A chegada da era digital trouxe velocidade no trânsito de informação, novas técnicas para a reprodução de música, e a incapacidade do ser-humano em consumir tudo o que é produzido. Daí surgem as interfaces gráficas e os agentes virtuais organizando e antecipando necessidades do ser-humano. À medida que essas informações são controladas por empresas globais há como questionamentos: de que modo o sujeito constrói sua realidade a partir da recepção de conteúdos e fontes criados com fins mercadológicos; até que ponto temos o controle sobre as plataformas de música streaming – que se estende à do entretenimento e informação como um todo; e até que ponto os oligopólios conduzem e se apropriam do processo de hibridação. Busca-se avaliar a intersecção entre os novos paradigmas de distribuição, produção, e consumo de música via as plataformas streaming.
1. 6
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
CENTRO DE ESTUDOS LATINO AMERICANOS SOBRE CULTURA E COMUNICAÇÃO
Música na Tecnocultura
A interface do Spotify como suporte e seus
processos de hibridação
Marcus Vinícius Leonel
Março de 2017
Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de
Especialista em Mídia, Informação e Cultura sob orientação do (a) Prof. Dr. Vinícius Romanini
3. 8
Música na Tecnocultura: A interface do Spotify como suporte e
seus processos de hibridação.
Vinícius Leonel1
RESUMO
A chegada da era digital trouxe velocidade no trânsito de informação, novas
técnicas para a reprodução de música, e a incapacidade do ser-humano em
consumir tudo o que é produzido. Daí surgem as interfaces gráficas e os agentes
virtuais organizando e antecipando necessidades do ser-humano. À medida que
essas informações são controladas por empresas globais há como
questionamentos: de que modo o sujeito constrói sua realidade a partir da
recepção de conteúdos e fontes criados com fins mercadológicos; até que ponto
temos o controle sobre as plataformas de música streaming – que se estende à
do entretenimento e informação como um todo; e até que ponto os oligopólios
conduzem e se apropriam do processo de hibridação. Busca-se avaliar a
intersecção entre os novos paradigmas de distribuição, produção, e consumo de
música via as plataformas streaming.
Tecnocultura, Hibridismo, Música e Internet, Streaming, Indústria Fonográfica,
Spotify
ABSTRACT
The arrival of the digital age has brought speed in the transit of information, new
techniques for the reproduction of music, and the inability of the human being to
consume everything that is produced. Hence arise the graphical interfaces and
the virtual agents organizing and anticipating human needs. As this information
is controlled by global companies, there are questions: how does the subject
construct its reality from the reception of contents and sources created for
marketing purposes; How far we have control over the platforms of music
streaming - that extends to the entertainment and information as a whole; And
to what extent oligopolies lead and appropriate the hybridization process. The
research evaluates the intersection between the new paradigms of distribution,
production, and music consumption via streaming platforms.
Technology, Hybridism, Music and Internet, Streaming, Phonographic Industry,
Spotify
RESUMEN
1
Graduado em Comunicação Social com ênfase em Comunicação Mercadológica pela Universidade
Metodista de São Paulo e Especialista em Marketing Digital pela Internet Innovation. Empreende na
Espalha Cultura, agência de comunicação cultural e mídias sociais para músicos.
4. 9
La llegada de la era digital trajo velocidad en el tránsito de información, nuevas
técnicas para la reproducción de música, y la incapacidad del ser humano para
consumir todo lo que se produce. De ahí surgen las interfaces gráficas y los
agentes virtuales organizando y anticipando necesidades del humano. A
medida que esas informaciones son controladas por empresas globales hay
como cuestionamientos: de qué modo el sujeto construye su realidad a partir
de la recepción de contenidos y fuentes creadas con fines mercadológicos;
Hasta qué punto tenemos el control sobre las plataformas de música streaming
- que se extiende a la del entretenimiento e información como un todo; Y hasta
qué punto los oligopolios conducen y se apropia del proceso de hibridación. La
investigación evalúa la intersección entre los nuevos paradigmas de
distribución, producción, y consumo de música a través de las plataformas
streaming.
Tecnología, Hibridismo, Música e Internet, Streaming, Industria Fonográfica,
Spotify
5. 10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 13
2. TECNOCULTURA 15
3. REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA 16
4. INTERFACE E ANTOLOGIA DA CULTURA DIGITAL 18
5. PROCESSOS DE HIBRIDAÇÃO 24
5. A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA E SEUS MECANISMOS DE CONTROLE 31
6. SPOTIFY E A PENETRAÇÃO GLOBAL 35
7. SPOTIFY: ANÁLISE DA INTERFACE COMO SUPORTE 36
7.1 As playlists, O agente invisível, e suas sugestões de conduta 36
7.2 Estratégias de centralização 38
7.3 Interface hegemônica e Estetização 39
7.4 Operações de transnacionalização 40
7.5 Operações de desterritorialização e hibridismo 43
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS 44
9. REFERÊNCIAS 48
10. APENDICES 53
10.1 - APENDICE A – Tela da Interface e mecanismos de descobertas 53
10.2 - APENDICE B – Mecanismos de Centralização, análise de Hiperlinks 56
10.3 - APENDICE C – Mecanismos de transnacionalização 60
10.4 - APENDICE D – Antologias inadequadas 62
11. ANEXOS 64
11.1 - Anexo 1 – Principais serviços de Streaming no Brasil 64
11.2 - Anexo 2 – Uso do Spotify por dispositivos móveis no mundo 64
7. 12
Agradecimentos,
Aos amigos que corresponderam telepaticamente.
À família que apoiou e acompanhou as diversas mudanças de hábitos.
Ao meu marido Guilherme Kastrup pela ajuda e paciência geral.
Ao orientador Vinícius Romanini e avaliadoras que contribuíram para um artigo
mais sintético.
Às bandas e artistas que contribuíram com dados e investimentos,
possibilitando maior proximidade do objeto ao longo da pesquisa.
Aos pensadores orgânicos e passantes que encontrei nessa jornada
transformadora.
8. 13
1. INTRODUÇÃO
Thomas Edison ao inventar o fonógrafo nos anos de 1880 tinha
como objetivo inicial criar um equipamento capaz de armazenar memórias
sonoras. Queria obter um registro que transitasse e pudesse ser revivido pelos
escombros do espaço-tempo. Seu uso era imaginado pelo inventor para diversas
funções pessoais e afetivas: a gravação de conversas telefônicas, a
correspondência de cartas por mensagens de voz, as últimas palavras de um
ente que está para morrer. Também era visionário em relação ao poder que a
invenção detinha ao ser utilizada no campo da educação: livros fonográficos
dedicados a deficientes visuais; ensino de idiomas e aprimoramento da dicção;
gravação e consulta de conteúdo dado em sala de aula, aumentando a
capacidade de aprendizado do aluno.
Edison não previu em sua época e nem patenteou o uso do
fonógrafo e cilindro para fins de entretenimento. Rapidamente a indústria
cultural, mais especificamente a fonográfica, brilhou os olhos sobre as
possibilidades comerciais que havia naquela invenção. Tão logo a música
deixava de ocupar apenas as salas de concertos para ser comercializada e
materializada em cilindros, e ao longo do tempo, em vinil, em fita k7, no CD Rom,
e atualmente desmaterializada no MP3 e no streaming.
O aprimoramento das técnicas de reprodução, a possibilidade de
copias infinitas permitidas pela descoberta do número binário, o bit, fez com que
a música passasse de um modelo de escassez para um modelo baseado na
abundância e gratuidade2. Com ações antipirataria e financiamento da
publicidade, os oligopólios parecem viver num cabo de guerra com os
movimentos contra hegemônicos. Oligopólios ganham força também através de
fator estético e arquitetônico oferecidos com a interface gráfica, que organiza
acervos e criam uma ordem na navegação e nos processos de descobertas do
usuário. A decorrência disso é uma imposição mecânica sobre nossas vidas no
modo como consumimos música, alterando os processos culturais, a
compreensão da diversidade, as experiências estéticas, e a noção do real e da
2
CRUZ, 2014, pg. 97
9. 14
simulação distorcidos pela midiatização. Chegamos ao ápice desta investigação:
como é organizada e qual é o papel da música na tecnocultura?
A partir disso, há como questionamentos: de que modo o sujeito
constrói sua realidade a partir da recepção de conteúdos e fontes criados com
fins mercadológicos; até que ponto as tecnomediações interferem no consumo
e produção para as plataformas de música streaming – que se estende à do
entretenimento e informação como um todo; e até que ponto os oligopólios
induzem este repertório apenas aos interesses comerciais globalizantes. Em
resumo, busca-se avaliar a intersecção entre os novos paradigmas de
distribuição, produção, e consumo de música via as plataformas streaming.
Com o método de pesquisa exploratório e teórico, analiso a
interface da plataforma de música streaming Spotify, apontando algumas ações
reprodutiivistas oriundas da interface hegemônica, de dominação do ciberespaço
e do avanço do neoconservadorismo ou capital da informação. Para embasá-la
são utilizados conceitos teóricos de Muniz Sodré, Steven Johnson, Vinícius
Romanini, Nestor García Canclini, e outros autores, que como ponto em comum,
discutem as relações entre tecnologia, sociedade, e processos culturais.
O artigo também pretende ser complementar à pesquisa de
doutorado de Leonardo Cruz, que trata das arquiteturas de controle da indústria
fonográfica a partir dos eixos de direitos autorais e da economia da atenção.
Aqui, a continuidade é dada a partir dos eixos de controle da interface e de seus
processos de hibridação.
O artigo se estrutura da seguinte forma: primeiro discute-se a
condição da informação na tecnocultura. Na segunda parte relaciona-se os
conceitos de interface com os processos de hibridação, sob os eixos de
desterritorialização e transnacionalização na ótica do objeto de estudo. Na
terceira são apontadas estratégias de controle e sustentação dos oligopólios. E
por fim, são colocadas algumas reflexões a respeito das produções artísticas e
formação de repertório musical.
10. 15
2. TECNOCULTURA
Às custas das experiências bélicas e de projetos modernizantes,
tivemos um extenso processo de transformação no modo como produzimos e
consumimos a música e informação hoje, principalmente com a criação do bit, o
número binário. Graças ao eletrônico e digital conseguimos, quase na velocidade
da luz, os fragmentos tempo-espaciais que Edson obtinha pelas vias mecânicas
e analógicas. Porém, ao mesmo passo que avançamos ao uso da informação
para o conhecimento coletivo, avançamos também para um espaço de maior
vigilância e controle estabelecido pelo capital. Ao mesmo passo que obtivemos
uma infinidade de informação e músicas entregues sem interrupção, ficamos
sujeitos a distorções no modo como constituímos a realidade e o gosto quando
condicionados pela indústria cultural ou capital – esta condição é vista como um
“fenômeno midiático” da tecnocultura (SODRÉ, 2006, p. 19).
O termo tecnocultura é empregado aqui no seu sentido mais cru,
na desconstrução de seu neologismo. O tecno referindo-se à instrumentalização
(o gravador, o rádio, a plataforma streaming) e cultura às práticas sociais,
políticas, artísticas e linguísticas que traduzem o acumulo de conhecimento da
humanidade (mediada pelo ouvinte, ou musicista), sendo a conjunção da palavra
a própria articulação de seus sentidos.
Pensada efetivamente como articulação entre tecnologia e
cultura, ela não diz pura e simplesmente da tecnologia nem
pura e simplesmente da cultura, mas das apropriações e
interpretações da tecnologia na vida cotidiana, para lidar
com problemas, questões, necessidades colocadas pela
vida, em sintonia com afetos, desejos, valores e práticas
sociais. Tecnocultura se refere a uma relação que convoca
nosso olhar para as dinâmicas políticas, sociais,
econômicas, simbólicas da nossa vida cotidiana. (GOMES,
2014, p. 6)
Ao invés de trazer uma discussão epistemológica sobre o termo
tecnocultura, por considera-lo instável e bastante amplo, existindo também
divergência de apropriação entre autores que o empregam, centra-se aqui a
intersecção que há nos processos culturais à medida que novos dispositivos de
comunicação e reprodução da realidade são impostos com os interesses
mercadológicos, ou seja, quais são os novos paradigmas na produção e
11. 16
recepção da música com sua virtualização nas plataformas streaming e o que
isso interfere na constituição do sujeito social. Pretende-se empregar
tecnocultura com base na definição que Muniz Sodré utiliza em Antropológica do
Espelho.
A tecnocultura – essa constituída por mercado e meios de
comunicação, o quarto bios – implica uma nova tecnologia
perceptiva e mental, portanto, um novo tipo de
relacionamento do indivíduo com as referências concretas e
com a verdade, ou seja, uma outra condição antropológica.
(SODRÉ, 2006, p. 23).
3. REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA
Walter Benjamin previa a subordinação das artes na lógica
industrial ao observar o rápido aprimoramento das reprodutibilidades técnicas,
isto é, a capacidade das obras em serem copiadas e multiplicadas, para acelerar
o processo de produção da informação. Se tornam suportes da imprensa e,
posteriormente, sua própria comercialização.
Com a litografia, as técnicas de reprodução marcaram um
progresso decisivo. Esse processo, muito mais fiel – que
submete o desenho à pedra calcária, em vez de entalhá-lo
na madeira ou de gravá-lo no metal – permite pela primeira
vez às artes gráficas não apenas entregar-se ao comércio
das reproduções em série, mas produzir diariamente obras
novas. (BENJAMIN, 1961, p. 12) [...] “Reproduzem-se cada
vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para
serem reproduzidas” (BENJAMIN, 1961, pg. 17).
Na tecnocultura a música entra numa lógica de produção fordista.
Seu tempo simbólico é sufocado em meio à massa de produção trazida com a
indústria da informação e a internet. Com o bit, alcançamos a possibilidade de
disponibilizar e ouvir centenas de músicas. Sua infinidade oriunda das técnicas
de gravação, reprodução, das cópias, compactação digital, e desmaterialização
tornam o humano incapaz de consumir tudo o que há de música gravada no
tempo natural de uma vida. Daí surgem as plataformas streaming, um novo
ambiente de realização social apresentado através das interfaces gráficas - um
espaço arquitetado para reunir acervos, organizando fluxos de dados que
facilitam a navegação do usuário na internet. Sobre as plataformas streaming:
12. 17
Seu modelo de negócio é baseado em uma experiência de
consumo de conteúdos digitais que substitui a lógica da
compra de um disco pelo acesso a fonogramas hospedados
nas redes digitais, permitindo que seu desfrute possa ser
realizado sem que se precise baixar, arquivar e organizar
esse conteúdo em dispositivos individuais. Por essas
características, eles já foram entendidos de diversas formas:
como plataformas sociais de música (AMARAL, 2007), como
sistemas telemáticos que simulam estações de rádio (LEÃO;
PRADO, 2007), como mídias sociais de base radiofônica ou,
abreviadamente, serviços de rádio social
(KISCHINHEVSKY; CAMPOS, 2014). Na prática, podem ser
descritos como portais de consumo, promoção e circulação
de conteúdos sonoros. (KISCHINHEVSKY, VICENTE e
MARCHI, 2015, p.2)
As plataformas de música streaming é exemplo de um médium,
“um tipo particular de interação, portanto, a que poderíamos chamar de
tecnomediações – caracterizadas por uma espécie de prótese tecnológica e
mercadológica da realidade sensível”. (SODRÉ, 2006, p. 20). O usuário que a
acessa tem como propósito inicial ouvir música - antes do entretenimento, esta
é caracterizada como uma mediação simbólica, “ação de fazer ponte ou fazer
comunicarem-se duas partes” (SODRÉ, 2006, p. 20).
No intuito de ocupar-se, de obter algum tipo de companhia, o
usuário telerrealiza-se, transporta-se do show presencial para a simulação do ao
vivo, ou desvencilha-se de um suporte material, como o CD e o vinil, para
acessar um ambiente tecnologicamente criado que irá mediar esta demanda
simulando as experiências sensitivas que há no ato de ouvir música pelos rituais
analógicos.
A partir do computador, a simulação digitaliza-se (a
informação é veiculada por compressão numérica) e, nos
atuais termos tecnológicos, passamos da dominância
analógica à digital, embora os dois campos estejam em
contínua interface. Daí decorre a confirmação atual da
tecnocultura, uma cultura da simulação ou do fluxo, que faz
da “representação apresentativa” uma nova forma de vida.
(SODRÉ, 2010. Pg. 17)
Com a música nas plataformas streaming sob as condições
descritas acima, “o indivíduo é solicitado a viver muito pouco auto-reflexivamente
[...] cujo horizonte comunicacional é interatividade absoluta” (SODRÉ, 2006, p.
13. 18
22), ou seja, um consumo exacerbado de mediações simbólicas, o sujeito em
função de uma economia da atenção3. Ao mesmo tempo que as novas
tecnologias facilitam a produção da música, emergem canais ou dispositivos
para que elas sejam organizadas. Sua produção passa a ser acelerada para
atender uma demanda social e mercadológica.
O efeito desta aceleração é a perda da autenticidade, que Benjamin
denomina por hit et nunc, ou perda da aura, o desvinculo com a história, rituais
e tradição em que a obra foi criada, a ausência da doação espiritual do artista e
sua produção. É sob este parâmetro que o autor já apontava consequências do
avanço tecnológico e seus impasses com a sociedade – a música em seu estado
midiatizado.
Desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à
produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em
lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante,
sobre uma outra forma de práxis: a política. (BENJAMIN,
1961, pg. 17). [...] Na medida em que diminui a significação
social de uma arte, assiste-se, no público, a um divórcio
crescente entre o espírito crítico e o sentimento de fruição.
Desfruta-se do que é convencional sem criticá-lo;
(BENJAMIN, 1961, pg. 27)
4. INTERFACE E ANTOLOGIA DA CULTURA DIGITAL
Com um maior domínio sobre as reprodutibilidades técnicas o ser
humano entra num estágio incapaz de absorver o extenso volume de informação.
Carregadas de experiências estéticas fragmentadas, identidades, símbolos,
disponibilizados e produzidos diariamente para a infosfera ou ciberespaço4, a
informação ganha a interface para canalizar estes fluxos de informação.
3
O tempo de navegação do usuário se torna valioso para o mercado, uma vez, que quanto maior o
tempo de navegação na internet, maior a possibilidade de anunciantes oferecer suas mercadorias ou
conteúdo. “ (...) A cultura se torna o recurso comercial mais importante, o tempo e a atenção se tornam
a posse mais valiosa e a própria vida de cada indivíduo se torna o melhor mercado” (RIFKIN, apud:
CRUZ)
4
"O ciberespaço confunde, em uma única palavra-chave, técnica, simbolismo, natureza e sociedade”
(MUSSO, 2006, Pg. 194). É também conhecido como o cérebro-global, um ser artificial e vivo que dá
acesso às memórias depositadas por usuários, numa rede, um “conjunto de elos interconectados”
(MUSSO, 2006, Pg. 195), ligando diversas espaços territoriais do mundo à “terra incógnita” (MUSSO,
2006, Pg. 195), desterritorializada, sem fronteiras. É uma espécie de acervo da humanidade, que se
desdobra numa combinação infinita de possibilidades, com seus caminhos encurtados.
14. 19
No sentido mais simples, de manual, diríamos que a
interface consiste em clicar um mouse em certos objetos
para ativá-los, clicar em direções para movê-los, clicar e
arrastar para interagir com eles. Sem dúvida é disso que se
trata. [...] A interface é na realidade todo o mundo imaginário
de alavancas, canos, caldeiras, insetos e pessoas
conectados — amarrados entre si pelas regras que
governam esse pequeno mundo. (JOHNSON, 2001, 223)
O homem como centro do universo, ideia internalizada há séculos
pela visão antropocêntrica, parece perder sua posição com a transição do
analógico para o digital. Numa espécie de upload5, que desfragmenta e transfere
arquivos digitais para o ciberespaço, estamos a carregar hábitos, condutas,
linguagens, e a própria razão, considerada até então exclusividade da espécie
humana. Passamos a conviver com híbridos de homem e máquina.
No ciberespaço, o território não existe. O território rugoso,
resistente é apagado. Subsiste apenas um espaço liso,
fluido, de circulação [...] esse espaço de rede se
desenvolvendo sem fim é híbrido, meio humano, meio
máquina: ele liga homens e máquinas, indistintamente,
porque as redes são ora organismos, ora artefatos.
(MUSSO, 2006, Pg. 196)
Para que a revolução digital acontecesse de fato, seria preciso que
a comunicação entre homem e microprocessador se tornasse fluida e empática,
onde a própria interface gráfica se tornasse “um meio de comunicação. Não mais
um ponto de intersecção inerte e misterioso entre usuário e microprocessador”
(JOHNSON, 2001, p. 54). Inicialmente a interface era imaginada “como um
ambiente, um espaço a ser explorado” (JOHNSON, 2001, p. 32), mas ela evoluiu
e agregou agentes virtuais.
“em vez de espaço, aqueles zeros e uns são organizados
em algo mais próximo de um indivíduo, com um
temperamento, uma aparência física, uma aptidão para
aprender — o computador como personalidade, não como
espaço. Chamamos essas novas criaturas — essas
"personalidades" digitais — de agentes. (JOHNSON, 2001,
p. 161)
5
Upload é um termo da língua inglesa com significado referente à ação de enviar dados de um
computador local para um computador ou servidor remoto, geralmente através da internet.
(SIGNIFICADOS, 2017)
15. 20
Percebemos até aqui mudanças de paradigmas no modo como se
armazena e consome música. Trocamos o suporte material como o CD e o Vinil,
para a interface gráfica. Àqueles se tornam objetos colecionáveis. A interface se
torna o novo suporte da música na tecnocultura, imaterial e descolecionável. É
nesta condição, que passamos a conviver com agentes inteligentes capazes de
operar tarefas diárias filtrando informações hipoteticamente relevantes.
Imagine um futuro no qual seu agente de interface vai poder
ler todos os jornais e captar todos os noticiários de tv e rádio
do planeta, construindo a partir daí um sumário
personalizado para você. Esse tipo de jornal terá uma
tiragem de uma única cópia. (NEGROPONTE, 1995, 147)
Na mesma linha do exemplo dado pelo Negroponte, temos hoje nas
plataformas streaming, agentes que “escutam” músicas para o usuário, e
montam uma playlist ou uma rádio personalizada.
Na história da interface, a escrivaninha foi a analogia principal para
dar sentido ao que conhecemos como Desktop, ou área de trabalho. Com os
agentes virtuais, a analogia partiu com o uso do termo "mordomos". Inicialmente
foi colocado pela Apple e pela Microsoft como um ser submisso do homem. Um
mordomo sempre em prontidão para atender os desejos de seu "chefe" na forma
mais rápida e assertiva possível.
Nos anos 80, o agente era de fato ilustrado como um mordomo (O
Jeeves pela Apple e o Bob da Microsoft)6, mas nos anos 90, entra em desuso a
metáfora realista para o uso de agentes invisíveis. Johnson relata que “sua
invisibilidade é a fonte de seu poder” (Cultura da Interface, 2001, p. 163). Elas
possibilitam que os agentes se infiltrem mais facilmente em nossas vidas, se
instalando em nossas máquinas, reduzindo seu papel de submissão.
Transitamos de uma manipulação direta com a interface, nosso
poder de escolha, para uma manipulação indireta com os agentes, o tornamos
nosso representante, delegamos a ele este poder de escolha. "É o risco de
baboseira, entulho, poluição informacional personalizados se fazerem passar por
nossos novos melhores amigos" (JOHNSON, 2001, p. 173). Com os agentes, há
6
Nome dos agentes virtuais utilizado pelas empresas do sistema operacional, no caso Apple e Microsoft.
Johnson, também cita os agentes e suas funções em Cultura da Interface.
16. 21
uma redução do controle do homem sobre a informação que ele próprio
consome.
"O controle tátil, imediato da interface tradicional dá lugar a
um sistema mais oblíquo, em que nossos comandos são
peneirados através de nossos representantes" (JOHNSON,
2001, p. 165). [...] "Esta é uma razão por que o projeto de
nossos agentes inteligentes não deveria ser deixado nas
mãos de executivos e tecnocratas." (JOHNSON, 2001, p.
164)
As plataformas streamings são dotadas de agentes que selecionam
novas músicas de sua rede a partir do histórico de seus usuários. Organizam
playlists semanalmente, ou recomendam uma sequência de músicas a partir de
uma única ação do usuário: o play (ou flow7 nos termos do Deezer). Neste caso
o usuário delega a reprodução sonora, sem previsão exata do que irá ouvir.
"Esse tipo de agente inteligente é conhecido também pelo
nome de "mídia de push". No sentido mais elementar, é
informação que vem até nós, em contraposição à que nós
mesmos obtemos." (JOHNSON, 2001, p. 172)
Em primeira instância, parece incrível ter um agente que se
corresponde às nossas preferências musicais e nos oferecem descobertas
relacionadas. O grande problema de detê-los, é quando os agentes passam a
atender oligopólios da indústria fonográfica, entregando como descoberta, o que
já faz parte do repertório estético formado pela mídia de massa.
Os agentes podem vir a ter um impacto profundo no modo
como os gostos populares se formam” (JOHNSON, 2001, p.
163). [...] A propaganda vai se transformar na arte de
controlar agentes, através de suborno [ou] pirataria.
(JOHNSON, 2001, p. 167)
O que o agente considera e afirma constantemente ao seu usuário
como uma informação de fato relevante, não considera fatores externos e
subjetivos que determinam a preferência musical, isto é: história, política,
relações extra virtuais, etc. Seu mecanismo de descoberta, é ativado do modo
bastante superficial. Utiliza-se de parâmetros numéricos, e de combinações
entre interesses em comum. Esta ação denomina-se por "Filtragem
Colaborativa". "Se apoia na transferibilidade do gosto: supõe que pessoas que
7
Sugestão de continuidade infinita, o surf da web convertido em fluidos, fluxos de música.
17. 22
têm alguns interesses em comum vão partilhar também outros interesses."
(JOHNSON, 2001, p. 178). A correspondências dos agentes se limita aos
parâmetros de semelhança de gosto, ao invés de recomendar músicas
produzidas na cidade natal, ou músicas que contextualizem problemas sociais
da cidade que o usuário reside, por exemplo. Transforma a relação do gosto,
numa cadeia reprodutivista e cada vez mais fechada.
"O negócio dos agentes inteligentes não é só antecipar
nossas necessidades. Eles estão conseguindo também se
infiltrar no reino mais nebuloso do gosto e da diferenciação
estética." (JOHNSON, 2001, p. 175)
Basicamente, realizam uma pesquisa estética inicial e cruzam
dados com usuários conectados entre si. A partir do parâmetro do gosto em
comum, passam a oferecer novas descobertas musicais. Steven Johnson
descreveu detalhadamente como esta operação funciona utilizando como
exemplo o caso do Firefly8. Aqui, faço um salto direto às consequências
envolvidas nas antecipações feitas por esses agentes, se apropriando do
conceito de antologia da cultura nas redes, tratada por Vinícius Romanini em
Competências Criativas.
Por antologia da cultura nas redes, entende-se o mecanismo de
controle envolvido na busca e entrega da informação pela interface ou agente.
Ou seja, o que há por trás do resultado visual ou sonoro. São os parâmetros que
programadores e algoritmos criam para estabelecer lógicas que aprimoram o
conhecimento do agente virtual, por exemplo. “Criadores de antologias digitais
são os novos deuses da era digital porque têm o poder de estabelecer o que
pode e não pode ter realidade nesse universo feito de informação” (ROMANINI,
2016, p. 45). Com isso trazemos novamente a pergunta: é possível as
plataformas streaming programarem seus agentes para formar um repertório que
atende aos interesses dos oligopólios? O autor, observa duas situações
possíveis em relação ao uso das antologias:
Por meio de uma antologia adequada, pode-se criar uma
8
Relatado por Steven Johnson em Cultura da Interface como o primeiro sistema de inteligência artificial,
que faria a sugestão de músicas com base no histórico de seus usuários e parâmetros de gosto através
da filtragem colaborativa. Johnson, avalia não apenas a ontologia do programa, como as possíveis
consequências na indústria fonográfica com o uso deste tipo de agente. Caso citado no capítulo seis.
18. 23
rede virtualmente infinita de possibilidades de circuitos
culturais a partir dos interesses particulares de usuários e
que levem em conta a diversidade e a tipicidade das
manifestações. Sem uma antologia adequada, os
movimentos alternativos ou manifestações genuínas que
não atendem aos interesses dos mercados permanecem
invisíveis e inalcançáveis no turbilhão das informações
publicadas na internet. (ROMANINI, 2016, p. 45)
É preciso levar em conta que as interfaces e agentes, ao mesmo
tempo que antecipam necessidades do homem, realizam sugestões de conduta,
“formas reguladoras do relacionamento em sociedade” (SODRÉ, 2010. Pg. 20).
Além disso, estão à disposição dos usuários da internet por um objetivo bastante
definido: o acumulo de lucro, a militarização, e a condução à um governo global.
[...] já é lugar-comum afirmar que o desenvolvimento dos
sistemas e das redes de comunicação transforma
radicalmente a vida do homem contemporâneo, tanto nas
relações de trabalho como nas de sociabilização e lazer.
Mas nem sempre se enfatiza que está primeiramente em
jogo um novo tipo de exercício de poder sobre o indivíduo (o
"infocontrole", a "datavigilancia"). (SODRÉ, 2010. Pg. 15).
Na tecnocultura, “o processo de comunicação é técnica e
mercadologicamente redefinido pela informação” (SODRÉ, 2006, p. 21), é a
partir disso que se configuram os novos espaços públicos, a moral, o ethos9, a
agenda, as experiências estéticas, e o próprio modo do sujeito em conceber e
perceber o mundo. “Costumes, hábitos, regras, valores são os materiais que
explicitam a vigência do ethos e regulam o senso comum”. (SODRÉ, 2006, p.
24)
É sob este aspecto que se regula a arte, o modo como a música
deve ser produzida, transferindo seu sentido político e espiritual, para a repetição
padronizada, segura, e de liberdades individuais restritas, “de valores estéticos
estatisticamente determinados, formando o gosto “médio”, uma “influência
normativa” (SODRÉ, 2006, p. 23). A música tendo como novo suporte a interface,
agrega uma série de valores normativos que lhes dizem, ou sugerem, como ela
deve ser ouvida ou mesmo criada. São as sugestões de conduta. No caso das
9
Seria preciso estender o capítulo para discutir mais um conceito, o ethos, na qual Sodré coloca como
responsável pela ordem moral e pelas condutas e modos como nos organizamos politicamente em
sociedade.
19. 24
plataformas streaming, veremos detalhadamente mais à frente que seu
desenvolvimento provém de investimentos das tradicionais empresas
fonográficas, estas, responsáveis por boa parte da agenda midiática e
distribuição de produtos culturais hegemônicos.
O poder da tecnocultura é homólogo (e a homologia não se
dá por acaso, passa pelo vetor do mercado) à hegemonia
norte-americana no Ocidente, que reside em sua
capacidade de formar a agenda política e noticiosa
internacional, de produzir em seus laboratórios e indústrias
a maior parte dos objetos da economia midiática e de atrair
as consciências para uma forma de vida sempre
modernizante por vias do liberalismo democrático e do
consumo. (SODRÉ, 2006, p. 23)
5. PROCESSOS DE HIBRIDAÇÃO
Chegamos a outro ponto importante da intersecção tecnologia e
sociedade: de que modo constituímos nossas identidades na pós-modernidade?
Isto é, como ela pode ser condicionada a partir do momento que passamos a
conviver com agentes virtuais e antologias desenvolvidas pelo mercado? A
resposta mais imediata possível seria: com os processos de hibridação.
Pretende-se aqui demonstrar como as interfaces das plataformas de música
streaming aceleram estes processos.
As mestiçagens étnicas e religiosas causadas pelas ondas
migratórias; A massificação globalizada de valores simbólicos permitidos pela
reprodutibilidade técnica; a reestruturação de etnias, nações e classes ao âmbito
transnacional; a subordinação das artes e dos saberes à lógica do mercado; a
redução das fronteiras territoriais ocasionadas pela comunicação global; a
integração de Estado com privado; e a própria fusão entre homem e máquina,
fazem parte do que Canclini denomina como processos de hibridação.
Entendo por hibridação processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos
e práticas. (CANCLINI, 2015, p. XIX)
A hibridação é o momento em que as culturas e suas
especificidades convergem, se transformam para facilitar o contato com o
distinto a partir de sua apresentação relativa. Perde-se ou transfigura-se a linha
20. 25
divisória do que é cultura erudita e o que é cultura popular, e o que é de
propriedade local, nacional ou estrangeira. No âmbito da tecnocultura
anteriormente descrita, tudo se converge num espaço heterogêneo, sem
fronteiras geográficas ou estéticas.
Disso resultam cruzamentos culturais em que o tradicional e
o moderno, o artesanal e o industrial mesclam-se em tecidos
híbridos e voláteis próprios das culturas urbanas”
(SANTAELLA, 2003, 52)
O termo emprestado do campo biológico, vem para as ciências
sociais para ilustrar as “misturas interculturais propriamente modernas”
(CANCLINI, 2015, p. XXX). Extrapolando as questões étnicas, aborda as novas
possibilidades e efeitos quando se convergem, por exemplo, o popular e o
erudito, o artista e a indústria cultural, as artes com a tecnologia, as identidades
fixas com identidades em deslocamento.
A palavra hibridação aparece mais dúctil para nomear não
só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas
também a de produtos das tecnologias avançadas e
processos sociais modernos ou pós-modernos. (CANCLINI,
2015, p. XXIX)
Pela rápida troca simbólica de uma cultura à outra, de um território
a outro, ocasionado pela organização da música na interface e pela sua entrega
feita pelo agente virtual, tratamos as plataformas streaming como um produto
das tecnologias avançadas responsáveis no processo de hibridação.
O modo como organizam a música e o modo como o agente
entrega suas descobertas, dá aos usuários uma experiência de conexões
multiculturais, rítmicas, estéticas, linguísticas e ritualísticas, num ritmo acelerado
e sobreposto à outras informações. Obviamente, estas experiências são
simulações, amostras de culturas, apresentadas de modo fragmentado. Isto é o
que Canclini chama de desterritorialização, marcada pela “perda da relação
“natural” da cultura com os territórios geográficos e sociais” (CANCLINI, 2015, p.
309). É um dispositivo
de tradução de todas as diferenças culturais para a
linguagem franca do mundo tecnofinanceiro e volatilização
das identidades para que flutuem livremente no
21. 26
esvaziamento moral e na indiferença cultural (HALL, 2014,
p.15)
Nas plataformas streaming, a tradução de cada cultura através da
música, passa a depender de um contexto externo à interface, incluindo,
momento político, redes sociais, noticiários, círculo social, e demais mediações.
Pois, não há uma informação profunda ou um hiperlink que trate de dar
conhecimento sobre um contexto histórico, político ou religioso sobre a obra em
execução.
Também não aparenta intenção de recontextualizar seus
discursos, já que a experiência da plataforma é o maior consumo de música
possível, sustentada pelas entregas heterogêneas surpreendentes,
acompanhadas da espetacularização, e de artistas presentes em âmbito global
financiado pelo interesse mercadológico dos oligopólios.
Seu papel como veículo heterogêneo e de fluxos híbridos, não é
trabalhar primeiro os processos identitários e estruturais que demonstrem
contradições políticas e econômicas latino-americanas, mas sim
desterritorializar.
A hibridação está para a tecnocultura, assim como a tecnocultura
está para a hibridação. Uma possibilita à outra seu desenvolvimento e
aceleração. A hibridação é produto também das tecnologias comunicacionais e
midiáticas. Seus fluxos informacionais são grandes responsáveis pela hibridação
quando trafegam mensagens e propriedades simbólicas de uma nação à outra.
Deslocam-se de espaços físicos com processos estáveis, para outro
desmaterializado, desterritorializado e sem fronteiras como o ciberespaço, a
internet. Há otimismo neste processo quando pensamos que há fluidez das
comunicações no âmbito global, na facilidade de acesso à outras culturas.
As políticas de hibridação serviriam para trabalhar
democraticamente com as divergências, para que a história
não se reduza a guerras entre culturas, como imagina
Samuel Huntington. Podemos escolher viver em estado de
guerra ou em estado de hibridação. (CANCLINI, 2015, p.
XXVII)
Mas é preciso apontar os riscos e efeitos dos processos de
22. 27
hibridação e, portanto, desterritorialização, a partir do momento que temos como
condutores, governos com interesse global em conjunto de corporações
transnacionais. “A massificação globalizada dos processos simbólicos e dos
conflitos de poder que suscitam”; a sugestão da “fácil integração e fusão das
culturas, sem dar suficiente peso às contradições e ao que não se deixa hibridar”
(CANCLINI, 2015, p. XXV), os diferentes modos em que os grupos e indivíduos
se “apropriam dos repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis
nos circuitos transnacionais” (CANCLINI, 2015, p. XXIII).
Também seria possível resumir os riscos dos processos de
hibridação com os termos imperialismo cultural ou dominação hegemônica, mas
seria uma análise unidirecional e talvez conspiradora, é preciso considerar as
ações reprodutivistas envolvidas. O autor entende que para se dar a hegemonia,
o capital se estrutura de algumas formas:
a) A hegemonia não atua de forma impositiva nem
unidirecional.
b) ocorre-se o processo de transnacionalização,
penetração de investimento e tecnologia internacional em
culturas locais e populares.
c) A iniciativa privada trata de substituir o Estado como
agente construtor de hegemonia – como organizador das
relações culturais e políticas entre as classes.10
Vejamos o contexto das plataformas streaming sob a ótica destes
comentários do autor.
1. As plataformas streaming agrega conteúdos não hegemônicos.
Encontra-se músicas de cultura popular tradicional denunciando a escravidão e
os processos de colonização, o rap denunciando o genocídio e a gentrificação
na contemporaneidade, a música brasileira empoderando movimentos negros,
feministas e de gênero.
2. Temos alguns momentos em que a transnacionalização atua:
com a apropriação cultural para construção de acervo e conexão à teia global;
com o fornecimento de tecnologia da informação desenvolvida com investimento
10
Tópicos a, b, e c, de tradução livre: CANCLINI, 1988, 25.
23. 28
estrangeiro;
A narrativa de culturas locais e populares latino-americanas, se
vinculam às regras da plataforma streaming administrada por companhias
globais. Aqui as obras de arte locais e populares, são vistas como suporte para
ligar o local ao nacional, e o nacional ao global, assim como construção de
acervo e apropriação de bens simbólicos para atingir as diversas camadas de
usuários e subordinar as artes à lógica do capital artístico.
Aparentemente os grandes grupos concentradores de poder
são os que subordinam a arte e a cultura ao mercado, os
que disciplinam o trabalho e a vida cotidiana. (CANCLINI,
2015, Pg. 346)
“Fredric Jameson (1995) aponta a conversão da cultura em
economia e da economia em cultura como um dos alicerces do capitalismo”
(MORAES, 2006). A transnacionalização opera comercializando empatias e
institucionalizando práticas artísticas através de novos sistemas de legitimação,
que estabelecem valores monetários, impõem novos sistemas de produção, e
alteram os valores simbólicos das obras.
A difusão e promoção das obras ficam sujeitas às TICs
internacionais, fornecedoras de tecnologias e logo reguladoras da antologia que
há por trás da interface. Com um mercado emergente, formam uma rede de
dependências econômicas, “educativas, tecnológicas e culturais” (CANCLINI,
2015, p. 311).
A transnacionalização é uma espécie de colonização que se
apropria do capital cultural - e não apenas do material como na fase industrial. É
agregada da tecnocultura por servir os interesses de expansão do mercado, que
acabam por gerar concentração de poder no papel de fornecedores, e maior
presença ideológica com as possibilidades de alcance ao circular seus produtos
da indústrias culturais e publicidade. Com a transnacionalização, importa-se e
exporta-se ciências, práticas rituais, morais, sociais e políticas. Neste transito,
Passamos de sociedades dispersas em milhares de
comunidades rurais com culturas tradicionais, locais e
homogêneas, em algumas regiões com fortes raízes
indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada
24. 29
nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se
dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por
uma constante interação do local com redes nacionais e
transnacionais de comunicação. (CANCLINI, 2015, Pg. 302)
Canclini denomina o interesse e a subordinação do artista à essa
lógica transnacional como reconversão: momento na qual um artista dota sua
produção ou obra às “competências necessárias para reinvestir seus capitais
econômicos e simbólicos em circuitos transnacionais (Bourdie)” (CANCLINI,
2015, p. XXII). Isto é, quando artistas submetem o artesanato, músicas, produtos
audiovisuais, e outros patrimônios imateriais à mercantilização global.
Observamos acontecer a reconversão na música, quando a indústria cultural a
apropria, e a coloca em contato direto com as comunicações para atender o
mercado publicitário, ou ainda, na indústria da informação e atenção como vimos
anteriormente.
3. A formação do sujeito, constituída de memórias pessoais, e
também de memórias coletivas, locais ou nacionais, recebidas e transferidas
pelas mediações simbólicas, artísticas, e internalizadas ao longo do seu
reconhecimento como indivíduo, ficam sujeitas a grotescas alterações com
novas possibilidades de interação trazidas pela midiatização, que penetra novos
valores culturais e também reafirmam as identidades nacionais como forma de
“desenvolver-se e ter maior integração com a cultura hegemônica” (CANCLINI,
2015, Pg. 277). Esta, ao mesmo tempo que dá acesso à outras relativas culturas,
provoca uma desigual apropriação de seu patrimônio.
Segundo Canclini, há uma tentativa dos “setores hegemônicos em
manter o tradicional, ou parte dele como referente histórico e recurso simbólico
contemporâneo” (2015, p. 277). Os rituais tradicionais e populares são vistos
como forma de mercantilização, por exemplo.
A transnacionalização da cultura efetuada pelas tecnologias
comunicacionais, seu alcance e eficácia, são mais bem
apreciados como parte da recomposição das culturas
urbanas, ao lado das migrações e do turismo de massa que
enfraquecem as fronteiras nacionais e redefinem os
conceitos de nação, povo e identidade.
(CANCLINI, 2008, p. 30)
25. 30
Enquanto o estado investe na arte, para ter representantes da
história nacional, e da preservação histórica, o privado investe para obtenção de
lucros e constantes inovações que lhe sustentem. Levam com seus fluxos
informacionais medidas de modernização e controle militar, sob a lógica
neoliberal.
A ideologia tecnocrática futurológica tenta apresentar a
revolução tecnológica como ditando uma única forma de
organização social possível, geralmente associada à lei do
mercado e ao processo de globalização.
(CASTELLS, 2006, p. 225)
A exemplo de um fenômeno biológico, a hibridação se dá numa
espécie de fagocitose11, em que uma ameba envolve a bactéria afim de
apropriar-se de seus nutrientes e aumentar a imunidade do corpo humano. No
comparativo, a tecnocultura faz o papel da ameba, e as culturas específicas,
locais, tradicionais, populares, o papel da bactéria. A transnacionalização seria
o processo em que a ameba envolve a bactéria, ou seja, se apropria das culturas
para se nutrir, crescer, e ficar imune. Enquanto estas são digeridas, dissolve-se
sua formação original, é desterritorializada, convergida à ameba, e depois
transformada em resíduo na fase de pós-digestão.
A interface das plataformas streaming, aceleram o processo de
hibridação, à medida que desterritorializam, e retiram a linha que divide o culto
e o popular, ao classificar músicas de diferentes gêneros em playlists genéricas,
oferecendo uma experiência de navegação supostamente heterogênea. Sua
capacidade de negócio, reside em dar suporte promocional aos oligopólios,
utilizando como insumo artistas dos mais variados portes, gêneros e locais,
agregando diversos valores simbólicos e os misturando num caldeirão, mas
também provocando uma estetização e uma condição de vida e da arte sempre
modernizante.
Se os agentes culturais não assumirem as rédeas desse
processo, seremos colonizados por uma antologia digital
das artes e da cultura produzida pelos grandes produtores e
11
Para elaborar esta metáfora, utilizei o processo de fagocitose esquematizado no Wikipedia.
(WIKIPEDIA E ENCICLOPÉDIA LIVRE, 2017)
26. 31
comercializadores da indústria cultural.
(ROMANINI, 2016, p. 45)
5. A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA E SEUS MECANISMOS DE CONTROLE
Vimos que a hegemonia se dá não apenas por determinações
alienantes, mas que há interesse de artistas e público à uma relação
multicultural. Percebemos que os oligopólios se fortalecem à medida que
culturas locais e regionais se apropriam das tecnologias e conhecimento
fornecido pelas TICs, e a plataforma sendo um espaço promocional, há intensa
promoção de artistas globais, e que reproduzem discursos hegemônicos.
Para investigar como se dá o controle na estrutura da rede,
Leonardo Cruz, em “Internet e arquiteturas de controle: as estratégias de
repressão e inserção do mercado fonográfico digital” (2014), compara as
estruturas reticulares dos modelos de distribuição de música digital: o P2P e os
serviços streaming, com o objetivo de entender de que modo a informação chega
até o usuário final, e de que modo a indústria atua para manter o controle sobre
os fluxos nos canais de distribuição.
Cruz observa a evolução da indústria fonográfica, desde a evolução
dos direitos autorais da literatura do século XV e comercialização de partituras
até a comercialização da música nos dias atuais. Ao longo das mudanças nos
formatos de reprodução - os suportes - percebe-se grande interesse da indústria
em deter um controle sobre a prática musical. Dos suportes físicos à interface,
concentrando seus esforços, inicialmente, na produção industrial – com a
comercialização e distribuição de suportes materiais (K7s, Vinil, CD), e depois,
com a dominação dos fluxos informacionais, utilizando os moldes da economia
da atenção como sustento do oligopólio, tornando a publicidade e o big data, sua
matéria-prima, e tendo como segurança a “imposição das estratégias de
repressão na internet baseadas nas leis de direito autoral” (CRUZ, 2014, p. 7).
Se em um primeiro momento as grandes indústrias
fonográficas constituíram seu poder oligopólico sobre o
mercado através do monopólio dos meios de produção de
cópias, atualmente, após a evolução e o barateamento das
tecnologias digitais de gravação e de produção de suporte,
tal controle se dá pela gerência do mercado através da
logística de distribuição e de promoção de música gravada.
27. 32
(CRUZ, 2014, p. 6)
Entende-se que essa transformação está diretamente envolvida ao
processo de globalização, primeiramente industrial, e agora virtual. O grande
primeiro impacto que a indústria fonográfica sofre, é o próprio barateamento nos
processos de gravação – do analógico para o digital – isto além de causar uma
primeira crise na indústria com o aumento de estúdios de gravação e
distribuidores, cria também uma abundância na criação de conteúdo, ou
propriamente, artistas dispostos a compartilhar os direitos de comercialização de
sua propriedade intelectual, fator responsável pela transformação de uma
indústria material para outra imaterial, ou mesmo, de gravadora à gestora de
carreira, jurídico e estratégico. Aqui assistimos a reconversão citada por Canclini.
A digitalização da música, e sua possibilidade de reprodução de
suportes, com os CDs e K7s graváveis, afeta a indústria fonográfica gerando
uma segunda crise, causada pela redução no volume da venda de suportes,
originada do mercado compartilhado com a indústria “pirata”. Este, evolui seu
modelo, distribuindo-se no ciberespaço através de redes P2P12, peer to peer,
graças à redução no DNA da música, ou estrutura de informação que a forma. O
MP3, criado na Alemanha nos anos 80, é o exemplo e propulsor da criação da
rede Napster, criada em 2001 com o intuito de gerar compartilhamento de música
entre usuários, ignorando a princípio, as leis de direitos autorais.
Ao atingir aproximadamente 8 milhões de usuários em todo o
mundo trocando músicas gratuitamente, a rede Napster sofre uma série de
processos jurídicos, de bandas à gravadoras, que reivindicam suas propriedades
intelectuais para obter recolhimento dos direitos autorais. É com este argumento
que as indústrias ao se protegerem de perdas monetárias e acumulo maior de
capital, causam modificações na proposta da cibercultura, e da livre informação,
canalizando a distribuição proibindo a atuação de novos agentes. Por conta da
12
Os programas P2P estabelecem redes que utilizam o protocolo da internet para ligar dois ou mais
computadores diretamente. Eles são normalmente utilizados para a troca de arquivos e funcionam da
seguinte forma: as pessoas interessadas adquirem um programa (gratuito na internet) e com ele
compartilham parte de seu disco rígido (a parte onde estão alojados os arquivos compartilháveis) com
os outros usuários que estão conectados ao programa (Napster, Kazaa, Soulseek, eMule, etc). Com isso,
os arquivos de cada usuário são compartilhados com todos os usuários ligados à rede, fazendo da rede
P2P uma rede de troca gratuita de milhões de arquivos gratuitos na internet. Ou seja, cada ponto (peer)
passa a ser emissor e receptor simultâneo de informações. (CRUZ, 2014)
28. 33
redução no volume de vendas dos suportes físicos, as indústrias adotam a lei
como forma de centralização.
É a partir dessa redução na arrecadação relativa à venda de
fonogramas [...] que as ações das grandes empresas
fonográficas estão sendo realizadas, principalmente aquelas
relacionadas à busca pelo enrijecimento e maior
restritividade das leis de direito autoral e o aumento das
ações contra a venda ou a distribuição não autorizada de
fonogramas, seja em suportes físicos ou na internet. (CRUZ,
2014, p. 80)
É com isto, que em 2005 começam a surgir start-ups da indústria
fonográfica, como o Deezer, o Spotify, o Google Play, entre outras. Essas redes
adaptam seu negócio para que os direitos de reprodução sejam pagos por vias
publicitárias, através da abundância e gratuidade 13da música na internet. Desta
forma os agentes detêm receitas tanto com publicidade como por assinaturas de
usuários, que ao pagar por um valor mensal tem isento o incômodo publicitário
e o oferecimento de maiores recursos administrativos sobre aquele aglomerado
de informação.
Em parte, o êxito dos serviços de streaming reside em
apresentarem um modelo de negócio que promete ser uma
real alternativa à chamada “pirataria digital”.
(KISCHINHEVSKY, VICENTE e MARCHI, 2015, p. 7)
Estes caminhos criados para a entrega de informação, que ora
cobra do usuário um valor monetário, ora cobra de sua atenção para prosseguir
com o usufruto, e ora cobra de informações privadas, são responsáveis pelas
mutações na estrutura reticular da rede, isto é, nos caminhos que a informação
percorre pelo ciberespaço. Este, que tem como princípio a informação
distribuída, é apropriado pela indústria cultural, criando redes centralizadas e
usuários mais passivos e controlados, formando identidades globais e híbridas,
mas ainda orientada pelo mercado dominante.
A disputa para a hegemonia na internacionalização das
normas tem um sentido econômico bem claro: quem
determina as normas de produção de um determinado
13
Esta conjunção é bastante utilizada por Cruz no seu artigo, afim de ilustrar a nova estratégia da
indústria fonográfica para lidar com a enorme quantidade de música produzida por conta do
barateamento no processo de gravação. Ele traduz com estes termos o uso da música como fisga para
captação de dados e hábitos de usuários na internet.
29. 34
produto tem uma maior facilidade de internacionalizar o
próprio produto. (CRUZ, 2014, p. 46)
No Brasil, existe o Comitê de Desenvolvimento da Música Digital,
formado pelos principais fornecedores de música streaming, e são: Deezer,
Google Play Music, Napster, Rdio (serviço descontinuado) e Spotify. Nenhuma
associação brasileira, nenhuma participação pública, apenas investidores
internacionais. 14
Bastante responsáveis pelos hits popularescos, que atendem as
demandas de uma sociedade do espetáculo, grandes gravadoras, agora
societárias de um dos maiores canais distribuidores de música do mundo,
parecem aproveitar o alcance de seu próprio veículo para tornar seus produtos
presentes em âmbito mundial, criando estratégias de consumo que extrapolam
a música e estressam valores simbólicos através de materiais de merchandising
e agenda (roupas, livros, filmes, shows, etc), assim como tornam artistas
onipresentes, capaz inclusive de obter reproduções de um mesmo usuário por
muitas vezes.
Essa estratégia de internacionalização da produção criou
várias vantagens para as indústrias fonográficas. A primeira
é a de ter possibilidades de entender mais diretamente o
mercado nacional e se ajustar às peculiaridades culturais.
(CRUZ, 2014, p. 47)
Obter um acervo diversificado e heterogêneo, passa então a ser
uma estratégia destes veículos, uma vez que usuários emergentes estão
dispostos a doar sua atenção em troca de música gratuita e de sua preferência
(não mais a escassez e bloqueio de mercado como na fase analógica da
indústria). Concentrar um marcante volume de usuários, e com isso, monitoram
todos os seus passos dentro da rede, transforma o suporte de música em veículo
publicitário. Além disso, os atores responsáveis por alimentar este conteúdo (os
artistas e gravadoras independentes, por exemplo), são agora parceiros
fundamentais para continuar sustentando a indústria fonográfica.
Artistas se apropriam do canal como veículo de promoção, e o
canal se apropria dos artistas como construção de acervo, expansão de público-
14
Fonte: (MEIO E MENSAGEM, 2015)
30. 35
alvo, e formação de uma identidade global. Os detentores deste fluxo de
informação, parece entender como se apropriar de culturas nacionais e locais
para se autopromover. A partir do extenso volume de acervo, maior é a
concentração de usuários, e, portanto, maior é o alcance simbólico proposto
pelas líderes.
6. SPOTIFY E A PENETRAÇÃO GLOBAL
Aqui, tratando do Spotify como objeto de estudo, pretende-se
demonstrar as conduções de consumo que o serviço pode causar ao dominar o
mercado com o auxílio de investimentos transnacionais oriundos das majors15.
Para desenvolver esta pesquisa, utiliza-se a perspectiva empirista,
coletando notícias coorporativas e estatísticas fornecidas abertamente pelo
próprio serviço de áudio. A coleta de dados ocorreu durante o mês de abril/2017,
analisando a usabilidade e conteúdo do aplicativo mobile e do software de
desktop. A análise da interface foi feita com o uso do plano freemium (plano
gratuito com anúncios), tratado prioridade por ser a realidade brasileira. Além
disso, a escolha do Spotify, entre os outros players, se dá por uma liderança de
mercado (ver anexo 1).
O serviço da empresa sueca, lançado em 2006, já atende 140
milhões de usuários espalhados em 58 países atuantes, do total, calcula-se que
12% são brasileiros e que apenas 30% de usuários do país são usuários
premium16. Os valores de assinatura são: R$ 8,50 (para universitários), R$ 26,90
(Plano Premium Familiar), ou R$ 199 (plano anual por usuário)17. Aqui já é
possível observarmos um fator que reduz a democrática ideia da cibercultura.
Conforme afirma Canclini, “os mecanismos de reforço da distinção costumam
ser recursos para produzir a hegemonia”. (CANCLINI, 2015, p. 155)
O serviço conta com 40 milhões de músicas. Dentre as
recomendações aos anunciantes, está a criação de playlist com uma música por
artista, cultura adotada das emissoras de rádios. Também anunciam
15
Termo utilizado para denominar as gravadoras líderes de mercado
16
TORRES, 2017
17
SPOTIFY, 2017
31. 36
indiretamente que 20% de seu acervo não tem nenhuma reprodução18. Ou seja,
4 milhões de músicas não escutadas.
A companhia alega para a imprensa que não gera lucros, por não
obter a totalidade de seus usuários como pagantes, ou por não gerar receitas
publicitárias o suficiente para arcar com os repasses de direitos autorais. É
através dessa fragilidade, da abundância e ao mesmo tempo da gratuidade, que
as gravadoras se apropriam do veículo como forma de inserção, promoção, e
sucesso dos artistas na qual têm acordo.
As grandes gravadoras — Warner, Universal e Sony, conhecidas
como “Big Three” — são sócias das startups de entretenimento digital que estão
mais em alta. Há acordos de 10% a 20%, em conjunto com os serviços de
streaming, como Spotify e Deezer.
A plataforma, apesar de não abrir os números também demonstra
que o uso do serviço em dispositivos móveis vem crescendo na mesma medida
que o número de usuários (ver anexo 2). Isso também explica o sucesso e
posicionamento almejado: a substituição da rádio analógica pelo uso do serviço,
mas num contexto de maior mobilidade e acervo, possibilitando a presença da
música sobreposta a outras atividades do dia-a-dia. A exemplo desta transição,
está a interrupção de sinal das TV’s analógicas19 em função do serviço digital. É
com o digital, que conseguem disciplinar os usuários.
7. SPOTIFY: ANÁLISE DA INTERFACE COMO SUPORTE
7.1 As playlists, O agente invisível, e suas sugestões de conduta
Ao ligar o computador, o aplicativo é aberto automaticamente (ação
que vem pré-configurada na instalação), e sempre na página inicial (Navegar),
que apresenta as músicas mais reproduzidas e geralmente globais. Apresentam
algumas possibilidades para reproduzir música com uma única interação, o play.
É a “arte como fast food” (CANCLINI, 2015, p.306).
18
Forgotify Only Plays Spotify Songs That No One Has Ever Played Before, 2014
19
(G1, 2017)
32. 37
O usuário pode dar o primeiro play pelo feed de amigos que
apresentam o que estão ouvindo, pelas playlists patrocinadas, pelas playlists
organizadas por país ou mais reproduzidas, e por gêneros e momentos. O ápice
do aplicativo está na Playlist “Descobertas da semana”, uma reunião de 30
músicas semanais escolhidas pelo agente virtual de acordo com o histórico de
músicas escutadas pelo usuário ou pela sua rede de amigos.
A plataforma utiliza o mesmo mecanismo do Firefly citado
anteriormente (atualmente com uso da tecnologia de inteligência artificial
desenvolvido pela The Echo Nest). Aqui vemos que o agente não é tão invisível
quanto parece. “Dormir? Só depois de ouvir uma playlist”. A frase,
correspondente ao horário acessado 1h07min da manhã, madrugada de São
Paulo, credibiliza a inteligência do agente ao se corresponder com as
informações tempo espaciais, e propor uma última atividade para o usuário antes
de seu possível descanso. Ele se apresenta deste modo sutil e quase invisível,
sem que haja uma tentativa de personificação (ver apêndice A).
Observamos o diálogo também na área Gêneros e Momentos (ver
Figura 6). É uma vitrine de playlists baseadas em estados emocionais ou
atividades do dia-a-dia. Nesta sessão, vemos: músicas ideais para Yoga e
Meditação, músicas ideais para acompanhar um café, ou músicas ideais para o
fim de semana no parque. A produção artística fica em segundo plano. É mais
importante a música fazer sentido para a atividade em execução. A curadoria
dessas playlist é feita por especialistas do assunto, editores, ou pelos agentes.
Já acontece no aplicativo da filtragem colaborativa se relacionar
independente de usuários. Ser relacionada aos fatores externos a ele, cruzada
a outros agentes inteligentes como os aplicativos de: GPS, condição climática, e
na situação mais recente, interpretação emocional da música, se ela é
considerada triste ou alegre, por exemplo20. É com este acumulo de
associações, que o aplicativo oferece músicas apropriadas para determinadas
condições climáticas, trânsito ou região, e logo, sugestões de conduta, ethos, e
logo uma condição da música em prol da economia da atenção.
20
Tendência baseada na notícia: programador cria equação para encontrar a música mais triste do
RadioheadGAGLIONI, 2017
33. 38
A constante relação com o software, a delegação ao monitamento
de emoções, geolocalizações, e percepção de acertos, provoca o conforto
psíquicos e a estandardização, a partir do momento que anunciantes e
investidores da rede fazem “o possível e o impossível para transformar suas
propagandas em “serviços de informação” (JOHNSON, 2001, 173).
Os critérios utilizados para incluir ou não faixas em determinada
playlists é o número de plays. Quanto maior o volume de reprodução, maior é a
chance de o artista ser selecionado e incluído em playlists populares, ou
destacadas na interface. Aqui percebemos as antologias inadequadas
apontados anteriormente sobre a apresentação da realidade quando delegada à
um agente virtual, ainda incapaz de fazer análises subjetivas e extra numéricas.
Neste momento reduzimos o controle sobre a música a ser consumida, damos
maior poder aos detentores da tecnologia, e reduzimos nosso senso crítico.
A relação com os meios de comunicação pode gerar uma
forma de passividade, na medida em que expõe
cotidianamente os indivíduos ao espetáculo de uma
atualidade efêmera; uma forma de solidão, na medida em
que deixa a critério de cada um a elaboração de pontos de
vista, opiniões em geral bastante induzidas, mas percebidas
como pessoais. (AUGÉ, 2006, p.106)
7.2 Estratégias de centralização
A grande vantagem competitiva do Spotify frente à outras redes de
troca de música, está na detenção de direitos de comercialização e circulação
com o pagamento dos direitos autorais através da monetização – este serviço
paga às artistas quantias baixíssimas. Não pretendemos aqui estender este
assunto, bastante polêmico e controverso. Demonstramos apenas que pagando
o mínimo possível aos artistas, a empresa já se torna legitimada para exercer a
função como suporte.
Ao exercer comercialização do serviço, ora por uma mensalidade,
ora pelos dados de privacidade e atenção publicitária, o Spotify passa a ser uma
rede centralizada.
As redes de serviço de streaming de música são do tipo
centralizada. As empresas que prestam esse serviço devem
se fixar em um nó da rede, um lugar, um site, um ambiente,
34. 39
e devem fazer passar todo o fluxo de informações por ele,
pois é controlando esse fluxo que elas conseguem se
valorizar. (CRUZ, 2014)
A plataforma também não indica nenhum hiperlink externo à
interface, que não seja a de parceiros já determinados. O usuário acessa agenda
de shows, loja de produtos do artista, letras das faixas em reprodução, e site de
atendimento da própria companhia, como: SongClick, Genius, Merchbar. Não há
uma navegação aleatória, que permite se perder pelo cérebro coletivo, ou que
ainda, complemente historicamente a concepção da obra em execução (ver
apêndice B).
7.3 Interface hegemônica e Estetização
Mesmo com a possível convergência da música com outras
linguagens audiovisuais, o Spotify se limita a dispor ao usuário a experiência
auditiva. Exploram uma única possibilidade narrativa na interface gráfica. Reduz-
se apenas à fugacidade do play e sua máxima permanência em execução.
Chegaremos a conceber o design de interface como uma
forma de arte — talvez a forma de arte do próximo século. E
com essa transformação mais ampla virão centenas de
efeitos concomitantes, que penetrarão pouco a pouco uma
grande seção da vida cotidiana, alterando nossos apetites
narrativos, nosso senso do espaço físico, nosso gosto
musical, o planejamento de nossas cidades. (JOHNSON,
2001, pg. 193).
Com isso aumentam suas margens em publicidade, aumentam o
consumo da experiência estética que querem propor, e tão logo, conduzem a
criação de obras que se adequem aos seus formatos, reduzindo a exploração
possível das artes no campo digital.
Através do Spotify Insights21, artistas e empresários, recebem
dados comportamentais sobre o consumo de suas músicas. A análise de dados
permite que novas soluções artísticas sejam consideradas no momento da
produção do novo álbum ou single. Pensadas para maior alcance e atendimento
de demanda.
A empresa também recomenda a anunciantes que organizem e
21
https://artists.spotify.com/
35. 40
promovam playlists com apenas uma música de cada artista22. Deste modo
sugerem a alteração no processo de produção de um álbum completo para
singles. É possível observar alterações nas produções artísticas, e sua
padronização por conta dos serviços que a interface oferece. Em entrevista livre,
Guilherme Kastrup, produtor musical, comenta:
Este ano (falando sobre 2017), ainda não produzi nenhum
álbum inteiro. Apenas singles. Têm sido o formato mais
econômico e rentável para os artistas com pouca barganha
de investimento e nessa época que poucos param para ouvir
um álbum inteiro e também com poucos editais de incentivo,
é a alternativa custo-benefício. Se bem que... já vi grandes
artistas optarem por esse tipo de produção para manter uma
frequência de lançamentos. A plataforma, por mais que
remunere centavos para nós artistas da cena independente,
parece oferecer um “promissor caminho de reconhecimento
profissional” (comenta em tom irônico).
7.4 Operações de transnacionalização
A campanha de acolhimento através das estratégias de
pertencimento nacional é a grande aliada da transnacionalização. Demonstra-se
aqui como o uso desta tática implica na desterritorialização e logo na
hibridização.
Na área “Paradas”, título que ambiguamente demonstra a baixa
circulação da diversidade de produção, é possível encontrar as músicas mais
reproduzidas em ordem mundial ou nacional. Ao acessarmos “As 50 mais
tocadas no Brasil”, a primeira música com que nos deparamos é a “Despacito
(Remix) (feat. Luis Fonsi & Daddy Yankee)”, do Justin Bieber, cantor Norte
Americano duplando com os outros porto-riquenhos. A mesma faixa é
encontrada também nas “50 mais tocadas do Mundo” e nas “50 mais tocadas da
América Latina” (ver apêndice C). Para sua circulação mundial teve primeiro que
ser remixada, e colocada junto à uma figura mundial, que faz uma espécie de
tradução e transito da estética. Neste momento ela já foi descaracterizada.
22
https://spotifyforbrands.com/br/format/branded-playlist/
36. 41
A música que mistura o pop mundial com a cúmbia, estética da
América-Latina, só é consumida mundialmente a partir do apoio de uma figura
mundial.
O mundo nunca foi, economicamente, tão desigual. Nem tão
furiosamente igualador, por outro lado, com relação a idéias
e costumes que se impõem em todo lugar. Uma
uniformização obrigatória, hostil à diversidade cultural do
planeta. O nivelamento cultural não pode nem mesmo ser
medido. Seus progressos devastadores, no entanto, saltam
aos olhos. Os meios de comunicação da era eletrônica, a
maioria a serviço da incomunicação humana, estão impondo
a adoração unanime aos valores da sociedade neoliberal.
Eles nos mentem por imagens ou omissão, e concedem no
máximo o direito de escolher entre coisas idênticas.
(GALEANO, 2006, p.149)
O Justin Bieber ao compor a identidade da América-Latina, frente aos
porto-riquenhos, contrapondo com a camiseta branca, e em posição central,
adquire notoriedade estética e reafirma a submissão latino-americana ao
continente norte americano. O vínculo deste tipo de ação para David Rothkopf
e Foreign Policy (2006 apud AUGÉ):
Figura 1: Paradas - Top Latino
37. 42
Compete ao interesse econômico e político dos Estados
Unidos o zelar para que, se o mundo optar por um idioma
único, que seja o inglês; Se as diferentes partes se unem
através da televisão, rádio e música, que sejam com
programas americanos; e se forem elaborados valores
comuns, que sejam valores nos quais os Americanos se
reconheçam.
No Brasil, notamos que o sertanejo (13%) e o funk nacional (4%)23,
correspondem aos gêneros nacionais mais escutados na plataforma. São
empurrados constantemente através das “Playlists patrocinadas” pelas próprias
gravadoras sócias do serviço. São exemplos de estéticas que surgem de culturas
populares, e se traduzem como insumo, numa espécie de fisga que puxa os
ouvintes à cultura hegemônica. Assim, “assegura-se a estabilidade da cultura
dominante com a inovação dos independentes” (Johnson, 2001, pg. 147).
“La iniciativa privada también se ocupa, em la television, em
museus y concursos, de las artesanías y tradiciones
populares, acentuando su mercantilizacíon y adaptando los
contenidos ideológicos a la visíon pintoresquista y
espectacular de los entretenimentos massivos”. (NÉSTOR
GARCÍA CANCLINI, 1988)
Os defensores da hegemonia, que acreditam fazer transitar as
culturas específicas neste processo de hibridação, parecem não observar este
engarrafamento. No comparativo de anunciantes e gêneros mais reproduzidos,
vemos que se mantem sempre a frente os produtos e as estéticas dominantes,
que criam a demanda e a retroalimenta com sutis variâncias para evitar a perda
de público e atenção.
Exibir realisticamente um aspecto do mundo, mas ao mesmo
tempo impedir a sua justa interpretação por meio de um
“engana-olho” estético: o “agradável” da forma exibida
anestesia sensorialmente a sensibilidade crítica. E o
agradável está sujeito às variações da moda. (SODRÉ,
2010, p.59)
Através da presença global, a plataforma ganha notoriedade no
meio artístico por abrir um campo promocional para a difusão de suas obras. O
Brasil, característico por ser um mercado emergente, recebe investimento de
23
https://www.nexojornal.com.br/grafico/2016/11/07/O-gosto-musical-dos-pa%C3%ADses-de-acordo-
com-o-Spotify
38. 43
gravadoras internacionais para produção e promoção dos gêneros mais
populares. É deste modo que os oligopólios se apropriam financeiramente de
valores simbólicos, nacionais e locais e obtém maior acumulo de capital.
7.5 Operações de desterritorialização e hibridismo
As mesmas playlists patrocinadas que destacam os artistas locais,
agregam artistas globais. 80% do que é executado na plataforma tem o idioma
em inglês24. As playlists organizadas de acordo com as nacionalidades
apresentam o que há de maior volume de reprodução, e não as especificidades
de cada nação. Essa cultura relativa se apresenta também no modo como
organizam os gêneros musicais. A exemplo, colocam o “Frevo, dança, e cultura”,
numa mesma playlist que define “O melhor do Brasil”, reduzindo suas
especificidades à folclorização.
“El folclore realiza uma doble reduccíon: de la pluralidade y
la diversidade de las culturas populares a la unidade del
“arte” o la “música” nacionales; de los processos sociales a
los objetos o a la expressíon coisificada que adquirieron em
momentos pasados.” (NÉSTOR GARCÍA CANCLINI, 1988)
Como a interface não adota e nem dá acesso por hiperlinks a
nenhuma informação adicional em relação à produção da obra, acontece a
desterritorialização. O território geográfico que detém de suas condições
políticas, econômicas, religiosas, históricas, se hibridizam num ambiente que
não trata de levar com a música, o contexto em que foi criada. A música
desmaterializada e entregue para suprir uma função em segundo plano, também
retira a própria autoria e mediação que o artista tem como proposta. É convergida
num único fluxo informacional as várias identidades.
O mundo nunca foi, economicamente, tão desigual. Nem tão
furiosamente igualador, por outro lado, com relação a ideias
e costumes que se impõem em todo lugar. Uma
uniformização obrigatória, hostil à diversidade cultural do
planeta. O nivelamento cultural não pode nem mesmo ser
medido. Seus progressos devastadores, no entanto, saltam
aos olhos. Os meios de comunicação da era eletrônica, a
maioria a serviço da incomunicação humana, estão impondo
a adoração unanime aos valores da sociedade neoliberal.
24
https://www.nexojornal.com.br/grafico/2016/11/07/O-gosto-musical-dos-pa%C3%ADses-de-acordo-
com-o-Spotify
39. 44
Eles nos mentem por imagens ou omissão, e concedem no
máximo o direito de escolher entre coisas idênticas.
(GALEANO, 2006, p.149)
A hibridação ocorre à medida que as músicas organizadas são
tratadas como categoria única e sem nenhuma informação adicional além de sua
própria linguagem, conduzindo o usuário de uma cultura à outra pela reprodução
automática e organização da playlist, onde nessas condições a música e,
portanto, sua oratória, adotam apenas a função de entretenimento. “As safras
midiáticas generalizam textos e imagens que estruturam simbolicamente a vida
e a produção, acentuando o ethos do consumo” (MORAES, 2006, p. 36). Aqui
mora o interesse da hibridação alertada por David Rothkopf e Foreign Policy
(2006 apud AUGÉ):
Compete ao interesse econômico e político dos Estados
Unidos o zelar para que, se o mundo optar por um idioma
único, que seja o inglês. Se as diferentes partes se unem
através da televisão, rádio e música, que sejam com
programas americanos; e se forem elaborados valores
comuns, que sejam valores nos quais os Americanos se
reconheçam.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A música passa a ser uma ferramenta do infocontrole e de
datavigilancia. Se torna insumo para publicidade e reproduz hegemonia. Altera-
se a autencidade da obra pela previsibilidade do gosto comum; Envolve
conteúdos contra hegemônicos e identidades locais e nacionais ao modelo de
mercantilização global: o capital artístico e a concorrência pela atenção. Se torna
suporte para diferenciais simbólicos entre classes, e propõe valores
modernizantes com as práticas do neoliberalismo. Acelera os processos de
hibridação e, portanto, as trocas simbólicas. Cria-se novos contextos para que a
música seja ouvida em segundo plano e também novos widgets25 que se
adaptam em função das novas práticas de distribuição e consumo. Resgata
paradigmas da música de trabalho, dando ritmo ao cotidiano e sugestões de
conduta sobre as subjetividades. Reduz a prática de pesquisa às informações
25
Dispositivos adicionados ao corpo, exemplo, fones de ouvido.
40. 45
fragmentadas e recontextualizadas com a fugacidade e instantaneidade. Ganha
maior alcance e ocupação na vida dos sujeitos pela mobilidade, abundância e
gratuidade. Ao mesmo passo, altera a cultura da escassez e a ideia de pagar
para consumir. Surgem novos parâmetros de curadoria e criação de mainstream.
A formação do repertório musical fica sujeita ao gosto comum e superexposição
da indústria cultural. Há a delegação de um saber para um agente virtual. A
indústria cultural cria agenda midiática. Aumenta-se a vigilância, a militarização,
e o espetáculo. Reduz o tempo de produção da obra e da autorreflexão do
sujeito. A música é desmaterializa. Não há um funil de mediação entre o digital
e o analógico. Há novas possibilidades de difusão cultural e promoção artística
com soluções estratégicas e mercadológicas como o gerenciamento de dados
ou a visualização numérica de paradigmas sociais. Há modernização e
ferramentas que dão aporte para novos métodos de legitimação. Música
streaming agora está na bolsa de valores.
Enquanto Cruz aponta os direitos autorais, a centralização dos
processos de distribuição, e o uso de dados como mecanismos de controle dos
oligopólios fonográficos, aqui complemento com outros mecanismos: a
ocupação da interface, a aceleração nos processos de hibridação, a estetização
no formato da obra, e novos paradigmas de legitimação. Resumimos a estratégia
de centralização econômica e cultural da seguinte forma:
Concentração nos processos de produção e distribuição;
Estratégias antipirataria com enrijecimento das leis de
direitos autorais e automatização nos processos de
detenção de direitos para comercialização.
Apropriação da abundância e gratuidade da música em troca
de investimentos publicitários.
Comercialização de dados de navegação dos usuários.
Centralização da rede restringindo acessos, hiperlinks e
serviços.
Investimento internacional em artistas locais.
Redução de controle da interface gráfica.
41. 46
É preciso levar em conta aqui a penetração norte-americana que é
penetrada em culturas através da plataforma Spotify. Não necessariamente
estamos sujeitos a ouvir músicas de produção internacional, mas agora, há uma
apropriação das preferências nacionais populares a partir da incorporação de
músicas locais e nacionais ao sistema financeiro-cultural transnacional.
Há uso de um problema estrutural do Brasil também, na medida em
que o repertório musical e as tendências com o que a interface do aplicativo
oferece em seu destaque, propõe a máxima passividade com o botão de
reprodução automática, reduzindo o esforço de pesquisador que o usuário teria.
A proliferação das escolhas da identidade é mais ampla no “centro”
do sistema global que nas suas periferias. (HALL, 2014) – e isso está
diretamente relacionado com quem é o produtor ou distribuidor principal de
conteúdo. Quem detém de maior tempo de atenção e, portanto, de controle.
Antes de qualquer afirmação local ou religação com identidades e
sentidos comunitários é oferecido ao usuário o projeto modernizante com a
possibilidade de inserção no território global e a obtenção de um espaço
individual, o momento de privacidade.
O compartilhamento social é menos importante. A delegação ao
agente aumenta sua legitimação, já que identidades e acertos relacionados ao
trazer o passado, reviver conteúdos que o usuário imputou, é dada ainda mais
autonomia ao software. Numa continuidade do estudo, é preciso aprofundar a
utilização dos dados coletados e a produção cultural.
Conhecer música através dos amigos é reduzido ao gosto comum.
As descobertas são individuais. A identidade e diferenciação simbólica é ser
assinante do aplicativo, ter ou não o acesso premium, ao invés de identidades
capazes de transformar a produção de sentido de cada indivíduo.
O Comitê de Desenvolvimento da Música Digital do Brasil, ou a
cúpula conspiratória imaginada, acabam por provocar um certo comando sobre
os dutos de informação, afirmando primeiro um território global, desmaterializado
e ubíquo.
42. 47
O alerta aqui, é que não basta fechar os olhos para uma única fonte
de promoção e difusão simbólica, há que lembrar que o ciberespaço ainda
permite criação de espaços criativos e autônomos. Desta forma temos dois
sentidos em relação à música:
Produção em função da interfe, quando a produção artística e
sua difusão são criadas e pensadas a partir das possibilidades fechadas dos
ambientes promocionais.
A interface é quem propõe o formato da obra em troca das
demandas do artista a respeito de promoção, legitimação, dados e monetização.
Provoca ações reprodutivistas e estetizantes sobre o formato das obras, assim
como mantém a abundância e gratuidades necessárias para o sustento das
plataformas. Para esta, não importa qual é o discurso e sentido de fala que tem
o artista, qualquer identidade e representatividade são bem-vindos, já que a obra
se torna commoditie.
Os parâmetros de destaque, estabelecidos a partir do volume de
reprodução contabilizados pelos agentes virtuais, propõem a concorrência
artística tendo como principal disputa a atenção do usuário. Na contrapartida,
várias soluções promocionais com o uso de sistemas financeiros são criadas
para que o artista obtenha maior tempo de reprodução, difusão geográfica, e
alcance simbólico.
Fake taste, um usuário que tem a formação de repertório e
preferências estéticas à conteúdos matematicamente criados para reafirmação
do gosto comum e o devido sucesso mercadológico.
Pode ser considerado o resultado de um usuário consumidor de
áudios destacados na plataforma. A formação de repertório e criação de acervo
musical fica refém da usabilidade, armazenamento e mobilidade. Contribui para
mudanças de hábitos de pesquisa e consumo musical, e sugestões de conduta
que a interface propõe aos usuários, a partir de interesses mercadológicos
reproduzidos entre os oligopólios, que inclui: promoção, consumo e
comportamento, datavigilancia, lucro, e produções simbólicas fincadas nos
projetos modernizantes e hegemônicos. É oriundo da antologia da cultura nas
43. 48
redes e contribui para as diferenciais simbólicas entre as classes sociais.
Para maior profundidade nas ações reprodutivistas, seria preciso
dar continuidade aos estudos bibliográficos, aplicando pesquisas quantitativas e
qualitativas com agentes culturais, produtores artísticos, usuários, e agentes
distribuidores. Contrapor a plataforma com suas API’s e streamings contra-
hegemônicos, também pode contribuir com enriquecimento e aproveitamento
prático das descobertas.
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48. 53
10. APENDICES
10.1 - APENDICE A – Tela da Interface e mecanismos de descobertas
Esta é a tela de abertura do software versão desktop. Vemos o
anúncio, que às vezes apresenta playlists sugeridas, o feed de amigos e a
comunidade à direita, e o diálogo do agente.
Tela de abertura do Software Spotify, versão Desktop
Figura 2: Sessão de Gêneros e Momentos da versão mobile
49. 54
Na figura à esquerda vemos sugestões de música correspondentes
às atividades. Demonstra-se o desvinculo da autoria com a obra. Na figura a
direita percebemos o agente virtual se apresentando em diálogo contextualizado
ao período noturno.
No anúncio dos fones de ouvido Level da Samsung apresentado
na primeira página da navegação, percebemos a prótese humana, o medium
ofertando a ponte que liga o ouvinte à sua bios virtual. O apelo dado inicialmente
pela estética e depois no hotsite26, pela mobilidade, é a principal vantagem e
forma de disciplina ali implícita.
26
(SAMSUNG, 2017)
50. 55
Vejamos um exemplo de filtragem colaborativa do Spotify.
O gosto médio é processado através dessa combinação: gosto
comum + gosto comum = sugestão comum. Consideremos um usuário A que
ouve Kastrupismo27 e que não gosta do Justin Bieber28. Se houver algum usuário
B que goste de Kastrupismo mas também goste de Justin Bieber, o usuário A
terá o Justin Bieber recomendado na playlist por conta dessa semelhança. E na
condição de usuário freemium, às vezes não há opção de mudar de música,
depende se o usuário visualizou ou não o anúncio. É deste modo, que os
grandes hits permanecem nas playlist Top World, ou Top Brasil destacadas na
interface, responsáveis por entregar músicas aos seus seguidores: 7.084.465
(correspondente a 7% do volume de usuários global) e 447.926%
(correspondente a 3% do volume de usuários brasileiros)29.
27
artista independente sem promoções na rede
28
Artista gerenciado pela gravadora Universal Music.
29
Números baseados nas estatísticas de volume de usuários TORRES, 2017 e exibidos na prórpia
Tela de apresentação "Descobertas da Semana".
51. 56
10.2 - APENDICE B – Mecanismos de Centralização, análise de Hiperlinks
Para demonstrar o “nó da rede” mencionado por Cruz, levantou-se
o número de possibilidades de navegação para fora da plataforma, na tentativa
de estabelecer alguma relação contextual da música tocada com sua origem de
produção ou ficha técnica (não incluída na descrição da música, o que inibe
estratégias de otimização de busca que poderiam ser configuradas pelos
artistas). Quantificando os hiperlinks (ver figura abaixo) que destinam o usuário
para fora da interface, chegamos em 7 (sete), dentro das 34 (trinta e quatro)
outras possíveis interações:
interface do Spotify, em 24/04/17.
Figura: Mapa de navegação e hiperlinks do software Spotify, versão Desktop
52. 57
1) Anúncios: os anúncios patrocinados por marcas, ou pelo próprio
serviço, em geral direcionam o usuário para dentro da interface, sempre
para playlists que de alguma forma procuram dialogar com a
personalidade da marca. Hiperlinks para hotsite acontecem
esporadicamente, e quando ocorrem, se apropriam de informações
coletadas pelo serviço para monitorar o usuário e enquadrá-lo em
determinado perfil de consumidor para ações de posicionamento de
marca ou pós-venda.
Quem é usuário da conta free recebe anúncios a cada 15 minutos. Porém, a
plataforma dispõe aos anunciantes o formato de sessão patrocinada, isto é, se
o usuário visualizar o vídeo de 15”, 20” ou 30” até o fim, ele terá 30 minutos de
música sem interrupção de nenhuma propaganda. O anunciante tem a opção de
segmentar o anúncio de acordo com a localização do usuário e também de
acordo com a atividade que ele está fazendo, esta é detectada pelo próprio relato
do usuário ao escolher uma playlist vinculada à um momento (mood). Para
usufruir do benefício é obrigado a abrir o aplicativo se o uso estiver em segundo
Anúncio da Filtr, promovendo playlist de Sertanejo. Versão Desktop.