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Baixar para ler offline
Gutyerrez Oliveira Monteiro
Gutyerrez Filho
Rosa Neves Monteiro
O Menino Virtual
e outros contos
Editora Protexto
1a
. edição
2013
Apresentação
É difícil escrever a respeito de um livro composto por três
autores: pai, mãe e filho. Embora com estilos e inspiração
diferentes, os três têm algo em comum: uma grande sensibilidade.
Gutyerrez Pai, fala da floresta, do rio, da sua infância feliz,
povoada das fantasias das histórias de Aladim e Ali Babá. E, ao
lado das maravilhas da natureza nos oferece contos sobre o mundo
virtual, que ao mesmo tempo limita ou amplia a nossa visão da
realidade, conforme a maneira como nos utilizamos das novas
técnicas.
Em Gutyerrez Filho, sentimos uma grande preocupação com o
social, com os problemas da juventude e no seu conto “Chico e
Mundo”, uma ânsia de liberdade, uma busca da borboleta azul,
“porque tudo o que ele queria era ver o mundo”.
Rosa Neves nos leva à “Fazenda Segredo” onde passou a
infância e onde se apaixonou por um porquinho, e como criança
que era, não podia compreender como o animalzinho preferia a
lama a uma almofada cheirosa que lhe era oferecida.
Os três autores são estreantes, promessa de outras obras, que
com certeza virão enriquecer nossa literatura.
Sylvia Aranha
Itacoatiara 29 de novembro de 2011
Sumário
O Menino Virtual
Gutyerrez Oliveira
Sonhos de Lata
Gutyerrez Oliveira
Outro Conto do rio
Gutyerrez Oliveira
Ônibus de lata
Gutyerrez Oliveira
Eu era feliz e não sabia
Gutyerrez Oliveira
Uma historia da floresta
Gutyerrez Oliveira
Café Tremido
Gutyerrez Oliveira
Noturno no seringal
Gutyerrez Oliveira
Mais um dia
Gutyerrez Filho
A Loja de Amigos
Gutyerrez Filho
Chico e o Mundo
Gutyerrez Filho
Vozes Silenciadas
Gutyerrez Filho
Acidente na Avenida
Gutyerrez Filho
Porcos na Alma
Rosa Neves
Um dia na enchente
Rosa Neves
O MENINO VIRTUAL
Gutyerrez Oliveira
Ele acorda tarde pela manhã. Pois fica
acordado a noite toda. Sempre navegando...
Navegando... Navegando...
Ele não dorme tão bem a noite, porque sente
muito frio e insônia.
Logo depois de acordar, liga seu computador e
a moça, a empregada da casa, leva o seu x-burg de
café da manhã. Sua comida predileta. Ele suja o
teclado com maionese, pinga refrigerante no mouse,
mas nem percebe. Não tem tempo pra esses detalhes
corriqueiros. Enter... Enter... Enter... Um clique e um
novo mundo aparece . A vida é mais fácil assim.
Entra na net, começa a navegar distante, se
esquece de voltar para almoçar... Seu corpo já nem
sente fome e emagrece sem que ele perceba, e
adoece sem que ele perceba. Sua epiderme é clara
demais, nem parece de verdade. Ele nunca sai ao sol.
Parece um vampiro. E o seu cabelo é tão
desalinhado, tão desajeitado, tão mal-cuidado. Ele
nunca penteia! No pequeno mundo do seu quarto ele
voa pelo infinito do universo e dá uma volta
completa na galáxia. Para ele suas ideias modernas
são inalcançáveis, intransponíveis. Acredita que já
nos ultrapassou anos luz. Ele tem amigos na Ásia, no
Japão, na Europa, Londres e como um raio viaja
atravessando para Nova York. Visita a Estátua da
Liberdade, passeia pelo Havaí. Num instante surfa
nas ondas da pororoca na foz da ilha de Marajó. No
momento seguinte vai a Paris, visita a torre Eiffel,
vai até o Oceano Pacífico nas ilhas de Ápia e Pago-
Pago...
Ele está cheio de amigos por todo o mundo.
Mas está sempre tão sozinho. Ele tem uma namorada
linda que mora do outro lado do mundo, mas nunca
a conheceu pessoalmente. Só pela tela do monitor. É
uma namorada virtual que se apaixonou por uma
foto que nem é dele. Ele nunca sentiu o sabor do
beijo de uma garota de verdade, a delícia de um
aperto de mão. Mente para si mesmo que sim. Faz
tempo que não sente o calor de um abraço, porque
não tem mais tempo de andar pelas ruas e praças,
sentir a brisa no rosto e ver o pôr do sol.
Ele nem lembra mais do próprio nome de
tantos fakes que já criou na net. Não nota as pessoas
a sua volta. Afinal o que haveria de interessante
nelas?
A sua mesada permanece intocada na cômoda
sobre o quarto. Ele nem ouviu quando seu pai lhe
disse sobre isso há três dias.
E quando algo dá errado. Quando o software, o
hardware do computador entra em pane... Sua vida
também entra!... Ele fica desanimado, já não sorri
tanto. Sente-se entediado. Quer deletar aquela vida,
aquela casa, quer ir para longe, pra qualquer outro
lugar, onde haja um computador funcionando com
internet, que o leve de volta pra sua vida virtual.
“A vida virtual é mais fácil” diz ele “dá pra
bloquear aquilo que te incomoda. Se você comete
um erro, aperte ctrl + z e tudo estará bem. Em vez de
escrever você pode copiar e colar, as ideias que
quiser e de onde quiser. Na internet você faz o que
quer, você é quem quiser e quantas vezes imaginar
ser. Se você tem algum defeito, ajeite no fotoshop.
Dois clicks e você está dentro, um click e você está
fora. O que há de mais real no universo?”
No seu mundo não existe tédio somente
downloads, downloads e mais downloads... E aí num
instante as músicas mais ouvidas surgem, surgem
novos cenários, novas paisagens, novos filmes do
momento.
Click. A sua vida é um novo papel de parede
na área de trabalho.
Click. Sua vida é um flash antenado & plugado
no mundo.
Sempre seu pai lhe chama atenção. Um dia lhe
disse:
– Acorda menino! Sai desse computador. Vai
dar uma volta, conhecer amigos de verdade! Saia
desse mundo virtual. Você não quer aprender nada
sobre a vida real?
Ele, como sempre, sorri desinteressado e
pergunta:
– Onde é o site que eu baixo algo sobre isso?
SONHOS DE LATA
Gutyerrez Oliveira
A mulher entrou na sala e viu seu companheiro
de malas prontas, varias bolsas de viagem
arrumadas, pronto pra partir. Ela estranhou aquilo.
– Vai viajar?
– Não – disse ele, frio como sempre.
– O que são essas malas então?
– Eu estou indo embora.
– Como assim indo embora?
Então ele começou:
– O que eu vou lhe dizer agora vai soar como
uma desculpa esfarrapada, mas não é nada disso. Eu
tenho aqui um cheque de um milhão de dólares
oferecido pela Empresa X. Por danos morais ou por
qualquer outro tipo de danos devido à experiência
que você foi submetida
– Como assim, do que está falando?
– Assine aqui – pediu o quase-marido lhe dando
um papel, um cheque e uma caneta
A mulher segurou a caneta e tentou ler as letras
miúdas e ele continuou:
– Estou indo embora porque não sou como você.
Entenda. Digo isso em todos os sentidos. E no
sentido literal da palavra. Eu não posso sentir como
você sente, não posso sorrir como você, ficar alegre,
ficar com raiva ou ter medo. Quando eu ajo de tal
forma, na verdade tudo não passa de simulações
feitas a partir da minha programação.
A mulher já não lia mais nada e prestava atenção
estupefata nas palavras do quase marido.
– Eu não estou entendendo Marcos? Há outra
mulher, entre a gente, é isso?
– Não, não é isso
– É um homem então?
– Não. Você não está entendendo.
– Não, não estou! Por favor, me explique! Isso é
alguma brincadeira? Porque se for, eu já cai na
pegadinha ouviu? Por quê? Por que você está me
deixando Marcos?
– Eu não sou humano como você Marta.
– O quê?Não acredito no que ouço!
– Sim, Marta. Eu sei que é difícil mas, eu sou um
protótipo especial de engenharia robótica da
Empresa X, acho que você já deve ter visto nos
comerciais. A empresa X trabalha com tecnologia de
eletrodomésticos. Eu sou um Autômato. Fui criado
secretamente, sou uma máquina que simula
emoções. Pertenço a uma série de quinhentos
protótipos para teste enviados para interagir com a
sociedade. Aparentemente temos todas as funções
humanas, mas se você prestasse bem atenção
perceberia que eu nunca usava o banheiro, ou me
alimentava.
– Você esta dizendo que é um robô? Isso é
ridículo, Marcos! Não me faça de palhaça, se está
arrependido de ter vindo morar comigo não precisa
usar essa desculpa idiota para ir embora! Eu nunca te
pressionei a nada. Aquela conversa de ontem a noite
sobre casamento foi só uma conversa como qualquer
outra Marcos! Eu não estou te pressionando a nada!
Você está se sentindo pressionado é isso? Não
precisamos casar droga! Eu só toquei no assunto e...
Marcos então começou a emitir vários barulhos
mecânicos, alarmes sonoros e intermitentes, girou o
pescoço em trezentos e sessenta graus como a
mulher possessa do filme O exorcista.
– Mas o que...
– É o que estou tentando lhe explicar Marta.
Você ajudou involuntariamente a Empresa X no
teste dos protótipos, durante esses três meses que
estive com você. Por isso está sendo indenizada.
Quando eu ia para o trabalho, na verdade eu ia até a
unidade laboratorial da empresa localizada nessa
área aonde era feito manutenções em mim. Assine
esse papel. Se você sentiu-se prejudicada
sentimentalmente ou moralmente, você será
indenizada pela Empresa X, Marta.
Marta chorava, chorava e não queria ser
consolada. Nem mais saber de nada.
– Eu assino! – soluçava ela!– Apenas vá embora
daqui sua máquina sem sentimentos! A Empresa X
usa as pessoas! Usa o sentimento das pessoas pra
crescer! Que tipo de empresa é essa?
– Devido à competição em alta escala que está
havendo entre a nossa empresa e a Empresa Y, que
também teve a mesma ideia de fazer protótipos
cibernéticos! Por isso tivemos que tomar tal atitude!
A Empresa Y também fabricou protótipos, Marta. E
eles podem estar em qualquer lugar nesse momento
fingindo serem pessoas. Não podemos deixar que a
empresa Y ganhe os clientes da nossa empresa.
Temos que aperfeiçoar os protótipos de relações
pessoais o quanto antes. Para isso que fui
programado.
– Então todos aqueles nossos sonhos de viajar
pra Nova York, Londres, aquilo foi tudo mentira? –
dizia ela ainda olhando para o robô esperando que
tudo aquilo não passasse de uma pegadinha do
Faustão.
– Sinto muito senhorita, mas “latas” não têm
sonhos – disse o robô, referindo-se a si mesmo.
E antes de partir certificou-se de que Marta
assinaria o papel e teria aceito o cheque. Partiu para
sempre dali, com todas as malas de roupa e com
todo o amor e tempo que Marta havia investido.
Depois disso Marta permaneceu sozinha
chorando na sala por algum tempo. Alguns minutos
depois ela foi até a porta certificar-se que o marido-
robô havia mesmo ido embora, então quando
percebeu que estava sozinha limpou as falsas
lágrimas e sorriu.
– Há! Há! Há! Que idiota! – gargalhou ela
olhando o cheque e o papel assinado de indenização.
– “Latas não tem sonhos!”. Você é que pensa!
Eu vou para Nova York com esse hum milhão de
dólares – disse ela. – Mas antes preciso ajeitar essa
engrenagem aqui!
Dizendo isso ela foi para um quartinho secreto
escondido, incrustado na parede, onde havia uma
mala com ferramentas especiais de alta tecnologia.
Retirou de lá uma chave especifica e começou a
desapertar um parafuso do seu braço. Em seguida
girou o pescoço em trezentos e sessenta graus
certificando que suas engrenagens estavam boas ou
precisavam de óleos. Depois retirou seu braço de
fibra eletro-mecânico pingou óleo e uma graxa
especial nas engrenagens aonde havia o emblema de
marca de fabricação da Empresa Y.
OUTRO CONTO DO RIO
Gutyerrez Oliveira
O barulho da máquina no barco que subia o rio
invadia o silêncio da floresta naquela manhã.
Rasgava passagens entre os ramos verdes, caniços e
cipoais, e não mais voltava. Se perdia pelos confins
da mata. Uma parte do ruído penetrava entre as
árvores do igapó, despertando a Matinta- Pereira,
que dormia dentro de um tronco oco e que tinha
assobiado a noite inteira assustando os ribeirinhos
que moravam naquelas bandas.
O curupira montado no porco queixada,
liderava um bando de caititus que passavam
pisoteando e quebrando a mata virgem, destruindo e
levando tudo que encontravam pela frente. No alto
das árvores, a jaguatirica e os macacos que ela
perseguia pararam distraídos e curiosos por um
instante, ouvindo o som estrondoso da manada lá
embaixo, que se misturava ao som que vinha do
barco. Os animais tentavam manter entre eles, um
distanciamento prudente, preparando saltos entre os
galhos na precisão de uma fuga.
Outra parte do som ia de encontro às árvores e
barrancas de terras caídas na margem do rio e
retornavam para o barco junto com a canção das
cigarras-ninfas que naquela hora do dia teciam o
verão.
Naquele momento, me sentindo o senhor
daquelas paragens, eu, “curumim” estava deitado de
bruços em cima do toldo da embarcação em
movimento, olhando o rio com um certo olhar de
jovem filosofante. Me deleitava com aquele quadro
vivo e conseguia ver a minha volta detalhes que
pareciam tão insignificantes para o passante, mas tão
nítidos para mim. Um pássaro voando baixo sobre o
rio e de vez enquanto um mergulho no profundo das
águas, logo a seguir, lá estava ele com um peixe no
bico. Outros pássaros nas árvores, pairando,
beijando uma flor; o beija–flor. Uma borboleta
colorida voando em zigue-e-zague. Uma flor que
não estava ali na viagem passada. Todos aqueles
detalhes não me escapavam a visão. Eu imaginava
uma semente germinando, brotando, rasgando o
chão lentamente de dentro para fora, buscando a luz
para ver aquele dia fazer parte da vida, participar,
receber a brisa suave em suas primeiras folhinhas.
Aquela bromélia que na viagem passada começava a
brotar, agora já estava adulta, completa, perfeita...
Linda.
Meus olhos vasculhavam o horizonte entre o
céu e o rio; que se encontravam também por detrás
das matas e cabeceiras.
Ao longe, um ponto negro no rio, que crescia
ao se aproximar, me chamou atenção. Ficava
acompanhando até chegar bem perto e verificar com
surpresa que era um imenso loyde brasileiro de
turistas, ou um cargueiro que vinha de muito além
do mar... Aquilo me deixava assustado, eu
perguntava como aquele pedaço de cidade flutuante,
edifício com vários andares conseguiu chegar até ali,
e passar por nós? Em que outro local, ou país aquele
“pedaço de cidade” (eu me referia ao navio com
vários andares como sendo um edifício ou um
pedaço de cidade) vai se encaixar como um quebra-
cabeça?
Ainda em cima do toldo sentindo aquela brisa
fria, o pensamento me transportava para o momento
de alguns dias atrás em que eu caminhava na praça
do largo de São Sebastião em frente ao Teatro
Amazonas, saltando e caminhando sobre os ladrilhos
brancos e pretos em forma de ondas que simbolizam
o encontro das águas ou as grandes ondas dos mares
do meus sonhos os quais me levavam direto ao
monumento central da praça, “Abertura dos Portos”.
Onde eu menino, em um piscar de olhos saltava nos
convés daqueles barcos de bronze (Europa, Ásia,
África e América) e viajava imediatamente para
Argentina, Panamá, Espanha, Portugal, Inglaterra, e
de barco em barco para cada país do mundo
conforme o meu pensamento.
Sentado no convés daqueles barcos eu me
imaginava um nauta sonhador que conhecia o
mundo inteiro, um capitão! Um lobo do mar.
Fazia a primeira viagem para as Américas.
Logo a seguir passava através da marquise para um
outro navio pirata ou corsário inglês, hasteava a
bandeira negra com os ossos e a cabeça da caveira.
Agora eu era um corsário descobridor dos sete mares
a serviço do meu rei. Viajava uma nova aventura a
procura de um mapa do tesouro perdido pelo terrível
pirata barba negra em uma ilha distante.
E num instante seguinte, a visão da água sendo
separada pela proa do barco que formava um bigode
constante na proa afastando as águas e removendo
obstáculos da passagem me faziam voltar a realidade
daquele rio o qual eu estava navegando agora.
O barco correndo ao lado das margens que iam
ficando para trás, recebiam o banzeiro que lavava as
pedras e argilas dali. De repente uma casa, um
cercado na curva do rio, curumins e cunhatãs
correndo sobre o barranco de terras caídas para ver o
barco subindo. Lá do alto faziam acenos dando
adeus. Talvez em cada coraçãozinho ali, batia uma
vontade de ir também, naquela viagem... Mas iam
ficando para trás, ficavam para trás...
Logo a seguir, a cerca do curral. Alguns bois
pastando nos olhavam sem ligar, o mais importante
para eles era o remoer e fazer o movimento do
queixo retirando o supra-sumo do capim. A seguir, a
visão do laranjal imenso que se perdia dos olhos na
imensidão dos campos. O homem no roçado
próximo a margem parava de roçar, retirava o
chapéu, limpava o suor da testa com a manga
comprida da camisa, parando alguns minutos, mais
para descansar e renovar as forças enquanto olhava,
do que pra acompanhar o barco que subia o rio
cortando o silencio da floresta.
ÔNIBUS DE LATA
Gutyerrez Oliveira
Na verdade, em nossos sonhos estão tantas
historias da nossa vida. Pensamentos, lembranças e
saudades de vivos momentos vividos na infância,
que nos fazem outra vez pequeninos no tamanho
mas, gigantes no viver outra vez! São tantas coisas
belas que tinham sido esquecidas, arquivadas talvez
no sub consciente da alma, umas muito reais e outras
sonhadas que jamais esqueceremos, como correr
pela praça, brincar de pega-pega, pular amarelinha,
apertar campainhas nos portões e se esconder, atirar
bolas de papel nos colegas na sala de aula, sentir o
cheiro das flores e admirar a confecção de todas as
coisas feitas por nosso Deus criador .
Vou contar lhes uma dessas histórias, foi
assim:
Quando era menino, ganhei de presente um
pequeno ônibus de lata. Eu o amei desde o primeiro
dia, desde o momento que o vi.
Tinha sete anos de idade, o tempo passou, mas
parece que foi ontem. Guardo ainda na lembrança
todos os momentos e detalhes daquele encontro.
Lembro até dos passos apressados que eu era
forçado a dar (ia chorando) pois estava sendo levado
pela mão de minha mãe que caminhava apressada
para pegar a roupa lavada e passada na casa de D.
Chiquinha , uma senhora de cor que vivia do oficio
de lavar roupas.
Quando cheguei na porta da sala, ali estava ele
em cima da mesa de jantar, limpei as lágrimas dos
olhos e me apaixonei!
Comecei a inspecioná-lo.
Como era diferente! Era feito da metade de uma
lata de solvente para tintas (tinner) cortada de
comprido, nas laterais foram feitas janelas sem
vidraças e duas portas; dianteira e traseira. Fiquei
olhando para dentro dele pelas janelinhas, notei
cadeirinhas bem arrumadas forradas de napas
posicionadas umas próximas a janela outras para o
corredor do centro do ônibus. A cadeirinha do
motorista, alavanca de marchas (câmbio)
retrovisores internos e externos, degraus na porta
para a subida, isso tudo pronto a servir minúsculos
passageiros (liliputianos) da minha imaginação. O
chão do ônibus pintado de uma cor alumínio prata,
imitando o metal. A cabine fora fixada por sobre
uma carroceria com quatro rodas que prendiam em
dois eixos, rodas essas feitas de madeiras com serra
“tico-tico” contornadas e lixadas com acabamento
perfeito para as pistas de rolamentos das ruas do
meu pensamento. Lembro que era pintado de
vermelho fosco com listas pretas nos pára-choques,
tinha uma plaquinha com número e tudo para ser
identificado com licença pelo departamento de
transito e uma inscrição nas laterais que dizia:
Viação “Nova Aliança”
Paulo, um menino de aproximadamente 14 anos
filho único de D. Chiquinha, rapaz de bons modos,
gestos calmos, um pouco retraído, encontrou-me
analisando sua “obra prima”, contou-me que ele
fizera aquele carro não para brincar, mas para
vender e ajudar sua mãe nas compras de casa. Eu
quis ficar com aquele ônibus, pedi a minha mãe que
compra-se ...
Depois de algumas recomendações quanto ao
meu boletim escolar, terminou comprando. Paulo
ajudou-me a amarrar um fio de barbante no pára-
choque frontal e fui puxando o meu presente
carregado de passageiros para a ilusão do meu
mundo de criança feliz.
O tempo passou rápido e o que estava previsto
para acontecer aconteceu...
Eu cresci, me enamorei de muitas outras coisas
pela vida, só não consigo lembrar para onde e como
sumiu meu “ônibus de lata.”
Um dia desses entrei numa loja, fui confrontado
pelo espanto com essa lembrança outra vez; porque
encontrei na prateleira da vitrina um outro ônibus
com a mesma cor , sendo de plástico e pneus de
imitação de borracha ..
Eu o comprei...
Hoje quando escrevo, sinto lembranças e
saudades viajando no tempo das recordações
maravilhosas da minha infância, quando reconstituo
as brincadeiras com os amigos no quintal da casa
sombreada de árvores, onde nasci, fazíamos ruas,
pontes, estacionamentos e garagens de areia e
pedrinhas de seixos onde passávamos com o ônibus
e outros carros fabricados com latas, latas vazias
com formatos de tratores e amassadeiras ...
Hoje quando escrevo, vejo outra vez o tempo
que passou e o meu ônibus de lata...
O menino que havia em mim, ainda existe.
EU ERA FELIZ E NÃO SABIA!
Gutyerrez Oliveira
As recordações continuam batendo bem mais
forte. Pulsando no coração, tocando a alma saindo
na ponta do lápis para registrar esta saudade.
Saudade do eu menino na Manaus da minha
infância, quando eu ia e vinha pela rua monsenhor
Coutinho, rua que passa por detrás da igreja do largo
de São Sebastião, onde de 15 em 15 minutos, ainda
hoje o relógio da torre badala a hora certa.
Naquele tempo eu morava nessa rua. Tinha seis
anos de idade, estudante inicial empolgado com a
mágica das primeiras letras, que ao ajuntá-las,
formavam palavras que nos permitiam voar e
penetrar no meio das historias de livros que
continham sonhos que nos transportavam para
qualquer lugar.
Um dia voei em um tapete voador com Aladim,
sua lâmpada e sua namorada, por cima de Bagdá, e
vi, assustado, as torres da cidade em formato de
abóboras gigantes, quase colidimos com algumas
delas. Outra vez fiquei tremendo de medo quando ao
caminhar com Ali–Babá, ouvimos um tropel de
cavalos e tivemos que nos esconder por detrás de
uma moita enquanto o chefe dos quarenta ladrões
gritava “Abre te Sésamo” e aquela imensa porta na
rocha foi se abrindo sem fazer nenhum barulho,
então todos os ladrões entraram, o chefão falou
agora “ Fecha te Sésamo” e a porta no meio da rocha
voltou ao normal como se nada tivesse acontecido,
gravamos as palavras mágicas pronunciadas pelo seu
maioral, então quando os ladrões foram embora, eu
e Ali-Baba nos aproximamos da rocha. Ali
pronunciou as palavras mágicas e a porta se abriu,
vimos então no esconderijo dos ladrões a maior
quantidade de tesouro que os meus olhos já puderam
ver.
Vi também outra cena horrível, a vovó da
chapeuzinho vermelho ser retirada viva da barriga
do lobo mal como se fosse um parto cesariano sem
anestesia, operado por um caçador brutamontes.
Outro dia, ao caminhar por um deserto e chegar
a uma cidadezinha, vi o Barão de Munchausen
tentando desengatar o seu cavalo que ficou preso na
torre campanário de uma igreja .
“E assim eu vivia sonhando com as histórias das
mil e uma noite”.
Estudei no Jardim da infância do grupo escolar
Barão do Rio Branco, localizado na Avenida
Joaquin Nabuco quase em frente ao Hospital
Beneficente Portuguesa, com seus jardins bem
cuidados e apinhado de plantas e mangueiras, que
onde, ao sair da escola mais cedo, eu e meus colegas
de aula colocávamos visgos com leite de jaca para
pegar curicas e periquitos barulhentos, ou
apanhávamos mangas de bole-bole.
O jardim da infância do meu grupo escolar,
era ladeado de muitas flores, plantas ornamentais,
Avencas, Lírios, Rosas, Dálias, as quais a nossa
professora mais bonita falava que não arrancássemos
as folhas e flores porque senão as arvorezinhas
choravam e ficavam tristes por ter os seus pedaços
arrancados. Imediatamente eu construía na minha
fantasiosa mente de menino maluquinho, aquelas
plantas de narizes e orelhas arrancadas, com
lagrimas nos olhos correndo atrás de nos, querendo
nos pegar para se “vingar”. Durava pouco esse
pensamento, porque logo a seguir me distraia com a
forma divertida das letrinhas desenhadas pelas
nossas professoras. As letrinhas tinham mãos e pés,
algumas usavam vestidos com flores, outras vestiam
roupas e sapatos de meninos e ficavam coladas nas
paredes da sala de aula.
Tinha uma menininha muito linda, da minha
idade, que sentava na mesma mesa que eu, fazíamos
atividades cobrindo as letras e formando nomes de
gente e coisas, estávamos sempre juntos,
fabricávamos bonecos e carrinhos com cera de
modelar, ela gostava de modelar corações. Um dia
moldou um azul outro cor de rosa e disse com
aquela voz linda de criança feliz , esse e o seu e o
meu coração!
Daquele dia em diante eu me apaixonei muito
mais! Hoje lembro dela com muito carinho.
Crescemos, fui para outra escola, ela se perdeu de
mim!
Alguns anos depois, quase terminando o
equivalente ao ensino fundamental, ganhei um
radinho de pilha da marca Hitachi. Um dia, de
repente começou tocar uma música da época do meu
jardim da infância, que dizia assim...
“Que saudades da professorinha que me ensinou
o Be-a-Ba / onde andará ‘marianinha’
Meu primeiro amor onde andará?
Eu igual a toda petizada quantas travessuras eu
fazia/ jogos de botões sobre a calçada/Eu era feliz e
não sabia! Aos domingos missa na matriz /da
cidadezinha onde eu nasci /Há meu Deus eu era tão
feliz...”
As recordações chegam de enxurrada como uma
cascata contínua, mas não da pra desaguar tudo aqui,
agora!
Quando inicio escrevendo essas memórias, estou
sentado em um banco da praça na orla próximo aos
mangueirões de onde mostra o rio Amazonas que
não para de passar em frente a essa cidade linda
chamada Itacoatiara. Não só a cidade da canção, mas
a cidade que me encheu de inspiração e despertou
um escritor escondido a tanto tempo nas bancadas de
consertos eletrônicos entre transistores, resistores,
capacitores e circuitos integrados, mesas e berços de
testes elétricos nos galpões das fábricas do distrito
industrial de Manaus. Graças ao Eterno, hoje
posso ver essa paisagem linda e um barco que passa
no rio, parece que o seu motorista ou o “pratico” esta
bastante apaixonado e a música diz no seu radio ou
toca CD “ Que hoje a tempestade já passou e nesse
rio de águas calmas eu vou deslizar e consolar meu
coração”.
UMA HISTÓRIA DA FLORESTA
Gutyerrez Oliveira
Sebastião já contava seus 18 anos de idade. E
desde pequeno nunca saiu muito longe do lugar onde
nasceu. Nunca foi a cidade mais próxima do seu
lugar. Quase nunca teve contato com o mundo lá
fora. Um dia alguém falou de rádio pra ele, contou
que era uma caixa quadrada que falava, tocava e
cantava melodias alegres e apaixonadas quando se
ligava um botão , porém ele nunca teve oportunidade
de ouvir um.
Era pescador desde nenê “zinho” de colo. Como
ele mesmo costumava dizer, ainda no colo de sua
mãe ele fisgou “um baita” tucunaré. Vivia do rio é
bem verdade. Morava as margens do rio Caru(
afluente do rio Urubu-AM ).
Conhecia quase tudo do rio e da floresta.
Morava com seus pais numa cabana ali próximo, seu
pai e sua mãe á muito tempo se estabeleceram
naquele lugar.
Mas, Sabá do Caru, como lhe chamavam, só
vivia embrenhado nas matas caçando e pescando,
que nem um bicho do mato. Não tinha documentos
de identificação. Um dia passou por lá uns agentes
da FUNAI. Cadastraram Sabá do Caru, como índio
brabo do mato.
O tempo foi passando muito rápido, mais a vida
de Sabá não tinha pressa – correr pra que – dizia ele.
Um dia comprou uma canoa grande para facilitar seu
trabalho na pesca e outras coisas da floresta. Com
muito custo comprou um motor rabeta e foi tocando
a vida. Casou com uma cabocla do rio, muito
trabalhadeira que o ajudava bastante.
Quando seus filhos começaram nascer e crescer,
mandou fazer para ele um grande batelão (barco
grande de madeira) alguém disse para ele.
– Sabá, por que você não pede empréstimo no
banco e compra um motor potente para este batelão?
Mas, para isso, Sabá do Caru, teria que ir a
cidade com seus documentos ao banco e fazer o tal
empréstimo. Sabá não gostava da cidade, nunca foi
índio, mas era matuto, homem do mato, vivia bem
assim, a cidade lhe causava arrepios, ouvia falar
coisas assombrosas de lá – Mais teve que ir lá cuidar
da documentação para comprar o motor para o
batelão. Naquela época, 40 anos se passaram (nem
mais se lembrava) guardava com ele como segredo
sem muita importância, o cadastramento da FUNAI.
Foi a cidade, foi o jeito. Ficou frente a frente com o
rapaz do escritório que verificava o seu documento
no computador.
De repente, o rapaz olhava para ele e pro
computador, encarava Sabá do Caru que já estava
desconfiado e com vontade de perguntar o que
estava acontecendo.
O rapaz do computador olhou para ele e disse
– A máquina, esta dizendo que o senhor não pode
emprestar dinheiro do banco porque o senhor é
índio!
Sabá se assustou de uma forma que não
acreditava. Perguntou, quem contou pra essa
maquina que eu era índio? Quem? Quem contou?
Olhou pra máquina assustado porque achou que o
computador era como um deus. Como aquela
máquina descobriu um segredo que ele guardava a
tanto tempo e nunca contara pra ninguém? Até
porque nem tinha tanta importância!
– Mas, como isso pode ter acontecido?
Pensando assim declarou:
– Essa maquina é um deus!
Ficou intrigado. Quem contou meu segredo?
Voltou pro rio Caru sem o empréstimo, contou o
caso pra todas as pessoas de lá – declarou – aquela
máquina sabe tudo, é como um deus!
CAFÉ TREMIDO
Gutyerrez Oliveira
Pra mim aquilo tudo era folia. O passeio
começava quando a vovó Cândida dizia tal dia
vamos viajar, sairemos de Manaus no barco de
recreio, vamos descer o rio Amazonas e passar em
frente a cidade de Itacoatiara. Eita! Maravilha! Eu
começava sonhar. Pra mim, a viagem começava ali.
Era uma líder essa minha vovó! Cuidava de todos
os detalhes, ela queria atar as redes no barco bem
cedo pra evitar imprevistos de última hora. Quase
sempre ficávamos todos juntos do mesmo lado da
embarcação. Tudo pronto, não falta nada. Hora da
saída. Cordas das redes de dormir atadas. Cordas de
amarras do barco largadas. Começava então a
grande aventura tão esperada. O timoneiro do barco
fazia comunicação com a sala das máquinas através
da linguagem dos toques de campainha dando a
partida. Algumas manobras para trás, outras para
frente. Marcha de viagem, lá vamos nós.
O meio do rio bem na frente de Manaus. A cidade
é linda vista dali! Era o momento que eu não
gostaria de perder nenhum detalhe daquela visão de
começo de viagem, a margem esquerda do rio, os
prédios antigos, os novos, as casas de tijolos e de
barros cozidos, os homens ribeirinhos trabalhando,
pescando em frágeis canoas. Curumins tomando
banho no rio, pulando das jangadas de toras
amarradas para as serrarias. Batelões puxados em
terra para manutenção. As últimas casas da cidade
iam ficando para trás, a refinaria da Petrobrás com
todos aqueles tanques imensos iam ficando também.
Aquilo tudo era fascinante. De repente na frente e
bem perto dos meus olhos, eu podia tocar com a mão
uma das sete maravilhas do mundo(ao meu ver) “o
encontro das águas” lugar cheio de mistérios e
encantamentos, lugar de encontro do sobrenatural
entre o céu e a terra, as pessoas diziam muitas lendas
daquele lugar de sarapantar cabra macho. O barco
passava naquele momento por cima das duas águas,
que se encontravam, se entrelaçavam, mas não
misturavam, sempre foi assim. Lá íamos nós
descendo o rio. Os telhados das últimas casas da
cidade se esquivavam dos nossos olhos pelo meio
das árvores. A próxima parada seria a cidade de
Itacoatiara.
No outro dia bem cedo, o momento que eu
esperava ansioso nessa viagem, era a hora de tomar
o “café tremido”. Então alguém pergunta, o que é
café tremido menino? Ora, geralmente a mesa onde
são feitas as refeições nos barcos de recreios (em
quase todos) ficam posicionadas bem próximas ou
por cima da sala das maquinas onde a trepidação do
motor é bem mais forte. Então, com a trepidação da
máquina, tudo ali tremia. O leite, o café, a bolacha, a
mão daquele senhor de idade que não tirava o
chapéu de massa da cabeça , o meu apetite tremia,
o sorriso das pessoas tremiam , até o olhar da minha
avó Cândida sempre atenta a tudo, tremia! A alegria
de tomar café tremido pela manhã, viajando em um
barco e os meus olhos em contato com a paisagem
das margens do rio para mim era o máximo. O café
com leite de gado da fazenda na xícara, ficava
trepidando, tremendo, formando ondinhas. As
colheres e copos sobre a mesa também trepidavam.
Na hora de misturar o café com leite, era o grande
momento do rio Amazonas que se misturava com o
rio negro, eu bebia aquele rio de café saboroso
acompanhado com fritos de trigo, pãezinhos,
macaxeira cozida, roscas de goma, pés de moleque,
mingau de banana com tapioca e outros. Um
verdadeiro manjar matutino que encantava o
viajante, (eu em particular) que depois de satisfeito
de todas aquelas iguarias, ficava imaginando aquele
café ecológico tremido, tremendo no meu “bucho”.
Depois do café tudo acontecia naquele barco e
chamava a minha atenção, eu ouvia as vozes e
saberes daqueles viajantes do rio, lembro um senhor
com mangas de camisa enroladas que ao falar tirava
e colocava o chapéu de palha na cabeça, fazendo
graça, contava que na viagem passada, um bode que
vinha amarrado perto de uns alqueires de farinha
d’água de repente por um descuido qualquer, rasgou
com a boca as folhas que encapavam o paneiro e
comeu toda a farinha do seu Maíco, que ele levava
sempre para vender na capital. Alguém passou e deu
um balde com água para o bode que bebeu tudo,
bebeu estufou e explodiu, foi pirão de bode com
farinha para todo o lado – finalizou ele . A
gargalhada era geral das mulheres e homens que
estavam na rede, menos o seu Maíco que perdeu a
farinha naquela viagem. Então; a conversa
continuava, rolava, falavam mil coisas e mil
historias engraçadas ou tristes, eu ficava vendo e
ouvindo cada personagem naquele barco. Mais
tarde, pela hora do almoço, viria também o guisado
de paca, a sopa tremida com jerimum, maxixe,
batata e quiabo escorregadio que descia na garganta
goela abaixo sem fazer força pra engolir, que
maravilha! A trepidação do motor, o caldo quente
gostoso com o novo tempero do barulho do motor e
da cozinheira do barco, se misturavam com as
pinturas naturais das paisagens. Aquela era uma
viagem real viajando nos sonhos das margens do
rio, no meio da floresta.
NOTURNO NO SERINGAL
Gutyerrez Oliveira
Naquele noite tudo estava muito mais escuro do
que nas outras noites. Os homens não podiam ver
nada do lado de fora do barracão. A chuva parecia
não ter fim, destilava por cima das árvores de
seringueiras caindo gota a gota nas folhas
encharcadas. Dentro do barraco como isolados do
mundo, viam o que mostrava a lamparina com o
vento remexendo as sombras assombradas da noite
na parede. No terreiro, um frio de gelo. Mas, por
cima das árvores, no meio de toda aquela escuridão,
um olho amortalhado pairava por cima da palhoça
vendo e observando os homens frágeis que pitavam
suas parroncas de tabaco para espantar os carapanãs.
A terra tremia, com zoadas de trovão e no negrume
da noite riscavam raios rápidos em ziguezagues de
relâmpagos que iluminavam a noite medonha,
mostrando como num flash a silhueta das arvores
assombradas. O olho se aproximava daquele barraco
no meio das trevas do seringal.
O homem na rede, doente de malária, ardendo em
febre. A floresta tremia dentro dele... O delírio era
maior que a vontade de viver, e a morte se
aproximava bem devagarzinho na forma, na figura
do rosto de sua mãe. E ele conversava falando com
ela no meio de toda aquela escuridão, pedindo que
trouxesse alguma poronga para acender e expulsar
aquelas trevas, que devagar, bem devagarzinho [...]
estavam entrando, invadindo suas entranhas e
tomando conta de sua vida.
– Mãe... mãe ... -ele chamava esperançoso...
A morte lhe sorria bondosa.
– Mãe... mãe ... É você?
E ela apenas sacudia a cabeça sorrindo,
confirmando ...
– Mãe, por favor, traz uma lamparina ! Para
afastar essa escuridão que esta me penetrando.
E a febre aumentando. E a febre aumentando.
Fazia frio de água da cacimba á boca da noite.
Mas ele suava, junto com as nuvens da tempestade.
No delírio, aquelas vozes nas sombras da parede
contavam tantas histórias! Ele lembrava...
Contavam a história da mãe da seringa, que
cansada de ver suas filhas árvores escorrendo seu
leite, colocava á noite um pedaço de espírito mau
na rede dos seringueiros, e os deixava doente.
Os mais velhos contavam a historia e aguardavam
com esperança de que um dia eles voltariam pra casa
e seriam como heróis na sua terra natal. Tudo
mentira! Tudo mentira! Eles jamais voltariam
daquele lugar.
Os deuses da floresta estavam raivosos, eles
estavam nos temporais e nos relâmpagos, e sem
misericórdia alguma, se escondiam debaixo das
folhagens para pular de emboscada na roupa do
seringueiro, que indo para sua casa, sem perceber, se
escondiam em sua rede de dormir para perturbá-lo á
noite com terríveis pesadelos.
A casa de palha e a terra tremiam devido aos
trovões.
E aquele homem continuava a conversar com sua
mãe, ouvindo o pio funesto de uma coruja
agourenta, e o gargalhar de um rasga mortalha
conversando com sua morte em forma de sua mãe,
vestida de mortalha roxa – respondia da cabeceira
da sua rede para a coruja que se acalmasse, pois em
breve ela teria seu defunto. Não tive-se pressa!
– Mãe... Mãe... Com quem você está
conversando?
E a morte apenas lhe sorria bondosa.
O pio daquela coruja parecia uma contagem
regressiva para o abandono da vida. Fazia tanto frio,
frio de argila molhada no corpo. A febre ardia tanto.
A agonia era tanta. O delírio era tanto, que ele
preferia que o sono chegasse logo dentro de toda
aquelas trevas, naquela hora noturna, soturna da
noite!
De repente, no meio da febre, entre a visão da
morte e da vida que minguava, escorrendo sonolenta
entre os seus olhos, aquele homem soube que a sua
rede tão companheira de descanso assim como a
rede de todos os outros seus companheiros lhe
serviria de caixão, seria o seu derradeiro invólucro
para o apartamento apertado de cova da terra fria ,
por isso gritou num delírio de ultima angustia
–Mãe, não posso me embrulhar... Esse lençol me
apavora...
E a morte lhe pegou no colo sorridente e bondosa
e o balançava consolando!
Cantando baixinho uma canção de ninar!
“Meu filho, não chores senão o dia vai custar a
vir. Não vai doer nada , porque morrer não dói, reza
três ave-marias, entrega-te, muda a tua roupa pra
dormir, veste a pijama de mortalha, pois a coruja já
parou de piar, agora você já pode dormir.”
Ele olha então com um olhar já sem brilho pra
morte, sua mãezinha bondosa e vê o rosto, a sua
mãe sorrindo...
Ele sorri também... Compreensivo... Resignado...
Concorda ficar em seus braços...
Ela tão bondosa... Seus olhos nos olhos dele...
Sorri dizendo – Não chores, não vai doer nada!
A chuva vai destilando gota a gota sobre as folhas
encharcadas , a terra parou de tremer dentro daquele
homem.
MAIS UM DIA
Gutyerrez Filho
Jorge acorda e se espreguiça. O Sol já nasceu
faz tempo. É domingo e ele acordou tarde. Quase ao
meio dia. Pra ele, esse é só mais um dia. Seus olhos
estão pesados. O sono insiste em ficar.
Enquanto Jorge dormia, um garoto pobre, de
dez anos morreu atropelado durante uma brincadeira
onde quatro rapazes que dirigiam alcoolizados
corriam feito loucos pelas ruas, dando freadas
bruscas. A mãe do garoto, chora desconsolada
perante o corpo da criança no necrotério,e os garotos
que dirigiam, filhos de grandes empresários, vão
ficar impunes porque segundo o advogado deles: foi
apenas um acidente.
Jorge levanta o corpo com lentidão e senta na
cama bocejando e espreguiçando-se novamente.
Naquele momento o presidente da república começa
a sentir leves pontadas no coração. O jornal dá a
notícia que no Rio de Janeiro, numa favela, quinze
pessoas morreram num tiroteio entre policiais e
traficantes. Entre os mortos está uma garotinha de
cinco anos com um tiro no peito, vítima de bala
perdida.
Jorge olha o relógio na parede, ainda é onze e
meia. Ele decide deitar mais um pouco. Afinal
chegou em casa as seis da manhã da noitada. Foi
uma noite e tanto! E além do mais é domingo. Ele
pode acordar tarde se quiser... Não muito longe dali,
um homem de quase setenta anos, limpa o árduo
suor da testa enquanto trabalha duro limpando e
capinando, pra ganhar menos do que a metade da
metade do que Jorge ganha. Ao mesmo tempo, num
apartamento ali perto, uma garota de quinze anos
descobre que pode estar grávida e não sabe quem é o
pai. Do outro lado do país assaltantes armados
mantêm quinze reféns em um banco.
Jorge fecha os olhos. Um jovem estuda
concentradamente pra tentar passar no vestibular pra
medicina enquanto seu pai bebe a décima lata de
cerveja e assiste futebol. Um cozinheiro sorri feliz,
por ter aprendido uma nova receita. Um pai de
família senta desconsolado no banco de uma praça,
pois acaba de perder o emprego e preciso pagar o
estudo dos filhos.
Jorge está prestes a dormir. Começa a
imaginar coisas e cenas sem nexo. Pensamentos
avulsos vem em sua mente. Enquanto isso o
aquecimento global está causando o derretimento
das geleiras nos pólos, e mudanças climáticas
continuam ocorrendo no mundo todo. Está chovendo
muito na grande São Paulo, e as ruas estão
encharcadas, uma alagação está por vir. Na Somália,
a mãe desnutrida da á luz um filho morto. No Japão,
um suspiro de alívio por um alarme falso de
terremoto.
Jorge finalmente dormiu. O trânsito continua
barulhento nas grandes vias, as pessoas xingam
estressadas, preocupadas. Operários continuam
suando, furando o chão, quebrando pedras. Mas
Jorge não sabe disso porque dorme, e as janelas e
porta do seu apartamento estão bem fechadas. Pra
ele aquele é só mais um dia. E ele está seguro ali,
embaixo do seu cobertor.
A LOJA DE AMIGOS
Gutyerrez Filho
Na porta de vidro estava escrito “Entre”.
A garota entrou. Tinha dezesseis anos.
Rapidamente aproximou-se dela um vendedor, bem
vestido, bem penteado, e com um sorriso no rosto.
– Bom dia.
– Bom dia– disse a garota de volta.
– Posso ajudá-la?
– Sim, eu estou dando uma olhada.
Na verdade a garota tinha olhado a loja já
algum tempo e não tinha noção do que se vendia ali,
só havia visto o nome da loja:
“Loja de Amigos”
Talvez houvesse roupas pra vender, talvez
bijuterias, ou cosméticos... Não fazia mesmo idéia
do que se vendia ali e estava entrando só por
curiosidade, mas então, ao entrar foi surpreendida
por tal vendedor.
– Fique a vontade – disse ele
Foi então que ela se espantou ao ver. Dentro da
loja haviam várias prateleiras e várias pessoas dentro
de vidros gigantes iguais aos de maionese. Eram
crianças, homens, mulheres, velhos, pessoas de
todos os tipos. A menina sentiu um pavor enorme ao
imaginar que iria acabar sendo presa ali junto com
os outros.
– E então quer olhar um modelo?– disse o
vendedor
– O q-que são eles?...Eles estão vivos? São de
verdade?
– Claro que são. Aqui vendemos amigos de
todos os tipos.
Então a menina olhou com mais atenção e
percebeu que as pessoas estavam se mexendo dentro
dos vidros. Não eram apenas manequins. Todos
estavam atentos a garota e olhavam curiosos para
ela, ansiosos para serem comprados. Com o olhar
eles pareciam dizer “ME COMPRE”.
– Você quer uma amiga ou um amigo?
– Eu não sei... – disse a menina– uma amiga,
eu acho.
– Bom eu posso lhe mostrar uns modelos, quer
ver?
– Sim, quero
O vendedor se aproximou de uma vitrine
aonde havia uma garota linda num dos vidros,
sorridente, olhos claros, cabelos ondulados e vestida
na moda.
– Esse modelo é bem requisitado, é um pouco
caro, mas é uma amiga que lhe dará algumas
vantagens, mas algumas desvantagens também.
– Vantagens?—quis saber a menina
– Sim, a vantagem é que se você andar com ela
vai saber de toda a vida dela, e poderá contar toda
sua vida a ela. Tudo que você contar a ela, ela não
contará a ninguém. Ah sim, outra coisa é que se
você andar com ela você vai ter status, já que ela é
bem popular.
– E a desvantagem?
– A desvantagem é que ela sempre será mais
bonita que você. E você será sempre a sombra dela.
Os garotos da sua idade vão preferir ela a você. Por
isso você terá inveja dela.
– Hum, sei. E quais são os outros modelos que
vocês têm?
– Bom, tem essa aqui também.
O vendedor então mostrou num vidrinho uma
garota morena de cabelo encaracolado, bem
descolada, e com o olhar companheiro
– Esse modelo é sensacional!– disse o
vendedor– É de uma amiga super companheira,
super amável e super sorridente. Estará com vocês
em todos os momentos. Acontece que ela é muito
inteligente e sabe conversar como uma adulta, assim,
se vocês estiverem entre amigos, ela será sempre o
centro das atenções por causa da sua graciosidade.
Então esse modelo não é bom pra quem gosta de ser
o centro das atenções.
– E aquele modelo ali?– apontou a menina para
um vidro onde estava uma garota com olhar sincero,
e com um sorriso de menina sapeca.
– Ah sim– disse o vendedor – como eu poderia
ter esquecido? Esse modelo chegou recentemente na
loja! É um dos melhores!
– Quais são as vantagens e as desvantagens?–
quis saber a menina que agora já entendia um pouco
do assunto
– Essa é uma amiga super sincera, fala o que
pensa, dá conselhos, adora a sua companhia, chora
com você nos momentos difíceis, sorri com você nos
momentos fáceis, adora fazer compras, fazer as
unhas, sabe os melhores lugares pra ir, e você sentirá
que ela é como uma irmã pra você. A desvantagem é
que ela é verdadeira demais e por falar muito o que
pensa, isso pode ocasionar algumas brigas, mas nada
grave. Ela não vai conseguir ficar muito tempo longe
e logo virá pedir desculpas.
– Nossa então acho que vou levar essa! Gostei
muito.
– Quer que eu embrulhe em papel de presente
ou coloque em uma sacola?
– Não pode deixar que eu a levo na mão
mesmo, eu já vou usando no caminho.
– Vai pagar em cartão ou em dinheiro?
– Ah sim! Quanto é mesmo?
– Cento e cinqüenta cruzados
– Puxa! Até que não está tão caro! Quanto
tempo dura?
– Dura até três meses.
– Só isso?
– Sim. Depois disso ela ficará amuada em um
canto. Ficará orgulhosa e quase não falará com você.
Depois disso, ela apaga e não tem mais
funcionamento.
– Mas três meses é muito pouco tempo de
amizade!
– Minha querida– sorriu o vendedor – isso é
apenas uma loja. Se você quer amigos de verdade, e
que durem pro resto da vida, você não vai encontrar
em uma loja. Mas sim lá fora, nos momentos mais
difíceis da sua vida.
CHICO E O MUNDO
Gutyerrez filho
Naquele dia o cachorrinho Chico quis ver o
mundo. E saiu pelo portão da frente perseguindo
uma borboleta azul, que havia pousado em seu nariz
enquanto dormia.
Ele vivia bem com os seus irmãos e sua mãe,
Lessie, num quintal espaçoso, cheios de árvores,
numa casa cheia de jardins na frente. Ele tinha donos
maravilhosos que lhe davam carinho, que lhe
carregavam no colo, que lhe alimentavam com leite,
e até com biscoitos. Mas naquele dia ele quis ver o
mundo, e saiu pelo portão da frente. Ele nunca havia
chegado tão longe, ele nunca ia pra longe dos
irmãos. Chico era diferente. Era agitado. Latia pra
cá, pulava pra lá. Puxava briga, puxava o rabo de um
aqui, a orelha de outro ali.
Sua mãe sempre apartava as brigas, dando uma
lambida, e ele vinha todo manhoso pra perto da mãe.
Tinha ciúmes dela. Queria ela só pra ele. Queria o
leite dela só pra ele. Queria a tigela de ração só pra
ele. Queria tudo só pra ele. Se alguém tentava fazer
carinho no seu irmão mais gordinho ele corria pra
perto, cutucava uma pedra, pulava de um lado para o
outro para chamar atenção para si. Queria todo
carinho só pra ele. E mesmo assim. E mesmo tendo
tudo só pra si, algo o incomodava. Algo ainda estava
faltando. E ele acordava de noite, e saia de fininho
de perto do calor dos irmãos e de sua mãe. Saia da
sua casinha e ia dar uma volta pelo jardim, olhava as
estrelas, deitado na grama, olhava para um lado e
para o outro. Queria mais espaço, mais coisas para
descobrir, mais coisas pra ver, mais coisas pra
morder.
Chico escavava a horta dos donos, espalhava o
monte de folhas reunido no quintal, mordia as flores,
caçava formigas e besouros, mas rapidamente
cansava daquilo e enjoava rápido de todas as outras
brincadeiras que ele mesmo inventava. Chico
adorava aventuras. Adorava o perigo. E fazia todo
dia uma arte diferente, mas mesmo assim, tinha algo
errado.
Tinha alguma coisa faltando e ele não sabia o
que era. O pequeno Chico queria ver o mundo.
Chico odiava tomar banho, fugia pra não ser
pego e para não ir pra dentro da bacia d’água. E se o
pegavam, ele gania o tempo todo enquanto lhe
ensaboavam e lhe escovavam, e fingia sempre que
caia sabão no seu olho, para ganhar mais atenção.
Logo depois do banho ele corria para a terra, não
esperava que lhe enxugassem. Sacudia-se todo,
arrastava-se na grama, na terra e ficava imundo de
novo. Lá ia ele pro banho de novo! E dessa vez não
deixavam que ele fugisse e o enxugavam com uma
toalha enquanto ele reclamava. Em seguida secavam
o seu pelo com um secador e ele adorava. Os irmãos
morriam de medo do secador, mas ele não. Chico era
corajoso.
Sempre foi.
Por isso, saiu pelo portão da frente. E logo
esqueceu a borboleta e logo ficou encantado com o
mundo lá fora. Aquele grandioso e intrigante mundo
que o esperava. Ficou rapidamente eufórico
balançando o rabo sem parar, latindo bravamente pra
rua muito movimentada com carros, ônibus,
caminhões e bicicletas. Logo avistou, ali na calçada,
perto de uma lata de lixo, um gato vira-lata, rajado,
fuçando atrás de comida.
Perseguiu o gato, que se assustou e atravessou
a rua rapidamente. Chico não sabia fazer isso. Ele
não sabia atravessar a rua. Mas mesmo assim ele
correu atrás do gato. A rua era movimentada, vinha
um carro e freou bem a tempo de Chico passar
correndo, assustado, para o outro lado da rua.
Coração acelerado, e apavorado com aquela freada
brusca, Chico não sabia mais como voltar. A rua era
muito movimentada. As pessoas que passavam ali,
na calçada tentaram pegá-lo, mas ele correu latindo.
Fugiu! Fugiu daqueles estranhos. A borboleta azul
onde estava? O gato rajado onde estava? E Chico
onde estará agora?
Passou um dia. Dois dias. Três dias. Passou
uma semana. Um mês. Chico não voltou mais pra
casa. Quem esqueceu o portão da frente aberto? Os
donos de Chico ficaram tristes. Seus irmãos ficaram
tristes. Sua mãe, Lessie, chorou triste. Onde estará o
Chico? Onde estará?
Nesse momento está chovendo muito lá fora.
As noites são muito frias lá fora. Chico está
com frio? Chico está protegido da tempestade?
Chico terá arranjado algum amigo? Chico está com
medo? Não. Não dá pra imaginar ele com medo. Ele
é muito corajoso. Sempre foi. Ele adorava o perigo.
Ele era tão valente. Mas será que um dia ainda
vai voltar pra casa? Será que está sozinho? Terá
arranjado um novo lar? Por onde anda o Chico?
Chico abandonou o quintal onde morava e
agora tudo está tão calmo. Tudo está tão calmo na
casinha, na horta. Tudo está tão sem alegria. Os seus
irmãozinhos às vezes têm a impressão que de uma
hora pra outra ele vai aparecer, abanando o rabo e
correndo agitando tudo de novo. Mas talvez isso
nunca mais aconteça. Talvez nunca mais ele seja
visto de novo. Ele levou consigo toda sua alegria
naquele dia, quando saiu pelo portão da frente.
E tudo o que queria era ver o mundo.
VOZES SILENCIADAS
Gutyerrez Filho
Era uma garota linda. Tinha cabelos negros,
olhos misteriosos e usava botas da mesma cor da
roupa. No rosto maquiagem escuras e um piercing.
Estava no cemitério, escrevendo em um diário, foi
quando viu um homem, velho, que cavava um
túmulo. Era um coveiro. E ela escreveu sobre o
coveiro na sua agenda e sobre o que achava dele.
Parecia um homem pobre, desnutrido, fracassado -
cavando covas pra ganhar dinheiro. Talvez nunca
tivesse lido sequer um livro. Talvez nem soubesse
ler direito. De repente o coveiro percebeu a garota
gótica ali. E disse:
– Por que você está aqui garota, no Lar dos
Mortos?
– Vim pra ficar sozinha, pra pensar.
– Você não tem medo?
– De quê?
– Dos mortos.
Ana riu. O coveiro devia estar querendo lhe
assustar.
– Eu tenho mais medo dos vivos do que dos
mortos – respondeu ela.
– Então cuidado.
– Com o quê?
– Pra você não se tornar como eles um dia.
– Todos nós vamos morrer um dia e nos tornar
como eles – disse Ana
O coveiro parou então de cavar e se aproximou
dizendo
– Aqui estão enterradas pessoas. Muitas pessoas.
Vítimas do tempo, de doenças, de acidentes,
incidentes. Aqui não estão enterrados só os corpos
dessas pessoas, mas também seus pensamentos e
ideias nunca reveladas. Sentimentos reprimidos.
Amores secretos que jamais sairão do túmulo, mas
que poderiam ter sido maravilhosos. Pedidos de
perdão nunca feitos. Coisas que deveriam ter sido
resolvidas e não foram. Sonhos que poderiam mudar
o mundo. Sabedorias e conselhos que poderiam
mudar o rumo de uma vida e até quem sabe salvar
uma vida. Todas essas coisas agora estão aqui,
enterradas e jamais sairão desse lugar. Tudo isso.
Todas essas coisas estão aqui, para sempre,
aprisionadas na terra adormecida dos corpos mortos.
Essas coisas estarão para sempre gritando um “sinto
muito” que nunca veio para uma pessoa querida ou
“eu sempre te amei” para uma pessoa amada.
Arrependimento... Essa terra está cheia de
arrependimentos...
O coveiro suspirou fundo e perguntou
–Qual o seu nome?
–Ana
–Ana. Não deixe que sua vida se torne algo
cheio de arrependimentos. Não deixe sentimentos
escondidos até o túmulo. Não esconda amor no
coração. Viva a vida. Ame. Grite. Não venha se
tornar pó um dia, sem dizer o que sente para que
seus sonhos se tornem apenas um petróleo onírico
aqui desse lugar, onde todas as vozes silenciadas
gritam em silêncio.
Depois disso o coveiro se foi. E Ana Também.
Aquelas palavras do coveiro ficaram. Anos
depois ela passou ali, e já era uma mulher. Ela
passou de carro e parou na frente do cemitério,
abaixou o vidro e procurou por aquele coveiro com
os olhos, mas não o encontrou. Resolveu entrar e
procurar por ele. Foi até o lugar que estava naquele
dia que conversou com o coveiro. Mas não o
encontrou também. Perguntou para um vigia sobre o
tal coveiro contou como ele era e que fazia tempo
que tinha lhe visto. O vigia lhe informou que era
novo ali e que não conhecia ninguém assim por ali.
Ana então foi embora, e na saída do cemitério, entre
um tijolo do muro e o cimento da calçada, encontrou
uma flor bonita. Então sorriu. E lembrou do que
havia aprendido duas coisas com o tal coveiro que
nunca deixaria sua vida ser um arrependimento e
que coisas bonitas podem vir dos lugares mais
inesperados.
ACIDENTE NA AVENIDA
Gutyerrez Filho
Uma multidão aglomerada atrapalhava o
trânsito na avenida principal.
Pessoas curiosas se aproximavam, velhas,
senhoras, estudantes fardados, camelôs, vendedores
ambulantes de bombons. Panelinhas aqui e ali
conversavam sobre o que havia acontecido.
Percebi logo de cara. Havia acontecido um
acidente. Me aproximei pra ver quem havia sido a
vitima.
– Eu acho que ele ainda está vivo – comentou
uma senhora com um homem
– Ele desmaiou na hora – dizia uma jovem
para o seu namorado que a abraçava como que
tentando acalmá-la do susto de ter visto o acidente.
Ouvi outros comentários como:
– Ela está morta?
– Acho que sim, ela está cheia de sangue.
Ele... e ela? Quantas pessoas eram afinal?–
pensei eu
Fui me aproximando, penetrando a multidão.
Não dava pra ver nada. Tinha muita gente na minha
frente. Alguém se esbarrou em mim, saindo do
aglomerado dando espaço pra que eu entrasse nele.
Tudo o que eu podia ver era uma picape tombada no
meio da avenida. Ouvi um barulho de sirene. Olhei
pra trás e vi que o carro da ambulância parava ali
perto. Penetrei a multidão, me espremi para entrar
naquele aglomerado de gente curiosa. Empurrei uma
mulher para de uma vez por todas ver quem havia
sido a vítima. Fiquei surpreso e chocado! Era uma
garota da minha idade! Fiquei mais surpreso ainda
ao perceber que eu conhecia o rosto. Será que era
quem eu estava pensando? Mas que droga! Eu não
podia acreditar naquilo.
Na quarta série eu havia estudado com uma
garota chamada Carolina, não lembro o sobrenome.
Albuquerque, ou Oliveira, tanto faz. De início não
nos falávamos direito. Só trocávamos algumas
poucas palavras que eram de “oi” a “me empresta
um lápis”. Eu tinha um amigo, parceirada que
também estudou comigo da quinta série em diante.
O nome dele era Carlos. E ele vivia dizendo
– A Carolina esta afim de você.
Eu não acreditava, mas ele dizia que toda vez
que ela me via ela sorria, e que ficava me olhando
quando eu passava. Comecei a achar então que
aquilo podia ser verdade, pois comecei a prestar
atenção no jeito dela. Acontece que eu já era afim de
uma garota, uma da minha rua que sempre jogava
vôlei com a gente. Por isso não dei muita bola pra
essa história. Aquele ano terminou e fomos todos pra
sexta série. Eu, Carlos e Carolina. O Carlos
continuou dizendo que aquela garota se amarrava em
mim. Dizia:
– Pô, ela é bonitinha, se eu fosse você eu
ficava com ela.
Eu inventava uma desculpa e mudava de
assunto. Como eu disse, tinha a garota do vôlei.
Naquele início de ano recebi um bilhete,
escrito numa folha de caderno assinado como
“admiradora secreta”. Estava mais do que na cara
que era coisa da Carolina. O bilhete dizia que eu era
o cara certo pra ela, tudo que ela sempre havia
sonhado e que ela iria lutar por mim até o final e
outras coisas desse tipo. Uma verdadeira declaração
de amor. Fiquei lisonjeado com a carta. Até pensei
em ficar de uma vez por todas com ela. Mas pelo
jeito a parada ia ser dura. Ela devia estar apaixonada
e ia se envolver demais. Pensei bem antes de tomar
qualquer decisão. Resolvi também que não mostraria
a carta ao Carlos. Queria resolver aquela história
sozinho. Continuei a Recber bilhetinhos. Mais uns
três ou quatro. E a Carolina quando encontrava
comigo sorria e tentava se aproximar e puxar
conversa. E isso resultou em uma leve amizade.
Acabamos nos aproximando. Agora conversávamos
mais abertamente, eu fazia ela rir, ela me fazia rir. O
Carlos dizia:
– É isso aí meu irmão. Não, dispensa não!
E então houve mais um bilhete, o último.
Dessa vez um bilhete diferente. Em uma folha
colorida, perfumada e de cor rosa. Ali Carolina
escreveu um poema e revelou sua identidade
dizendo que me amava e que não podia viver sem
mim. Eu não podia acreditar naquilo. Aquela história
estava mais séria do que eu pensava. Toda aquela
declaração eu só podia corresponder de um jeito e
fiz o que Carlos já havia me dito. Fiquei com
Carolina atrás da quadra da escola. E aí então
namoramos o resto daquele ano. A Carolina vivia
me trazendo bombons, bilhetinhos, cartõezinhos.
Tudo ia bem entre a gente. Foi então que aconteceu.
Na sétima série a garota do vôlei me deu bola e aí
ficou claro o que ia acontecer. Traí a Carolina com
ela. E rapidamente todo mundo ficou sabendo.
Inclusive ela. Ela não me disse uma palavra, apenas
se afastou. Não foi tomar satisfações, nem disse
nada. Apenas se afastou. Desde então não nos
falamos mais. Evitávamos nos encontrar ou cruzar o
olhar e foi assim durante toda a sétima série. Na
oitava série logo no início do ano eu percebi a
mudança da Carolina. Ela estava com um novo
visual. Algo meio rebelde. Como se estivesse
revoltada. Havia pintado o cabelo, colocado piercing
e feito uma tatuagem. Agora ela respondia aos
professores, xingava, gritava com os outros. Aquela
nova Carolina pouco lembrava a de antigamente que
eu havia conhecido e namorado. Aquela menina
tímida e sorridente que evitava me olhar agora ela já
me encarava. E quando fazia isso era sempre com
um olhar de raiva que parecia dizer:
“A culpa é toda sua!”
Então ela começou a namorar com uns caras
bem mais velhos que ela. Um dia apareceu bêbada
na escola.
O Carlos começou a dizer:
– Viu o que você fez? Feriu o coração da
moça, cara.
Eu dizia que eu não tinha nada a ver com isso.
Final eu não podia acreditar que a garota havia
mudado totalmente por causa de um coração partido
Mas, eu não era o tipo de cara que entendia
muito de coisas do coração. A oitava série continuou
e Carolina continuou aprontando. Volta e meia toda
a sala comentava
– Já sabe da última. A Carolina saiu de casa.
– Já sabe da última a Carolina está com os
olhos roxos porque apanhou do namorado.
– Já sabe da última... A Carolina desistiu da
escola
E assim ela sumiu. Não a vi nunca mais.
Passou-se mais um ano. Dois anos. De vez em
quando eu havia por aí. Seu olhar já não era mais de
raiva, agora era de desprezo.
Aí segui minha vida, Carlos também seguiu a
dele, se mudou pra outra cidade. A menina do Vôlei
que aliás se chamava Gabrielle, se casou cedo com
um cara que veio do sul, filho de um empresário.
Tive várias namoradas depois disso. E essa história
ficou no baú.
E agora ao passar pela avenida vejo de repente
esse rosto que eu um dia conheci. Carolina, envolta
em uma poça de sangue. Uma coisa terrível de se
ver. A última notícia que eu havia ouvido sobre ela
era que ela estava namorando com um cara que tinha
uma picape e que só andava em alta velocidade. Já
havia batido várias vezes, mas nada desse tipo.
Agora vejo o casal, – Provavelmente a garota
ultrapassou o vidro do carro na hora que a picape
bateu a toda velocidade no poste. O rapaz e a moça
estavam alcoolizados – ouvi alguém comentar
E aquilo me deixou pensativo. E se eu não
tivesse ficado com a garota do vôlei e não houvesse
magoado a Carolina. Ela teria um destino diferente?
Ela teria andado com más companhias tentando
chamar a minha atenção? Ela teria ficado revoltada?
Será que foi tudo culpa minha? Será que foi tudo
uma reação em cadeia, uma bola de neve? Não sei
dizer. E nem sei dizer também se ela estava viva, ali,
caída no meio da avenida.
PORCOS NA ALMA
Rosa Neves
O sol ia se pondo. Eu olhava aqueles raios por
entre as árvores. Era belo e misterioso o pôr do sol.
Nos meus sete anos de longa vida, (me sentia uma
mocinha) eu não conseguia compreender. Eu
pensava “Por que o sol vai embora?”.
Nesse tempo de férias estávamos na fazenda de
meu Pai. Casa Grande avarandada, com assoalhos
bem alto preparados por causa da grande cheia do
rio Amazonas, mas era tempo de verão e tudo estava
seco. Na fachada da casa tinha uma placa com letras,
eu ainda não sabia ler, me disseram que ali estava
escrito “Fazenda Segredo”. Era na beira do rio
Amazonas, no meio da floresta. Tinha de tudo lá:
galinha, pato, pinto, cabra, cabrito, boi, vaca, cavalo
e porco.
Naquela hora do pôr do sol, próximo onde eu
estava sentada não havia silêncio. É que bem
próximo a mim uma enorme porca gorda cheia de
bacorinhos (porquinhos) estava deitada e eles
tentando mamar gritavam fazendo enorme barulho.
Não sei ao certo quantos eram, sei que eram muitos,
havia dois diferentes, eles estavam enfeitados com
laços no pescoço. Eu não estava ali por acaso,
esperava o meu Cupuaçu mamar, assim era o nome
do meu porquinho. Era marrom, roliço, igual a um
cupuaçu. Ganhei esse porquinho de meu pai, o outro
era de minha irmã.
Era tão lindo, mas, me dava muito trabalho e
preocupação, eu ficava seguindo e cuidando dele
durante o dia todo. Desde que o ganhei, pegava ele
no colo como se fosse um bebê. Parecia que eu não
agradava muito, porque ele gritava demais, sempre
agoniado não ficava quieto, esperneava querendo ir
para o chão. Pegava ele no meu colo acarinhando,
mas ele sempre ficava roncando, quando não
gritando.
No dia em que eu e minha irmã ganhamos os
nossos porquinhos, papai nos chamou e disse:
– Filhas escolham os seus bacorinhos!
Olhei e o meu coração bateu forte quando
deparei com o Cupuaçu, todo marronzinho, lindo,
me apaixonei por ele. Peguei-o no colo e fiz uma
promessa:
– Eu vou cuidar de você.
Eu queria dar um banho nele. Minha mãe me
ajudou. Deu banho, perfumou, colocou laçinho de
fita bem colorida e bonita com o nome que eu tinha
escolhido e batizado. Cupuaçu na verdade era uma
porquinha.
Eu então doei minha almofadinha para
Cupuaçu dormir confortável. Cupuaçu não queria
saber de almofada, agoniada grunhia, guinchava,
roncava e esperneava.
–Deixe ele no chão um pouco para mamar,
disse minha mãe aperreada com tanto grito.
Soltei Cupuaçu que saiu em disparada atrás da
porca; sim, daquela porca, porque a mãe de cupuaçu
agora era eu. Corri atrás, a porcona tinha resolvido ir
para uma poça de lama se lambuzar e Cupuaçu para
minha tristeza se atirou com toda alegria na lama
junto com a mãe e os irmãos.
Voltei chorando porque minha porquinha
estava toda suja. Inconsolável, chorava muito e
soluçava, minha mãe parecia sorrir do meu
sofrimento e eu me desesperava em ver a minha
amada Cupuaçu na lama.
– Não chore e deixe que ela possa descansar
um pouco, depois nós daremos outro banho nela.
Fiquei sem entender, porque cupuaçu estava
cansada? Ela estava no meu colo o tempo todo! Não
a deixei andar a manhã inteira!
Então novamente minha mãe e eu pegamos
Cupuaçu e demos outro banho nela, lacinho colorido
de fita outra vez em seu pescoço, fiz questão de
passar quase toda a minha lavanda em Cupuaçu, que
gritava quanto mais eu passava talco e lavanda.
Então nesse por do sol eu esperava Cupuaçu
mamar para pegá-la no colo novamente. Era bonito o
por do sol, mas eu estava preocupada, a noite estava
chegando e Cupuaçu ia ficar lá fora da casa no
escuro. Então me perguntava “porque o sol vai
embora?”.
Naquele momento aquele era um problema
sério que eu não podia resolver. Era a minha
preocupação. O problema era do meu tamanho.
Cogitei em fazer uma tentativa de levar Cupuaçu
para dormir comigo em minha rede. No momento
refleti: que se mamãe descobrisse, era “peia” na
certa. Então fui falar com ela. Minha mãe
respondeu:
– Nem pense mocinha! Ela vai ficar bem, está
com a mãe dela e amanhã você brinca outra vez com
ela.
Não foi uma explicação muito convincente.
Fiquei magoada com mamãe. Mas argumentei,
–Mãeee, eu não coloco ela na rede não, ela vai
dormir na almofada em baixo da minha rede.
Mamãe disse:
– Quando mamãe diz não é não, certo?
–Certo! – Respondi– Custei a dormir naquela
noite. Ouvi o piado da coruja e pensei; – será que
esse bicho vai pegar minha porquinha? - Meu
coração ficou apertado, Cupuaçu devia estar com
medo do escuro e dos barulhos dos bichos do mato.
Meus olhinhos se encheram de lágrimas e dormi
abraçada com a almofada de Cupuaçu.
De manhã bem cedo, nem fui pegar o meu leite
na caneca lá no curral. Fui atrás de Cupuaçu, que
estava toda suja novamente, foi outra maratona e os
dias foram se passando da mesma maneira, nem eu,
nem Cupuaçu estávamos felizes. Cupuaçu já não
gritava tanto no meu colo, mas continuava a correr
para a lama assim que tinha uma chance, eu queria
dar queijo pra ela, Ela queria era babujo, restos de
frutas e comidas. Tentei dar um pedaço de carne
assada com feijão, carne de paca, Cupuaçu não quis.
Que dificuldade era a minha! Realmente era um
problema sério para mim, a minha querida Cupuaçu
não queria ficar limpinha e nem deitar na
almofadinha cheirosa.
Isso me deixava uma menina pensativa e até
um pouco tristonha. Eu tinha tantos planos para
Cupuaçu. Queria fazer dela uma porca limpinha e
cheirosa. Mas Cupuaçu não queria saber de meus
sonhos, o seu prazer estava em deitar na lama, fuçar
o chão e ficar emporcalhada. Eu estava pensativa.
Cupuaçu não queria saber daquele mundo de
limpeza e perfumes. Meu pai me observou, me viu
assim, foi até mim e perguntou:
– E então minha filha, onde está a sua
porquinha?
– Ela fugiu pra lama papai! Respondi
tristonha. – Por que pai? Por que ela prefere a lama
em vez da almofada cheirosa? Hein pai?
– Porque a lama já está na alma dela minha
filha – disse meu pai.
Então eu entendi...
Passei a observar a alegria de Cupuaçu de
longe, balançando o rabinho sujo de satisfação. E eu
olhava o pôr do sol e me perguntava “Por que o sol
vai embora?”.
UM DIA NA ENCHENTE
Rosa neves
Manhã chuvosa, um pouco fria. Ela se
espreguiçou na rede e olhou para o lado. Em outra
rede bem perto, estava a irmã, já acordada, com
aquele sorrisinho conhecido. Sorriram uma para a
outra, e automaticamente pularam da rede quase ao
mesmo tempo, correndo, foram para a janela olhar
os pingos de água caindo no rio.
Era tempo de enchente. A água passava por
debaixo do assoalho da casa, dando a impressão de
estar sempre viajando em um barco. A casa era feita
de madeira, o assoalho também, com pernas altas,
prevenindo as grandes enchentes. As duas irmãs
queriam ir para a varanda da casa onde a visão era
melhor, lá dava para ver os peixinhos nadando sob a
água, tinha uns bem pequenos fugindo dos grandões
que queriam devorá-los. Assim como na vida onde
também há muitos peixões querendo devorar os
peixes pequenos, que vivem lutando para sobreviver
neste tempo de grandes “enchentes”.
A varanda era espaço proibido, para elas, pelo
perigo de cair na água e se afogar. Seus pais tinham
grande preocupação com isso, pois volta e meia
sabiam da morte de alguma criança que caindo no
rio se afogava. Uma tristeza só.
Os pingos da chuva que incidiam no rio era
uma atração à parte para Lalála; assim lhe chamava
sua irmã Balila. Eram apelidos carinhosos com que
eram chamadas.
Lalála na sua meninice olhava em torno e
refletia:
– Tanta água, para quê...?
A água caia do céu, e ao redor era água por
toda parte, havia árvores que já estavam submersas,
e a correnteza era forte, trazendo e levando coisas
sem parar, por debaixo da casa e nas laterais.
Ficavam ali apreciando, aquela beleza. Lá vinha um
pedaço de pau, descendo rio abaixo e a disputa
começava:
– Esse barco é meu!
– Não, é meu!
– Eu vi primeiro!
– Não quero mesmo, esse é feio!– E a peleja
continuava.
Naquele dia marcante, a chuva foi afinando,
afinando até passar por completo. Haviam dias que
chovia o dia todo. A mãe falou:
– É hora de escovar os dentes mocinhas!
Rapidamente pegaram as escovas e foram para
a escada, onde mais da metade já estava debaixo da
água. Sentaram no degrau e Balila ficou brincando
com as mãos dentro da água, derrepente um grito se
ouviu, então ela levantou a mãozinha gritando, e
atracada com os dentes ao seu dedinho indicador,
estava a malvada piranha. O pai-herói correu em seu
socorro. Foi uma mordida feia. A mãe fez o
curativo. E foi aquela correria, depois que passou o
susto, o pai falou:
– Eu vou buscar o leite!
Lalála correu para pegar a caneca de alumínio
com alça. Ouviu a irmã soluçando dizer:
– Eu vou também!– Lalála então muito feliz
pegou a caneca da irmã. Era uma rotina irem com o
pai até a maromba tirar o leite pela manhã. Foram
para a canoa, Lalála com lágrimas nos olhos
observava Balila que ainda soluçava no resto de
choro, queria poder tirar da irmã aquela dor em seu
dedinho. E as recomendações da mãe vieram:
– Se assentem bem no meio da canoa, cuidado!
Não ponham as mãos na água, não se sujem!
O pai começou a remar e lá foram rumo à
maromba.
Maromba é um curral de boi flutuante, com
toras grossas de madeira amarradas umas às outras,
como jangadas enormes, com tábuas por cima
formando uma grande plataforma, ali ficam os bois,
cavalos, carneiros, na época de enchentes, até o rio
secar outra vez. E nos tempos de seca a maromba
virava um lugar perfeito para brincar e para lazer da
família.
A maromba da casa de Lalála, estava presa
embaixo de árvores, onde o gado podia se proteger
do sol forte e desfrutar das sombras.
Antes de chegar à maromba, a passagem pelas
ingazeira e árvores mari-mari, era certa! o pai colhia
as frutas.
Ao chegar no curral, enquanto o pai tirava o
leite, subiram na cerca e ficaram apreciando a visão
dos bezerros querendo mamar, andavam de um lado
para o outro, uma vaca mugindo, os cavalos
relinchando.
Hora da mamada! O pai encheu as canecas,
com leite fresquinho e elas tomaram ali mesmo.
Balila olhou para Lalála sorriu e disse:
– Olha o teu bigode branco! Ela já havia
esquecido o susto da piranha.
– Tá doendo? – Perguntou Lalála.
–Tá - Respondeu a irmã.
–Papai do céu vai curar, tá bom?– Se
abraçaram ali. Uma cuidando da outra. Como
selando um pacto de amor. Aquele dia estava sendo
marcado na vida delas. As irmãs maiores estavam na
cidade estudando. Só voltavam nas férias.
De volta para casa, o pai passou aonde havia
colocado uma malhadeira e pegou diversos peixes.
Lalála estava preocupada. E agora? A irmã não
podia mais fazer nada. Tinha que ficar quietinha
com aquele dodói, a mão levantada, para não bater,
se apressava o passo, doía. Tinha que andar
devagarzinho. Não podiam mais balançar na rede tão
alto, como gostavam porque também doía o dedinho.
E agora? Correr pela casa também não podia. O
dedinho levantado para cima era a novidade do
momento.
O que fazer então? Duas crianças cheias de
energias presas em uma casa sobre as águas do
grande rio Amazonas. Brincar de boneca não
podiam, Balila estava impossibilitada de pegar
qualquer coisa, cheia de manha. A mãe com cuidado
e tanta dó da filhinha mordida pela perigosa piranha,
fazia mingaus e chás para Balila.
As crianças da vizinhança chegavam de
canoas, eram meninos e meninas a partir de três
anos, vinham pegar leite, nas panelas. Às vezes
traziam alguma coisa para trocar.
As duas entediadas porque não tinha espaço
para andar nem se movimentar muito. Resolveram
conversar: E foi o dia de repetir a história da piranha
por diversas vezes, e cada vez que elas
recomeçavam mais detalhes iam acrescentando.
Lalála disse :
– Tu viu o olhão dela arregalado para mim,
dizendo – Eu vou te pegar!
A irmã respondeu:
– Vi. E ela disse para mim:
– Depois que eu te devorar eu vou comer a
Lalála e todo mundo da casa, não vou deixar
ninguém.
A biografia já estava tão prolongada que a
piranha já tinha virado um verdadeiro tubarão. A
história da pequena piranha já havia se transformado
em uma fábula de terror. Se o pai herói, não fosse
mais rápido, e tão forte, ninguém mais existiria
naquele “lar-ilha”, e se mãe não fosse tão eficiente
no curativo a água estaria toda vermelha de tanto
sangue que saía do dodói. O pior! É que se o pai e a
mãe não existissem elas estavam perdidas. Bateu um
medo no peito, correram rumo a cozinha para perto
dos pais. O pai tecia uma tarrafa, a mãe já estava
com a mesa pronta para o almoço. Sobre a mesa,
bandas de tambaqui assadas cheirando e em uma
panela fumegando uma caldeirada de tucunaré. As
pessoas que moravam na casa foram chegando para
o almoço. O tio das meninas havia pescado um
enorme pirarucu que ia vender no comercial
flutuante próximo dali.
No decorrer do almoço o tio foi narrar a
pescaria; contou que viu um jacaré de uns cinco
metros que quase pegava ele. E as outras pessoas
argumentavam;
–Porque não deu um tiro no bicho?
–Se eu matar um jacaré me prendem!-
respondeu.
– Mas se ele comer sua perna? Vão prender o
jacaré? – Argumentou outra pessoa.
Fazendo mesuras e sem respostas, mudaram de
assunto. Depois do almoço foram fazer a sesta.
E o dia foi decorrendo. O pai já havia voltado
dos seus trabalhos diários. A mãe então dirigiu a
oração em família como sempre, dizendo:
– Família que ora unida, permanece unida.
Depois desse momento o pai como costumeiramente
pegou a viola, já com o sol se pondo e cantou uma
canção de lamento:
“Se o nordestino fala da seca
Da aspereza do seu chão
Eu falo cá do meu norte
E da sua inundação.
Ah! Eu deixei Maria Rosa
Muitos pés de plantação,
E arribei pra vila da barra
No primeiro regatão
Eu sou gente, que vivo no norte
Lutando com a vida em busca da sorte
Eu sou gente que vivo no norte
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Feliz aniversário, querida estranha
 

O MENINO VIRTUAL E OUTROS CONTOS

  • 1. Gutyerrez Oliveira Monteiro Gutyerrez Filho Rosa Neves Monteiro O Menino Virtual e outros contos Editora Protexto 1a . edição 2013
  • 2. Apresentação É difícil escrever a respeito de um livro composto por três autores: pai, mãe e filho. Embora com estilos e inspiração diferentes, os três têm algo em comum: uma grande sensibilidade. Gutyerrez Pai, fala da floresta, do rio, da sua infância feliz, povoada das fantasias das histórias de Aladim e Ali Babá. E, ao lado das maravilhas da natureza nos oferece contos sobre o mundo virtual, que ao mesmo tempo limita ou amplia a nossa visão da realidade, conforme a maneira como nos utilizamos das novas técnicas. Em Gutyerrez Filho, sentimos uma grande preocupação com o social, com os problemas da juventude e no seu conto “Chico e Mundo”, uma ânsia de liberdade, uma busca da borboleta azul, “porque tudo o que ele queria era ver o mundo”. Rosa Neves nos leva à “Fazenda Segredo” onde passou a infância e onde se apaixonou por um porquinho, e como criança que era, não podia compreender como o animalzinho preferia a lama a uma almofada cheirosa que lhe era oferecida. Os três autores são estreantes, promessa de outras obras, que com certeza virão enriquecer nossa literatura. Sylvia Aranha Itacoatiara 29 de novembro de 2011
  • 3. Sumário O Menino Virtual Gutyerrez Oliveira Sonhos de Lata Gutyerrez Oliveira Outro Conto do rio Gutyerrez Oliveira Ônibus de lata Gutyerrez Oliveira Eu era feliz e não sabia Gutyerrez Oliveira Uma historia da floresta Gutyerrez Oliveira Café Tremido Gutyerrez Oliveira
  • 4. Noturno no seringal Gutyerrez Oliveira Mais um dia Gutyerrez Filho A Loja de Amigos Gutyerrez Filho Chico e o Mundo Gutyerrez Filho Vozes Silenciadas Gutyerrez Filho Acidente na Avenida Gutyerrez Filho Porcos na Alma Rosa Neves Um dia na enchente Rosa Neves
  • 5. O MENINO VIRTUAL Gutyerrez Oliveira Ele acorda tarde pela manhã. Pois fica acordado a noite toda. Sempre navegando... Navegando... Navegando... Ele não dorme tão bem a noite, porque sente muito frio e insônia. Logo depois de acordar, liga seu computador e a moça, a empregada da casa, leva o seu x-burg de café da manhã. Sua comida predileta. Ele suja o teclado com maionese, pinga refrigerante no mouse, mas nem percebe. Não tem tempo pra esses detalhes corriqueiros. Enter... Enter... Enter... Um clique e um novo mundo aparece . A vida é mais fácil assim. Entra na net, começa a navegar distante, se esquece de voltar para almoçar... Seu corpo já nem sente fome e emagrece sem que ele perceba, e adoece sem que ele perceba. Sua epiderme é clara demais, nem parece de verdade. Ele nunca sai ao sol. Parece um vampiro. E o seu cabelo é tão desalinhado, tão desajeitado, tão mal-cuidado. Ele nunca penteia! No pequeno mundo do seu quarto ele voa pelo infinito do universo e dá uma volta completa na galáxia. Para ele suas ideias modernas são inalcançáveis, intransponíveis. Acredita que já nos ultrapassou anos luz. Ele tem amigos na Ásia, no Japão, na Europa, Londres e como um raio viaja atravessando para Nova York. Visita a Estátua da Liberdade, passeia pelo Havaí. Num instante surfa
  • 6. nas ondas da pororoca na foz da ilha de Marajó. No momento seguinte vai a Paris, visita a torre Eiffel, vai até o Oceano Pacífico nas ilhas de Ápia e Pago- Pago... Ele está cheio de amigos por todo o mundo. Mas está sempre tão sozinho. Ele tem uma namorada linda que mora do outro lado do mundo, mas nunca a conheceu pessoalmente. Só pela tela do monitor. É uma namorada virtual que se apaixonou por uma foto que nem é dele. Ele nunca sentiu o sabor do beijo de uma garota de verdade, a delícia de um aperto de mão. Mente para si mesmo que sim. Faz tempo que não sente o calor de um abraço, porque não tem mais tempo de andar pelas ruas e praças, sentir a brisa no rosto e ver o pôr do sol. Ele nem lembra mais do próprio nome de tantos fakes que já criou na net. Não nota as pessoas a sua volta. Afinal o que haveria de interessante nelas? A sua mesada permanece intocada na cômoda sobre o quarto. Ele nem ouviu quando seu pai lhe disse sobre isso há três dias. E quando algo dá errado. Quando o software, o hardware do computador entra em pane... Sua vida também entra!... Ele fica desanimado, já não sorri tanto. Sente-se entediado. Quer deletar aquela vida, aquela casa, quer ir para longe, pra qualquer outro lugar, onde haja um computador funcionando com internet, que o leve de volta pra sua vida virtual.
  • 7. “A vida virtual é mais fácil” diz ele “dá pra bloquear aquilo que te incomoda. Se você comete um erro, aperte ctrl + z e tudo estará bem. Em vez de escrever você pode copiar e colar, as ideias que quiser e de onde quiser. Na internet você faz o que quer, você é quem quiser e quantas vezes imaginar ser. Se você tem algum defeito, ajeite no fotoshop. Dois clicks e você está dentro, um click e você está fora. O que há de mais real no universo?” No seu mundo não existe tédio somente downloads, downloads e mais downloads... E aí num instante as músicas mais ouvidas surgem, surgem novos cenários, novas paisagens, novos filmes do momento. Click. A sua vida é um novo papel de parede na área de trabalho. Click. Sua vida é um flash antenado & plugado no mundo. Sempre seu pai lhe chama atenção. Um dia lhe disse: – Acorda menino! Sai desse computador. Vai dar uma volta, conhecer amigos de verdade! Saia desse mundo virtual. Você não quer aprender nada sobre a vida real? Ele, como sempre, sorri desinteressado e pergunta: – Onde é o site que eu baixo algo sobre isso?
  • 8. SONHOS DE LATA Gutyerrez Oliveira A mulher entrou na sala e viu seu companheiro de malas prontas, varias bolsas de viagem arrumadas, pronto pra partir. Ela estranhou aquilo. – Vai viajar? – Não – disse ele, frio como sempre. – O que são essas malas então? – Eu estou indo embora. – Como assim indo embora? Então ele começou: – O que eu vou lhe dizer agora vai soar como uma desculpa esfarrapada, mas não é nada disso. Eu tenho aqui um cheque de um milhão de dólares oferecido pela Empresa X. Por danos morais ou por qualquer outro tipo de danos devido à experiência que você foi submetida – Como assim, do que está falando? – Assine aqui – pediu o quase-marido lhe dando um papel, um cheque e uma caneta A mulher segurou a caneta e tentou ler as letras miúdas e ele continuou: – Estou indo embora porque não sou como você. Entenda. Digo isso em todos os sentidos. E no sentido literal da palavra. Eu não posso sentir como você sente, não posso sorrir como você, ficar alegre, ficar com raiva ou ter medo. Quando eu ajo de tal
  • 9. forma, na verdade tudo não passa de simulações feitas a partir da minha programação. A mulher já não lia mais nada e prestava atenção estupefata nas palavras do quase marido. – Eu não estou entendendo Marcos? Há outra mulher, entre a gente, é isso? – Não, não é isso – É um homem então? – Não. Você não está entendendo. – Não, não estou! Por favor, me explique! Isso é alguma brincadeira? Porque se for, eu já cai na pegadinha ouviu? Por quê? Por que você está me deixando Marcos? – Eu não sou humano como você Marta. – O quê?Não acredito no que ouço! – Sim, Marta. Eu sei que é difícil mas, eu sou um protótipo especial de engenharia robótica da Empresa X, acho que você já deve ter visto nos comerciais. A empresa X trabalha com tecnologia de eletrodomésticos. Eu sou um Autômato. Fui criado secretamente, sou uma máquina que simula emoções. Pertenço a uma série de quinhentos protótipos para teste enviados para interagir com a sociedade. Aparentemente temos todas as funções humanas, mas se você prestasse bem atenção perceberia que eu nunca usava o banheiro, ou me alimentava. – Você esta dizendo que é um robô? Isso é ridículo, Marcos! Não me faça de palhaça, se está arrependido de ter vindo morar comigo não precisa
  • 10. usar essa desculpa idiota para ir embora! Eu nunca te pressionei a nada. Aquela conversa de ontem a noite sobre casamento foi só uma conversa como qualquer outra Marcos! Eu não estou te pressionando a nada! Você está se sentindo pressionado é isso? Não precisamos casar droga! Eu só toquei no assunto e... Marcos então começou a emitir vários barulhos mecânicos, alarmes sonoros e intermitentes, girou o pescoço em trezentos e sessenta graus como a mulher possessa do filme O exorcista. – Mas o que... – É o que estou tentando lhe explicar Marta. Você ajudou involuntariamente a Empresa X no teste dos protótipos, durante esses três meses que estive com você. Por isso está sendo indenizada. Quando eu ia para o trabalho, na verdade eu ia até a unidade laboratorial da empresa localizada nessa área aonde era feito manutenções em mim. Assine esse papel. Se você sentiu-se prejudicada sentimentalmente ou moralmente, você será indenizada pela Empresa X, Marta. Marta chorava, chorava e não queria ser consolada. Nem mais saber de nada. – Eu assino! – soluçava ela!– Apenas vá embora daqui sua máquina sem sentimentos! A Empresa X usa as pessoas! Usa o sentimento das pessoas pra crescer! Que tipo de empresa é essa? – Devido à competição em alta escala que está havendo entre a nossa empresa e a Empresa Y, que também teve a mesma ideia de fazer protótipos
  • 11. cibernéticos! Por isso tivemos que tomar tal atitude! A Empresa Y também fabricou protótipos, Marta. E eles podem estar em qualquer lugar nesse momento fingindo serem pessoas. Não podemos deixar que a empresa Y ganhe os clientes da nossa empresa. Temos que aperfeiçoar os protótipos de relações pessoais o quanto antes. Para isso que fui programado. – Então todos aqueles nossos sonhos de viajar pra Nova York, Londres, aquilo foi tudo mentira? – dizia ela ainda olhando para o robô esperando que tudo aquilo não passasse de uma pegadinha do Faustão. – Sinto muito senhorita, mas “latas” não têm sonhos – disse o robô, referindo-se a si mesmo. E antes de partir certificou-se de que Marta assinaria o papel e teria aceito o cheque. Partiu para sempre dali, com todas as malas de roupa e com todo o amor e tempo que Marta havia investido. Depois disso Marta permaneceu sozinha chorando na sala por algum tempo. Alguns minutos depois ela foi até a porta certificar-se que o marido- robô havia mesmo ido embora, então quando percebeu que estava sozinha limpou as falsas lágrimas e sorriu. – Há! Há! Há! Que idiota! – gargalhou ela olhando o cheque e o papel assinado de indenização. – “Latas não tem sonhos!”. Você é que pensa! Eu vou para Nova York com esse hum milhão de
  • 12. dólares – disse ela. – Mas antes preciso ajeitar essa engrenagem aqui! Dizendo isso ela foi para um quartinho secreto escondido, incrustado na parede, onde havia uma mala com ferramentas especiais de alta tecnologia. Retirou de lá uma chave especifica e começou a desapertar um parafuso do seu braço. Em seguida girou o pescoço em trezentos e sessenta graus certificando que suas engrenagens estavam boas ou precisavam de óleos. Depois retirou seu braço de fibra eletro-mecânico pingou óleo e uma graxa especial nas engrenagens aonde havia o emblema de marca de fabricação da Empresa Y.
  • 13. OUTRO CONTO DO RIO Gutyerrez Oliveira O barulho da máquina no barco que subia o rio invadia o silêncio da floresta naquela manhã. Rasgava passagens entre os ramos verdes, caniços e cipoais, e não mais voltava. Se perdia pelos confins da mata. Uma parte do ruído penetrava entre as árvores do igapó, despertando a Matinta- Pereira, que dormia dentro de um tronco oco e que tinha assobiado a noite inteira assustando os ribeirinhos que moravam naquelas bandas. O curupira montado no porco queixada, liderava um bando de caititus que passavam pisoteando e quebrando a mata virgem, destruindo e levando tudo que encontravam pela frente. No alto das árvores, a jaguatirica e os macacos que ela perseguia pararam distraídos e curiosos por um instante, ouvindo o som estrondoso da manada lá embaixo, que se misturava ao som que vinha do barco. Os animais tentavam manter entre eles, um distanciamento prudente, preparando saltos entre os galhos na precisão de uma fuga. Outra parte do som ia de encontro às árvores e barrancas de terras caídas na margem do rio e retornavam para o barco junto com a canção das cigarras-ninfas que naquela hora do dia teciam o verão. Naquele momento, me sentindo o senhor daquelas paragens, eu, “curumim” estava deitado de
  • 14. bruços em cima do toldo da embarcação em movimento, olhando o rio com um certo olhar de jovem filosofante. Me deleitava com aquele quadro vivo e conseguia ver a minha volta detalhes que pareciam tão insignificantes para o passante, mas tão nítidos para mim. Um pássaro voando baixo sobre o rio e de vez enquanto um mergulho no profundo das águas, logo a seguir, lá estava ele com um peixe no bico. Outros pássaros nas árvores, pairando, beijando uma flor; o beija–flor. Uma borboleta colorida voando em zigue-e-zague. Uma flor que não estava ali na viagem passada. Todos aqueles detalhes não me escapavam a visão. Eu imaginava uma semente germinando, brotando, rasgando o chão lentamente de dentro para fora, buscando a luz para ver aquele dia fazer parte da vida, participar, receber a brisa suave em suas primeiras folhinhas. Aquela bromélia que na viagem passada começava a brotar, agora já estava adulta, completa, perfeita... Linda. Meus olhos vasculhavam o horizonte entre o céu e o rio; que se encontravam também por detrás das matas e cabeceiras. Ao longe, um ponto negro no rio, que crescia ao se aproximar, me chamou atenção. Ficava acompanhando até chegar bem perto e verificar com surpresa que era um imenso loyde brasileiro de turistas, ou um cargueiro que vinha de muito além do mar... Aquilo me deixava assustado, eu perguntava como aquele pedaço de cidade flutuante,
  • 15. edifício com vários andares conseguiu chegar até ali, e passar por nós? Em que outro local, ou país aquele “pedaço de cidade” (eu me referia ao navio com vários andares como sendo um edifício ou um pedaço de cidade) vai se encaixar como um quebra- cabeça? Ainda em cima do toldo sentindo aquela brisa fria, o pensamento me transportava para o momento de alguns dias atrás em que eu caminhava na praça do largo de São Sebastião em frente ao Teatro Amazonas, saltando e caminhando sobre os ladrilhos brancos e pretos em forma de ondas que simbolizam o encontro das águas ou as grandes ondas dos mares do meus sonhos os quais me levavam direto ao monumento central da praça, “Abertura dos Portos”. Onde eu menino, em um piscar de olhos saltava nos convés daqueles barcos de bronze (Europa, Ásia, África e América) e viajava imediatamente para Argentina, Panamá, Espanha, Portugal, Inglaterra, e de barco em barco para cada país do mundo conforme o meu pensamento. Sentado no convés daqueles barcos eu me imaginava um nauta sonhador que conhecia o mundo inteiro, um capitão! Um lobo do mar. Fazia a primeira viagem para as Américas. Logo a seguir passava através da marquise para um outro navio pirata ou corsário inglês, hasteava a bandeira negra com os ossos e a cabeça da caveira. Agora eu era um corsário descobridor dos sete mares a serviço do meu rei. Viajava uma nova aventura a
  • 16. procura de um mapa do tesouro perdido pelo terrível pirata barba negra em uma ilha distante. E num instante seguinte, a visão da água sendo separada pela proa do barco que formava um bigode constante na proa afastando as águas e removendo obstáculos da passagem me faziam voltar a realidade daquele rio o qual eu estava navegando agora. O barco correndo ao lado das margens que iam ficando para trás, recebiam o banzeiro que lavava as pedras e argilas dali. De repente uma casa, um cercado na curva do rio, curumins e cunhatãs correndo sobre o barranco de terras caídas para ver o barco subindo. Lá do alto faziam acenos dando adeus. Talvez em cada coraçãozinho ali, batia uma vontade de ir também, naquela viagem... Mas iam ficando para trás, ficavam para trás... Logo a seguir, a cerca do curral. Alguns bois pastando nos olhavam sem ligar, o mais importante para eles era o remoer e fazer o movimento do queixo retirando o supra-sumo do capim. A seguir, a visão do laranjal imenso que se perdia dos olhos na imensidão dos campos. O homem no roçado próximo a margem parava de roçar, retirava o chapéu, limpava o suor da testa com a manga comprida da camisa, parando alguns minutos, mais para descansar e renovar as forças enquanto olhava, do que pra acompanhar o barco que subia o rio cortando o silencio da floresta.
  • 17. ÔNIBUS DE LATA Gutyerrez Oliveira Na verdade, em nossos sonhos estão tantas historias da nossa vida. Pensamentos, lembranças e saudades de vivos momentos vividos na infância, que nos fazem outra vez pequeninos no tamanho mas, gigantes no viver outra vez! São tantas coisas belas que tinham sido esquecidas, arquivadas talvez no sub consciente da alma, umas muito reais e outras sonhadas que jamais esqueceremos, como correr pela praça, brincar de pega-pega, pular amarelinha, apertar campainhas nos portões e se esconder, atirar bolas de papel nos colegas na sala de aula, sentir o cheiro das flores e admirar a confecção de todas as coisas feitas por nosso Deus criador . Vou contar lhes uma dessas histórias, foi assim: Quando era menino, ganhei de presente um pequeno ônibus de lata. Eu o amei desde o primeiro dia, desde o momento que o vi. Tinha sete anos de idade, o tempo passou, mas parece que foi ontem. Guardo ainda na lembrança todos os momentos e detalhes daquele encontro. Lembro até dos passos apressados que eu era forçado a dar (ia chorando) pois estava sendo levado pela mão de minha mãe que caminhava apressada para pegar a roupa lavada e passada na casa de D. Chiquinha , uma senhora de cor que vivia do oficio de lavar roupas.
  • 18. Quando cheguei na porta da sala, ali estava ele em cima da mesa de jantar, limpei as lágrimas dos olhos e me apaixonei! Comecei a inspecioná-lo. Como era diferente! Era feito da metade de uma lata de solvente para tintas (tinner) cortada de comprido, nas laterais foram feitas janelas sem vidraças e duas portas; dianteira e traseira. Fiquei olhando para dentro dele pelas janelinhas, notei cadeirinhas bem arrumadas forradas de napas posicionadas umas próximas a janela outras para o corredor do centro do ônibus. A cadeirinha do motorista, alavanca de marchas (câmbio) retrovisores internos e externos, degraus na porta para a subida, isso tudo pronto a servir minúsculos passageiros (liliputianos) da minha imaginação. O chão do ônibus pintado de uma cor alumínio prata, imitando o metal. A cabine fora fixada por sobre uma carroceria com quatro rodas que prendiam em dois eixos, rodas essas feitas de madeiras com serra “tico-tico” contornadas e lixadas com acabamento perfeito para as pistas de rolamentos das ruas do meu pensamento. Lembro que era pintado de vermelho fosco com listas pretas nos pára-choques, tinha uma plaquinha com número e tudo para ser identificado com licença pelo departamento de transito e uma inscrição nas laterais que dizia: Viação “Nova Aliança”
  • 19. Paulo, um menino de aproximadamente 14 anos filho único de D. Chiquinha, rapaz de bons modos, gestos calmos, um pouco retraído, encontrou-me analisando sua “obra prima”, contou-me que ele fizera aquele carro não para brincar, mas para vender e ajudar sua mãe nas compras de casa. Eu quis ficar com aquele ônibus, pedi a minha mãe que compra-se ... Depois de algumas recomendações quanto ao meu boletim escolar, terminou comprando. Paulo ajudou-me a amarrar um fio de barbante no pára- choque frontal e fui puxando o meu presente carregado de passageiros para a ilusão do meu mundo de criança feliz. O tempo passou rápido e o que estava previsto para acontecer aconteceu... Eu cresci, me enamorei de muitas outras coisas pela vida, só não consigo lembrar para onde e como sumiu meu “ônibus de lata.” Um dia desses entrei numa loja, fui confrontado pelo espanto com essa lembrança outra vez; porque encontrei na prateleira da vitrina um outro ônibus com a mesma cor , sendo de plástico e pneus de imitação de borracha .. Eu o comprei... Hoje quando escrevo, sinto lembranças e saudades viajando no tempo das recordações maravilhosas da minha infância, quando reconstituo as brincadeiras com os amigos no quintal da casa sombreada de árvores, onde nasci, fazíamos ruas,
  • 20. pontes, estacionamentos e garagens de areia e pedrinhas de seixos onde passávamos com o ônibus e outros carros fabricados com latas, latas vazias com formatos de tratores e amassadeiras ... Hoje quando escrevo, vejo outra vez o tempo que passou e o meu ônibus de lata... O menino que havia em mim, ainda existe.
  • 21. EU ERA FELIZ E NÃO SABIA! Gutyerrez Oliveira As recordações continuam batendo bem mais forte. Pulsando no coração, tocando a alma saindo na ponta do lápis para registrar esta saudade. Saudade do eu menino na Manaus da minha infância, quando eu ia e vinha pela rua monsenhor Coutinho, rua que passa por detrás da igreja do largo de São Sebastião, onde de 15 em 15 minutos, ainda hoje o relógio da torre badala a hora certa. Naquele tempo eu morava nessa rua. Tinha seis anos de idade, estudante inicial empolgado com a mágica das primeiras letras, que ao ajuntá-las, formavam palavras que nos permitiam voar e penetrar no meio das historias de livros que continham sonhos que nos transportavam para qualquer lugar. Um dia voei em um tapete voador com Aladim, sua lâmpada e sua namorada, por cima de Bagdá, e vi, assustado, as torres da cidade em formato de abóboras gigantes, quase colidimos com algumas delas. Outra vez fiquei tremendo de medo quando ao caminhar com Ali–Babá, ouvimos um tropel de cavalos e tivemos que nos esconder por detrás de uma moita enquanto o chefe dos quarenta ladrões gritava “Abre te Sésamo” e aquela imensa porta na rocha foi se abrindo sem fazer nenhum barulho, então todos os ladrões entraram, o chefão falou agora “ Fecha te Sésamo” e a porta no meio da rocha
  • 22. voltou ao normal como se nada tivesse acontecido, gravamos as palavras mágicas pronunciadas pelo seu maioral, então quando os ladrões foram embora, eu e Ali-Baba nos aproximamos da rocha. Ali pronunciou as palavras mágicas e a porta se abriu, vimos então no esconderijo dos ladrões a maior quantidade de tesouro que os meus olhos já puderam ver. Vi também outra cena horrível, a vovó da chapeuzinho vermelho ser retirada viva da barriga do lobo mal como se fosse um parto cesariano sem anestesia, operado por um caçador brutamontes. Outro dia, ao caminhar por um deserto e chegar a uma cidadezinha, vi o Barão de Munchausen tentando desengatar o seu cavalo que ficou preso na torre campanário de uma igreja . “E assim eu vivia sonhando com as histórias das mil e uma noite”. Estudei no Jardim da infância do grupo escolar Barão do Rio Branco, localizado na Avenida Joaquin Nabuco quase em frente ao Hospital Beneficente Portuguesa, com seus jardins bem cuidados e apinhado de plantas e mangueiras, que onde, ao sair da escola mais cedo, eu e meus colegas de aula colocávamos visgos com leite de jaca para pegar curicas e periquitos barulhentos, ou apanhávamos mangas de bole-bole. O jardim da infância do meu grupo escolar, era ladeado de muitas flores, plantas ornamentais, Avencas, Lírios, Rosas, Dálias, as quais a nossa
  • 23. professora mais bonita falava que não arrancássemos as folhas e flores porque senão as arvorezinhas choravam e ficavam tristes por ter os seus pedaços arrancados. Imediatamente eu construía na minha fantasiosa mente de menino maluquinho, aquelas plantas de narizes e orelhas arrancadas, com lagrimas nos olhos correndo atrás de nos, querendo nos pegar para se “vingar”. Durava pouco esse pensamento, porque logo a seguir me distraia com a forma divertida das letrinhas desenhadas pelas nossas professoras. As letrinhas tinham mãos e pés, algumas usavam vestidos com flores, outras vestiam roupas e sapatos de meninos e ficavam coladas nas paredes da sala de aula. Tinha uma menininha muito linda, da minha idade, que sentava na mesma mesa que eu, fazíamos atividades cobrindo as letras e formando nomes de gente e coisas, estávamos sempre juntos, fabricávamos bonecos e carrinhos com cera de modelar, ela gostava de modelar corações. Um dia moldou um azul outro cor de rosa e disse com aquela voz linda de criança feliz , esse e o seu e o meu coração! Daquele dia em diante eu me apaixonei muito mais! Hoje lembro dela com muito carinho. Crescemos, fui para outra escola, ela se perdeu de mim! Alguns anos depois, quase terminando o equivalente ao ensino fundamental, ganhei um radinho de pilha da marca Hitachi. Um dia, de
  • 24. repente começou tocar uma música da época do meu jardim da infância, que dizia assim... “Que saudades da professorinha que me ensinou o Be-a-Ba / onde andará ‘marianinha’ Meu primeiro amor onde andará? Eu igual a toda petizada quantas travessuras eu fazia/ jogos de botões sobre a calçada/Eu era feliz e não sabia! Aos domingos missa na matriz /da cidadezinha onde eu nasci /Há meu Deus eu era tão feliz...” As recordações chegam de enxurrada como uma cascata contínua, mas não da pra desaguar tudo aqui, agora! Quando inicio escrevendo essas memórias, estou sentado em um banco da praça na orla próximo aos mangueirões de onde mostra o rio Amazonas que não para de passar em frente a essa cidade linda chamada Itacoatiara. Não só a cidade da canção, mas a cidade que me encheu de inspiração e despertou um escritor escondido a tanto tempo nas bancadas de consertos eletrônicos entre transistores, resistores, capacitores e circuitos integrados, mesas e berços de testes elétricos nos galpões das fábricas do distrito industrial de Manaus. Graças ao Eterno, hoje posso ver essa paisagem linda e um barco que passa no rio, parece que o seu motorista ou o “pratico” esta bastante apaixonado e a música diz no seu radio ou toca CD “ Que hoje a tempestade já passou e nesse rio de águas calmas eu vou deslizar e consolar meu coração”.
  • 25. UMA HISTÓRIA DA FLORESTA Gutyerrez Oliveira Sebastião já contava seus 18 anos de idade. E desde pequeno nunca saiu muito longe do lugar onde nasceu. Nunca foi a cidade mais próxima do seu lugar. Quase nunca teve contato com o mundo lá fora. Um dia alguém falou de rádio pra ele, contou que era uma caixa quadrada que falava, tocava e cantava melodias alegres e apaixonadas quando se ligava um botão , porém ele nunca teve oportunidade de ouvir um. Era pescador desde nenê “zinho” de colo. Como ele mesmo costumava dizer, ainda no colo de sua mãe ele fisgou “um baita” tucunaré. Vivia do rio é bem verdade. Morava as margens do rio Caru( afluente do rio Urubu-AM ). Conhecia quase tudo do rio e da floresta. Morava com seus pais numa cabana ali próximo, seu pai e sua mãe á muito tempo se estabeleceram naquele lugar. Mas, Sabá do Caru, como lhe chamavam, só vivia embrenhado nas matas caçando e pescando, que nem um bicho do mato. Não tinha documentos de identificação. Um dia passou por lá uns agentes da FUNAI. Cadastraram Sabá do Caru, como índio brabo do mato. O tempo foi passando muito rápido, mais a vida de Sabá não tinha pressa – correr pra que – dizia ele. Um dia comprou uma canoa grande para facilitar seu
  • 26. trabalho na pesca e outras coisas da floresta. Com muito custo comprou um motor rabeta e foi tocando a vida. Casou com uma cabocla do rio, muito trabalhadeira que o ajudava bastante. Quando seus filhos começaram nascer e crescer, mandou fazer para ele um grande batelão (barco grande de madeira) alguém disse para ele. – Sabá, por que você não pede empréstimo no banco e compra um motor potente para este batelão? Mas, para isso, Sabá do Caru, teria que ir a cidade com seus documentos ao banco e fazer o tal empréstimo. Sabá não gostava da cidade, nunca foi índio, mas era matuto, homem do mato, vivia bem assim, a cidade lhe causava arrepios, ouvia falar coisas assombrosas de lá – Mais teve que ir lá cuidar da documentação para comprar o motor para o batelão. Naquela época, 40 anos se passaram (nem mais se lembrava) guardava com ele como segredo sem muita importância, o cadastramento da FUNAI. Foi a cidade, foi o jeito. Ficou frente a frente com o rapaz do escritório que verificava o seu documento no computador. De repente, o rapaz olhava para ele e pro computador, encarava Sabá do Caru que já estava desconfiado e com vontade de perguntar o que estava acontecendo. O rapaz do computador olhou para ele e disse – A máquina, esta dizendo que o senhor não pode emprestar dinheiro do banco porque o senhor é índio!
  • 27. Sabá se assustou de uma forma que não acreditava. Perguntou, quem contou pra essa maquina que eu era índio? Quem? Quem contou? Olhou pra máquina assustado porque achou que o computador era como um deus. Como aquela máquina descobriu um segredo que ele guardava a tanto tempo e nunca contara pra ninguém? Até porque nem tinha tanta importância! – Mas, como isso pode ter acontecido? Pensando assim declarou: – Essa maquina é um deus! Ficou intrigado. Quem contou meu segredo? Voltou pro rio Caru sem o empréstimo, contou o caso pra todas as pessoas de lá – declarou – aquela máquina sabe tudo, é como um deus!
  • 28. CAFÉ TREMIDO Gutyerrez Oliveira Pra mim aquilo tudo era folia. O passeio começava quando a vovó Cândida dizia tal dia vamos viajar, sairemos de Manaus no barco de recreio, vamos descer o rio Amazonas e passar em frente a cidade de Itacoatiara. Eita! Maravilha! Eu começava sonhar. Pra mim, a viagem começava ali. Era uma líder essa minha vovó! Cuidava de todos os detalhes, ela queria atar as redes no barco bem cedo pra evitar imprevistos de última hora. Quase sempre ficávamos todos juntos do mesmo lado da embarcação. Tudo pronto, não falta nada. Hora da saída. Cordas das redes de dormir atadas. Cordas de amarras do barco largadas. Começava então a grande aventura tão esperada. O timoneiro do barco fazia comunicação com a sala das máquinas através da linguagem dos toques de campainha dando a partida. Algumas manobras para trás, outras para frente. Marcha de viagem, lá vamos nós. O meio do rio bem na frente de Manaus. A cidade é linda vista dali! Era o momento que eu não gostaria de perder nenhum detalhe daquela visão de começo de viagem, a margem esquerda do rio, os prédios antigos, os novos, as casas de tijolos e de barros cozidos, os homens ribeirinhos trabalhando, pescando em frágeis canoas. Curumins tomando banho no rio, pulando das jangadas de toras amarradas para as serrarias. Batelões puxados em
  • 29. terra para manutenção. As últimas casas da cidade iam ficando para trás, a refinaria da Petrobrás com todos aqueles tanques imensos iam ficando também. Aquilo tudo era fascinante. De repente na frente e bem perto dos meus olhos, eu podia tocar com a mão uma das sete maravilhas do mundo(ao meu ver) “o encontro das águas” lugar cheio de mistérios e encantamentos, lugar de encontro do sobrenatural entre o céu e a terra, as pessoas diziam muitas lendas daquele lugar de sarapantar cabra macho. O barco passava naquele momento por cima das duas águas, que se encontravam, se entrelaçavam, mas não misturavam, sempre foi assim. Lá íamos nós descendo o rio. Os telhados das últimas casas da cidade se esquivavam dos nossos olhos pelo meio das árvores. A próxima parada seria a cidade de Itacoatiara. No outro dia bem cedo, o momento que eu esperava ansioso nessa viagem, era a hora de tomar o “café tremido”. Então alguém pergunta, o que é café tremido menino? Ora, geralmente a mesa onde são feitas as refeições nos barcos de recreios (em quase todos) ficam posicionadas bem próximas ou por cima da sala das maquinas onde a trepidação do motor é bem mais forte. Então, com a trepidação da máquina, tudo ali tremia. O leite, o café, a bolacha, a mão daquele senhor de idade que não tirava o chapéu de massa da cabeça , o meu apetite tremia, o sorriso das pessoas tremiam , até o olhar da minha avó Cândida sempre atenta a tudo, tremia! A alegria
  • 30. de tomar café tremido pela manhã, viajando em um barco e os meus olhos em contato com a paisagem das margens do rio para mim era o máximo. O café com leite de gado da fazenda na xícara, ficava trepidando, tremendo, formando ondinhas. As colheres e copos sobre a mesa também trepidavam. Na hora de misturar o café com leite, era o grande momento do rio Amazonas que se misturava com o rio negro, eu bebia aquele rio de café saboroso acompanhado com fritos de trigo, pãezinhos, macaxeira cozida, roscas de goma, pés de moleque, mingau de banana com tapioca e outros. Um verdadeiro manjar matutino que encantava o viajante, (eu em particular) que depois de satisfeito de todas aquelas iguarias, ficava imaginando aquele café ecológico tremido, tremendo no meu “bucho”. Depois do café tudo acontecia naquele barco e chamava a minha atenção, eu ouvia as vozes e saberes daqueles viajantes do rio, lembro um senhor com mangas de camisa enroladas que ao falar tirava e colocava o chapéu de palha na cabeça, fazendo graça, contava que na viagem passada, um bode que vinha amarrado perto de uns alqueires de farinha d’água de repente por um descuido qualquer, rasgou com a boca as folhas que encapavam o paneiro e comeu toda a farinha do seu Maíco, que ele levava sempre para vender na capital. Alguém passou e deu um balde com água para o bode que bebeu tudo, bebeu estufou e explodiu, foi pirão de bode com farinha para todo o lado – finalizou ele . A
  • 31. gargalhada era geral das mulheres e homens que estavam na rede, menos o seu Maíco que perdeu a farinha naquela viagem. Então; a conversa continuava, rolava, falavam mil coisas e mil historias engraçadas ou tristes, eu ficava vendo e ouvindo cada personagem naquele barco. Mais tarde, pela hora do almoço, viria também o guisado de paca, a sopa tremida com jerimum, maxixe, batata e quiabo escorregadio que descia na garganta goela abaixo sem fazer força pra engolir, que maravilha! A trepidação do motor, o caldo quente gostoso com o novo tempero do barulho do motor e da cozinheira do barco, se misturavam com as pinturas naturais das paisagens. Aquela era uma viagem real viajando nos sonhos das margens do rio, no meio da floresta.
  • 32. NOTURNO NO SERINGAL Gutyerrez Oliveira Naquele noite tudo estava muito mais escuro do que nas outras noites. Os homens não podiam ver nada do lado de fora do barracão. A chuva parecia não ter fim, destilava por cima das árvores de seringueiras caindo gota a gota nas folhas encharcadas. Dentro do barraco como isolados do mundo, viam o que mostrava a lamparina com o vento remexendo as sombras assombradas da noite na parede. No terreiro, um frio de gelo. Mas, por cima das árvores, no meio de toda aquela escuridão, um olho amortalhado pairava por cima da palhoça vendo e observando os homens frágeis que pitavam suas parroncas de tabaco para espantar os carapanãs. A terra tremia, com zoadas de trovão e no negrume da noite riscavam raios rápidos em ziguezagues de relâmpagos que iluminavam a noite medonha, mostrando como num flash a silhueta das arvores assombradas. O olho se aproximava daquele barraco no meio das trevas do seringal. O homem na rede, doente de malária, ardendo em febre. A floresta tremia dentro dele... O delírio era maior que a vontade de viver, e a morte se aproximava bem devagarzinho na forma, na figura do rosto de sua mãe. E ele conversava falando com ela no meio de toda aquela escuridão, pedindo que trouxesse alguma poronga para acender e expulsar aquelas trevas, que devagar, bem devagarzinho [...]
  • 33. estavam entrando, invadindo suas entranhas e tomando conta de sua vida. – Mãe... mãe ... -ele chamava esperançoso... A morte lhe sorria bondosa. – Mãe... mãe ... É você? E ela apenas sacudia a cabeça sorrindo, confirmando ... – Mãe, por favor, traz uma lamparina ! Para afastar essa escuridão que esta me penetrando. E a febre aumentando. E a febre aumentando. Fazia frio de água da cacimba á boca da noite. Mas ele suava, junto com as nuvens da tempestade. No delírio, aquelas vozes nas sombras da parede contavam tantas histórias! Ele lembrava... Contavam a história da mãe da seringa, que cansada de ver suas filhas árvores escorrendo seu leite, colocava á noite um pedaço de espírito mau na rede dos seringueiros, e os deixava doente. Os mais velhos contavam a historia e aguardavam com esperança de que um dia eles voltariam pra casa e seriam como heróis na sua terra natal. Tudo mentira! Tudo mentira! Eles jamais voltariam daquele lugar. Os deuses da floresta estavam raivosos, eles estavam nos temporais e nos relâmpagos, e sem misericórdia alguma, se escondiam debaixo das folhagens para pular de emboscada na roupa do seringueiro, que indo para sua casa, sem perceber, se escondiam em sua rede de dormir para perturbá-lo á noite com terríveis pesadelos.
  • 34. A casa de palha e a terra tremiam devido aos trovões. E aquele homem continuava a conversar com sua mãe, ouvindo o pio funesto de uma coruja agourenta, e o gargalhar de um rasga mortalha conversando com sua morte em forma de sua mãe, vestida de mortalha roxa – respondia da cabeceira da sua rede para a coruja que se acalmasse, pois em breve ela teria seu defunto. Não tive-se pressa! – Mãe... Mãe... Com quem você está conversando? E a morte apenas lhe sorria bondosa. O pio daquela coruja parecia uma contagem regressiva para o abandono da vida. Fazia tanto frio, frio de argila molhada no corpo. A febre ardia tanto. A agonia era tanta. O delírio era tanto, que ele preferia que o sono chegasse logo dentro de toda aquelas trevas, naquela hora noturna, soturna da noite! De repente, no meio da febre, entre a visão da morte e da vida que minguava, escorrendo sonolenta entre os seus olhos, aquele homem soube que a sua rede tão companheira de descanso assim como a rede de todos os outros seus companheiros lhe serviria de caixão, seria o seu derradeiro invólucro para o apartamento apertado de cova da terra fria , por isso gritou num delírio de ultima angustia –Mãe, não posso me embrulhar... Esse lençol me apavora...
  • 35. E a morte lhe pegou no colo sorridente e bondosa e o balançava consolando! Cantando baixinho uma canção de ninar! “Meu filho, não chores senão o dia vai custar a vir. Não vai doer nada , porque morrer não dói, reza três ave-marias, entrega-te, muda a tua roupa pra dormir, veste a pijama de mortalha, pois a coruja já parou de piar, agora você já pode dormir.” Ele olha então com um olhar já sem brilho pra morte, sua mãezinha bondosa e vê o rosto, a sua mãe sorrindo... Ele sorri também... Compreensivo... Resignado... Concorda ficar em seus braços... Ela tão bondosa... Seus olhos nos olhos dele... Sorri dizendo – Não chores, não vai doer nada! A chuva vai destilando gota a gota sobre as folhas encharcadas , a terra parou de tremer dentro daquele homem.
  • 36. MAIS UM DIA Gutyerrez Filho Jorge acorda e se espreguiça. O Sol já nasceu faz tempo. É domingo e ele acordou tarde. Quase ao meio dia. Pra ele, esse é só mais um dia. Seus olhos estão pesados. O sono insiste em ficar. Enquanto Jorge dormia, um garoto pobre, de dez anos morreu atropelado durante uma brincadeira onde quatro rapazes que dirigiam alcoolizados corriam feito loucos pelas ruas, dando freadas bruscas. A mãe do garoto, chora desconsolada perante o corpo da criança no necrotério,e os garotos que dirigiam, filhos de grandes empresários, vão ficar impunes porque segundo o advogado deles: foi apenas um acidente. Jorge levanta o corpo com lentidão e senta na cama bocejando e espreguiçando-se novamente. Naquele momento o presidente da república começa a sentir leves pontadas no coração. O jornal dá a notícia que no Rio de Janeiro, numa favela, quinze pessoas morreram num tiroteio entre policiais e traficantes. Entre os mortos está uma garotinha de cinco anos com um tiro no peito, vítima de bala perdida. Jorge olha o relógio na parede, ainda é onze e meia. Ele decide deitar mais um pouco. Afinal chegou em casa as seis da manhã da noitada. Foi uma noite e tanto! E além do mais é domingo. Ele
  • 37. pode acordar tarde se quiser... Não muito longe dali, um homem de quase setenta anos, limpa o árduo suor da testa enquanto trabalha duro limpando e capinando, pra ganhar menos do que a metade da metade do que Jorge ganha. Ao mesmo tempo, num apartamento ali perto, uma garota de quinze anos descobre que pode estar grávida e não sabe quem é o pai. Do outro lado do país assaltantes armados mantêm quinze reféns em um banco. Jorge fecha os olhos. Um jovem estuda concentradamente pra tentar passar no vestibular pra medicina enquanto seu pai bebe a décima lata de cerveja e assiste futebol. Um cozinheiro sorri feliz, por ter aprendido uma nova receita. Um pai de família senta desconsolado no banco de uma praça, pois acaba de perder o emprego e preciso pagar o estudo dos filhos. Jorge está prestes a dormir. Começa a imaginar coisas e cenas sem nexo. Pensamentos avulsos vem em sua mente. Enquanto isso o aquecimento global está causando o derretimento das geleiras nos pólos, e mudanças climáticas continuam ocorrendo no mundo todo. Está chovendo muito na grande São Paulo, e as ruas estão encharcadas, uma alagação está por vir. Na Somália, a mãe desnutrida da á luz um filho morto. No Japão, um suspiro de alívio por um alarme falso de terremoto. Jorge finalmente dormiu. O trânsito continua barulhento nas grandes vias, as pessoas xingam
  • 38. estressadas, preocupadas. Operários continuam suando, furando o chão, quebrando pedras. Mas Jorge não sabe disso porque dorme, e as janelas e porta do seu apartamento estão bem fechadas. Pra ele aquele é só mais um dia. E ele está seguro ali, embaixo do seu cobertor.
  • 39. A LOJA DE AMIGOS Gutyerrez Filho Na porta de vidro estava escrito “Entre”. A garota entrou. Tinha dezesseis anos. Rapidamente aproximou-se dela um vendedor, bem vestido, bem penteado, e com um sorriso no rosto. – Bom dia. – Bom dia– disse a garota de volta. – Posso ajudá-la? – Sim, eu estou dando uma olhada. Na verdade a garota tinha olhado a loja já algum tempo e não tinha noção do que se vendia ali, só havia visto o nome da loja: “Loja de Amigos” Talvez houvesse roupas pra vender, talvez bijuterias, ou cosméticos... Não fazia mesmo idéia do que se vendia ali e estava entrando só por curiosidade, mas então, ao entrar foi surpreendida por tal vendedor. – Fique a vontade – disse ele Foi então que ela se espantou ao ver. Dentro da loja haviam várias prateleiras e várias pessoas dentro de vidros gigantes iguais aos de maionese. Eram crianças, homens, mulheres, velhos, pessoas de todos os tipos. A menina sentiu um pavor enorme ao imaginar que iria acabar sendo presa ali junto com os outros.
  • 40. – E então quer olhar um modelo?– disse o vendedor – O q-que são eles?...Eles estão vivos? São de verdade? – Claro que são. Aqui vendemos amigos de todos os tipos. Então a menina olhou com mais atenção e percebeu que as pessoas estavam se mexendo dentro dos vidros. Não eram apenas manequins. Todos estavam atentos a garota e olhavam curiosos para ela, ansiosos para serem comprados. Com o olhar eles pareciam dizer “ME COMPRE”. – Você quer uma amiga ou um amigo? – Eu não sei... – disse a menina– uma amiga, eu acho. – Bom eu posso lhe mostrar uns modelos, quer ver? – Sim, quero O vendedor se aproximou de uma vitrine aonde havia uma garota linda num dos vidros, sorridente, olhos claros, cabelos ondulados e vestida na moda. – Esse modelo é bem requisitado, é um pouco caro, mas é uma amiga que lhe dará algumas vantagens, mas algumas desvantagens também. – Vantagens?—quis saber a menina – Sim, a vantagem é que se você andar com ela vai saber de toda a vida dela, e poderá contar toda sua vida a ela. Tudo que você contar a ela, ela não contará a ninguém. Ah sim, outra coisa é que se
  • 41. você andar com ela você vai ter status, já que ela é bem popular. – E a desvantagem? – A desvantagem é que ela sempre será mais bonita que você. E você será sempre a sombra dela. Os garotos da sua idade vão preferir ela a você. Por isso você terá inveja dela. – Hum, sei. E quais são os outros modelos que vocês têm? – Bom, tem essa aqui também. O vendedor então mostrou num vidrinho uma garota morena de cabelo encaracolado, bem descolada, e com o olhar companheiro – Esse modelo é sensacional!– disse o vendedor– É de uma amiga super companheira, super amável e super sorridente. Estará com vocês em todos os momentos. Acontece que ela é muito inteligente e sabe conversar como uma adulta, assim, se vocês estiverem entre amigos, ela será sempre o centro das atenções por causa da sua graciosidade. Então esse modelo não é bom pra quem gosta de ser o centro das atenções. – E aquele modelo ali?– apontou a menina para um vidro onde estava uma garota com olhar sincero, e com um sorriso de menina sapeca. – Ah sim– disse o vendedor – como eu poderia ter esquecido? Esse modelo chegou recentemente na loja! É um dos melhores!
  • 42. – Quais são as vantagens e as desvantagens?– quis saber a menina que agora já entendia um pouco do assunto – Essa é uma amiga super sincera, fala o que pensa, dá conselhos, adora a sua companhia, chora com você nos momentos difíceis, sorri com você nos momentos fáceis, adora fazer compras, fazer as unhas, sabe os melhores lugares pra ir, e você sentirá que ela é como uma irmã pra você. A desvantagem é que ela é verdadeira demais e por falar muito o que pensa, isso pode ocasionar algumas brigas, mas nada grave. Ela não vai conseguir ficar muito tempo longe e logo virá pedir desculpas. – Nossa então acho que vou levar essa! Gostei muito. – Quer que eu embrulhe em papel de presente ou coloque em uma sacola? – Não pode deixar que eu a levo na mão mesmo, eu já vou usando no caminho. – Vai pagar em cartão ou em dinheiro? – Ah sim! Quanto é mesmo? – Cento e cinqüenta cruzados – Puxa! Até que não está tão caro! Quanto tempo dura? – Dura até três meses. – Só isso? – Sim. Depois disso ela ficará amuada em um canto. Ficará orgulhosa e quase não falará com você. Depois disso, ela apaga e não tem mais funcionamento.
  • 43. – Mas três meses é muito pouco tempo de amizade! – Minha querida– sorriu o vendedor – isso é apenas uma loja. Se você quer amigos de verdade, e que durem pro resto da vida, você não vai encontrar em uma loja. Mas sim lá fora, nos momentos mais difíceis da sua vida.
  • 44. CHICO E O MUNDO Gutyerrez filho Naquele dia o cachorrinho Chico quis ver o mundo. E saiu pelo portão da frente perseguindo uma borboleta azul, que havia pousado em seu nariz enquanto dormia. Ele vivia bem com os seus irmãos e sua mãe, Lessie, num quintal espaçoso, cheios de árvores, numa casa cheia de jardins na frente. Ele tinha donos maravilhosos que lhe davam carinho, que lhe carregavam no colo, que lhe alimentavam com leite, e até com biscoitos. Mas naquele dia ele quis ver o mundo, e saiu pelo portão da frente. Ele nunca havia chegado tão longe, ele nunca ia pra longe dos irmãos. Chico era diferente. Era agitado. Latia pra cá, pulava pra lá. Puxava briga, puxava o rabo de um aqui, a orelha de outro ali. Sua mãe sempre apartava as brigas, dando uma lambida, e ele vinha todo manhoso pra perto da mãe. Tinha ciúmes dela. Queria ela só pra ele. Queria o leite dela só pra ele. Queria a tigela de ração só pra ele. Queria tudo só pra ele. Se alguém tentava fazer carinho no seu irmão mais gordinho ele corria pra perto, cutucava uma pedra, pulava de um lado para o outro para chamar atenção para si. Queria todo carinho só pra ele. E mesmo assim. E mesmo tendo tudo só pra si, algo o incomodava. Algo ainda estava faltando. E ele acordava de noite, e saia de fininho de perto do calor dos irmãos e de sua mãe. Saia da
  • 45. sua casinha e ia dar uma volta pelo jardim, olhava as estrelas, deitado na grama, olhava para um lado e para o outro. Queria mais espaço, mais coisas para descobrir, mais coisas pra ver, mais coisas pra morder. Chico escavava a horta dos donos, espalhava o monte de folhas reunido no quintal, mordia as flores, caçava formigas e besouros, mas rapidamente cansava daquilo e enjoava rápido de todas as outras brincadeiras que ele mesmo inventava. Chico adorava aventuras. Adorava o perigo. E fazia todo dia uma arte diferente, mas mesmo assim, tinha algo errado. Tinha alguma coisa faltando e ele não sabia o que era. O pequeno Chico queria ver o mundo. Chico odiava tomar banho, fugia pra não ser pego e para não ir pra dentro da bacia d’água. E se o pegavam, ele gania o tempo todo enquanto lhe ensaboavam e lhe escovavam, e fingia sempre que caia sabão no seu olho, para ganhar mais atenção. Logo depois do banho ele corria para a terra, não esperava que lhe enxugassem. Sacudia-se todo, arrastava-se na grama, na terra e ficava imundo de novo. Lá ia ele pro banho de novo! E dessa vez não deixavam que ele fugisse e o enxugavam com uma toalha enquanto ele reclamava. Em seguida secavam o seu pelo com um secador e ele adorava. Os irmãos morriam de medo do secador, mas ele não. Chico era corajoso. Sempre foi.
  • 46. Por isso, saiu pelo portão da frente. E logo esqueceu a borboleta e logo ficou encantado com o mundo lá fora. Aquele grandioso e intrigante mundo que o esperava. Ficou rapidamente eufórico balançando o rabo sem parar, latindo bravamente pra rua muito movimentada com carros, ônibus, caminhões e bicicletas. Logo avistou, ali na calçada, perto de uma lata de lixo, um gato vira-lata, rajado, fuçando atrás de comida. Perseguiu o gato, que se assustou e atravessou a rua rapidamente. Chico não sabia fazer isso. Ele não sabia atravessar a rua. Mas mesmo assim ele correu atrás do gato. A rua era movimentada, vinha um carro e freou bem a tempo de Chico passar correndo, assustado, para o outro lado da rua. Coração acelerado, e apavorado com aquela freada brusca, Chico não sabia mais como voltar. A rua era muito movimentada. As pessoas que passavam ali, na calçada tentaram pegá-lo, mas ele correu latindo. Fugiu! Fugiu daqueles estranhos. A borboleta azul onde estava? O gato rajado onde estava? E Chico onde estará agora? Passou um dia. Dois dias. Três dias. Passou uma semana. Um mês. Chico não voltou mais pra casa. Quem esqueceu o portão da frente aberto? Os donos de Chico ficaram tristes. Seus irmãos ficaram tristes. Sua mãe, Lessie, chorou triste. Onde estará o Chico? Onde estará? Nesse momento está chovendo muito lá fora.
  • 47. As noites são muito frias lá fora. Chico está com frio? Chico está protegido da tempestade? Chico terá arranjado algum amigo? Chico está com medo? Não. Não dá pra imaginar ele com medo. Ele é muito corajoso. Sempre foi. Ele adorava o perigo. Ele era tão valente. Mas será que um dia ainda vai voltar pra casa? Será que está sozinho? Terá arranjado um novo lar? Por onde anda o Chico? Chico abandonou o quintal onde morava e agora tudo está tão calmo. Tudo está tão calmo na casinha, na horta. Tudo está tão sem alegria. Os seus irmãozinhos às vezes têm a impressão que de uma hora pra outra ele vai aparecer, abanando o rabo e correndo agitando tudo de novo. Mas talvez isso nunca mais aconteça. Talvez nunca mais ele seja visto de novo. Ele levou consigo toda sua alegria naquele dia, quando saiu pelo portão da frente. E tudo o que queria era ver o mundo.
  • 48. VOZES SILENCIADAS Gutyerrez Filho Era uma garota linda. Tinha cabelos negros, olhos misteriosos e usava botas da mesma cor da roupa. No rosto maquiagem escuras e um piercing. Estava no cemitério, escrevendo em um diário, foi quando viu um homem, velho, que cavava um túmulo. Era um coveiro. E ela escreveu sobre o coveiro na sua agenda e sobre o que achava dele. Parecia um homem pobre, desnutrido, fracassado - cavando covas pra ganhar dinheiro. Talvez nunca tivesse lido sequer um livro. Talvez nem soubesse ler direito. De repente o coveiro percebeu a garota gótica ali. E disse: – Por que você está aqui garota, no Lar dos Mortos? – Vim pra ficar sozinha, pra pensar. – Você não tem medo? – De quê? – Dos mortos. Ana riu. O coveiro devia estar querendo lhe assustar. – Eu tenho mais medo dos vivos do que dos mortos – respondeu ela. – Então cuidado. – Com o quê? – Pra você não se tornar como eles um dia. – Todos nós vamos morrer um dia e nos tornar como eles – disse Ana
  • 49. O coveiro parou então de cavar e se aproximou dizendo – Aqui estão enterradas pessoas. Muitas pessoas. Vítimas do tempo, de doenças, de acidentes, incidentes. Aqui não estão enterrados só os corpos dessas pessoas, mas também seus pensamentos e ideias nunca reveladas. Sentimentos reprimidos. Amores secretos que jamais sairão do túmulo, mas que poderiam ter sido maravilhosos. Pedidos de perdão nunca feitos. Coisas que deveriam ter sido resolvidas e não foram. Sonhos que poderiam mudar o mundo. Sabedorias e conselhos que poderiam mudar o rumo de uma vida e até quem sabe salvar uma vida. Todas essas coisas agora estão aqui, enterradas e jamais sairão desse lugar. Tudo isso. Todas essas coisas estão aqui, para sempre, aprisionadas na terra adormecida dos corpos mortos. Essas coisas estarão para sempre gritando um “sinto muito” que nunca veio para uma pessoa querida ou “eu sempre te amei” para uma pessoa amada. Arrependimento... Essa terra está cheia de arrependimentos... O coveiro suspirou fundo e perguntou –Qual o seu nome? –Ana –Ana. Não deixe que sua vida se torne algo cheio de arrependimentos. Não deixe sentimentos escondidos até o túmulo. Não esconda amor no coração. Viva a vida. Ame. Grite. Não venha se tornar pó um dia, sem dizer o que sente para que
  • 50. seus sonhos se tornem apenas um petróleo onírico aqui desse lugar, onde todas as vozes silenciadas gritam em silêncio. Depois disso o coveiro se foi. E Ana Também. Aquelas palavras do coveiro ficaram. Anos depois ela passou ali, e já era uma mulher. Ela passou de carro e parou na frente do cemitério, abaixou o vidro e procurou por aquele coveiro com os olhos, mas não o encontrou. Resolveu entrar e procurar por ele. Foi até o lugar que estava naquele dia que conversou com o coveiro. Mas não o encontrou também. Perguntou para um vigia sobre o tal coveiro contou como ele era e que fazia tempo que tinha lhe visto. O vigia lhe informou que era novo ali e que não conhecia ninguém assim por ali. Ana então foi embora, e na saída do cemitério, entre um tijolo do muro e o cimento da calçada, encontrou uma flor bonita. Então sorriu. E lembrou do que havia aprendido duas coisas com o tal coveiro que nunca deixaria sua vida ser um arrependimento e que coisas bonitas podem vir dos lugares mais inesperados.
  • 51. ACIDENTE NA AVENIDA Gutyerrez Filho Uma multidão aglomerada atrapalhava o trânsito na avenida principal. Pessoas curiosas se aproximavam, velhas, senhoras, estudantes fardados, camelôs, vendedores ambulantes de bombons. Panelinhas aqui e ali conversavam sobre o que havia acontecido. Percebi logo de cara. Havia acontecido um acidente. Me aproximei pra ver quem havia sido a vitima. – Eu acho que ele ainda está vivo – comentou uma senhora com um homem – Ele desmaiou na hora – dizia uma jovem para o seu namorado que a abraçava como que tentando acalmá-la do susto de ter visto o acidente. Ouvi outros comentários como: – Ela está morta? – Acho que sim, ela está cheia de sangue. Ele... e ela? Quantas pessoas eram afinal?– pensei eu Fui me aproximando, penetrando a multidão. Não dava pra ver nada. Tinha muita gente na minha frente. Alguém se esbarrou em mim, saindo do aglomerado dando espaço pra que eu entrasse nele. Tudo o que eu podia ver era uma picape tombada no meio da avenida. Ouvi um barulho de sirene. Olhei pra trás e vi que o carro da ambulância parava ali
  • 52. perto. Penetrei a multidão, me espremi para entrar naquele aglomerado de gente curiosa. Empurrei uma mulher para de uma vez por todas ver quem havia sido a vítima. Fiquei surpreso e chocado! Era uma garota da minha idade! Fiquei mais surpreso ainda ao perceber que eu conhecia o rosto. Será que era quem eu estava pensando? Mas que droga! Eu não podia acreditar naquilo. Na quarta série eu havia estudado com uma garota chamada Carolina, não lembro o sobrenome. Albuquerque, ou Oliveira, tanto faz. De início não nos falávamos direito. Só trocávamos algumas poucas palavras que eram de “oi” a “me empresta um lápis”. Eu tinha um amigo, parceirada que também estudou comigo da quinta série em diante. O nome dele era Carlos. E ele vivia dizendo – A Carolina esta afim de você. Eu não acreditava, mas ele dizia que toda vez que ela me via ela sorria, e que ficava me olhando quando eu passava. Comecei a achar então que aquilo podia ser verdade, pois comecei a prestar atenção no jeito dela. Acontece que eu já era afim de uma garota, uma da minha rua que sempre jogava vôlei com a gente. Por isso não dei muita bola pra essa história. Aquele ano terminou e fomos todos pra sexta série. Eu, Carlos e Carolina. O Carlos continuou dizendo que aquela garota se amarrava em mim. Dizia: – Pô, ela é bonitinha, se eu fosse você eu ficava com ela.
  • 53. Eu inventava uma desculpa e mudava de assunto. Como eu disse, tinha a garota do vôlei. Naquele início de ano recebi um bilhete, escrito numa folha de caderno assinado como “admiradora secreta”. Estava mais do que na cara que era coisa da Carolina. O bilhete dizia que eu era o cara certo pra ela, tudo que ela sempre havia sonhado e que ela iria lutar por mim até o final e outras coisas desse tipo. Uma verdadeira declaração de amor. Fiquei lisonjeado com a carta. Até pensei em ficar de uma vez por todas com ela. Mas pelo jeito a parada ia ser dura. Ela devia estar apaixonada e ia se envolver demais. Pensei bem antes de tomar qualquer decisão. Resolvi também que não mostraria a carta ao Carlos. Queria resolver aquela história sozinho. Continuei a Recber bilhetinhos. Mais uns três ou quatro. E a Carolina quando encontrava comigo sorria e tentava se aproximar e puxar conversa. E isso resultou em uma leve amizade. Acabamos nos aproximando. Agora conversávamos mais abertamente, eu fazia ela rir, ela me fazia rir. O Carlos dizia: – É isso aí meu irmão. Não, dispensa não! E então houve mais um bilhete, o último. Dessa vez um bilhete diferente. Em uma folha colorida, perfumada e de cor rosa. Ali Carolina escreveu um poema e revelou sua identidade dizendo que me amava e que não podia viver sem mim. Eu não podia acreditar naquilo. Aquela história estava mais séria do que eu pensava. Toda aquela
  • 54. declaração eu só podia corresponder de um jeito e fiz o que Carlos já havia me dito. Fiquei com Carolina atrás da quadra da escola. E aí então namoramos o resto daquele ano. A Carolina vivia me trazendo bombons, bilhetinhos, cartõezinhos. Tudo ia bem entre a gente. Foi então que aconteceu. Na sétima série a garota do vôlei me deu bola e aí ficou claro o que ia acontecer. Traí a Carolina com ela. E rapidamente todo mundo ficou sabendo. Inclusive ela. Ela não me disse uma palavra, apenas se afastou. Não foi tomar satisfações, nem disse nada. Apenas se afastou. Desde então não nos falamos mais. Evitávamos nos encontrar ou cruzar o olhar e foi assim durante toda a sétima série. Na oitava série logo no início do ano eu percebi a mudança da Carolina. Ela estava com um novo visual. Algo meio rebelde. Como se estivesse revoltada. Havia pintado o cabelo, colocado piercing e feito uma tatuagem. Agora ela respondia aos professores, xingava, gritava com os outros. Aquela nova Carolina pouco lembrava a de antigamente que eu havia conhecido e namorado. Aquela menina tímida e sorridente que evitava me olhar agora ela já me encarava. E quando fazia isso era sempre com um olhar de raiva que parecia dizer: “A culpa é toda sua!” Então ela começou a namorar com uns caras bem mais velhos que ela. Um dia apareceu bêbada na escola. O Carlos começou a dizer:
  • 55. – Viu o que você fez? Feriu o coração da moça, cara. Eu dizia que eu não tinha nada a ver com isso. Final eu não podia acreditar que a garota havia mudado totalmente por causa de um coração partido Mas, eu não era o tipo de cara que entendia muito de coisas do coração. A oitava série continuou e Carolina continuou aprontando. Volta e meia toda a sala comentava – Já sabe da última. A Carolina saiu de casa. – Já sabe da última a Carolina está com os olhos roxos porque apanhou do namorado. – Já sabe da última... A Carolina desistiu da escola E assim ela sumiu. Não a vi nunca mais. Passou-se mais um ano. Dois anos. De vez em quando eu havia por aí. Seu olhar já não era mais de raiva, agora era de desprezo. Aí segui minha vida, Carlos também seguiu a dele, se mudou pra outra cidade. A menina do Vôlei que aliás se chamava Gabrielle, se casou cedo com um cara que veio do sul, filho de um empresário. Tive várias namoradas depois disso. E essa história ficou no baú. E agora ao passar pela avenida vejo de repente esse rosto que eu um dia conheci. Carolina, envolta em uma poça de sangue. Uma coisa terrível de se ver. A última notícia que eu havia ouvido sobre ela era que ela estava namorando com um cara que tinha uma picape e que só andava em alta velocidade. Já
  • 56. havia batido várias vezes, mas nada desse tipo. Agora vejo o casal, – Provavelmente a garota ultrapassou o vidro do carro na hora que a picape bateu a toda velocidade no poste. O rapaz e a moça estavam alcoolizados – ouvi alguém comentar E aquilo me deixou pensativo. E se eu não tivesse ficado com a garota do vôlei e não houvesse magoado a Carolina. Ela teria um destino diferente? Ela teria andado com más companhias tentando chamar a minha atenção? Ela teria ficado revoltada? Será que foi tudo culpa minha? Será que foi tudo uma reação em cadeia, uma bola de neve? Não sei dizer. E nem sei dizer também se ela estava viva, ali, caída no meio da avenida.
  • 57. PORCOS NA ALMA Rosa Neves O sol ia se pondo. Eu olhava aqueles raios por entre as árvores. Era belo e misterioso o pôr do sol. Nos meus sete anos de longa vida, (me sentia uma mocinha) eu não conseguia compreender. Eu pensava “Por que o sol vai embora?”. Nesse tempo de férias estávamos na fazenda de meu Pai. Casa Grande avarandada, com assoalhos bem alto preparados por causa da grande cheia do rio Amazonas, mas era tempo de verão e tudo estava seco. Na fachada da casa tinha uma placa com letras, eu ainda não sabia ler, me disseram que ali estava escrito “Fazenda Segredo”. Era na beira do rio Amazonas, no meio da floresta. Tinha de tudo lá: galinha, pato, pinto, cabra, cabrito, boi, vaca, cavalo e porco. Naquela hora do pôr do sol, próximo onde eu estava sentada não havia silêncio. É que bem próximo a mim uma enorme porca gorda cheia de bacorinhos (porquinhos) estava deitada e eles tentando mamar gritavam fazendo enorme barulho. Não sei ao certo quantos eram, sei que eram muitos, havia dois diferentes, eles estavam enfeitados com laços no pescoço. Eu não estava ali por acaso, esperava o meu Cupuaçu mamar, assim era o nome do meu porquinho. Era marrom, roliço, igual a um cupuaçu. Ganhei esse porquinho de meu pai, o outro era de minha irmã.
  • 58. Era tão lindo, mas, me dava muito trabalho e preocupação, eu ficava seguindo e cuidando dele durante o dia todo. Desde que o ganhei, pegava ele no colo como se fosse um bebê. Parecia que eu não agradava muito, porque ele gritava demais, sempre agoniado não ficava quieto, esperneava querendo ir para o chão. Pegava ele no meu colo acarinhando, mas ele sempre ficava roncando, quando não gritando. No dia em que eu e minha irmã ganhamos os nossos porquinhos, papai nos chamou e disse: – Filhas escolham os seus bacorinhos! Olhei e o meu coração bateu forte quando deparei com o Cupuaçu, todo marronzinho, lindo, me apaixonei por ele. Peguei-o no colo e fiz uma promessa: – Eu vou cuidar de você. Eu queria dar um banho nele. Minha mãe me ajudou. Deu banho, perfumou, colocou laçinho de fita bem colorida e bonita com o nome que eu tinha escolhido e batizado. Cupuaçu na verdade era uma porquinha. Eu então doei minha almofadinha para Cupuaçu dormir confortável. Cupuaçu não queria saber de almofada, agoniada grunhia, guinchava, roncava e esperneava. –Deixe ele no chão um pouco para mamar, disse minha mãe aperreada com tanto grito. Soltei Cupuaçu que saiu em disparada atrás da porca; sim, daquela porca, porque a mãe de cupuaçu
  • 59. agora era eu. Corri atrás, a porcona tinha resolvido ir para uma poça de lama se lambuzar e Cupuaçu para minha tristeza se atirou com toda alegria na lama junto com a mãe e os irmãos. Voltei chorando porque minha porquinha estava toda suja. Inconsolável, chorava muito e soluçava, minha mãe parecia sorrir do meu sofrimento e eu me desesperava em ver a minha amada Cupuaçu na lama. – Não chore e deixe que ela possa descansar um pouco, depois nós daremos outro banho nela. Fiquei sem entender, porque cupuaçu estava cansada? Ela estava no meu colo o tempo todo! Não a deixei andar a manhã inteira! Então novamente minha mãe e eu pegamos Cupuaçu e demos outro banho nela, lacinho colorido de fita outra vez em seu pescoço, fiz questão de passar quase toda a minha lavanda em Cupuaçu, que gritava quanto mais eu passava talco e lavanda. Então nesse por do sol eu esperava Cupuaçu mamar para pegá-la no colo novamente. Era bonito o por do sol, mas eu estava preocupada, a noite estava chegando e Cupuaçu ia ficar lá fora da casa no escuro. Então me perguntava “porque o sol vai embora?”. Naquele momento aquele era um problema sério que eu não podia resolver. Era a minha preocupação. O problema era do meu tamanho. Cogitei em fazer uma tentativa de levar Cupuaçu para dormir comigo em minha rede. No momento
  • 60. refleti: que se mamãe descobrisse, era “peia” na certa. Então fui falar com ela. Minha mãe respondeu: – Nem pense mocinha! Ela vai ficar bem, está com a mãe dela e amanhã você brinca outra vez com ela. Não foi uma explicação muito convincente. Fiquei magoada com mamãe. Mas argumentei, –Mãeee, eu não coloco ela na rede não, ela vai dormir na almofada em baixo da minha rede. Mamãe disse: – Quando mamãe diz não é não, certo? –Certo! – Respondi– Custei a dormir naquela noite. Ouvi o piado da coruja e pensei; – será que esse bicho vai pegar minha porquinha? - Meu coração ficou apertado, Cupuaçu devia estar com medo do escuro e dos barulhos dos bichos do mato. Meus olhinhos se encheram de lágrimas e dormi abraçada com a almofada de Cupuaçu. De manhã bem cedo, nem fui pegar o meu leite na caneca lá no curral. Fui atrás de Cupuaçu, que estava toda suja novamente, foi outra maratona e os dias foram se passando da mesma maneira, nem eu, nem Cupuaçu estávamos felizes. Cupuaçu já não gritava tanto no meu colo, mas continuava a correr para a lama assim que tinha uma chance, eu queria dar queijo pra ela, Ela queria era babujo, restos de frutas e comidas. Tentei dar um pedaço de carne assada com feijão, carne de paca, Cupuaçu não quis. Que dificuldade era a minha! Realmente era um
  • 61. problema sério para mim, a minha querida Cupuaçu não queria ficar limpinha e nem deitar na almofadinha cheirosa. Isso me deixava uma menina pensativa e até um pouco tristonha. Eu tinha tantos planos para Cupuaçu. Queria fazer dela uma porca limpinha e cheirosa. Mas Cupuaçu não queria saber de meus sonhos, o seu prazer estava em deitar na lama, fuçar o chão e ficar emporcalhada. Eu estava pensativa. Cupuaçu não queria saber daquele mundo de limpeza e perfumes. Meu pai me observou, me viu assim, foi até mim e perguntou: – E então minha filha, onde está a sua porquinha? – Ela fugiu pra lama papai! Respondi tristonha. – Por que pai? Por que ela prefere a lama em vez da almofada cheirosa? Hein pai? – Porque a lama já está na alma dela minha filha – disse meu pai. Então eu entendi... Passei a observar a alegria de Cupuaçu de longe, balançando o rabinho sujo de satisfação. E eu olhava o pôr do sol e me perguntava “Por que o sol vai embora?”.
  • 62. UM DIA NA ENCHENTE Rosa neves Manhã chuvosa, um pouco fria. Ela se espreguiçou na rede e olhou para o lado. Em outra rede bem perto, estava a irmã, já acordada, com aquele sorrisinho conhecido. Sorriram uma para a outra, e automaticamente pularam da rede quase ao mesmo tempo, correndo, foram para a janela olhar os pingos de água caindo no rio. Era tempo de enchente. A água passava por debaixo do assoalho da casa, dando a impressão de estar sempre viajando em um barco. A casa era feita de madeira, o assoalho também, com pernas altas, prevenindo as grandes enchentes. As duas irmãs queriam ir para a varanda da casa onde a visão era melhor, lá dava para ver os peixinhos nadando sob a água, tinha uns bem pequenos fugindo dos grandões que queriam devorá-los. Assim como na vida onde também há muitos peixões querendo devorar os peixes pequenos, que vivem lutando para sobreviver neste tempo de grandes “enchentes”. A varanda era espaço proibido, para elas, pelo perigo de cair na água e se afogar. Seus pais tinham grande preocupação com isso, pois volta e meia sabiam da morte de alguma criança que caindo no rio se afogava. Uma tristeza só. Os pingos da chuva que incidiam no rio era uma atração à parte para Lalála; assim lhe chamava
  • 63. sua irmã Balila. Eram apelidos carinhosos com que eram chamadas. Lalála na sua meninice olhava em torno e refletia: – Tanta água, para quê...? A água caia do céu, e ao redor era água por toda parte, havia árvores que já estavam submersas, e a correnteza era forte, trazendo e levando coisas sem parar, por debaixo da casa e nas laterais. Ficavam ali apreciando, aquela beleza. Lá vinha um pedaço de pau, descendo rio abaixo e a disputa começava: – Esse barco é meu! – Não, é meu! – Eu vi primeiro! – Não quero mesmo, esse é feio!– E a peleja continuava. Naquele dia marcante, a chuva foi afinando, afinando até passar por completo. Haviam dias que chovia o dia todo. A mãe falou: – É hora de escovar os dentes mocinhas! Rapidamente pegaram as escovas e foram para a escada, onde mais da metade já estava debaixo da água. Sentaram no degrau e Balila ficou brincando com as mãos dentro da água, derrepente um grito se ouviu, então ela levantou a mãozinha gritando, e atracada com os dentes ao seu dedinho indicador, estava a malvada piranha. O pai-herói correu em seu socorro. Foi uma mordida feia. A mãe fez o
  • 64. curativo. E foi aquela correria, depois que passou o susto, o pai falou: – Eu vou buscar o leite! Lalála correu para pegar a caneca de alumínio com alça. Ouviu a irmã soluçando dizer: – Eu vou também!– Lalála então muito feliz pegou a caneca da irmã. Era uma rotina irem com o pai até a maromba tirar o leite pela manhã. Foram para a canoa, Lalála com lágrimas nos olhos observava Balila que ainda soluçava no resto de choro, queria poder tirar da irmã aquela dor em seu dedinho. E as recomendações da mãe vieram: – Se assentem bem no meio da canoa, cuidado! Não ponham as mãos na água, não se sujem! O pai começou a remar e lá foram rumo à maromba. Maromba é um curral de boi flutuante, com toras grossas de madeira amarradas umas às outras, como jangadas enormes, com tábuas por cima formando uma grande plataforma, ali ficam os bois, cavalos, carneiros, na época de enchentes, até o rio secar outra vez. E nos tempos de seca a maromba virava um lugar perfeito para brincar e para lazer da família. A maromba da casa de Lalála, estava presa embaixo de árvores, onde o gado podia se proteger do sol forte e desfrutar das sombras. Antes de chegar à maromba, a passagem pelas ingazeira e árvores mari-mari, era certa! o pai colhia as frutas.
  • 65. Ao chegar no curral, enquanto o pai tirava o leite, subiram na cerca e ficaram apreciando a visão dos bezerros querendo mamar, andavam de um lado para o outro, uma vaca mugindo, os cavalos relinchando. Hora da mamada! O pai encheu as canecas, com leite fresquinho e elas tomaram ali mesmo. Balila olhou para Lalála sorriu e disse: – Olha o teu bigode branco! Ela já havia esquecido o susto da piranha. – Tá doendo? – Perguntou Lalála. –Tá - Respondeu a irmã. –Papai do céu vai curar, tá bom?– Se abraçaram ali. Uma cuidando da outra. Como selando um pacto de amor. Aquele dia estava sendo marcado na vida delas. As irmãs maiores estavam na cidade estudando. Só voltavam nas férias. De volta para casa, o pai passou aonde havia colocado uma malhadeira e pegou diversos peixes. Lalála estava preocupada. E agora? A irmã não podia mais fazer nada. Tinha que ficar quietinha com aquele dodói, a mão levantada, para não bater, se apressava o passo, doía. Tinha que andar devagarzinho. Não podiam mais balançar na rede tão alto, como gostavam porque também doía o dedinho. E agora? Correr pela casa também não podia. O dedinho levantado para cima era a novidade do momento. O que fazer então? Duas crianças cheias de energias presas em uma casa sobre as águas do
  • 66. grande rio Amazonas. Brincar de boneca não podiam, Balila estava impossibilitada de pegar qualquer coisa, cheia de manha. A mãe com cuidado e tanta dó da filhinha mordida pela perigosa piranha, fazia mingaus e chás para Balila. As crianças da vizinhança chegavam de canoas, eram meninos e meninas a partir de três anos, vinham pegar leite, nas panelas. Às vezes traziam alguma coisa para trocar. As duas entediadas porque não tinha espaço para andar nem se movimentar muito. Resolveram conversar: E foi o dia de repetir a história da piranha por diversas vezes, e cada vez que elas recomeçavam mais detalhes iam acrescentando. Lalála disse : – Tu viu o olhão dela arregalado para mim, dizendo – Eu vou te pegar! A irmã respondeu: – Vi. E ela disse para mim: – Depois que eu te devorar eu vou comer a Lalála e todo mundo da casa, não vou deixar ninguém. A biografia já estava tão prolongada que a piranha já tinha virado um verdadeiro tubarão. A história da pequena piranha já havia se transformado em uma fábula de terror. Se o pai herói, não fosse mais rápido, e tão forte, ninguém mais existiria naquele “lar-ilha”, e se mãe não fosse tão eficiente no curativo a água estaria toda vermelha de tanto sangue que saía do dodói. O pior! É que se o pai e a
  • 67. mãe não existissem elas estavam perdidas. Bateu um medo no peito, correram rumo a cozinha para perto dos pais. O pai tecia uma tarrafa, a mãe já estava com a mesa pronta para o almoço. Sobre a mesa, bandas de tambaqui assadas cheirando e em uma panela fumegando uma caldeirada de tucunaré. As pessoas que moravam na casa foram chegando para o almoço. O tio das meninas havia pescado um enorme pirarucu que ia vender no comercial flutuante próximo dali. No decorrer do almoço o tio foi narrar a pescaria; contou que viu um jacaré de uns cinco metros que quase pegava ele. E as outras pessoas argumentavam; –Porque não deu um tiro no bicho? –Se eu matar um jacaré me prendem!- respondeu. – Mas se ele comer sua perna? Vão prender o jacaré? – Argumentou outra pessoa. Fazendo mesuras e sem respostas, mudaram de assunto. Depois do almoço foram fazer a sesta. E o dia foi decorrendo. O pai já havia voltado dos seus trabalhos diários. A mãe então dirigiu a oração em família como sempre, dizendo: – Família que ora unida, permanece unida. Depois desse momento o pai como costumeiramente pegou a viola, já com o sol se pondo e cantou uma canção de lamento:
  • 68. “Se o nordestino fala da seca Da aspereza do seu chão Eu falo cá do meu norte E da sua inundação. Ah! Eu deixei Maria Rosa Muitos pés de plantação, E arribei pra vila da barra No primeiro regatão Eu sou gente, que vivo no norte Lutando com a vida em busca da sorte Eu sou gente que vivo no norte Buscando a vida e fugindo da morte” E assim terminou mais um dia na enchente...