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ISO 3, Quarto 313. Esta não é uma morada
qualquer. É a morada de Vera, mulher de
Fernando Correia, que há mais de uma década
sofre de Alzheimer e se encontra internada na
Casa de Saúde da Idanha. É a este endereço que
todos os dias o conhecido jornalista se desloca
para visitar a mulher e que dá origem ao título
do seu mais recente livro: um relato emocionante
contado na primeira pessoa. À VIP, Fernando
Correia, de 79 anos, revela as razões que o
levaram a escrever um livro tão íntimo e pessoal.
VIP – A sinopse do seu livro começa logo
com uma pergunta: “Pode um livro nascido
da dor transmitir felicidade?”. Pergunto-lhe
isso.
Fernando Correia – Este livro foi baseado num
caso real que provocou muita dor e sofrimento,
mas a intenção é transmitir às pessoas aquilo que
eu tirei de proveitoso, de modo a que não repitam
os erros que cometi no início. Que, baseado no
meu caso, pudessem perceber como é que se
acompanha um doente com Alzheimer.
Começou por ser um livro escrito na 3ª pes-
soa, passando para o mais pessoal com todos
os sentimentos à flor da pele. Com mais de 30
livros publicados este foi o mais difícil?
Foi o mais difícil e continua a ser lê-lo ou falar
dele. Não é de ânimo leve que se escreve o que
escrevi e se expõe uma vida inteira. Queria escre-
“
SERÁ
SEMPRE
A VERA
QUE EU
CONHECI”
O jornalista FERNANDO
CORREIA lança o livro
Piso 3, Quarto 313,
no qual faz um relato
emocionante sobre
a mulher da sua vida
que sofre de Alzheimer
vê-lo na 3ª pessoa para não pensarem que queria
salientar-me com um livro baseado na dor, mas o
editor disse que fazia mais sentido escrevê-lo de
forma mais pessoal para que as pessoas sentissem
a verdade inteira do problema. Foi o que fiz com
autorização das filhas que tenho com a Vera.
Disse, na apresentação, que este também é
um livro sobre amor, amizade, fraternidade e
ser solidário com o nosso semelhante. Porquê?
Há uma vida de 43 anos em conjunto com a
Vera, sendo que a conheço há 53. Nesta altura não
posso estar a falar com o mesmo amor que nos
uniu na primeira vez que nos vimos. Esse amor
transformou-se em algo mais profundo, num sen-
timento sólido de amizade e fraternidade, porque
existe muito de fraterno entre nós, e de solidarie-
dade. É um ser humano que precisa de ajuda e se
eu sou a pessoa indicada para a ajudar, aqui estou
eu.
A determinada altura teve um sentimento
de culpa por não ter sido capaz de compreen-
der um doente com Alzheimer, e isso, que o
perturbava, levou-o a escrever o livro. Colocar
a sua história em papel trouxe-lhe alguma paz?
Agora sim, porque procuro partilhar com as
pessoas essa dor de que falo no livro. O que me
perturbava mais era eu não ter sido capaz, even-
tualmente, de compreender a doença da Vera nos
primeiros tempos, visto que a doença começou
há 12 anos. É evidente que reagi mal, porque via
uma pessoa ao pé de mim a fazer e a dizer dispa-
rates. Esse é o sentimento de culpa. Peço às pes-
soas que lerem o livro e tenham na família alguém
com Alzheimer que não procedam como eu pro-
cedi no início. Não se zanguem, sejam compreen-
sivos, a doença de Alzheimer é assim mesmo, as
pessoas não sabem o que estão a fazer.
Pediu desculpas em público às três filhas que
tem do casamento com a Vera. Por que sentiu
essa necessidade de se desculpar?
Porque ainda hoje tenho esse sentimento de
culpa e tenho receio que elas, no fundo, pensem:
‘O meu pai poderia ter feito um pouco mais pela
minha mãe’. Eu acho que não poderia ter feito
mais do fiz, mas pedir-lhes desculpa publicamen-
te também foi um ato de libertação. A minha cons-
ciência libertou-se mais ao dizer-lhes: ‘Estou aqui
humildemente a pedir-vos perdão’.
A sua mulher está internada há dois anos,
mas os primeiros sintomas começaram há 12.
O que denunciou que algo não estava bem?
Trocar palavras, dizer frases sem sentido, esque-
cer-se muito das coisas, estar a caminhar e dizer:
‘O que é que estou aqui a fazer? Não é por aqui que
quero ir’. Começámos a pensar que podia ser uma
demência precoce, mas os médicos diziam para
não nos preocuparmos, que não era grave e que
não era Alzheimer. Só uma quarta médica é que
disse que era Alzheimer. À medida que a doença
avançava, ela ia fazendo mais coisas sem sentido,
não dormia e houve um dia em que apareceu
como morta na cama. Foi uma coisa terrível, o
olhar completamente parado, eu pensava que ela
ia morrer, chamei o 112, ela foi para o Hospital São
Francisco Xavier e recuperou. Os médicos disse-
ram que poderia ter tido a ver com um derrame
muito pequenino. Foi quando começámos à pro-
cura de um local onde pudesse ser tratada e nos
recomendaram a casa de saúde das Irmãs Hospi-
taleiras do Sagrado Coração de Jesus, na Idanha.
Mas levou 10 anos a tomar essa decisão.
É verdade, foi muito tempo. No início seguimos
os conselhos dos médicos e eles próprios hesita-
vam no caminho a seguir. Nós fomos sempre es-
perando que aqueles episódios cessassem e ela
ficasse em casa, porque eu não queria que ela
fosse embora. Eu queria era que alguém especia-
lizado a tratasse em casa. Não foi possível porque
ela não aceitou. Perante o facto de não aceitar, de
bater nas pessoas, de puxar os cabelos às mulhe-
res, de pegar em facas para os netos que ela ama-
va e de querer bater nas filhas, e bateu muitas
vezes na mais velha, coitada, que é Vera também,
optámos pelo internamento. Ela foi sempre per-
dendo faculdades até que um dia me disseram
que não conseguiam fazer mais nada. Ou ia em-
“O que me perturbava mais era
eu não ter sido capaz, eventualmente,
de compreender a doença da Vera
nos primeiros tempos,
visto que a doença começou
há 12 anos”, diz Fernando Correia
O jornalista abre as
páginas mais íntimas da
sua vida ao falar sobre a
doença da sua mulher,
Vera
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bora ou ficava no piso 3 de longa duração, que
para nós, infelizmente, quer dizer permanente.
Como se recebe uma notícia destas?
É um horror. Sentimos a impotência, a peque-
nez, uma tremenda angústia, mas isto vem pro-
var que estamos aqui numa passagem muito
breve e que, provavelmente, a Vera, em termos
de Universo, já estará num plano muito mais
adiantado do que o meu. Como eu disse a um
médico que uma vez me perguntou, com um ar
simpático, para me consolar: ‘Então, já está mais
conformado?’. Ninguém pode estar conformado
com isto, o que eu estou é habituado. Sei onde
ela está, como está, sei que está sentada numa
cadeira com uma faixa a agarrá-la porque pode
cair e partir um membro... estou habituado, mas
não conformado. Habituei-me a ir visitá-la todos
os dias às quatro da tarde, dou-lhe o lanche, falo
com ela na esperança de que ela entenda algu-
ma coisa, porque ela não fala, emite sons e mui-
tas vezes nem sequer olha para mim. Outras
vezes, olha e, às vezes, sorri.
Tocou num ponto que já tinha falado na
apresentação, que é quando diz: “A Vera já está
num plano mais adiantado do que eu”. Isto
significa que é um homem de fé? Que acredita
em Deus? Mais em Deus do que na Medicina?
Eu vou dizer-lhe uma coisa que vai interpretar
como entender. Eu já passei por várias fases da
compreensão do Divino, de Deus. Nesta altura, eu
acredito apenas no Universo como uma força su-
perior a mim, não acredito em Deus da forma
como um homem religioso habitualmente acre-
dita.
Isto aproximou-o da ciência e afastou-o da
religião?
Aproximou-me muito da ciência e do desconhe-
cido, afastou-me da religião, mas curiosamente
fez-me ver o Mundo com outros olhos. Agora, sou
muito mais solidário, amigo e compreensivo do
que era, já olho para os outros de outra maneira,
percebendo que eles são, afinal de contas, iguais
a mim e tenho, nalguns casos, até pena daqueles
que não pensam como eu.
Logo no primeiro capítulo do livro escreve:
“Sentado a meu lado está um corpo de mulher,
esquálido, ossudo, praticamente inerte, dir-se-
-ia que traduzindo a morte aparente de quem
está, na verdade, morto para a vida”. Quando
visita a Vera reconhece cada vez menos a Vera?
Sim, dito assim, é verdade. Acho que ela - isto é
muito duro de pensar e dizer - deixou de ser a Vera
e passou a ser a doente da cama 29, do quarto
313, do piso 3 da casa de saúde. Mais nada.
Mas, para si, será sempre a sua Vera...
Será sempre a Vera que eu conheci e que, para
mim, está retratada nas fotografias, retratada den-
tro de mim e que me deu aquelas três filhas. Claro
que sim, negá-lo seria uma coisa completamente
disparatada. Claro que sim.
Fernando Correia ladeado pelas três filhas do seu casamento com
Vera: Nara,Vera e Iara (da esquerda para a direita). Em baixo, com
dois dos seus netos, Maria, de 11 anos, e Tiago, de sete, filhos de Vera
“Eu já passei por várias fases da compreensão do Divino, de Deus”
Texto:HelenaMagnaCosta;Fotos:NunoMoreira