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1   INT. CASA DO FAXINEIRO - DIA

    Abrimos em um plano médio de uma sala de estar desgastada de
    tempo e imundície, na qual é possível ver um sofá e uma mesinha
    alinhados no centro do plano. O sofá é de couro e possui
    profundas fissuras das quais transbordam porções de espumas
    encardidas. Alguns lençóis estão jogados sobre o sofá e, sobre
    a mesinha, jornais amarelados. A parede por trás do sofá é
    decorada com tinta velha e descascada e dois quadros de
    molduras tortas e vidros embolorados.




    Um dos quadros é uma réplica em tamanho pequeno de "O Cristo
    Amarelo" de Gauguin, e o outro uma fotografia de Jacob Riis que
    representa uma família alojada em uma casa em miséria, tal qual
    encontra-se aquele cenário. Entre os dois quadros, um relógio
    de ponteiros quadrado que marca 6:56h.



    O Som de fundo é marcado por buzinas, carros, vozes e outros
    barulhos de um início de manhã de segunda-feira. A cidade está
    acordando.


    FAXINEIRO surge da esquerda do plano, uniformizado de cobrador
    de ônibus e com uma xícara de café frio na mão. Possui um
    relógio de pulso prateado e um óculos de sol pendurado no
    primeiro botão da camisa.


    Ele senta no meio do sofá, posiciona a xícara de café sobre a
    mesinha e apanha as folhas de jornal amarelas.


    Tenta ler por alguns instantes mas desiste, devolvendo o jornal
    para sua posição inicial.


    Curvando-se e apoiando os cotovelos sobre os joelhos, ele
    atenta para a xícara de café sem fumaça como que esperasse algo
    saltar dela. Aos poucos o som do ponteiro do relógio na parede
    vai aumentando, substituindo a predominância dos ruídos de
    amanhecer da metrópole, até que não se ouve mais nada senão o
    relógio.



    Com um baque de surpresa surge a música, anunciando o texto em
    sobreposição: "O FAXINEIRO". A música some como surge, dum
    susto e junto ao texto.


    O relógio de pulso prateado apita discretamente, despertando o
    nosso protagonista de sua hipnose aparente. Ele pisca os olhos
    devagar enquanto desliga o alarme do relógio e se levanta no
    ritmo de sua lentidão, dirigindo-se com calma até a porta e
    saindo por ela.



    Texto em sobreposição com caracteres que sangram: 7:00h
2.



2   I/E. ÔNIBUS - DIA

    FAXINEIRO está sentado na cadeira de cobrador de um ônibus
    público, usando os óculos de sol no rosto e sendo alvejado nas
    costas por raios de sol matinais. Seu rosto brilha de suor e
    seu humor não é dos melhores.


    O ônibus está cheio.

    Ele finge não perceber estar sendo observado por uma senhorinha
    que está de pé ao seu lado, de óculos grandes, cabelo preso e
    apoiando sobre a canela um saco de compras de supermercado. Ela
    é DONA MARILENE. O observa com um discreto sorriso e ar de
    curiosidade.



                               DONA MARILENE
                 Esse ônibus é bem velho, sabia? Dá
                 pra ver pelos remendos no chão.


    FAXINEIRO sequer dá atenção.

                               DONA MARILENE     (CONT.)
                 Eu sei disso por que eu pego esse
                 mesmo ônibus toda semana... é o
                 trajeto que eu faço de casa pra
                 feira, faz uns 15 anos...


    FAXINEIRO está perdendo a paciência.

                               DONA MARILENE    (CONT.)
                 Eu só tô dizendo isso porque eu nunca
                 vi o senhor em nenhum ônibus desse...
                 o senhor trabalha nessa linha faz
                 tempo?


                                  FAXINEIRO
                           (relutante a dialogar)
                 Não.

                               DONA MARILENE
                 Mas menino... eu conheço esse povo
                 todo que trabalha na GUAMAPARA, tu
                 deve ser novo sim, né possível...
                 agora, eu não sei se é novo na
                 GUAMAPARA ou se é novo como cobrador
                 de ônibus.



    FAXINEIRO tira os óculos de sol e com um suspiro de calor
    sucumbe à insistente conversa anunciada.


                               FAXINEIRO
                 Sou novo na GUAMAPARA. Mas como
                 cobrador de ônibus eu já tenho uns 10
                 anos.
3.



                           DONA MARILENE
             Mas homee... e como é que eu nunca te
             vi? Ave Maria... eu ando essa cidade
             todinha e nunca vi esse home...


                           FAXINEIRO
             É porque eu só trabalho
             meio-período... desde sempre...


                           DONA MARILENE
             E o que é que faz com o resto?

                           FAXINEIRO
                    (confuso)
             Resto do quê?

                           DONA MARILENE
             Do tempo, abestalhado!

                           FAXINEIRO
                    (pensa um pouco antes de
                    dizer)
             ...Nada!

                           DONA MARILENE
             Pois então trate de fazer alguma
             coisa... é possível um homem do seu
             tamanho se sustentar com meio salário
             de cobrador? Tu tem cara de quem nem
             gosta desse emprego. Tem alguma coisa
             que tu goste de fazer? Tu podia
             pensar em largar esse trabalho.



                           FAXINEIRO
             Tem não...

                           DONA MARILENE
             Pense direitinho, num tem nenhum
             talento ou alguma coisa que gosta de
             fazer pra passar tempo? Eu, por
             exemplo, sou costureira. Fiz um curso
             técnico de enfermagem faz um tempão,
             mas nunca gostei. Eu sei que se eu
             trabalhasse em hospital eu ganharia
             bem mais dinheiro. Mas eu não suporto
             ver gente doente, sabe? Machucado,
             ferida, essas coisas, Deeus me
             livre...




FAXINEIRO agora já dá completa atenção à DONA MARILENE.
4.



                           DONA MARILENE    (CONT.)
             Em compensação, eu adoro costurar.
             Adoro ver as coisas certinha,
             amarradinha, junta... num sei, acho
             que dá uma sensação de organização no
             mundo, na minha vida pelo menos...
             uma sensação de que as coisas tão
             certas e tão bem... Não tem nada que
             faça você se sentir assim?




FAXINEIRO observa os remendos no chão do ônibus, pensativo e
tensionado. A música se mistura com os sons do motor do ônibus,
acompanhando sua tensão.


Texto em sobreposição com caracteres que sangram: 11:00h

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O FAXINEIRO - Pedro Balduino - CENA 1 e 2 - IMPÉRIO FILMES

  • 1. 1 INT. CASA DO FAXINEIRO - DIA Abrimos em um plano médio de uma sala de estar desgastada de tempo e imundície, na qual é possível ver um sofá e uma mesinha alinhados no centro do plano. O sofá é de couro e possui profundas fissuras das quais transbordam porções de espumas encardidas. Alguns lençóis estão jogados sobre o sofá e, sobre a mesinha, jornais amarelados. A parede por trás do sofá é decorada com tinta velha e descascada e dois quadros de molduras tortas e vidros embolorados. Um dos quadros é uma réplica em tamanho pequeno de "O Cristo Amarelo" de Gauguin, e o outro uma fotografia de Jacob Riis que representa uma família alojada em uma casa em miséria, tal qual encontra-se aquele cenário. Entre os dois quadros, um relógio de ponteiros quadrado que marca 6:56h. O Som de fundo é marcado por buzinas, carros, vozes e outros barulhos de um início de manhã de segunda-feira. A cidade está acordando. FAXINEIRO surge da esquerda do plano, uniformizado de cobrador de ônibus e com uma xícara de café frio na mão. Possui um relógio de pulso prateado e um óculos de sol pendurado no primeiro botão da camisa. Ele senta no meio do sofá, posiciona a xícara de café sobre a mesinha e apanha as folhas de jornal amarelas. Tenta ler por alguns instantes mas desiste, devolvendo o jornal para sua posição inicial. Curvando-se e apoiando os cotovelos sobre os joelhos, ele atenta para a xícara de café sem fumaça como que esperasse algo saltar dela. Aos poucos o som do ponteiro do relógio na parede vai aumentando, substituindo a predominância dos ruídos de amanhecer da metrópole, até que não se ouve mais nada senão o relógio. Com um baque de surpresa surge a música, anunciando o texto em sobreposição: "O FAXINEIRO". A música some como surge, dum susto e junto ao texto. O relógio de pulso prateado apita discretamente, despertando o nosso protagonista de sua hipnose aparente. Ele pisca os olhos devagar enquanto desliga o alarme do relógio e se levanta no ritmo de sua lentidão, dirigindo-se com calma até a porta e saindo por ela. Texto em sobreposição com caracteres que sangram: 7:00h
  • 2. 2. 2 I/E. ÔNIBUS - DIA FAXINEIRO está sentado na cadeira de cobrador de um ônibus público, usando os óculos de sol no rosto e sendo alvejado nas costas por raios de sol matinais. Seu rosto brilha de suor e seu humor não é dos melhores. O ônibus está cheio. Ele finge não perceber estar sendo observado por uma senhorinha que está de pé ao seu lado, de óculos grandes, cabelo preso e apoiando sobre a canela um saco de compras de supermercado. Ela é DONA MARILENE. O observa com um discreto sorriso e ar de curiosidade. DONA MARILENE Esse ônibus é bem velho, sabia? Dá pra ver pelos remendos no chão. FAXINEIRO sequer dá atenção. DONA MARILENE (CONT.) Eu sei disso por que eu pego esse mesmo ônibus toda semana... é o trajeto que eu faço de casa pra feira, faz uns 15 anos... FAXINEIRO está perdendo a paciência. DONA MARILENE (CONT.) Eu só tô dizendo isso porque eu nunca vi o senhor em nenhum ônibus desse... o senhor trabalha nessa linha faz tempo? FAXINEIRO (relutante a dialogar) Não. DONA MARILENE Mas menino... eu conheço esse povo todo que trabalha na GUAMAPARA, tu deve ser novo sim, né possível... agora, eu não sei se é novo na GUAMAPARA ou se é novo como cobrador de ônibus. FAXINEIRO tira os óculos de sol e com um suspiro de calor sucumbe à insistente conversa anunciada. FAXINEIRO Sou novo na GUAMAPARA. Mas como cobrador de ônibus eu já tenho uns 10 anos.
  • 3. 3. DONA MARILENE Mas homee... e como é que eu nunca te vi? Ave Maria... eu ando essa cidade todinha e nunca vi esse home... FAXINEIRO É porque eu só trabalho meio-período... desde sempre... DONA MARILENE E o que é que faz com o resto? FAXINEIRO (confuso) Resto do quê? DONA MARILENE Do tempo, abestalhado! FAXINEIRO (pensa um pouco antes de dizer) ...Nada! DONA MARILENE Pois então trate de fazer alguma coisa... é possível um homem do seu tamanho se sustentar com meio salário de cobrador? Tu tem cara de quem nem gosta desse emprego. Tem alguma coisa que tu goste de fazer? Tu podia pensar em largar esse trabalho. FAXINEIRO Tem não... DONA MARILENE Pense direitinho, num tem nenhum talento ou alguma coisa que gosta de fazer pra passar tempo? Eu, por exemplo, sou costureira. Fiz um curso técnico de enfermagem faz um tempão, mas nunca gostei. Eu sei que se eu trabalhasse em hospital eu ganharia bem mais dinheiro. Mas eu não suporto ver gente doente, sabe? Machucado, ferida, essas coisas, Deeus me livre... FAXINEIRO agora já dá completa atenção à DONA MARILENE.
  • 4. 4. DONA MARILENE (CONT.) Em compensação, eu adoro costurar. Adoro ver as coisas certinha, amarradinha, junta... num sei, acho que dá uma sensação de organização no mundo, na minha vida pelo menos... uma sensação de que as coisas tão certas e tão bem... Não tem nada que faça você se sentir assim? FAXINEIRO observa os remendos no chão do ônibus, pensativo e tensionado. A música se mistura com os sons do motor do ônibus, acompanhando sua tensão. Texto em sobreposição com caracteres que sangram: 11:00h