meu pai, como o seu pai também, era totalmente sem malícia
nos negócios. Às vezes, trabalhava dias seguidos num relógio
que apresentava um defeito sério e depois se esquecia de
cobrar. Quanto mais caro fosse o relógio, mais difícil lhe
era pensar nele em termos de dinheiro.
"A gente devia pagar para ter o privilégio de consertar um
relógio destes", dizia ele.
22
Quanto aos seus métodos de apresentação da mercadoria -
durante os primeiros oitenta anos de funcionamento da loja,
as persianas que davam para a rua eram fechadas todos os
dias, às seis horas da tarde. Foi somente quando eu entrei no
negócio, há vinte anos atrás, que notei que algumas pessoas
gostavam de passear pelas ruas estreitas e pelas calçadas, à
noite, e vi que outras lojas deixavam as suas montras abertas
e iluminadas. Quando mencionei isto ao pai, ele ficou
encantado, como se eu tivesse feito uma descoberta
maravilhosa.
"E se as pessoas virem os relógios, pode ser que desejem
comprá-los. Ah! Corrie, que inteligência a tua!”
O Senhor Kan vinha na minha direcção com o seu pedaço de bolo
e os parabéns. A consciência doía-me por causa dos
pensamentos de ciúme que abriguei a seu respeito, e escapei
escada abaixo, metendo-me no meio das pessoas. A oficina e a
loja estavam mais cheias do que os quartos de cima. O Hans
estava a servir bolo na parte de trás, enquanto a Toos fazia
o mesmo na da frente. No seu rosto via-se a sombra de um
sorriso - o máximo que ela permitia aos seus lábios
perpetuamente cerrados.
Quanto ao Christofells - que surpresa! - ele simplesmente se
tinha transfigurado! Era quase impossível reconhecer naquela
majestosa figura que saudava os nossos visitantes à porta,
levando-os a percorrer a loja, o homenzinho encurvado e mal
vestido de sempre. Estava bem claro que este era o maior dia
da sua vida.
Durante toda aquela tarde de inverno, recebemos pessoas que
se contavam entre os amigos do pai Jovens e velhos, pobres e
ricos, homens cultos e empregadinhas iletradas - só que, para
o pai, eram todos iguais. Este era o seu segredo: não é que
16. deixasse de se preocupar com as diferenças entre os
indivíduos; simplesmente não sabia que existiam.
O Willem ainda não tinha chegado. Acompanhei até à porta um
grupo de convidados que se retirava, e fiquei ali alguns
instantes a olhar para a rua. Embora fossem apenas quatro da
tarde, o crepúsculo já descia, e as luzes das lojas já
começavam a ficar acesa. Eu ainda tinha um pouco daquela
admiração de irmã mais nova para com o irmão mais velho. Ele
era cinco anos mais velhos do que eu. Fora o único da família
a cursar a universidade, e era ministro do evangelho, pastor
ordenado. O Willem tinha uma grande percepção das coisas. Ele
sabia tudo o que se passava no mundo.
Muitas vezes eu desejava que ele não tivesse tal visão, pois
muito do que o meu irmão previa era aterrador. Dez anos
atrás, em 1927, ele tinha defendido tese de doutorado, na
Alemanha, e tinha mencionado que havia uma terrível ameaça
pairando sobre aquele país. Ali mesmo na Universidade, disse
ele, estavam sendo lançadas as sementes de um grande desprezo
pela vida humana, tal como nunca se tinha visto antes.
Agora, naturalmente ninguém mais se ri quando se trata da
Alemanha.
23
Os melhores relógios vinham de lá, e, recentemente, algumas
das firmas com as quais havíamos negociado vários anos,
tinham misteriosamente “fechados às portas”. O Willem
acreditava ser isso o resultado de um amplo e deliberado
movimento anti-semítico. Todas as firmas fechadas eram de
judeus. Sendo um dos chefes do trabalho da Igreja Reformada
entre os judeus, ele estava bem dentro de tais assuntos. Meu
bom Willem pensei, ao voltar para dentro e ao fechar a porta;
ele era tão fraco nos negócios da igreja, como o pai era no
dos relógios. Chegou-se a conseguir a conversão dum único
judeu em vinte anos, eu não soube disso. O Willem não tentava
modificar as pessoas, apenas ajudá-las. Ele tinha conseguido
economizar dinheiro e sido até um pouco sovina, para
conseguir juntar o suficiente para construir em Hilversum um
abrigo para judeus idosos, que mais tarde veio a ser para
velhinhos de todos os credos, já que ele era contrário a
qualquer tipo de segregação. Ultimamente, porém, o Lar tinha
ficado cheio de jovens refugiados - todos judeus, e todos da
Alemanha. Ele e a sua família tinham cedido os seus próprios
quartos e estavam a dormir nos corredores. E mais judeus,
apavorados e sem abrigo, estavam a chegar, e narravam factos
incríveis a respeito duma crescente e incrível loucura. Fui à
cozinha, onde a Nollie tinha acabado de fazer mais café e
17. trouxe-o para os quartos da tia Jans.
“O que será que esse homem quer?” perguntei a um grupo de
pessoas reunidas ali, quando colocava o bule na mesa. ”Esse
homem da Alemanha, quer a guerra”.
Sabia que era um mau tema para conversação num dia de festa,
mas a lembrança do Willem levava sempre o meu pensamento a
concentrar-se em assuntos perigosos. Um silêncio pesado caiu
sobre nós e espalhou-se pela sala.
“O que é que isso nos interessa?” ouvi alguém perguntar.
“Deixa esses países grandes lutarem entre si. Não vão
atingir-nos.”
“Isso mesmo”, disse um relojoeiro. “Os alemães que não nos
incomodam com essa grande guerra. Para eles é melhor que
fiquemos neutras.”
“Tu podes dizer isso”, atalhou outro, que era nosso
fornecedor de peças. “Tu compras da Suíça; mas, nós? O que
faço eu se a Alemanha entrar em guerra? Isso arrasaria os
meus negócios.” Naquele momento, o Willem entrou na sala. Com
ele vinha à esposa, Tine, e os quatro filhos. Contudo, quase
todos os olhares se fixaram no homem que o Willem conduzia
pelo braço. Era um judeu de trinta e poucos anos. Usava o
tradicional chapéu de abas largas e o, sobretudo preto,
comprido. Os olhos de todos estavam sobre ele, que
apresentava uma horrível queimadura. Perto da orelha direita
via -se um anel de cabelos grisalhos, como os de um velho. O
resto do queixo era uma chaga viva chegou a Hilversum hoje de
manhã. Gutlieber, este é o meu pai.
24
E depois duma pausa, prosseguiu em holandês: “Este homem
fugiu da Alemanha escondido num caminhão de leite. Ele foi
cercado na rua, em Munique, por uns rapazinhos que deitaram
fogo à sua barba.” O pai levantou-se e apertou a mão do
recém-chegado com muita efusão. Eu trouxe-lhe uma xícara de
café e um prato com biscoitos da Nollie. Nesse momento,
senti-me grata pela insistência do pai em que os seus filhos
aprendessem alemão e inglês e falassem estas línguas tão bem
como o holandês. Gutlieber sentou-se na beira da cadeira,
muito direito, olhando para o café no seu colo. Arrastei uma
cadeira para o pé dele e comecei a falar acerca de qualquer
coisa, sobre o tempo em Janeiro. Imediatamente, a conversação
se generalizou, retomando o volume normal da conversa dum
salão de festas: era um zunzum que subia e depois baixava.
Ouvi um vendedor de relógios dizer:
“Que miseráveis! Vagabundos! Está a acontecer o mesmo em toda
a parte. A polícia vai prendê-los. Sim, porque a Alemanha é
18. um país civilizado.” E foi assim que uma nuvem desceu sobre
nós naquela tarde de inverno de 1937, mas não pesou muito.
Ninguém sonhava que aquela nuvenzinha ia crescer tanto, que
viria a escurecer todo o céu. Nenhum de nós imaginava sequer
que todos tomaríamos parte nela: o pai, o Senhor Kan, o
Willem, e até esse velho Beje, com os seus soalhos
desnivelados e antiquados. À noite, depois de todos os
convidados já terem saído, fui para o quarto a pensar no
passado. O meu vestido novo estava em cima da cama; eu tinha-
me esquecido de o vestir. “Nunca me preocupei nada com
roupas”, pensei, “nem mesmo quando era jovem...”. Recordações
da infância voltaram naquele momento - estranhamente,
pareciam actuais e muito relevantes. Agora eu sei que as
lembranças contêm o segredo do futuro; não do passado, mas do
futuro. Sei que, quando deixamos. Deus usar as nossas
experiências passadas, elas convertem-se em instrumentos de
preparação do trabalho que o Senhor tem para nós. Mas eu não
sabia disso naquele tempo. Nem sabia até tendo uma vida tão
pacata - que haveria um futuro para o qual eu precisaria de
uma preparação especial. E ali deitada no quarto, na parte de
cima da casa, eu só sabia que certos momentos da minha
infância e juventude começaram a destacar-se do fumo do
passado, como se ainda os estivesse a viver, como se eles
tivessem ainda algo para me dizer...
25
CAPÍTULO II
Todos à Mesa
Era o ano de 1898, e eu tinha seis anos. A Betsie colocou-me
diante do espelho do guarda-roupa, e passou-me um sermão.
“Olha para o teu sapato. Faltam metades dos botões. E essa
meia toda rasgada logo no primeiro dia de aulas! Vê como a
Nollie está!”. Encontrávamo-nos no nosso quarto - meu e da
Nollie - que ficava no último andar do Beje. Olhei para a
minha irmã, dois anos mais velha que eu: era verdade. Os
sapatos dela estavam perfeitamente abotoados. Com relutância,
tirei o meu, enquanto a Betsie procurava no armário. A Betsie
tinha treze anos, e, para mim, era quase adulta. Ela sempre
me parecera mais velha, pois nunca tinha podido correr e
fazer algazarra como as outras crianças. Tinha anemia
perniciosa desde o nascimento. Assim, enquanto nós
brincávamos, andávamos com o arco, ou apostávamos na corrida
patinando pelos canais gelados no inverno, ela ficava sentada
em casa, a fazer as coisas enfadonhas, a bordar, por exemplo.
19. A Nollie, porém, brincava tanto como qualquer outra criança,
e era pouco mais velha que eu. Não me parecia justo que ela
fizesse sempre tudo certinho.
“Betsie”, estava ela a dizer, “eu não vou para a escola com
aquele chapelão horrível, lá porque foi à tia Jans quem o
comprou. No ano passado, foi aquele cinzento horroroso, e
agora é este, que ainda é pior”. A Betsie olhou-a com um ar
de compreensão.
“Pois é, mas... Bem, tu não podes ir sem chapéu, e outro não
podemos comprar.”
“Não vai ser preciso”. Dando uma rápida olhadela para a
porta, a Nollie baixou-se, enfiou a mão debaixo da cama
estreita - que era a que o quarto comportava - e puxou de lá
uma caixa redonda e pequena. Dentro achava-se o chapéu menor
que eu já vira. Era de peles e tinha uma fita azul para atar
no queixo.
“Que coisinha mais linda!” A Betsie ergueu-o cuidadosamente
da caixa para o ver melhor à luz da manhã que mal entrava no
quarto.
“Onde é que tu...?”
“Foi a Senhora Van Dyer que mo deu.”
26
Os van Dyer eram os proprietários da chapelaria que ficava
duas portas abaixo da nossa.
“Ela viu que eu estava olhando para este, e depois da tia
Jans já ter comprado aquilo, ela veio cá e deu-me. “ Ao dizer
“aquilo”, a Nollie tinha apontado para cima do guarda-roupa.
Era um chapelão castanho, de abas largas, enfeitadas com um
cacho de rosas de veludo roxo e que revelava claramente quem
o escolhera. A tia Jans, irmã da minha mãe e mais velha do
que ela tinha vindo morar connosco logo que o marido faleceu,
para passar na nossa companhia, como dizia, “os poucos dias
que me restam”, embora tivesse apenas quarenta e poucos anos
de idade. A sua vinda só complicara mais a vida da velha casa
- que já tinha ficado apertada com a chegada, anteriormente,
de mais duas irmãs da mãe, a tia Bep e a tia Anna, pois
consigo ela trouxe várias peças de mobília, todas grandes
demais para as pequenas divisões do Beje. A tia Jans
acomodara-se nos dois quartos do segundo andar da casa da
frente, que ficavam por cima da loja e da oficina. O
primeiro, ela usava-o como escritório, onde produzia os seus
inflamados folhetos evangélicos, pelos quais era conhecida em
toda a Holanda. No outro recebia a visita das damas ricas que
sustentavam a obra. A tia Jans acreditava que a nossa
felicidade no além dependia da quantidade das nossas acções
20. aqui. Para dormir, ela tinha feito, no primeiro quarto, uma
divisão em que cabia só a cama. A morte, dizia ela, estava à
espera para a arrebatar do seu trabalho, e, por isso, as suas
horas de descanso eram breves e poucas. Não me recordo bem
como era o Beje antes da tia Jans chegar, nem sei de quem
eram aqueles quartos antes dela os ocupar. Por cima deles,
tendo por tecto a cúpula triangular do telhado, havia um
longo sótão. Desde que me lembro, este espaço era dividido em
quatro quartos muito pequenos. O primeiro, que dava para a
rua e o único com janela, era da tia Bep. Atrás dele, todos
em fila, vinham os quartos da tia Anna, da Betsie e do
Willem. Subindo-se os cinco degraus para a residência de
trás, chegava-se ao quarto que Nollie e eu ocupávamos. Logo
por baixo dele, estava o quarto do pai e da mãe, e por baixo
deste, a sala de jantar com aquela cozinha que parecia ter-
lhe sido adicionada como uma idéia de última hora. Nunca nos
ocorreu que talvez a porção que coubera à tia Jans, na
distribuição dos quartos dessa casa super populada, fosse
demais. Todos simplesmente “abriam alas” para a tia Jans.
Todo o dia ouvíamos o tropel do carro puxado a cavalos que
passava em frente da nossa casa, e parava na praceta, ponto
de paragem para todos os passageiros. Entretanto, para a tia
Jans, era diferente. Quando ela desejava ir a algum lado,
colocava-se na calçada em frente da loja, e quando os cavalos
se aproximavam, erguia um dos dedos da mão enluvada. Parecia-
me ser mais fácil deter o sol no céu do que fazer parar
aqueles animais, mas,
27
para a tia Jans eles paravam. Os freios gemiam os cavalos
quase amontoavam uns sobre os outros, e o cocheiro inclinava
o chapéu num cumprimento enquanto ela subia para o carro.
Seria diante desse olhar dominador que a Nollie temia passar
com o chapeuzinho de peles. Desde que veio morar na nossa
casa, a tia Jans tomara para si a responsabilidade de comprar
quase toda a roupa para nós, as três meninas. Os seus
presentes tinham - porém, um preço para a tia, o que estava
na moda quando ela era jovem representava a palavra final de
Deus na questão do vestuário. Todas as mudanças que eram
depois tinham vindo directamente dos figurinos do diabo. Num
dos seus conhecidos panfletos, ela indicava os cornos
inventores da manga afofada e da saia-culote.
“Já sei!”gritei, enquanto os dedos ágeis de Betsie coram meu
pé, abotoando-me o sapato. “Tu podias por primeiro o chapéu
peles e depois o chapelão por cima dele. Quando chegasses
fora tiravas o chapelão.”
21. “Corrie!” A Nollie estava positivamente chocada. “Isso não
seria honesto!” Com um olhar de raiva para o chapéu castanno
pegou no chapeuzinho de peles e saiu atrás da Betsie para ir
tomar café. Peguei no meu chapéu - o desprezado chapéu
cinzento do “Ari” anterior - e desci atrás delas, com uma das
mãos no poste central, a” redor do qual as escadas davam as
suas voltas. Então Jelxa a tia Jans “veria” chapéu. Que me
importa? Eu nunca chegaria a compreender todo esse alvoroço
só por causa de roupas. Uma coisa, porém eu compreendia, um
facto terrível e a’’arrematante’’: nesse dia eu começava a
estudar. Deixava esse velho e amado - deixava a mãe e as
tias, deixava tudo o que representava segurança e carinho.
Agarrei o poste com tanta força que, ao contorná-lo ouvi o
“ruído” da palma da mão contra a madeira. Era verdade que a
escola ficava a pouca distância de casa, e a Nollie já a
frequentava há dois anos sem dificuldades. Mas a Nollie era
diferente de mim; ela era bonita bem comportada e estava
sempre arranjadinha. E então, na última volta da escola,
encontrei a solução. Era tão simples, tão clara que ri em voz
alta. Eu simplesmente não ia a escola. Ficaria em casa e
ajudaria a tia Anna na cozinha. A mãe ensinava-me a ler e eu
não precisaria nunca de aproximar-me daquele prédio feio e
ameaçador. Senti um grande alívio invadir-me e desci os três
degraus num salto.
“Ssssssssiiiuuu!” a Betsie e a Nollie estavam a minha espera
na porta da sala de jantar. “Por favor, Corrie, não farias
nada. Para irritar a tia Jans”, disse a Betsie. “Tenho a
certeza de que o pai a mãe e a tia Anna vão gostar do chapéu
da Nollie”, acrescentou, duvidando.
“A tia Bep não vai”, respondi.
“Ela não gosta de nada”, interveio a Nollie.”Ela não conta”.A
tia Bep, com o seu eterno ar de’’’ desaprovação a mais velha
das tias, e aquela de quem nós menos gostávamos. Ela tinha
28
como governanta para algumas famílias ricas e estava sempre a
comparar-nos com as meninas e rapazinhos em cujas casas tinha
trabalhado. A Betsie apontou para o relógio da parede, e com
um dedo nos lábios abriu silenciosamente a porta. Eram 8:12.
O café já tinha sido servido.
“Dois minutos de atraso”, gritou Willem num tom de triunfo.
“Os filhos dos Waller nunca se atrassavam”, disse a tia Bep.
“Mas elas já chegaram!” disse o pai. “E a sala até parece que
ficou mais alegre!”
“A tia Jans vai ficar na cama hoje?” perguntou a Betsie
esperançosa, enquanto pendurávamos os chapéus nos respectivos
22. cabides.
“Ela está na cozinha, a preparar um tônico”, disse a mãe.
Inclinou-se para nos servir café e disse em voz baixa:
“Hoje precisamos ter muita paciência com a tia Jans. É o
aniversário da morte da irmã do marido dela - ou é da prima?”
“Julgava que fosse da tia dele”, disse a tia Anna.
“É da prima dele; e foi uma bênção”, informou a tia Bep.
“Bom; não interessa”,disse a mãe apressadamente, “vocês sabem
que a Jans fica muito nervosa nestes aniversários da morte de
parentes;então,vamos ajudá-la em tudo.” A Betsie cortou três
fatias de pão redondo, enquanto eu olhava ao redor da mesa, a
tentar imaginar qual dos três adultos iria mostrar-se mais
entusiasmado com o meu projecto de não ir à escola. O pai, eu
estava certa de que dava uma importância quase religiosa à
educação. Ele tinha deixado de estudar para trabalhar na
relojoaria, quando era ainda jovem, e, embora tivesse sido um
autodidata, aprendendo sozinho História, Teologia e
Literatura de cinco línguas, ficava sempre muito sentido por
não ter frequentado a escola mais tempo. Ele ia querer que eu
fosse; e, o que ele quisesse, a mãe também queria. E a tia
Anna? Ela tinha dito várias vezes que não poderia passar sem
mim, para as subidas e descidas pela escada com alguns
recados. Já que a mãe não era forte, a tia Anna encarregava-
se da maior parte do serviço pesado para a nossa família de
nove pessoas. Ela era a irmã mais nova e tinha o espírito tão
generoso como o da mãe. Havia uma crença na nossa família de
que a tia Anna recebia pagamento pelo seu trabalho. E era
verdade: todos os sábados, o pai pagava-lhe, fielmente, um
“guílder”. Na quarta-feira, porém, quando passava o vendedor
de hortaliça, muitas vezes ele tinha que pedi-lo emprestados,
e ela ainda tinha aquele dinheiro guardado e intacto. Pois é!
Ela poderia ser a aliada de que eu precisava.
“Tia Anna”, principiei, “estou a pensar em si trabalhando
tanto, todo o dia e eu na escola...” Ouvimos uma respiração
profunda e ruidosa, e todos erguemos os olhos. A tia Jans
estava parada à porta da cozinha, tendo na mão um copo cheio
de um líquido castanho, xaroposo. Ela respirou fundo e fechou
os olhos; levou o copo à boca e bebeu de um golo. Depois deu
um suspiro, pôs o copo sobre o armário da louça, e sentou-se.
“Mas, realmente”, disse, como se estivéssemos a discutir o
assunto,
29
“que é que os médicos sabem? O Doutor Blinker receitou-me
este tônico, mas para que é que os remédios servem? Quando
chega a hora final, nada adianta!”
23. Corri os olhos ao redor da mesa; ninguém sorria. A
preocupação da tia Jans com a morte poderia até parecer
cômica, mas não era. Mesmo sendo tão jovem, eu sabia que o
medo nunca era engraçado.
“Entretanto, Jans”, disse o pai gentilmente, “a medicina tem
prolongado muitas vidas.”
“Não valeu de nada para a Zusje! E ela foi aos melhores
médicos de Roterdam. E foi no dia de hoje que ela morreu, e
nem era mais velha do que eu sou agora. Naquele dia, ela
levantou-se, vestiu-se e tomou café, exactamente como eu fiz
hoje.” Ela já ia lançar-se num relato detalhado do último dia
de vida da Zusje, quando os seus olhos deram com o chapéu
novo da Nollie pendurado no cabide.
“Um gorro de peles nesta época do ano?” perguntou,
desconfiada.
“Não é um gorro, tia Jans”, explicou a Nollie baixinho.
“E pode saber-se o que é?”
“É um chapéu”, respondeu a Betsie. “Foi um presente da
Senhora J van Dyer. Não foi gentileza dela...”
“Ah, não! Ò chapéu da Nollie tem uma boa aba, e é como deve
ser o chapéu de uma menina bem educada. Eu sei disso. Fui eu
quem o comprou e pagou.” Os olhos da tia Jans brilhavam; os
da Nollie marejavam. A mãe veio em seu socorro.
“Não sei bem se este queijo está fresco!” Cheirou o queijo
amarelo, que estava na mesa, e empurrou-o para o pai.
“Que é que tu achas, Cáspio?” O pai, que era incapaz de
dissimular, e mesmo de entender uma dissimulação, pegou-lhe e
cheirou-o aspirando profundamente.
“Está perfeita, querida. Está tão fresco como no dia em que
chegou. O queijo que o Senhor Steerwijk faz é...” Depois,
percebendo o olhar da mãe, voltou-se para a tia Jans meio
confuso. “Ah... Jans, o que é que tu achas?” A tia Jans pegou
na queijeira e olhou-a muito zelosa. Se havia algo que atraía
mais a sua ira que as roupas modernas, era o alimento
deteriorado. Afinal, e quase com relutância, pareceu-me, ela
deu a sua aprovação ao queijo, mas o chapéu estava esquecido.
Ela já enveredara pelo caso duma conhecida sua - “da minha
idade!” - que morrera após ter comido um peixe de aparência
meio duvidosa; e foi aí que os empregados da loja chegaram, e
o pai retirou a Bíblia da estante. Em 1898, havia só dois
empregados na relojoaria: o oficial relojoeiro e o aprendiz,
que também era moço de recados. Depois da mãe lhes servir o
café, o pai colocou as lunetas, e começou a ler: “Lâmpada
para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho...
Tu és o meu refúgio e o meu escudo; na tua palavra eu
espero.”
24. 30
Que tipo de refúgio? Procurei imaginar, enquanto observava a
sua barba a baixar e a levantar, a cada palavra proferida. De
que é que a gente precisa abrigar-se?
Era um salmo muito comprido; ao meu lado, a Nollie começou a
remexer-se. Logo que o pai fechou o livro, ela, o Willem e a
Betsie puseram-se em pé e pegaram nos chapéus. Um minuto
depois, já decepam as escadas, e saíam pela porta lateral. Os
dois empregados da loja levantaram-se também, embora não tão
depressa e seguiram-nos. Foi só então que os cincos adultos
deram comigo ainda sentada à mesa.
“Corrie”, exclamou a mãe, “esqueceste-te que agora já és uma
menina crescida? Hoje vais para a escola também. Depressa,
senão terás que atravessar a rua sozinha.”
“Eu não vou!” Houve um curto silêncio de assombro,
imediatamente quebrado por todos ao mesmo tempo.
“Quando eu era menina...” começou a tia Jans.
“Os filhos da Senhora J Waller...” era a tia Bep. A voz grave
do pai abafou as outras:
“É lógico que ela não vai sozinha. A Nollie estava tão
animada que se esqueceu de esperar, é só isso. A Corrie vai
comigo.” Então ele pegou no meu chapéu, deu me a mão e levou-
me dali. A mão do meu pai! Isso era para irmos ao moinho de
Spaarne ou ver os cisnes do canal. Desta vez, porém, ele
levava-me onde eu não queria ir. Havia um corrimão na
escadinha. Agarrei-me a ele e segurei-me firme. Os seus
habilidosos dedos de relojoeiro envolveram a minha mão e
gentilmente fizeram-na soltar-se. Lutando e gritando, fui
levado do mundo que eu amava para um outro maior, estranho e
perigoso... Às segundas-feiras, o pai ia a Amsterdã para ver
a hora certa no Observatório Naval. Agora que eu começava a
estudar, só poderia acompanhá-lo no verão. Eu descia a correr
para a loja, cabelos escovados, sapatos abotoados, depois de
ter sido declarada passada pela Betsie. O pai estava a dar as
instruções finais ao aprendiz.
“A Senhora Staal vem logo de manhã buscar o relógio dela.
Este aqui é para ser entregue ao Senhor Baker, em
Bloemendaal.” Depois iríamos de mãos dadas para a estação: eu
alargando os passos e ele encurtando-os, para podermos andar
juntos. A viagem para Amsterdã não levava mais que meia hora,
mas era maravilhosa. Primeiro, passávamos pelos prédios
velhos e aglomerados de Haarlem, que, em seguida, davam lugar
a casas mais dispersas, circundadas de pequenos quintais.
Depois, os espaços despovoados aumentavam. Finalmente,
encontrávamo-nos em pleno campo, na região das fazendas,
plana até perder de vista, e cortada de canais tão rectos que
25. pareciam traçados à régua. Por fim chegávamos a Amsterdã, com
a magia das suas ruas e canais, e maior ainda do que Haarlem.
O pai ia sempre com uma ou duas horas de antecedência, para
visitar os armazenistas que lhe forneciam relógios e peças.
Muitos deles eram judeus, e era deles que nós mais
gostávamos. Depois de fazer os negócios, o que levava o
31
menor tempo possível, o pai tirava uma Bíblia pequena da sua
mala de viagem. O negociante, cuja barba era em geral mais
comprida e cheia que a do pai, segurava num livrinho ou rolo,
e punha um barrete no alto da cabeça. Assim os dois
conversavam muito tempo, comparando textos e interrompendo-se
mutuamente - cada um deleitando-se mais com a presença do
outro. Depois, quando eu já estava quase a chegar à conclusão
de que tinha sido totalmente esquecida, o homem levantava os
olhos, via-me - como se fosse a primeira vez - e batia na
testa com a palma da mão.
“Uma visita! Estou com uma visita em casa e não lhe ofereci
nada!” Levantava-se de repente, procurava rapidamente pelos
armários e, daí a pouco, eu tinha no colo um prato cheio dos
petiscos mais deliciosos do mundo: bolos de mel, tâmaras, uma
espécie de docinho de nozes, frutas e açúcar. Sobremesa no
Beje era coisa rara; as delícias como aquelas eram
completamente desconhecidas. As cinco para o meio-dia,
estávamos de volta à estação, aguardando, num ponto
estratégico, o sinal do Observatório Naval. No alto da torre,
de onde podia ser avistada por todos os navios ancorados no
porto, estava a coluna com os dois ponteiros. Ao meio-dia em
ponto, o sinal era dado. Da sua posição privilegiada e tendo
na mão o bloco, lápis e o seu cronômetro, o pai aguardava o
momento, cheio de entusiasmo pela precisão do aparelho. Aí
está! Quatro segundos adiantado! Uma hora mais tarde o
relógio astronômico da nossa loja seria acertado com precisão
de segundos. Na viagem de volta, não olhávamos pela janela.
Conversávamos. Falávamos a respeito dos assuntos mais
diversos, que variavam com o passar dos anos: a formatura da
Betsie no liceu, apesar das muitas aulas perdidas por causa
de doença; e quando o Willem acabasse o liceu, será que
conseguiria a bolsa de estudo para entrar na Universidade? E
a Betsie começando a trabalhar na nossa loja como guarda-
livros. Muitas vezes, eu aproveitava aquelas viagens para
discutir assuntos que me estivessem a perturbar, já que em
casa, tudo o que eu perguntasse era respondido pelas tias.
Certa vez - devia eu ter dez ou onze anos fiz-lhe uma
pergunta sobre um poema que tínhamos lido na escola. Uma
26. frase falava de “um jovem cujo rosto não fora marcado pelo
pecado do sexo”. Eu “receei” perguntar à professora o que
significava aquilo, e a mãe, quando a interroguei, ficou toda
vermelha. Naquela época, nos princípios do século XX, nunca
se conversava sobre sexo, nem mesmo em família. A frase
ficara na minha mente. Pecado, eu sabia, era algo que
irritava muito a Tia Jans; sexo era a diferença entre meninos
e meninas. Os dois reunidos, porém, eu não sabia o que vinha
a ser. Foi assim que, sentada no comboio ao lado do meu pai,
lhe perguntei de chofre:
“Pai, o que é “pecado do sexo?” “ Ele olhou-me como sempre
fazia ao responder a uma pergunta; mas,
32
para minha surpresa, não disse nada.Levantou-se, tirou a mala
do porta-bagagem por cima de nós, e colocou-a no chão.
“Queres levá-la por mim, Corrie?” Pus-me de pé e peguei nela.
A mala estava cheia de relógios e peças que ele tinha
comprado nesse dia.
“É muito pesada”, disse eu.
“E mesmo”, confirmou ele. “E eu seria um péssimo pai se
exigisse que a minha filhinha carregasse com todo este peso.
Com os conhecimentos dá-se o mesmo, Corrie. Algumas coisas
são pesadas demais para as crianças. Quando você for mais
crescida, poderá suportá-las. Hoje, porém, tem que confiar em
mim e deixar que eu as leve por você.” Fiquei satisfeita;
mais que satisfeita, fiquei em paz. Havia resposta para esta
e outras perguntas difíceis que eu tivesse; mas, por agora,
eu estava tranquila por entregá-las aos cuidados do meu pai.
As noites no Beje eram reservadas para receber visitas e
tocar música. Algumas pessoas traziam flautas, outras
violinos, e como cada um da família ou cantava ou tocava um
instrumento, formávamos quase uma orquestra à volta do piano
que havia num dos quartos da tia Jans.Somente quando havia um
concerto na cidade é que não tínhamos a nossa pequena reunião
musical. Não podíamos pagar o bilhete, mas havia uma entrada
lateral para o palco, de onde se conseguia ouvir bem. Do lado
de fora, nós e dezenas de outros amantes da boa música
seguíamos o concerto nota por nota. As mães e a Betsie não
eram muito fortes e não aguentavam ficar lá muito tempo, mas
nós ficávamos ali, à neve e à chuva ou geada. E, enquanto
dentro do salão se ouviam tosses e ruído de pessoas que se
moviam, o grupo que estava à porta não fazia o menor barulho.
Ainda melhor era quando havia um concerto na catedral, pois
um parente nosso era sacristão. Perto da entrada de serviço
utilizada por ele, havia um banco de madeira junto da parede.
27. Nós sentávamo-nos nele, sentindo nas costas o frio das velhas
pedras, mas com o coração aquecido pela música. O som de
algumas notas daquele velho órgão, no qual Mozart tinha
tocado, parecia vir directamente do céu. Eu costumava pensar
que o céu devia ser como a catedral de São Bravo, e mais ou
menos do mesmo tamanho. Eu sabia que o inferno era quente;
então o céu devia ser, como este santuário, frio e úmido, com
o fumo dos aquecedores de pés a subir como incenso. No céu,
eu acreditava, todos teria direito a aquecedores. Até mesmo
no verão, as lajes de mármore do chão eram frias. Quando,
porém, o organista tocava, a gente quase que se esquecia
delas, e se tocasse Bach, então é que se esquecia mesmo. Eu
estava a subir, com a mãe e a Nollie, uma escada cheia de
teias de aranha que se pegavam ao nosso cabelo, e de ratos
que fugiam à nossa aproximação. Essa casa ficava um pouco
distante do Beje e a sua construção era mais recente,
33
mas ali não havia uma tia Anna para lavar e encerar. Íamos
visitar uma família pobre da vizinhança, uma das muitas que a
mãe ““adaptara””. Nós, crianças, nunca percebêramos que
éramos pobres. Pobre era a família a quem se levava uma cesta
de alimentos. A mãe estava sempre a fazer sopas ou papas para
os velhos semi-abandonados ou jovens mães pálidas, isto é
claro, nos dias em que ela própria não se sentia demasiado
fraca para ficar ao pé do fogão. Na noite anterior, o bebê
deles tinha morrido e agora a mãe fazia a visita da praxe,
levando pão fresco que ela mesma tinha feito. Subia
penosamente, parando várias vezes para recuperar o fôlego.
Entramos por uma porta que dava para uma divisão que era, ao
mesmo tempo, quarto de dormir, sala de jantar e cozinha.
Várias pessoas já ali se encontravam, muitas delas de pé, por
falta de cadeiras. A minha mãe encaminhou-se directamente
para a mãe do bebe, mas eu parei à entrada, purificada. À
direita, no seu bercinho de fabricação caseira, estava a
criancinha. É estranho como uma sociedade que escondia das
crianças as verdades sobre o sexo, nada fazia para as
proteger da realidade da morte. Fiquei ali de olhos fixos no
corpinho morto, com o coração a bater fortemente. A Nollie,
sempre mais corajosa que eu, tocou com a mão no rostinho
branco como marfim. Desejei trazer o mesmo, mas, amedrontada
demais, não conseguia. Por alguns instantes, em mim, a
curiosidade lutou contra o pavor. Finalmente, encostei um
dedo na mãozinha cercada. Estava fria quando vínhamos de
volta ao Beje, fria enquanto me lavava para jantar, e fria
ainda no aconchego da nossa sala de jantar iluminada a gás.
28. Aqueles dedinhos gelados interpunham-se entre mim e todos
aqueles rostos queridos à mesa. Apesar da tia Jans falar
tanto na morte, até então ela tinha sido para mim apenas uma
palavra. Agora eu sabia que era algo real - se era real para
aquele bebezinho, então podia ser para a mãe, para o pai,
para a Betsie. Ainda tremendo por causa daquele frio, segui a
Nollie até ao nosso quartinho e enfiei-me na cama ao seu
lado. Por fim ouvimos os passos do pai pela escada acima.
Aquele momento era, para mim, o melhor do dia - ele vinha
ajeitar os nossos cobertores. Nunca dormíamos antes de ele
vir arranjá-los à sua maneira, e colocar as mãos nas nossas
cabeças por um instante. Depois, ficávamos quietas e
procurávamos não nos movermos, nem só um dedo. Naquela noite,
porém, assim que ele atravessou a porta, rompi em lágrimas.
“Eu preciso de si”, solucei. “O pai não pode morrer, não
pode!”
A Nollie sentou-se na cama. “Fomos à casa da Senhora Hoog”,
explicou. “A Corrie não jantou nem comeu nada.” O pai sentou-
se à beira da nossa caminha estreita.
“Corrie”, disse gentilmente, “nos dias em que vamos a
Amsterdã, quando é que eu te dou o bilhete?”
34
Funguei duas ou três vezes, pensando no facto.
“Pouco antes de tomar o comboio.”
“Certo. O nosso Pai celestial é muito bom e sabe o momento
certo em que iremos precisar das coisas. Não passes à frente
dele, Corrie. Quando chegar a hora em que tivermos de morrer,
vais ver que o teu coração terá a força de que precisas. No
momento exacto.”
35
CAPÍTULO III
Karel
Conheci o Karel numa das famosas recepções da minha mãe.
Nunca consegui lembrar-me se foi num aniversário, no
nascimento de uma criança, ou num aniversário de casamento -
a mãe fazia uma festa por qualquer motivo. O Willem
apresentou-o como um amigo da cidade de Leiden, e ele apertou
a mão a todos nós, um por um. Apertei-lhe a mão forte, olhei
para aqueles olhos castanhos, e apaixonei-me no mesmo
instante.Quando já todos estavam servidos, sentei-me e fiquei
a olhar para ele. Ele, porém parecia totalmente inconsciente
29. da minha presença, mas isso era natural. Eu tinha só catorze
anos, enquanto que ele e o Willem já eram universitários, as
barbas ralas a começarem a despontar, a conversa entremeada
com o fumo do charuto. Para mim, já era bom estar na mesma
sala que ele. Quanto a não ser notada, eu já estava
habituada. A Nollie é que o era sempre, embora, como quase
todas as moças bonitas, ela não ligasse a mínima importância
àquilo. Quando um rapaz lhe pedia uma mecha do cabelo método
usado então para pedir namoro - ela arrancava alguns fios do
nosso velho tapete cinzento, amarrava-os com uma fitinha
azul, e fazia de mim o portador. Nessa época, o tapete estava
já muito desbastado, e os corações de um bom número de
rapazes, destroçados. Eu, pelo contrário, “apaixonei-me” por
todos os rapazes da classe, um após o outro, numa espécie de
ciclo contínuo.
Mas, como eu não era bonita, e, ainda por cima, era tímida
demais para mostrar os meus sentimentos, toda aquela geração
de rapazes não reparava na menina da cadeira 32.
“Com o Karel, porém, seria diferente” - pensei enquanto a via
mexer o café. Eu amá-lo - ia para sempre. Foi somente dois
anos mais tarde, que o vi de novo. No inverno de 1908 eu e a
Nollie fomos a Leiden, para vermos o Willem, na Universidade.
Ele ocupava um quarto mal mobiliado no quarto andar duma casa
particular. Acolheu-nos a ambas com um só abraço, e depois
correu para a janela.
36
“Olhem”, disse tirando do peitoril um pãozinho doce recheado
que ali pusera para gelar, “comprei isto para vocês. É melhor
comerem já, antes que os meus amigos esfomeados apareçam por
aí.” Sentamo-nos a saborear o precioso pãozinho. Eu sabia
que, para o comprar, o Willem devia ter ficado sem almoço. Um
minuto depois, a porta ficou escancarada e quatro colegas
seus irromperam pelo quarto dentro - altos, vozes graves, de
casacos de gola remendada e punho poído. Entre eles, o Karel.
Engoli o último bocado de pão, limpei as mãos à saia, e
levantei-me. O Willem apresentou-nos. Quando chegou a vez do
Karel, este interrompe:
“Nós já nos conhecemos.” Fez uma pequena vênia:
“Lembra-se de mim? Conheci-a naquela festa na sua casa.”
Olhei para a Nollie - não, ele dirigia-se mesmo a mim. Do meu
coração brotaram palavras de contentamento, mas a minha boca
tinha ainda os restos do pãozinho doce, e elas nunca
conseguiram chegar-me aos lábios. Os rapazes sentaram-se no
chão, e começaram a falar animadamente, todos ao mesmo tempo.
Sentada na cama, ao meu lado, a Nollie juntou-se à conversa
30. com toda a naturalidade, como se visitar aquela escola fosse
um hábito diário na nossa vida. Ela parecia mesmo pertencer
ao grupo: tinha dezoito anos e usava saias compridas,
enquanto que eu usava ainda peúgas de vinte centímetros -
grossas e pretas - que me cobriam as pernas, da barra do
vestido até ao sapato. Outra coisa: a Nollie sabia de que
falar. No ano anterior, ela tinha começado o curso da Escola
Normal. Na verdade, ela não queria ser professora, mas,
naquela época, as universidades não davam bolsas de estudo às
moças, e a escola normal era muito menos dispendiosa. Bem,
ela participou na conversa, falando com facilidade sobre os
assuntos de interesse dos rapazes - a nova teoria da
relatividade, recentemente proposta por um tal Einstein, e a
probabilidade do Almirante Peary de chegar ou não ao Pólo
Norte.
“E você, Corrie, vai ser professora também?” O Karel sorria
para mim, sentado no chão aos meus pés. Senti um calor subir-
me ao rosto.
“Quero dizer, no ano que vem”, insistiu. “Você está no último
ano do curso secundário, não está?”
“Sim... Isto é, não. Vou ficar em casa a ajudar a mãe e a tia
Anna.” A minha resposta saiu curta e seca. Por que é que eu
não conseguia dizer nada, tendo tanto para dizer? Quando
terminei o curso, na Primavera, tomei a responsabilidade do
trabalho de casa. Desde há muito que isto tinha sido
deliberado em família, mas agora tínhamos mais uma razão: a
tia Bep estava doente. Nesse tempo, a doença era incurável. O
único tratamento conhecido
37
era o repouso num sanatório, mas isso era só para os ricos. E
assim, durante meses e meses, a tia Bep ficou deitada no seu
quarto, com a vida a esvair-se no meio dos acessos de tosse.
Para diminuir o perigo de contágio, somente a tia Anna ali
entrava. Ela tratava da irmã todo o dia, e, às vezes, toda a
noite também. Assim, todo o serviço de casa - cozinhar,
lavar, limpar - passou para mim. Eu adorava trabalhar, e, se
não fosse a doença da tia Bep, podia sentir-me completamente
feliz. A sombra dela, porém, obscurecia tudo, não só pela
doença, mas também por causa de toda a sua vida, triste e
frustrada. Muitas vezes, ao dar a bandeja com a comida à tia
Anna, eu espreitava para o interior do quarto. Via as pobres
lembranças, os souvenirs dos trinta anos passados nas casas
em que trabalhara: frascos de perfume vazios há muito, pois
as boas famílias davam sempre perfumes as governantas, no
Natal. Fotografias desbotadas, velhos retratos de crianças
31. que agora tinham os seus próprios filhos e netos. Então a
porta fechava-se e eu deixava-me ficar ali, naquele corredor
estreito, cujo tecto era o beiral do telhado, desejando
ardentemente poder dizer alguma coisa, a querer poder ajudar
um pouco, a desejar amá-la mais. Um dia falei disso à mãe.
Também ela estava a começar a passar mais tempo de cama.
Dantes, sempre que a dor da vesícula ficava insuportável, ela
submetia-se a uma operação. Depois da última, porém, ela
sofreu um pequeno derrame e não pôde voltar a ser operada.
Muitas vezes, ao preparar a bandeja da tia Bep, fazia também
uma para ela. Dessa vez, quando cheguei com o seu almoço, ela
estava a escrever cartas. Sempre que não estava a trabalhar,
a fazer gorros e roupas de bebê para toda a vizinhança,
estava a escrever mensagens de conforto para quase todos os
entrevados e doentes de Haarlem. Nunca se lembrava que mesmo
ela passara a maior parte da sua vida na cama.
“Esse pobre homem, Corrie”, disse-me no momento em que
entrei, “está fechado no quarto a três anos. Imagina, fechado
em casa, sem ver o céu.” Dei uma olhadela para fora, pela
única janela do quarto.
“Mãe”, disse depois de colocar a bandeja na cama e de me
sentar ao seu lado, “será que nós não podemos fazer nada pela
tia Bep? Quero dizer, é uma pena que ela tenha de viver os
seus últimos dias aqui, num lugar que sempre detestou, em vez
de estar onde foi tão feliz como na casa da família Waller,
ou outra qualquer.” Ela depôs a caneta e olhou para mim.
“Corrie”, disse por fim, “a Bep tem sido feliz aqui. Nem mais
nem menos do que o foi noutro lugar.” Fitei-a sem
compreender.
“Sabes quando foi que ela começou a elogiar os Waller?”
continuou. “Foi no dia em que deixou a casa deles. Enquanto
lá esteve, só tinha queixas. Os Waller nem se comparavam aos
Hook, onde tinha estado antes. Acontece, porém, que, quando
ela estava com os Hook, tinha sido muito infeliz. A
felicidade não depende do lugar onde nos encontramos, Corrie.
É uma disposição que existe dentro de nós.”
38
A morte da tia Bep afectou fortemente as três irmãs. A mãe e
a tia Anna redobraram de trabalho a cozinhar e a costurar
para os pobres, como se tivessem percebido de novo que a vida
é breve.A tia Jans, por sua vez, pareceu aproxima-se mais do
seu próprio fim.
“A minha própria irmã!” dizia várias vezes ao dia. “Podia ter
sido eu!” Mais ou menos um ano depois da morte da tia Bep, um
novo médico passou a fazer as visitas, que antes eram feitas
32. pelo Doutor Blinker. O seu nome era Doutor Jan van Veen. Com
ele veio a sua jovem irmã, Tine van Veen, que era enfermeira.
Ele trouxe também uma novidade: um aparelho para medir a
tensão arterial. Não sabíamos o que era aquilo, mas todos nos
submetemos ao processo de enrolar aquele pedaço de lona no
braço e dar à bomba para o encher d’ar. A tia Jans, que
adorava todo e qualquer instrumento médico, simpatizou
bastante com o Doutor Veen, e daí em diante, passou a
consultá-lo tantas vezes quantas lhe permitisse a sua
situação financeira. Alguns anos depois, o Doutor Veen
descobriu que a tia Jans tinha diabetes. Naquela época, isso
era, tal como a tuberculose, uma sentença de morte. Durante
alguns dias, toda a família ficou chocada. Depois de receá-la
durante tantos anos, aí estava a temida presença da morte. Ao
receber a notícia, a tia Jans foi logo para a cama. A
inactividade, porém, não combinava bem com a sua
personalidade vigorosa, e um dia ela surpreendeu-nos a todos,
aparecendo para o café exactamente às 8:10, e informando-nos
que os médicos muitas vezes se enganam.
“Esses exames e análises”, disse a tia Jans que neles cria
piamente, “o que é que realmente eles provam?” A partir desse
dia ela atirou-se ao trabalho mais do que nunca - escrevia,
fazia palestras, formava clubes, iniciava projectos. Em 1914,
a Holanda, assim como o resto da Europa, estava mobilizando
para a guerra, e, de um dia para o outro, as ruas de Haarlem
encheram-se de soldados. Da sua janela que dava para a rua, a
tia Jans via-os a passear e a ver montras. Quase todos eram
muito jovens, estavam sem dinheiro e saudosos do lar. Foi
então que teve a idéia de criar um centro para eles. Tal
coisa era novidade naquele tempo, e a tia Jans pós todo o seu
entusiasmo no projecto. O carro de tracção animal, que
circulava pela nossa rua, foi substituído por um eléctrico.
Este também parava, travões rangendo, quando a tia Jans se
punha majestosamente à porta do Beje. Ela subia para o carro
segurando numa das mãos a longa saia preta, e tendo na outra
uma lista com o nome das damas ricas que poderiam vir a
financiar o novo projecto. Só nós, que a conhecíamos,
sabíamos que, debaixo de toda aquela actividade, havia um
terror monstruoso a impulsioná-la.
39
Entretanto, a sua enfermidade apresentava mais problemas
financeiros. Todas as semanas era necessário um teste de
verificação do nível do açúcar no sangue, teste esse que
envolvia um processo dispendioso, pois o Doutor Veen ou a sua
irmã tinham que vir à nossa casa. Depois de algum tempo, a
33. Tine ensinou-me a fazer o teste. Tinha várias etapas, das
quais a mais delicada era a final: aquecer a mistura até uma
temperatura determinada. Era difícil conseguir que o nosso
fogão fizesse qualquer coisa com precisão, mas afinal,
aprendi, e daí em diante, todas as sextas-feiras, eu fazia o
teste. Se a mistura depois de aquecida continuasse clara,
tudo estava bem. Se escurecesse, eu devia notificar ao Doutor
van Veen.
Naquela Primavera, o Willem veio passar alguns dias connosco
antes da sua ordenação. Ele formara-se na universidade dois
anos antes, e agora terminava o seu último período na
Faculdade de Teologia. Numa noite cálida, estávamos todos
sentados à mesa na sala de jantar. O pai, com trinta relógios
dispostos à sua frente fazia pequenas anotações num caderno,
com a sua letra precisa e elegante: “dois segundos atrasado,
cinco segundos adiantado”, e o Willem lia em voz alta um
trecho da história da reforma holandesa.
De repente, a campainha da porta lateral soou. Havia um
espelho do lado de fora da janela da sala, que nos permitia
ver quem estava à porta, antes mesmo de
abri-la. Dei uma espiadela rápida, e levantei-me num salto.
“Corrie”, gritou a Betsie em tom de recriminação, “olha a tua
saia!” Eu nunca me lembrava de que estava a usar saias
compridas agora, e vária vez a Betsie teve que remendar os
rasgões que eu arranjava, sempre que saía depressa demais.
Dessa vez desci num pulo os cinco de graus. À porta, com um
ramalhete de margaridas na mão, estava a Tine van Veen.
“Para a tua mãe, Corrie”, disse ela assim que abri a porta,
estendendo-me às flores. “Espero que ela...”
“Não, não. Tu mesma as entregas. Estás tão bonita assim!” E
mesmo sem a ajudar a tirar o casaco, empurrei a espantada
moça pela escada acima. Introduzi-a na sala, quase pisando os
seus calcanhares, a fim de ver a expressão do Willem. Eu já
sabia como ia ser. Até ali, eu tinha vivido só de romances;
retirava da biblioteca pública livros em inglês e alemão,
além de holandês, e, muitas vezes, os que eu gostava, lia-os
nas três línguas. Tinha lido milhares de vezes a cena em que
a mocinha conhece o herói. O Willem pôs-se de pé com
movimentos lentos, os olhos na Tine. O pai também se
levantou-lá ao nosso filho willem, está é a moça, cujo
talento e bondade já nos ouviste elogiar.
40
Duvido que algum deles tenha prestado atenção ao que o pai
disse. Estavam a olhar um para o outro, como se não houvesse
mais ninguém na sala. O Willem e a Tine casaram-se dois meses
34. depois da ordenação dele. Durante todo o tempo da preparação,
só um pensamento me ocupava a mente: o Karel vai estar cá. O
dia do casamento amanheceu frio, mas claro. Imediatamente, os
meus olhos encontraram Karel no meio da pequena multidão
parada em frente da igreja. Usava casaca e cartola, como
todos os homens, mas era, sem dúvida, o mais simpático de
todos. Quanto a mim, eu tinha mudado muito desde a última vez
que o vira. A nossa diferença de idades - cinco anos - não
parecia tão grande como antes. Além disso, eu sentia-me...
Não, bonita não. Mesmo num momento tão romântico, eu não me
poderia convencer disto. Sabia que o meu queixo não era
bonito, tinha pernas compridas e mãos grandes. Mas eu
acreditava - todos os livros o afirmavam - que para o homem
que me amasse eu seria linda.
A Betsie tinha-me arranjado o cabelo. Depois de uma hora com
o ferro tinha conseguido ajeitá-lo todo no alto da cabeça.
Milagrosamente, até àquela altura, ainda estava arranjado.
Ela também tinha feito o meu vestido de seda, assim como os
de todas da família, fazendo serão, à luz fraca da lâmpada,
pois a loja ficava aberta de Segunda a sábado, e ela não
gostava de costurar aos domingos.
Examinando as outras mulheres presentes, verifiquei que as
nossas roupas estavam tão elegantes como as de qualquer
outra. Ninguém poderia supor, pensei ao encaminhar-me
juntamente com os outros para a entrada, que o pai tinha
prescindido de alguns charutos, e a tia Jans do carvão para
aquecimento do quarto, a fim de comprarmos a seda que agora
nos envolvia.
“Corrie?” À minha frente estava o Karel, alto, cartola nas
mãos, com os olhos em mim, parecendo meio indeciso. “Corrie?”
“Sim, sou eu!” respondi sorrindo. Sou eu, Karel; e você
também! E este é o momento com que tanto sonhei!
“Mas você cresceu! Perdão, Corrie, claro que cresceu. É que
sempre pensava em si como a garotinha de grandes olhos
azuis.” Olhou para mim outra vez e depois prosseguiu
suavemente:
“... E agora a garota é uma moça encantadora!” De repente,
pareceu-me que a música do órgão era tocada para nós,
41
única coisa que me prendia à terra, e me impedia de voar
pelos telhados de Haarlem. Foi numa chuvosa e fria sexta-
feira de Janeiro que os meus olhos viram algo que, a
princípio, me recusava a aceitar. O líquido do exame, no
recipiente de vidro no fogão, estava turvo, muito escuro.
Encostei-me e fechei os olhos.
35. “Ó Deus, concede que eu me tenha enganado!” Revi as etapas da
análise; verifiquei os frascos de substâncias e os utensílios
de aferição. Não, eu tinha feito tudo bem. Devia ser então
por causa da cozinha. Era sempre tão escuro aquele quartinho.
Segurei na proveta com um pegador de panela, e fui até à
janela da sala de jantar. Preto Negro como o próprio medo.
Ainda com o frasco na mão, desci os cinco degraus e
atravessei a porta de trás para a oficina. O pai, com o seu
óculo de aumento procurava por cima do ombro do aprendiz, com
toda a perícia, uma peça pequenina, no meio das que se
encontravam espalhadas na banca de trabalho à sua frente.
Olhei para dentro da loja, pelo vidro da porta. A Betsie, por
detrás da caixa, falava com uma freguesa. Não; não era uma
freguesa, era uma importuna. Eu conhecia bem àquela senhora.
Vinha sempre aqui pedir conselhos sobre relógios, e depois os
comprava na outra loja da rua, na relojoaria dos Kan. Nem o
pai nem a Betsie pareciam preocupar-se com o facto dessas
coisas acontecerem cada vez mais. Quando ela saiu, entrei com
o teste revelador na mão.
“Betsie”, disse a chorar, “Betsie, está escuro. Como vamos
dizer-lhe? O que vamos fazer?” A Betsie saiu de trás da mesa
apressadamente, e abraçou-me. O pai também chegou e entrou.
Os olhos dele foram do vidro para a Betsie e dela para mim.
“Tu fizeste tudo bem, Corrie? Com todos os detalhes?”
“Infelizmente, sim.”
“Também me parece, filha; mas precisamos da opinião do
médico.”
“Vou lá agora”, disse. Passei o líquido escuro para um
frasquinho e corri com ele pelas ruas molhadas e
escorregadias de Haarlem.
Havia uma nova enfermeira no consultório e tivemos que
esperar meia hora, na sala de espera, silenciosamente. Eu
sentia-me horrivelmente apreensiva. Finalmente o doente saiu
e o Doutor van Veen pegou no frasquinho e levou-o para o
laboratório.
“Não há dúvida, Corrie”, disse ao regressar. “A sua tia tem
no máximo três semanas de vida.” Quando voltei para casa,
fizemos uma reunião de família: a mãe, a tia Anna, o pai, a
Betsie e eu. A Nollie só voltaria à noite. Todos concordamos
em que ela precisava saber já.
42
“Vamos contar-lhe todos juntos”, decidiu o pai, “mas eu direi
as palavras necessárias. Talvez...” o seu rosto iluminou-se
um pouco, “talvez ela se alegre ao pensar em tudo o que já
realizou. Ela dá tanta importância às coisas. E quem sabe se
36. ela não estará certa?” Assim, subimos a escada para os
quartos da tia Jans. O pai bateu à porta.
“Entra”, disse ela. E depois concluiu como sempre: “e fecha a
porta antes que eu apanhe uma corrente de ar.” Estava sentada
à mesa redonda de mogno, a escrever um novo apelo a favor do
centro para soldados. Ao ver tantas pessoas entrarem, largou
a caneta. Olhou-nos um a um até chegar a mini, e aí soltou
uma exclamação sufocada. Era sexta-feira de manhã, e eu ainda
não lhe tinha levado o resultado da análise.
“Minha querida cunhada”, começou o pai gentilmente, “há uma
viagem feliz que cada filho de Deus tem que fazer mais cedo
ou mais tarde. Sabes, Jans, alguns vão de mãos vazias, mas tu
não!”
“Todos esses clubes...” aventurou-se a tia Anna.
“Os seus panfletos...” juntou a mãe.
“O dinheiro que a senhora conseguiu...” disse a Betsie.
“As suas palestras...” comecei. Os nossos bem intencionados
esforços, porém, não deram nada. Aquele rosto orgulhoso
abateu-se muito diante de nós. A tia Jans levou as mãos à
cara e começou a chorar.
“Vazia!” disse por fim, entre lágrimas. “Como é que se pode
dar algo a Deus? Que lhe interessam as nossas ninharias?”
Enquanto a observávamos quase sem poder acreditar, ela
descobriu o rosto e, com lágrimas escorrendo pela face,
murmurou: “Senhor Jesus, eu te agradeço porque temos de ir
até ti de mãos vazias. Eu te agradeço porque, na cruz, tu
fizeste tudo, mesmo tudo; e é só isto que precisamos saber
com certeza, na vida e na morte.”
A mãe abraçou-a e as duas ficaram agarradas por um momento.
Eu estava presa ao chão. Sabia que tinha visto um mistério.
Era a passagem de comboio de que o meu pai falou, e que lhe
era dada no momento exacto. Com um rápido movimento do lenço
e um ruidoso assoar do nariz, ela fez-nos saber que o momento
de sentimentalismos tinha passado.
“Se me deixarem só”, disse, “pode ser que eu ainda faça
alguma coisa.”
Deu uma olhadela ao pai, e naqueles olhos sérios passou, ao
de leve, um brilho maroto.
“Não que o trabalho importe, Casper; não importa mesmo nada;
mas”, ela despachava-nos dali, “não vou deixar a mesa
atravancada para alguém ter de arrumá-la por mim.” O esperado
convite para o primeiro sermão do Willem só chegou quatro
meses depois da morte da tia Jans. Depois dele ter trabalhado
um ano como co-pastor
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37. duma igreja, começou a pastorear, ele mesmo, uma outra igreja
em Brabant, a belíssima região rural do sul da Holanda. Na
Igreja Reformada Holandesa, o primeiro sermão dum pastor, no
seu primeiro pastorado, era as ocasiões mais solenes, alegres
e emocionantes que um povo pouco emotivo como o nosso poderia
ter. A família e os amigos viriam até de muito longe, e
ficariam ali vários dias.
O Karel escreveu, do lugar onde estava a servir como co-
pastor, a dizer que iria e que estava ansioso por nos voltar
a ver a todos. Dei a esse “todos” um significado muito
especial, e enquanto passava a roupa e fazia as malas,
vibrava antecipadamente pelo encontro. Para a mãe, a viagem
foi uma tortura. Ela acomodou-se mesmo no canto do nosso
compartimento, e ficou ali apertando a mão do pai, a ponto
dos nós dos dedos ficarem brancos, sempre que o comboio
balançava ou dava um arranque. Enquanto nós apreciávamos as
ramagens verdes das árvores, ela não tirava os olhos do céu.
O que para nós era um passeio pelos campos, para ela era um
festim de nuvens e duma imensidão azul. Tanto a cidadezinha
de Made como a congregação tinha sofrido um grande declínio
nos últimos anos. O templo, porém, que datava de épocas
melhores, era muito grande, como também a casa pastoral, do
outro lado da rua. Comparada com o Beje, era enorme. Nas
primeiras noites, o tecto parecia-me absurdamente alto, tão
alto que não consegui dormir. Todos os dias chegavam primos,
tios e amigos, mas a casa nunca parecia cheia. Três dias
depois da nossa chegada, bateram à porta e fui abrir. Dei com
o Karel de pé à entrada, os ombros ainda salpicados pela
cinza do comboio.Atirou com a mala para o corredor e agarrou-
me uma das mãos, puxando-me para fora.
“O dia está lindo, Corrie”, disse. “Vamos dar uma volta.” Daí
em diante, pareceu ficar decidido que iríamos dar uma volta
todos os dias. O nosso trajecto por aquelas trilhas sinuosas
de terra batida, tão diferente das ruas pavimentadas de
Haarlem, era cada vez um pouco mais longo. Naqueles momentos,
era difícil acreditar que o resto da Europa estivesse
comprometido na luta mais sangrenta da Historia. Aquela
loucura, ao que parecia, tinha cruzado o oceano: a América,
diziam os jornais, estava para entrar na guerra. Aqui na
Holanda neutra, porém, a um dia solarengo de Verão, seguia-se
outro. Só algumas pessoas - e entre elas o Willem -
asseguravam que a guerra significava tragédia para a Holanda
também. E este foi o tema do seu primeiro sermão. Operava-se
uma mudança tanto na Europa como no resto do mundo, disse.
Aquele modo de vida estava a terminar, não importava quem
ganhasse a guerra. Olhei ao meu redor. Essa congregação
composta de aldeões e fazendeiros vigorosos não ligava muito
38. a tais idéias.
Depois do culto, os amigos e parentes mais distantes
partiram. O Karel, porém,
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ficou. Os nossos passeios tornaram-se mais longos.
Conversámos sobre o seu futuro e, de repente, começamos a
falar não sobre o que ele faria, mas sobre o que nós
faríamos... Nós imaginávamo-nos a ter que decorar uma casa
grande como aquela, e, com alegria, descobrimos que tínhamos
o mesmo gosto quanto a mobiliário, flores, e até mesmo quanto
a cores predilectas. Discordamos apenas num ponto: os filhos.
O Karel queria quatro, e eu, firmemente, desejava seis.
Durante todo o tempo, porém, a palavra “casamento” nunca foi
pronunciada.
Um dia quando o Karel se ausentara, o Willem aproximou-se de
mim com duas xícaras de café na mão. Logo atrás dele, também
com o café, vinha a Tine.
“Corrie”, disse ele dando-me o café e falando-me com
dificuldade, “Será que o Karel lhe deu a entender que
está...”
“Com intenções sérias?” completou a Tine. Aquele rubor que eu
detestava e que nunca conseguia controlar subiu-me às faces.
“Eu... Nós... Não. Porquê?” O rosto do Willem também se
ruborizou.
“Porque isso não deve acontecer. Tu não conheces a família
dele. Desde que ele era pequeno, que eles só têm um desejo.
Sacrificaram-se muito, e já fizeram planos; basearam toda a
sua vida numa só coisa: querem que o Karel faça um “casamento
vantajoso”. Parece que é assim que eles dizem.” De repente,
aquela sala vazia pareceu-me ainda mais feia.
“Mas... E o que o Karel deseja, não vale nada? Ele já não é
criança!” O Willem fixou em mim o olhar sério e profundo.
“Ele vai obedecer, Corrie. Não digo que ele queira esta
situação; mas para ele já é coisa resolvida. Na faculdade,
quando conversávamos sobre moças de quem gostávamos, ele
dizia sempre: “Naturalmente, não poderei casar-me com ela;
seria a morte da minha mãe”.” Tomei o café rapidamente e
quase me queimei. Saí para o jardim. Detestei aquela casa
sombria, e comecei quase a odiar o Willem também. No jardim,
as coisas eram diferentes. Juntos, ele e eu tínhamos
apreciado cada planta, cada flor, e parecia que cada uma
delas estava impregnada dum pouco do afecto que tínhamos um
pelo outro. O Willem podia saber mais do que eu a respeito de
teologia, guerra e política, mas quanto a romances... Nos
livros, estes problemas de dinheiro, prestígio social, plano
39. de família, etc. acabavam sempre por se desfazer como nuvens
ligeiras.
O Karel foi-se embora mais ou menos uma semana depois. As
suas últimas palavras tocaram o meu coração. Somente algum
mês mais tarde me lembrei de que elas tinham sido muito
estranhas. Ele tinha falado com certa ansiedade, quase com
desespero. Estávamos de pé, à entrada, à espera do carro que
o levaria, e que em Made ainda era o transporte seguro,
quando se tinha que
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tomar o comboio. Despedimo-nos depois do café da manhã. Em
parte, eu estava triste, pois ele ainda não falara em
casamento e, em parte, eu estava contente só pelo facto de
estar perto dele. De repente, segurou as minhas mãos.
“Corrie, escreva-me”, disse sem sorrir e num tom de súplica.
“Fale-me sobre o Beje. Quero saber tudo. Quero saber tudo
daquela maravilhosa casa velha e feia. Fale de seu pai, como
ele se esquece de mandar as contas dos consertos que faz.
Corrie, o Beje é o lar mais alegre da Holanda.” E era mesmo,
quando todos nós: o pai, a mãe, a Betsie, a Nollie, a tia
Anna e eu voltávamos para lá. Sempre fora um lugar feliz.
Agora, porém, cada acontecimento parecia adquirir um novo
brilho, porque agora eu contava tudo ao Karel. Cada refeição
que eu preparava era uma homenagem que lhe fazia; cada panela
que brilhava, um poema; cada maneio da vassoura, um gesto de
amor. As suas cartas não eram tão frequentes como as minhas.
Atribuí isso ao seu trabalho. O pastor de que ele era
assessor, escreveu Karel, tinha-Ihe passado todo o trabalho
de visitas. A congregação era rica e aqueles bons
contribuintes esperavam longas e repetidas visitas do
ministério da igreja. Com o decorrer do tempo, as suas cartas
tornaram-se cada vez mais escassas. Compensei essa falta
escrevendo mais, e continuei na mesma vida, no Verão e no
Outono.
Num maravilhoso dia de Novembro, quando toda a Holanda
cantava comigo, a campainha tocou. Eu estava na cozinha a
lavar a louça, mas atravessei a correr a sala de jantar e
desci aqueles degraus antes que outra pessoa tivesse tido
tempo de se mexer.Abri a porta depressa e lá estava o Karel
e, ao seu lado, uma jovem. Ela sorria-me. Os meus olhos
correram do chapeuzinho - com uma enorme pena para a gola do
casaco de arminho, para a mão enluvada de branco que se
apoiava no braço dele.
“Corrie, quero apresentar-lhe a minha noiva”, disse o Karel,
e imediatamente a cena ficou turva.Eu devo ter dito alguma
40. coisa; devo tê-los conduzido para o quarto da tia Jans, que
agora usávamos como sala de visitas, mas só me lembro de que
a família veio em meu socorro, falando, cumprimentando,
pegando nos casacos, oferecendo cadeiras, para que eu não
tivesse que fazer isso nem dizer nada. A mãe bateu o seu
próprio recorde de fazer café. A tia Anna serviu o bolo. A
Betsie saiu para conversar com a moça sobre a moda de
inverno, e o pai apanhou o Karel numa palestra de carácter
bem impessoal sobre assuntos internacionais. O que é que ele
pensava do facto do Presidente Wilson, dos Estados Unidos,
enviar tropas para a França?
Por fim, há meia hora passou-se. De alguma maneira, consegui
apertar a mão dela, depois a dele, e desejar-lhes
felicidades. A Betsie acompanhou-os à porta, e antes
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que esta se fechasse, eu já estava a subir escada acima, para
o meu quarto, onde poderia deixar as lágrimas correrem à
vontade.
Não sei quanto tempo fiquei ali a chorar por causa do amor da
minha vida. Mais tarde, ouvi os passos do pai subindo. Por um
momento, pensei ser eu ainda a garotinha cujas roupas ele
vinha arranjar. O meu sofrimento de agora, porém, nenhum
cobertor poderia amenizar. Subitamente, tive medo do que o
pai me fosse dizer. Receei que dissesse: “Muito em breve vai
aparecer outro...”, e que esta mentira ficasse entre nós, a
separar-nos a partir de então. Eu tinha a certeza absoluta de
que nunca mais haveria outro amor na minha vida. O doce aroma
do charuto do pai entrou no quarto com ele. E, naturalmente,
ele não disse a frase falsa e vã que eu temia.
“Corrie”, principiou ele, “sabes o que é que nos fere tanto
numa situação destas? É o amor. O amor é a força mais
poderosa do mundo, e, quando é bloqueada, causa dor.
“Quando isto acontece, podemos fazer duas coisas: podemos
destruir o amor para reprimir o sofrimento, e neste caso, uma
parte do nosso ser é destruída com ele também; ou então,
Corrie, podemos pedir a Deus que abra uma outra estrada para
o nosso amor transbordar.
“Deus ama o Karel - muito mais do que tu o amas - e, se tu
pedires ao Senhor, Ele dar-te-á esse amor. É um amor que não
pode ser frustrado nem destruído. Quando não podemos amar à
maneira humana, Corrie, Deus dá-nos capacidade de amar de
modo perfeito.” Naquele momento, e depois, quando ouvi os
passos do pai descendo a escada, eu não percebi que ele me
revelara mais que um segredo para superar aquela ocasião
difícil. Não sabia que ele colocava nas minhas mãos a chave
41. que abriria a porta de situações ainda mais tenebrosas do que
aquela - de ocasiões em que não haveria, humanamente falando,
nada nem ninguém para se amar. Nestas questões de amor, eu
ainda estava no “jardim de infância”. De momento, a minha
tarefa era desistir dos meus sentimentos pelo Karel, sem me
desfazer da alegria e do encanto que ele me tinha dado.
Assim, naquele instante, deitada na cama, murmurei uma
“longa” prece.
“Senhor, eu te entrego este meu sentimento pelo Karel, os
meus planos para o futuro - tu sabes! Dá-me a tua maneira de
ver o Karel. Ajuda-me a amá-lo à tua maneira. Tanto como tu o
amas!” Logo que pronunciei estas palavras, adormeci.
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CAPÍTULO IV
A Relojoaria
Em pé numa cadeira, eu limpava a janela da sala de jantar, e,
de vez em quando, acenava para alguém que passava. Na
cozinha, a mãe descascava batatas para o almoço. Estávamos em
1918. A guerra tinha acabado. Parecia haver uma nova
esperança no ar que transparecia até mesmo na forma como as
pessoas andavam. Não é hábito a mãe deixar a torneira aberta
com a água a correr daquele modo, pensei. Ela não gosta de
desperdiçar nada.
"Corrie!" A voz dela ouviu-se muito baixa; era quase um
murmúrio.
"O que foi, mãe?"
"Corrie!" Voltou a chamar. Foi então que ouvi o ruído da água
que já enchia o
lava-louça e caía no chão. Saltei da cadeira e corri para a
cozinha. Ela estava em pé, com uma das mãos na torneira, a
olhar-me com uma expressão estranha, enquanto a água se
derramava aos seus pés pelo chão.
"O que houve, mãe?” Gritei ao mesmo tempo em que estendia a
mão para a torneira. Desprendi os seus dedos, fechei a água e
afastei-a da poça que já se formava.
"Corrie", a repetiu.
"Mãe, a mãe está doente. Temos que levá-la para a cama”.
Segurei-a pelo braço, atravessei a sala de jantar com ela e
comecei a subir. A um grito meu, a tia Anna desceu a correr e
segurou no outro braço. Levamo-la para cima, e depois eu fui
à loja, chamar o pai e a Betsie.
Durante a hora que se seguiu, ficamos ali, a ver os efeitos
duma hemorragia cerebral a estender-se gradualmente a todo o