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ISO 3, Quarto 313. Esta não é uma morada
qualquer. É a morada de Vera, mulher de
Fernando Correia, que há mais de uma década
sofre de Alzheimer e se encontra internada na
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quero ir’. Começámos a pensar que podia ser uma
demência precoce, mas os médicos diziam para
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disse que era Alzheimer. À medida que a doença
avançava, ela ia fazendo mais coisas sem sentido,
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como morta na cama. Foi uma coisa terrível, o
olhar completamente parado, eu pensava que ela
ia morrer, chamei o 112, ela foi para o Hospital São
Francisco Xavier e recuperou. Os médicos disse-
ram que poderia ter tido a ver com um derrame
muito pequenino. Foi quando começámos à pro-
cura de um local onde pudesse ser tratada e nos
recomendaram a casa de saúde das Irmãs Hospi-
taleiras do Sagrado Coração de Jesus, na Idanha.
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fosse embora. Eu queria era que alguém especia-
lizado a tratasse em casa. Não foi possível porque
ela não aceitou. Perante o facto de não aceitar, de
bater nas pessoas, de puxar os cabelos às mulhe-
res, de pegar em facas para os netos que ela ama-
va e de querer bater nas filhas, e bateu muitas
vezes na mais velha, coitada, que é Vera também,
optámos pelo internamento. Ela foi sempre per-
dendo faculdades até que um dia me disseram
que não conseguiam fazer mais nada. Ou ia em-
“O que me perturbava mais era
eu não ter sido capaz, eventualmente,
de compreender a doença da Vera
nos primeiros tempos,
visto que a doença começou
há 12 anos”, diz Fernando Correia
O jornalista abre as
páginas mais íntimas da
sua vida ao falar sobre a
doença da sua mulher,
Vera
80
bora ou ficava no piso 3 de longa duração, que
para nós, infelizmente, quer dizer permanente.
Como se recebe uma notícia destas?
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var que estamos aqui numa passagem muito
breve e que, provavelmente, a Vera, em termos
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adiantado do que o meu. Como eu disse a um
médico que uma vez me perguntou, com um ar
simpático, para me consolar: ‘Então, já está mais
conformado?’. Ninguém pode estar conformado
com isto, o que eu estou é habituado. Sei onde
ela está, como está, sei que está sentada numa
cadeira com uma faixa a agarrá-la porque pode
cair e partir um membro... estou habituado, mas
não conformado. Habituei-me a ir visitá-la todos
os dias às quatro da tarde, dou-lhe o lanche, falo
com ela na esperança de que ela entenda algu-
ma coisa, porque ela não fala, emite sons e mui-
tas vezes nem sequer olha para mim. Outras
vezes, olha e, às vezes, sorri.
Tocou num ponto que já tinha falado na
apresentação, que é quando diz: “A Vera já está
num plano mais adiantado do que eu”. Isto
significa que é um homem de fé? Que acredita
em Deus? Mais em Deus do que na Medicina?
Eu vou dizer-lhe uma coisa que vai interpretar
como entender. Eu já passei por várias fases da
compreensão do Divino, de Deus. Nesta altura, eu
acredito apenas no Universo como uma força su-
perior a mim, não acredito em Deus da forma
como um homem religioso habitualmente acre-
dita.
Isto aproximou-o da ciência e afastou-o da
religião?
Aproximou-me muito da ciência e do desconhe-
cido, afastou-me da religião, mas curiosamente
fez-me ver o Mundo com outros olhos. Agora, sou
muito mais solidário, amigo e compreensivo do
que era, já olho para os outros de outra maneira,
percebendo que eles são, afinal de contas, iguais
a mim e tenho, nalguns casos, até pena daqueles
que não pensam como eu.
Logo no primeiro capítulo do livro escreve:
“Sentado a meu lado está um corpo de mulher,
esquálido, ossudo, praticamente inerte, dir-se-
-ia que traduzindo a morte aparente de quem
está, na verdade, morto para a vida”. Quando
visita a Vera reconhece cada vez menos a Vera?
Sim, dito assim, é verdade. Acho que ela - isto é
muito duro de pensar e dizer - deixou de ser a Vera
e passou a ser a doente da cama 29, do quarto
313, do piso 3 da casa de saúde. Mais nada.
Mas, para si, será sempre a sua Vera...
Será sempre a Vera que eu conheci e que, para
mim, está retratada nas fotografias, retratada den-
tro de mim e que me deu aquelas três filhas. Claro
que sim, negá-lo seria uma coisa completamente
disparatada. Claro que sim.
Fernando Correia ladeado pelas três filhas do seu casamento com
Vera: Nara,Vera e Iara (da esquerda para a direita). Em baixo, com
dois dos seus netos, Maria, de 11 anos, e Tiago, de sete, filhos de Vera
“Eu já passei por várias fases da compreensão do Divino, de Deus”
Texto:HelenaMagnaCosta;Fotos:NunoMoreira

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  • 1. 78 79 P ISO 3, Quarto 313. Esta não é uma morada qualquer. É a morada de Vera, mulher de Fernando Correia, que há mais de uma década sofre de Alzheimer e se encontra internada na Casa de Saúde da Idanha. É a este endereço que todos os dias o conhecido jornalista se desloca para visitar a mulher e que dá origem ao título do seu mais recente livro: um relato emocionante contado na primeira pessoa. À VIP, Fernando Correia, de 79 anos, revela as razões que o levaram a escrever um livro tão íntimo e pessoal. VIP – A sinopse do seu livro começa logo com uma pergunta: “Pode um livro nascido da dor transmitir felicidade?”. Pergunto-lhe isso. Fernando Correia – Este livro foi baseado num caso real que provocou muita dor e sofrimento, mas a intenção é transmitir às pessoas aquilo que eu tirei de proveitoso, de modo a que não repitam os erros que cometi no início. Que, baseado no meu caso, pudessem perceber como é que se acompanha um doente com Alzheimer. Começou por ser um livro escrito na 3ª pes- soa, passando para o mais pessoal com todos os sentimentos à flor da pele. Com mais de 30 livros publicados este foi o mais difícil? Foi o mais difícil e continua a ser lê-lo ou falar dele. Não é de ânimo leve que se escreve o que escrevi e se expõe uma vida inteira. Queria escre- “ SERÁ SEMPRE A VERA QUE EU CONHECI” O jornalista FERNANDO CORREIA lança o livro Piso 3, Quarto 313, no qual faz um relato emocionante sobre a mulher da sua vida que sofre de Alzheimer vê-lo na 3ª pessoa para não pensarem que queria salientar-me com um livro baseado na dor, mas o editor disse que fazia mais sentido escrevê-lo de forma mais pessoal para que as pessoas sentissem a verdade inteira do problema. Foi o que fiz com autorização das filhas que tenho com a Vera. Disse, na apresentação, que este também é um livro sobre amor, amizade, fraternidade e ser solidário com o nosso semelhante. Porquê? Há uma vida de 43 anos em conjunto com a Vera, sendo que a conheço há 53. Nesta altura não posso estar a falar com o mesmo amor que nos uniu na primeira vez que nos vimos. Esse amor transformou-se em algo mais profundo, num sen- timento sólido de amizade e fraternidade, porque existe muito de fraterno entre nós, e de solidarie- dade. É um ser humano que precisa de ajuda e se eu sou a pessoa indicada para a ajudar, aqui estou eu. A determinada altura teve um sentimento de culpa por não ter sido capaz de compreen- der um doente com Alzheimer, e isso, que o perturbava, levou-o a escrever o livro. Colocar a sua história em papel trouxe-lhe alguma paz? Agora sim, porque procuro partilhar com as pessoas essa dor de que falo no livro. O que me perturbava mais era eu não ter sido capaz, even- tualmente, de compreender a doença da Vera nos primeiros tempos, visto que a doença começou há 12 anos. É evidente que reagi mal, porque via uma pessoa ao pé de mim a fazer e a dizer dispa- rates. Esse é o sentimento de culpa. Peço às pes- soas que lerem o livro e tenham na família alguém com Alzheimer que não procedam como eu pro- cedi no início. Não se zanguem, sejam compreen- sivos, a doença de Alzheimer é assim mesmo, as pessoas não sabem o que estão a fazer. Pediu desculpas em público às três filhas que tem do casamento com a Vera. Por que sentiu essa necessidade de se desculpar? Porque ainda hoje tenho esse sentimento de culpa e tenho receio que elas, no fundo, pensem: ‘O meu pai poderia ter feito um pouco mais pela minha mãe’. Eu acho que não poderia ter feito mais do fiz, mas pedir-lhes desculpa publicamen- te também foi um ato de libertação. A minha cons- ciência libertou-se mais ao dizer-lhes: ‘Estou aqui humildemente a pedir-vos perdão’. A sua mulher está internada há dois anos, mas os primeiros sintomas começaram há 12. O que denunciou que algo não estava bem? Trocar palavras, dizer frases sem sentido, esque- cer-se muito das coisas, estar a caminhar e dizer: ‘O que é que estou aqui a fazer? Não é por aqui que quero ir’. Começámos a pensar que podia ser uma demência precoce, mas os médicos diziam para não nos preocuparmos, que não era grave e que não era Alzheimer. Só uma quarta médica é que disse que era Alzheimer. À medida que a doença avançava, ela ia fazendo mais coisas sem sentido, não dormia e houve um dia em que apareceu como morta na cama. Foi uma coisa terrível, o olhar completamente parado, eu pensava que ela ia morrer, chamei o 112, ela foi para o Hospital São Francisco Xavier e recuperou. Os médicos disse- ram que poderia ter tido a ver com um derrame muito pequenino. Foi quando começámos à pro- cura de um local onde pudesse ser tratada e nos recomendaram a casa de saúde das Irmãs Hospi- taleiras do Sagrado Coração de Jesus, na Idanha. Mas levou 10 anos a tomar essa decisão. É verdade, foi muito tempo. No início seguimos os conselhos dos médicos e eles próprios hesita- vam no caminho a seguir. Nós fomos sempre es- perando que aqueles episódios cessassem e ela ficasse em casa, porque eu não queria que ela fosse embora. Eu queria era que alguém especia- lizado a tratasse em casa. Não foi possível porque ela não aceitou. Perante o facto de não aceitar, de bater nas pessoas, de puxar os cabelos às mulhe- res, de pegar em facas para os netos que ela ama- va e de querer bater nas filhas, e bateu muitas vezes na mais velha, coitada, que é Vera também, optámos pelo internamento. Ela foi sempre per- dendo faculdades até que um dia me disseram que não conseguiam fazer mais nada. Ou ia em- “O que me perturbava mais era eu não ter sido capaz, eventualmente, de compreender a doença da Vera nos primeiros tempos, visto que a doença começou há 12 anos”, diz Fernando Correia O jornalista abre as páginas mais íntimas da sua vida ao falar sobre a doença da sua mulher, Vera
  • 2. 80 bora ou ficava no piso 3 de longa duração, que para nós, infelizmente, quer dizer permanente. Como se recebe uma notícia destas? É um horror. Sentimos a impotência, a peque- nez, uma tremenda angústia, mas isto vem pro- var que estamos aqui numa passagem muito breve e que, provavelmente, a Vera, em termos de Universo, já estará num plano muito mais adiantado do que o meu. Como eu disse a um médico que uma vez me perguntou, com um ar simpático, para me consolar: ‘Então, já está mais conformado?’. Ninguém pode estar conformado com isto, o que eu estou é habituado. Sei onde ela está, como está, sei que está sentada numa cadeira com uma faixa a agarrá-la porque pode cair e partir um membro... estou habituado, mas não conformado. Habituei-me a ir visitá-la todos os dias às quatro da tarde, dou-lhe o lanche, falo com ela na esperança de que ela entenda algu- ma coisa, porque ela não fala, emite sons e mui- tas vezes nem sequer olha para mim. Outras vezes, olha e, às vezes, sorri. Tocou num ponto que já tinha falado na apresentação, que é quando diz: “A Vera já está num plano mais adiantado do que eu”. Isto significa que é um homem de fé? Que acredita em Deus? Mais em Deus do que na Medicina? Eu vou dizer-lhe uma coisa que vai interpretar como entender. Eu já passei por várias fases da compreensão do Divino, de Deus. Nesta altura, eu acredito apenas no Universo como uma força su- perior a mim, não acredito em Deus da forma como um homem religioso habitualmente acre- dita. Isto aproximou-o da ciência e afastou-o da religião? Aproximou-me muito da ciência e do desconhe- cido, afastou-me da religião, mas curiosamente fez-me ver o Mundo com outros olhos. Agora, sou muito mais solidário, amigo e compreensivo do que era, já olho para os outros de outra maneira, percebendo que eles são, afinal de contas, iguais a mim e tenho, nalguns casos, até pena daqueles que não pensam como eu. Logo no primeiro capítulo do livro escreve: “Sentado a meu lado está um corpo de mulher, esquálido, ossudo, praticamente inerte, dir-se- -ia que traduzindo a morte aparente de quem está, na verdade, morto para a vida”. Quando visita a Vera reconhece cada vez menos a Vera? Sim, dito assim, é verdade. Acho que ela - isto é muito duro de pensar e dizer - deixou de ser a Vera e passou a ser a doente da cama 29, do quarto 313, do piso 3 da casa de saúde. Mais nada. Mas, para si, será sempre a sua Vera... Será sempre a Vera que eu conheci e que, para mim, está retratada nas fotografias, retratada den- tro de mim e que me deu aquelas três filhas. Claro que sim, negá-lo seria uma coisa completamente disparatada. Claro que sim. Fernando Correia ladeado pelas três filhas do seu casamento com Vera: Nara,Vera e Iara (da esquerda para a direita). Em baixo, com dois dos seus netos, Maria, de 11 anos, e Tiago, de sete, filhos de Vera “Eu já passei por várias fases da compreensão do Divino, de Deus” Texto:HelenaMagnaCosta;Fotos:NunoMoreira