Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Evágrio pôntico - sobre os oito vícios capitais
1. Evágrio Pôntico - Sobre os Oito Vícios Capitais
Tradução: Carlos Martins Nabeto
Fonte: VE Multimedios
A Gula
I. A Gula (1)
Capítulo 1
A origem do fruto é a flor e a origem da vida ativa (2) é a moderação (3); quem domina o
próprio estômago, diminui as paixões; pelo contrário, quem é subjugado pela comida,
aumenta os prazeres.
Assim como Amalec é a origem dos povos, também a gula é a origem das paixões. Assim
como a lenha é alimento do fogo, a comida é o alimento do estômago. Muita lenha
proporciona uma grande chama e a abundância da comida nutre a concupiscência. A chama
se extingue quando há menos lenha e a miséria de comida apaga a concupiscência.
Aquele que domina a boca, confunde os forasteiros e desata facilmente as suas mãos. Da
boca bem coordenada brota uma fonte de água e a libertação da gula gera a prática da
contemplação.
A estaca da tenda, atacando, matou a boca inimiga e a sabedoria da moderação mata a
paixão (4).
O desejo de comida gera desobediência e uma deleitosa degustação afasta do Paraíso. As
comidas saborosas saciam a garganta e nutrem o glutão de uma imoderação que nunca
cochila.
Um ventre indigente prepara para uma oração vigilante; ao contrário, um ventre bem cheio
convida para um longo sono.
Uma mente sóbria se alcança com uma dieta bem pobre, enquanto que uma vida cheia de
delicadezas lança a mente no abismo.
A oração daquele que jejua é como um pintinho voando mais alto que uma águia, enquanto
que a [oração] do glutão está envolta nas trevas. A nuvem esconde os raios do sol e a
digestão pesada dos alimentos ofusca a mente.
Capítulo 2
2. Um espelho sujo não reflete claramente a imagem daquele que se põe diante dele e o
intelecto, tonto pela saciez, não acolhe o conhecimento de Deus.
Uma terra não cultivada gera espinhos e de uma mente corrompida pela gula germinam
maus pensamentos.
Como na lama não emana boa cheiro, tampouco no glutão é possível sentir o suave perfume
da contemplação.
O olho do glutão explora com curiosidade os banquetes, enquanto que o olhar do moderado
observa os ensinamentos dos sábios.
A alma do glutão enumera a lembrança dos mártires, enquanto que a do moderado imita os
seus exemplos.
O soldado fraco foge ao som da trombeta que preanuncia a batalha; da mesma forma, o
glutão foge dos chamados à moderação.
O monge guloso, submetido às exigências do seu ventre, faz questão de sua parte cotidiana.
O caminhante, que caminha com afinco, alcançará logo a cidade e o monge glutão não
chegará à casa da paz interior (5).
O vapor úmido do incenso perfuma o ar, tal como a oração do moderado deleita o olfato
divino.
Se te abandonas ao desejo de comida, já nada te bastará para satisfazer o teu prazer; o
desejo de comida, com efeito, é como o fogo que sempre envolve e sempre se inflama.
Uma medida suficente enche o prato, mas um ventre mal acostumado jamais dirá: "Basta!".
A extensão das mãos pôs em fuga a Amalec e uma vida ativa elevada submete as paixões
carnais.
Capítulo 3
Extermina tudo o que for inspirado pelos vícios e mortifica fortemente a tua carne. Com
efeito, uma vez morto o inimigo, este não mais produz medo; assim, um corpo mortificado
não perturbará a alma. Um cadáver não sente a dor produzida pelo fogo; e, menos ainda, o
moderado sente o prazer do desejo extinto.
Se matardes o Egípcio (6), esconda-o sob a areia e não engordes o corpo por uma paixão
vencida; assim como na terra preparada germina o que está escondido, também no corpo
gordo revive a paixão.
A chama que se reduz é reacendida quando a alimentamos com lenha seca e o prazer que
está se atenuando revive com a saciedade da comida; não te compadeças do corpo que se
3. lamenta pela carestia e não te agrades com comidas suntuosas; com efeito, se te reforças,
encontrareis uma guerra sem trégua, que escravizará tua alma e te fará servo da luxúria.
O corpo indigente é como um cavalo dócil que jamais derrubará o cavaleiro; [o cavalo],
com efeito, dominado pelas rédeas, se submete e obedece a mão daquele que as detém;
assim, o corpo, dominado pela fome e vigília, não reage por um pensamento que o cavalga,
nem relincha excitado pelo ímpeto das paixões.
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Notas:
1. Ao que hoje chamamos gula, Evágrio chamava gastrimargia, literalmente "loucura do
ventre".
2. "Vida ativa" é a tradução mais próxima para praktiké, a disciplina espiritual que,
segundo Evágrio, se encontra no princípio do processo de conformação com o Senhor Jesus
e que tem por fim purificar as paixões da alma humana. A isto Evágrio dedica o seu
"Tratado Prático".
3. Enkráteia é um conceito muito mais rico que o termo "moderação", se por este se
entende apenas a virtude contrária à gula. Pela raiz krat, que significa "força" ou "poder",
esta virtude implica "domínio de si" ou "senhorio de si".
4. Trata-se de uma comparação obscura, mas a mensagem é clara.
5. O termo usado por Evágrio é Apátheia, que em sua espiritualidade equivale ao estado de
plenitude espiritual, alcançado mediante o domínio das paixões e o silenciamento do
interior.
6. O "Egípcio" é o nome dado, pelos Padres do Deserto, a um demônio especialmente voraz
na tentação.
II. A Luxúria
Capítulo 4
A moderação gera a regra, enquanto que a gula é a mãe do desenfreio; o óleo alimenta a luz
da lamparina e o freqüentar mulheres atiça a chama do prazer.
A violência da onda se desencadeia contra o mercador mal ancorado, assim como o
pensamento da luxúria [se desencadeia] sobre a mente do imoderado. A luxúria virá aliada
à saciez, lhe concederá licença, se juntará aos adversários e combaterá, finalmente, do lado
dos inimigos.
Permanece invunerável às flechas inimigas aquele que ama a tranqüilidade (7); ao
contrário, aquele que se mistura com a multidão recebe golpes continuamente.
4. O olhar para uma mulher é semelhante a um dardo venenoso: fere a alma, nos injeta veneno
e, quanto mais perdura, tanto mais espalha a infecção. Aquele que busca defender-se destas
flechas se mantém alheio das multitudinárias reuniões públicas e não divaga com a boca
aberta nos dias de festa; é muito melhor ficar em casa, passando o tempo orando, do que
fazer a obra do inimigo, crendo honrar as festas.
Evita a intimidade com as mulheres se realmente desejas ser sábio e não lhes dê liberdade
para falar-te, nem confiança. Com efeito, no início têm ou simulam uma certa cautela;
porém, a seguir, ousam fazer tudo descaradamente: na primeira aproximação, mantêm olhar
baixo, falam docemente, choram comovidas, tratam seriamente, suspiram com amargura,
fazem perguntas sobre a castidade e escutam com atenção; na segunda vez, levantam um
pouco mais a cabeça; na terceira vez, aproximam-se sem muito pudor; tu sorris e elas se
põem a rir desaforadamente; a seguir, se embelezam e se te mostram com ostentação; seus
olhares passam a anunciar o ardor, levantam as sobrancelhas e os olhos, desnudam o
pescoço e abandonam todo o corpo à fraqueza, pronunciam frases abrandadas pela paixão e
te dirigem uma voz fascinante ao ouvido até apoderarem-se por completo da [tua] alma.
Ocorre que estas ciladas te encaminham à morte e estas redes entrelaçadas te arrastam à
perdição; portanto, não te deixes enganar sequer por aquelas que se servem de discursos
discretos; nestas, com efeito, se oculta o maligno veneno das serpentes.
Capítulo 5
Aproxima-te antes do fogo ardente que de uma mulher jovem, sobretudo se também sois
jovem; com efeito, quando te aproximas da chama e sentis um bom calor, te levantas
rapidamente, enquanto que, quando sois seduzido pelas conversas femininas, dificilmente
conseguireis fugir.
A erva cresce quando está cercada pela água; assim, germina a imoderação freqüentando as
mulheres.
Aquele que enche o ventre e faz profissão de sabedoria se parece com alguém que afirma
ser possível frear a força do fogo usando palha. Assim como efetivamente é impossível
apagar a mutável agitação do fogo com a palha, também é impossível limitar na saciedade o
ímpeto inflamado da imoderação.
Uma coluna se apóia sobre uma base e a paixão da luxúria tem sua base na saciez.
O navio, presa da tempestade, se apressa em chegar ao porto e a alma do sábio busca a
solidão; um foge das ameaçadoras ondas do mar, e a outra, das formas femininas, que
trazem dor e ruína.
5. Um belo rosto de mulher afunda mais que um maremoto; mesmo assim, este último te
oferece a possibilidade de nadar, para que salveis a vida, enquanto que a beleza feminina
traz o engano e te persuade a desprezar inclusive a própria vida.
A sarça solitária se subtrai intacta à chama e o sábio, que tem consciência que deve manter-
se afastado das mulheres, não incinde na imoderação; assim como a lembrança do fogo não
queima a mente, também nem sequer a paixão tem êxito se lhe falta a matéria.
Capítulo 6
Se tens piedade para com o inimigo, esta será sempre tua inimiga; e se facilitas à paixão,
esta se te revelará.
Ver mulheres excita o imoderado, enquanto empurra o sábio a glorificar a Deus; porém, se
no meio das mulheres a paixão é tranqüila, não dês crédito a quem te afirma terdes
alcançado a paz interior (8).
O cão abana o rabo justamente quando está no meio da multidão, mas quando é espantado,
mostra a sua maldade. Apenas quando a recordação da mulher surgir em ti separada da
paixão, então poderás considerar-te próximo dos confins da sabedoria. Ao contrário,
quando a imagem dela te levar a vê-la e os seus dardos cercarem a tua alma, então poderás
considerar-te afastado da virtude.
Porém, não deves manter-te assim, nesses pensamentos, nem tua mente deve familiarizar-se
muito com as formas femininas, pois a paixão será reincidente, levando perigo junto a si.
Efetivamente, assim como uma fundição apropriada purifica a prata, enquanto que, quando
prolongada, a destrói facilmente, assim uma insistente fantasia com mulheres destrói a
sabedoria adquirida; não tenhas, portanto, familiaridade prolongada com um rosto
imaginado, para que não se lhe adiram as chamas do prazer e venham a queimar a auréola
que circunda a tua alma; assim como a faísca próxima da palha desencadeia as chamas,
assim a lembrança da mulher, persistindo, acende o desejo.
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Notas:
7. Refere-se à paz interior, à tranqüilidade de recolhimento ou solidão, no caso do monge.
8. Trata-se, novamente, do termo Apátheia. Ver nota 5.
III. A Avareza (9)
Capítulo 7
6. A avareza é a raiz de todos os males e nutre, como arbustos malignos, as demais paixões,
não permitindo que estas se sequem, eis que florescidas daquela.
Quem deseja exterminar as paixões, que arranque a raiz; se para o bem tu podas os ramos, a
avareza, porém, permanece; [esta providência] não te servirá de nada, porque estes [ramos],
apesar de terem sido cortados, rapidamente florescem.
O monge rico é como um navio extremamente carregado que é atingido pelo ímpeto de
uma tempestade; assim como um navio que deixa entrar a água é posto à prova por cada
onda, também o rico se vê submergido pelas preocupações.
O monge que não possui nada é, ao contrário, um viajante ágil que encontra refúgio em
todos os lados. É como a águia que voa alto e que desce somente para buscar o seu
alimento quando necessita; está acima de qualquer prova, ri do presente e se eleva às
alturas, afastando-se das coisas terrenas e juntando-se às celestes; tem, efetivamente, asas
ligeiras, jamais carregadas pelas preocupações; sobrepassa a opressão e deixa o lugar sem
dor; a morte chega e ele vai com ânimo sereno; a alma, com efeito, não está amarrada a
nenhum tipo de atadura.
Quem, ao contrário, muito possui, se submete às preocupações e, como o cão, está preso à
corrente e, se é obrigado a ir embora, leva consigo, como um grave peso e inútil aflição, a
lembrança das suas riquezas, é vencido pela tristeza e, quando pensa nisso, sofre muito em
perder as riquezas e se atormenta com o desânimo.
E quando lhe chega a morte, abandona miseravelmente suas tendências, entrega a alma,
embora o olho não abandone os negócios; de má vontade é arrastado como um escravo
fugitivo; se separa do corpo, mas não dos seus interesses, porque a paixão o atinge mais do
que o arrasta.
Capítulo 8
O mar jamais se enche, embora receba a grande massa de água dos rios; da mesma maneira,
o desejo de riquezas do ávaro jamais se sacia: ele o duplica e, imediatamente, deseja
quadruplicá-los e não cessa jamais esta multiplicação, até que a morte venha pôr fim a tal
interminável pretensão.
O monge sensato terá cuidado das necessidades do corpo e proverá com pão e água o
estômago indigente; não adulará os ricos pelo prazer do ventre, nem submeterá sua mente
livre a muitos senhores; com efeito, as mãos são sempre suficientes para satisfazer as
necessidades naturais.
O monge que não possui nada é como um lutador que não pode ser golpeado fortemente e
um atleta veloz que alcança rapidamente o prêmio do convite celeste.
7. O monge rico se regozija nas muitas rendas, enquanto que o que nada tem se regozija com
os prêmios que vêm das coisas bem obtidas.
O monge ávaro trabalha duramente, enquanto que o que nada possui dedica seu tempo para
a oração e a leitura.
O monge ávaro enche os buracos de ouro, enquanto que o que nada possui acumula
tesouros no céu.
Seja maldito aquele que forja o ídolo e o esconde, da mesma forma que aquele que é afeto à
avareza; com efeito, o primeiro se prostra diante do falso e inútil, e o outro carrega em si a
imagem (10) da riqueza, como um simulacro.
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Notas:
9. Philargyria, ou amor ao ouro, ao dinheiro. Evágrio dá especial importância a este vício e
apresenta seu demônio como particularmente astuto, pois apresenta ao monge uma série de
raciocínios que fazem parecer a acumulação de bens como um ato de sensatez e prudência.
10. Para Evágrio, o apaixonado possui no coração a imagem do objeto que o domina.
IV. A Ira
Capítulo 9
A ira é uma paixão furiosa que, com freqüência, faz perder o juízo àqueles que têm o
conhecimento, embrutece a alma e degrada todo o conjunto humano.
Um vento impetuoso não derruba uma torre e a animosidade não arrasta a alma mansa.
A água se move pela violência dos ventos e o homem irado se agita pelos pensamentos
irracionais. O monge irado vê alguém e range os dentes.
A difusão da neblina condensa o ar e o movimento da ira torna nublada a mente do irado.
A nuvem que avança ofusca o sol e, assim, o pensamento rancoroso entorpece a mente.
O leão na jaula sacode continuamente a porta tal como o violento, em sua cela, quando é
acometido pelo pensamento da ira.
É deliciosa a vista de um mar tranqüilo, porém, certamente não é mais agradável que o
estado de paz; com efeito, os golfinhos nadam no mar calmo e os pensamentos voltados
para Deus emergem um estado de serenidade.
8. O monge magnânimo é uma fonte tranqüila, uma bebida agradável oferecida a todos,
enquanto que a mente do irado se vê continuamente agitada e não dará água a quem tem
sede e, se a der, será esta turva e nociva; os olhos do irado estão arregalados e cheios de
sangue, anunciando um coração em conflito. O rosto do magnânino mostra tranqüilidade e
os olhos benignos estão voltados para baixo.
Capítulo 10
A mansidão do homem é lembrada por Deus e a alma pacífica se converte no templo do
Espírito Santo.
Cristo recosta sua cabeça nos espíritos mansos e apenas a mente pacífica se converte em
morada da Santa Trindade.
As raposas montam guarda na alma rancorosa e as feras se agasalham no coração rebelde.
O homem honesto se afasta das casas de mal conduta e Deus [se afasta] de um coração
rancoroso.
Uma pedra que cai na água a agita, tal como um discurso maligno no coração do homem.
Afasta da tua alma os pensamentos de ira, não permita a animosidade no recinto do teu
coração e não te perturbes no momento da oração; efetivamente, como a fumaça da palha
ofusca a visão, assim a mente se vê perturbada pelo rancor durante a oração.
Os pensamentos do irado são descendentes das víboras e devoram o coração que lhes
gerou. Sua oração é um incenso abominável e seus salmos emitem um som desagradável.
A oferta do rancoroso é como um doce cheio de formigas que certamente não encontrará
lugar nos altares aspergidos pela água benta.
O irado terá sonhos perturbadores e se imaginará assaltado pelas feras. O homem
magnânimo, que não guarda rancor, se exercita com discursos espirituais e, durante a noite,
recebe a solução dos mistérios.
V. A Tristeza
Capítulo 11
O monge atingido pela tristeza não conhece o prazer espiritual; a tristeza abate a alma e se
forma a partir dos pensamentos da ira.
O desejo de vingança, com efeito, é próprio da ira; o fracasso da vingança gera a tristeza; a
tristeza é a boca do leão e facilmente devora aquele que se entristece.
9. A tristeza é um glutão de coração e se alimenta da mãe que o gerou.
Sofre a mãe quando dá à luz um filho; porém, esta, tendo dado à luz, se vê livre da dor. A
tristeza, ao contrário, enquanto é gerada, provoca fortes dores e, sobrevivendo, após o
esforço, não traz sofrimentos menores.
O monge triste não conhece a alegria espiritual, como aquele que acometido por forte febre
não reconhece o sabor do mel.
O monge triste não saberá como manter a mente na contemplação, nem brota nele uma
oração pura: a tristeza impede todo o bem.
Ter os pés amarrados impede a corrida; assim é a tristeza: um obstáculo para a
contemplação.
O prisioneiro dos bárbaros está preso com correntes; a tristeza amarra aquele que é
prisioneiro (11) das paixões.
Na ausência de outras paixões, a tristeza não tem força, assim como não tem força uma
corda se lhe faltar quem amarre.
Aquele que está atado pela tristeza é vencido pelas paixões e, como prova de sua derrota,
vem acrescentada a atadura.
Efetivamente, a tristeza deriva da falta de êxito do desejo carnal, porque o desejo é co-
natural a todas as paixões. Quem vence o desejo, vence as paixões; e o vencedor das
paixões não será submetido pela tristeza.
O moderado não se entristece pela falta de alimentos, nem o sábio quando é atacado por um
lapso de memória, nem o manso que renuncia a vingança, nem o humilde que se vê privado
da honra dos homens, nem o generoso que sofre uma perda financeira; com efeito, eles
evitam, com força, o desejo destas coisas, como efetivamente aquele que corajosamente
rejeita os golpes. Assim, o homem carente de paixões não é ferido pela tristeza.
Capítulo 12
O escudo é a segurança do soldado e os muros são a [proteção] da cidade; mais seguro que
ambos é, para o monge, a paz interior (12).
De fato, freqüentemente uma flecha lançada por um braço forte traspassa o escudo e a
multidão de inimigos abate os muros, enquanto que a tristeza não pode prevalecer sobre a
paz interior.
Aquele que domina as paixões se tornará senhor sobre a tristeza, enquanto que quem foi
vencido pelo prazer não se desatará das suas ataduras.
10. Aquele que se entristece facilmente e simula uma ausência de paixões é como o doente que
finge não estar enfermo; assim como a enfermidade se revela pela vermelhidão, a presença
de uma paixão se demonstra pela tristeza.
Aquele que ama o mundo se verá muito afligido, enquanto que aqueles que desprezam o
que há nele serão felizes para sempre.
O ávaro, ao receber algo ruim, se verá extremamente entristecido, enquanto que aquele que
despreza as riquezas estará sempre livre da tristeza.
Quem busca a glória, ao chegar a desonra, se verá em dores, enquanto que o humilde a
acolherá como que a um companheiro.
O forno purifica a prata impura e a tristeza perante Deus livra o coração do erro; a fusão
contínua empobrece o chumbo e a tristeza em razão das coisas do mundo diminui o
intelecto.
A névoa diminui o poder dos olhos e a tristeza embrutece a mente dedicada à
contemplação; a luz do sol não chega aos abismos marinhos e a visão da luz não ilumina o
coração entristecido; doce é para todos os homens o nascer do sol, porém também isto
desagrada a alma entristecida; a coceira elimina o sentido do gosto tal como a tristeza
subtrai da alma a capacidade de percepção. Porém, aquele que despreza os prazeres do
mundo não se verá perturbado pelos maus pensamentos da tristeza.
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Notas:
11. Evágrio utiliza o termo Aikhmálotos, que significa "prisioneiro de guerra", porém, ao
mesmo tempo, faz referência à aikhmálosia que, em sua teoria espiritual, é o estágio final
de escravidão da alma aos demônios, que chega como conseqüência de deixar-se vencer
sistematicamente por eles.
12. Outra vez, a Apátheia.
VI. O Aborrecimento
Capítulo 13
O aborrecimento é a debilidade da alma que irrompe quando não se vive segundo a
natureza, nem se enfrenta nobremente a tentação. Com efeito, a tentação é para uma alma
nobre o que o alimento é para um corpo vigoroso.
O vento do norte nutre os brotos e as tentações consolidam a firmeza da alma.
11. A nuvem pobre de água é afastada pelo vento tal como a mente que não persevera no
espírito do aborrecimento.
O orvalho da primavera aumenta o fruto do campo e a palavra espiritual exalta a firmeza da
alma.
O fluxo do aborrecimento expulsa o monge de sua morada, enquanto que aquele que é
perseverante está sempre tranqüilo.
O aborrecido aduz como pretexto a visita aos doentes (13), coisa que garante seu próprio
objetivo.
O monge aborrecido é rápido em terminar suas tarefas e considera um preceito sua própria
satisfação; a planta doente é dobrada por uma brisa leve e imaginar uma saída
[justificadora] distrai o aborrecido.
Uma árvore bem plantada não é sacudida pela violência dos ventos e o aborrecimento não
submete a alma bem sustentada.
O monge que anda em círculos, como uma solitária fibra seca, está pouco tranqüilo e, sem
querer, é interrompido aqui e acolá a todo tempo.
Uma árvore transplantada não frutifica e o monge vagabundo não produz fruto de virtude.
O doente não se satisfaz com um só tipo de alimento e o monge aborrecido não se satisfaz
com uma só ocupação.
Não basta uma só mulher para satisfazer ao voluptuoso e não basta uma só cela para o
aborrecido.
Capítulo 14
O olho do aborrecido se fixa continuamente nas janelas e sua mente imagina que chegam
visitas; a porta gira e ele sai, escuta uma voz e olha pela a janela e dali não se afasta até
que, sentado, se canse.
Quando lê, o aborrecido boceja muito, se deixa levar facilmente pelo sono, pesam-lhe os
olhos, deita-se e, tirando o olhar do livro, o fixa na parede e, voltando a ler mais um pouco,
fatiga-se inutilmente ao final de cada palavra; passa, então, a contar as páginas, calcular os
parágrafos, desprezar as letras e belezas de estilo; finalmente, fechando o livro, o põe
debaixo da cabeça e cai em sono não muito profundo. Pouco depois, a fome desperta na
alma e, com ela, todas as suas preocupações.
O monge aborrecido é frouxo para a oração e certamente jamais pronunciará as palavras da
oração; como efetivamente o doente jamais carrega peso excessivo, assim também o
12. aborrecido seguramente não se ocupa diligentemente dos deveres para com Deus: primeiro,
porque lhe falta efetivamente a força física; segundo, porque estranha o vigor da alma.
A paciência, o fazer tudo com muita constância e o temor de Deus curam o aborrecimento.
Dispõe para ti mesmo uma justa medida em cada atividade e não desistas antes de tê-la
concluído; reza prudentemente e com força, e o espírito de aborrecimento se afastará de ti.
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Nota:
13. Na tradição dos monges do deserto, o abandonar a cela era uma das principais tentações
do aborrecimento. Visitar doentes era, portanto, a maneira de encobrir sob o manto da
caridade o desejo de sair da solidão.
VII. A Vanglória (14)
Capítulo 15
A vanglória é uma paixão irracional que facilmente se enraíza em todas as obras virtuosas.
Um desenho traçado na água desaparece tal como a fadiga da virtude na alma vangloriosa.
A mão escondida no bolso apresenta-se inocente e a ação que permanece oculta
resplandece com uma luz mais brilhante.
A hera adere à árvore e, quando chega ao ponto mais alto, seca-lhe a raiz; assim, a
vanglória se origina nas virtudes e não se afasta enquanto não lhes tiver consumido as
forças.
O cacho de uvas caído sobre a terra murcha facilmente e a virtude, se apoiada na vanglória,
perece.
O monge vanglorioso é um trabalhador sem salário: esforça-se no trabalho, porém, não
recebe qualquer pagamento; o bolso furado não guarda com segurança o que nele é
colocado e a vanglória destrói a recompensa das virtudes.
A moderação do vanglorioso é como a fumaça na estrada: ambas desaparecem no ar.
O vento apaga a pegada do homem tal como a esmola do vanglorioso. A pedra lançada ao
ar não atinge o céu e a oração de quem deseja comprazer aos homens não chega a Deus.
Capítulo 16
13. A vanglória é um obstáculo submerso: se chocas contra ele, corres o risco de perder a
carga.
O homem prudente esconde seu tesouro tanto como o monge sábio [esconde] as fadigas da
sua virtude.
A vanglória aconselha rezar nas praças, enquanto que quem a combate reza em sua pequena
habitação.
O homem pouco prudente torna evidente a sua riqueza e faz com que muitos a queiram
tomar para si. Tu, ao contrário, esconde as tuas coisas: durante o caminho, encontrarás
assaltantes, mas, ao chegardes à cidade da paz, poderás usar dos teus bens tranqüilamente.
A virtude do vanglorioso é um sacrifício extenuante, que não é oferecido no altar de Deus.
O aborrecimento consome o vigor da alma, enquanto que a vanglória fortalece a mente
daquele que se esquece de Deus, torna robusto o fraco e torna o velho mais forte que o
jovem, mas somente enquanto sejam muitas as testemunhas que os assistem. Então serão
inúteis o jejum, a vigília, ou a oração, porque é apenas a aprovação pública que excita o seu
zêlo.
Não mostres tuas fadigas para colher a fama, nem renuncies a glória futura para seres
aclamado. Com efeito, a glória humana habita na terra e na terra extingue-se a tua fama,
enquanto que a glória das virtudes permanecem para sempre.
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Nota:
14. O termo Kenodoxía deriva de kenós "vazio, vão" e dóxa, "opinião": uma imagem de si
que se projeta aos demais com base em valores inexistentes ou insignificantes por sua
trivialidade.
VIII. A Soberba (15)
Capítulo 17
A soberba é um tumor da alma, cheio de pus. Se maduro, explodirá, emanando terrível
fedor.
O resplandor do relâmpago anuncia o estrondo do trovão e a presença da vanglória anuncia
a soberba.
A alma do soberbo alcança grandes altitudes e, daí, cai no abismo.
Sofre de soberba o apóstata de Deus, quando atribui às suas próprias capacidades as coisas
bem sucedidas.
14. Como aquele que cai numa teia de aranha [e aí fica preso], assim cai aquele que se apóia
nas suas próprias capacidades.
A abundância de frutos dobra os ramos da árvore; a abundância de virtudes humilha a
mente do homem.
O fruto caído na terra é inútil para o lavrador e a virtude do soberbo não é aceita por Deus.
A cana sustenta o ramo carregado de frutos e o temor de Deus [sustenta] a alma virtuosa.
Como o peso dos frutos quebra o ramo, também a soberba abate a alma virtuosa.
Não entregues tua alma à soberba e não terás fantasias terríveis. A alma do soberbo é
abandonada por Deus e se converte em objeto de maligna alegria dos demônios. À noite,
imagina manadas de bestas que o assaltam e, durante o dia, vê-se alterado por pensamentos
vis. Quando dorme, facilmente se sobressalta e, quando vela, se assusta com a sombra de
um pássaro. O sussurar das copas das árvores aterroriza o soberbo e o som da água destroça
a sua alma. Aquele que efetivamente tem se oposto a Deus, rejeitando sua ajuda, vê-se
depois assustado por vulgares fantasmas.
Capítulo 18
A soberba precipitou o arcanjo do céu (=Lúcifer) e, como um raio, o fez espatifar-se [junto
com outros] sobre a terra.
A humildade, ao contrário, conduz o homem para o céu e o prepara para fazer parte do côro
dos anjos.
"De que te orgulhas, ó homem, quando por natureza sois barro e pó e por que te elevas
sobre as nuvens?
Contempla tua natureza, porque sois terra e cinza, e em breve voltarás ao pó, agora soberbo
e, dentro de pouco, verme.
Para que elevas a cabeça que daqui a pouco cairá por terra?"
Grande é o homem socorrido por Deus; uma vez abandonado, reconheceu a debilidade da
natureza. Não possuís nada que não tenhas recebido de Deus; não desprezes, portanto, o
Criador.
Deus te socorre; não rejeites ao Benfeitor. Chegaste ao topo da tua condição, porém, Ele te
tem guiado; tens agido retamente, segundo a virtude, e Ele te tem conduzido. Glorifica a
quem te elevou, para permanecerdes seguro nas alturas; reconhece Aquele que tem a
mesma origem que a tua, porque a substância é a mesma e não rejeites, por jactância, este
parentesco.
15. Capítulo 19
Humilde e moderado é aquele que reconhece este parentesco; porém, o Criador (16) fez
tanto a Ele como o soberbo.
Não desprezes o humilde: efetivamente ele está mais seguro que tu, caminha sobre a terra e
não se precipita; porém, aquele que se eleva mais para o alto, quando cai se espatifa.
O monge soberbo é como uma árvore sem raízes e não suporta o ímpeto do vento.
Uma mente sem jactância é como uma cidade bem fortificada e quem a habita será
incapturável.
Um sopro arrasta a pena e o insulto leva o soberbo à loucura.
Uma bolha [de sabão] levada pelo vento desaparece e a memória do soberbo perece.
A palavra do humilde adoça a alma, enquanto que a do soberbo está cheia de jactância.
Deus acolhe a oração do humilde; ao contrário, se exaspera com a súplica do soberbo.
A humildade é a coroa da casa e mantém seguro quem ali entra.
Quando te elevares ao topo da virtude, precisarás de muita segurança. Aquele que
efetivamente cai, rapidamente se recupera; porém, aquele que se atira de grandes alturas,
corre risco de morte.
A pedra preciosa brilha no bracelete de ouro e a humildade humana resplandece nas muitas
virtudes.
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Notas:
15. O termo Hyperephanía provém do superlativo hypér e phaíno, "o que aparece": aquele
que aparece como mais do que é, arrogância, orgulho.
16. Evágrio emprega o termo Demioyrgós que, na tradução grega, equivale ao trabalhador
manual ou a divindade que criava o mundo a partir de uma matéria pré-existente. Parece
que aqui é usado no sentido de "Deus Criador", embora esta acepção não seja totalmente
clara.