1. EXERCÍCIOS DE PERFEIÇÃO
e
Virtudes Cristãs
Pelo
V. P. Afonso Rodrigues
da Companhia de Jesus
Traduzido do original espanhol por
Fr. Pedro de Santa Clara
1ª Edição
PRIMEIRA PARTE
TOMO I
2009
Editora Pinus
Brasília
3. ÍNDICE
Apresentação ................................................................................................... 07
Aos religiosos da Companhia de Jesus ................................................. 11
Primeira Parte
De vários meios para alcançar a virtude e a perfeição
TOMO I
Tratado Primeiro
Da estimação, do desejo e da afeição que havemos de ter ao que toca a nosso
aproveitamento espiritual, e de algumas coisas que nos ajudam para consegui-lo.
Capítulo I – Do apreço e da estimação que havemos de fazer das coisas espirituais ..... 15
Capítulo II – Da afeição e do desejo que havemos de ter da virtude e da perfeição .... 22
Capítulo III – Que o ter grande desejo de nosso aproveitamento é um meio muito
principal e uma grande disposição para que o Senhor nos faça mercês ..................... 27
Capítulo IV – Em quanto cada um mais se entrega às coisas espirituais, mais fome e
desejo tem delas ...................................................................................................... 31
Capítulo V – Que é grande sinal de estarmos em graça de Deus andarmos com desejo
de crescer e adiantar em nosso aproveitamento ........................................................ 34
Capítulo VI – No qual se declara como não ir por diante é tornar atrás .............. 36
Capítulo VII – Que ajuda muito para alcançar a perfeição esquecer-se cada um do
bem passado e pôr os olhos no que lhe falta ............................................................ 41
Capítulo VIII – Que ajuda muito para alcançar a perfeição pôr os olhos em coisas
elevadas e sublimes .................................................................................................. 46
Capítulo IX – Quanto importa fazer caso das coisas pequenas e não as desprezar ... 53
Capítulo X – De outra razão particular que nos obriga a fazer caso de coisas pequenas .. 56
Capítulo XI – Que não havemos de tomar o negócio de nosso aproveitamento em
geral, mas em particular; e quanto importa ir pondo em execução os bons propósitos e
desejos que o Senhor nos dá ................................................................................... 60
Capítulo XII – Que nos ajudará muito para alcançar a perfeição não cometer faltas de
propósito nem afrouxar no fervor ............................................................................ 64
Capítulo XIII – De outros três meios que nos ajudarão para nos adiantarmos na
virtude ............................................................................................................... 66
Capítulo XIV – Que nos ajudará muito portarmo-nos sempre como no primeiro dia
em que entramos na Religião ................................................................................. 69
4. Capítulo XV – Que ajudará muito perguntar cada um a si mesmo: a que vieste à
Religião? ................................................................................................................ 73
Capítulo XVI – De algumas outras coisas que nos ajudarão para adiantarmos em nosso
aproveitamento e alcançar a perfeição ...................................................................... 78
Capítulo XVII – Da perseverança que havemos de ter na virtude, e o que nos ajudará
para podermos alcançá-la ........................................................................................ 82
Capítulo XVIII – De outro meio para aproveitar na virtude, que são as exortações e
práticas espirituais, e como nos aproveitaremos delas ................................................ 85
Tratado Segundo
Da perfeição das obras ordinárias
Capítulo I – Que o nosso aproveitamento e a nossa perfeição consistem em fazer obras
ordinárias bem feitas ............................................................................................... 93
Capítulo II – Que nos há de animar muito à perfeição o tê-la posto Deus em coisa
tão fácil ................................................................................................................... 96
Capítulo III – Em que consiste a perfeição de nossas obras, e de alguns meios para as
fazer sem faltas ........................................................................................................ 98
Capítulo IV – De outro meio para fazer as coisas com perfeição, que é fazê-las como
se não tivéramos outra coisa que fazer ................................................................... 102
Capítulo V – De outro meio, que é fazer cada obra como se fosse a última da nossa
vida ...................................................................................................................... 104
Capítulo VI – De outro meio para obrar com perfeição, que é não fazer conta mais
que do dia de hoje ................................................................................................ 108
Capítulo VII – De outro meio, que é acostumar-se cada um a obrar com perfeição ..... 111
Capítulo VIII – Quanto importa ao religioso não afrouxar no caminho da virtude ..... 114
Capítulo IX – Quanto importa aos noviços aproveitarem-se do tempo do noviciado e
acostumarem-se nele a fazer os exercícios da Religião bem feitos .......................... 116
Tratado Terceiro
Da retidão e pureza de intenção que havemos de ter nas obras
Capítulo I – Que devemos em nossas obras fugir do vício da vanglória ............. 123
Capítulo II – Em que consiste a malícia deste vício da vanglória ....................... 125
Capítulo III – Do dano que traz consigo a vanglória ........................................ 127
Capítulo IV – Que a tentação da vanglória não é só dos que começam, mas também
dos que vão adiante na virtude. ............................................................................. 130
5. Capítulo V – Da necessidade particular que temos de nos guardar deste vício da
vanglória, principalmente os que temos ofício de ajudar aos próximos ................... 132
Capítulo VI – De alguns remédios contra a vanglória ....................................... 134
Capítulo VII – Do fim e da boa intenção que havemos de ter nas nossas obras ..... 139
Capítulo VIII – Declara-se como fazemos as boas obras com grande retidão e pureza
de intenção ........................................................................................................... 141
Capítulo IX – A causa de nos acharmos muitas vezes distraídos e pouco aproveitados
não são as ocupações exteriores, mas o não as fazermos como devemos ................. 143
Capítulo X – Do bem e grande proveito que se segue de fazer as obras na forma que
temos dito ............................................................................................................ 145
Capítulo XI – Declara-se mais a retidão e pureza de intenção que havemos de ter em
todas as nossas obras .............................................................................................. 149
Capítulo XII – De alguns sinais para conhecer quando cada um faz as suas obras
puramente por amor a Deus, e quando nelas se busca a si próprio .......................... 153
Capítulo XIII – Como havemos de ir crescendo e subindo na retidão e pureza de
intenção ............................................................................................................... 156
Capítulo XIV – Três graus de perfeição pelos quais podemos ir subindo à grande
pureza de intenção e ao grande e perfeito amor de Deus ....................................... 161
Tratado Quarto
Da união e caridade fraterna
Capítulo I – Do valor e da excelência da caridade e da união fraterna ............... 167
Capítulo II – Da necessidade que temos dessa união e caridade, e de alguns meios para
nos conservarmos nela .......................................................................................... 173
Capítulo III – De algumas razões tiradas da Sagrada Escritura que nos obrigam a ter
caridade e união com os nossos irmãos .................................................................. 181
Capítulo IV – De que modo há de ser a união que havemos de ter com os nossos
irmãos .................................................................................................................. 184
Capítulo V – Começa-se a declarar em particular que coisas nos pede a união e
caridade fraterna e o que nos ajudará para a conservarmos ..................................... 187
Capítulo VI – De outras duas coisas que nos pedem a caridade e união ............. 191
Capítulo VII – De outra coisa que nos pede a caridade e que nos ajudará a conservá-
la, e é ter e mostrar muita estima de nossos irmãos e falar sempre bem deles .......... 194
Capítulo VIII – Devemos acautelar-nos muito de dizer a outrem: “Fulano disse isto
de vós”, sendo coisa que o possa desgostar ............................................................. 196
Capítulo IX – As palavras boas e brandas ajudam muito a conservar a união e a
caridade, e as desabridas lhes são contrárias ............................................................ 199
6. Capítulo X – Devemos acautelar-nos muito de palavras picantes que possam molestar
ou desgostar a nossos irmãos ................................................................................. 201
Capítulo XI – Devemos acautelar-nos de teimar, contradizer, repreender e fazer outras
coisas semelhantes ................................................................................................. 203
Capítulo XII – Do bom modo e das boas palavras com que se hão de exercitar as obras
de caridade ........................................................................................................... 207
Capítulo XIII – Como nos devemos haver quando houver algum encontro ou
desgosto com nosso irmão .................................................................................... 209
Capítulo XIV – De três avisos que havemos de guardar quando outrem nos der
ocasião de desgosto ............................................................................................... 213
Capítulo XV – Dos juízos temerários. Declara-se em que consiste sua malícia e
gravidade .............................................................................................................. 217
Capítulo XVI – Das causas e origens de onde procedem os juízos temerários e de seus
remédios ............................................................................................................... 220
Capítulo XVII – Confirma-se o que fica dito com alguns exemplos ................. 226
Capítulo XVIII – De alguns modos de união e amizades nocivas ...................... 231
Capítulo XIX – Do segundo modo de amizades e ajuntamentos nocivos .......... 233
Capítulo XX – Do terceiro modo de união particular muito prejudicial à Religião ..... 237
7. Pe. Afonso Rodrigues
Apresentação
“O Reino dos Céus é também semelhante a um homem nego-
ciante, que busca boas pérolas. E, tendo encontrado uma de grande
preço, vai, e vende tudo o que tem, e a compra” (Mt. XIII, 45-46).
Essa parábola de Nosso Senhor Jesus Cristo, ainda que obviamente
contenha outros significados primários, poderia também se aplicar,
ousamos afirmá-lo, ao livro que o leitor tem agora em mãos: quem,
direcionando a inteligência às verdades aqui tratadas e aplicando a
vontade para colocá-las em prática, certamente encontrará o Reino
dos Céus. Isso dizemos não com base em nosso simples juízo parti-
cular, mas apoiados no julgamento da Santa Igreja sobre este livro ao
longo dos anos, como mostraremos.
Afonso Rodrigues (Alonso Rodríguez)1 nasceu em Abril de 1538,
provavelmente no dia 152. Estudou cinco anos de gramática e três de
filosofia em Valladolid, e depois dois anos de teologia em Salamanca.
Fez voto de se tornar religioso e, muito provavelmente por causa dos
sermões de um padre jesuíta, resolveu entrar na Companhia de Jesus.
Em seu interrogatório de admissão ao noviciado, disse que, na vida
secular, “era devoto e inclinado a rezar e dar esmola”, mas que não
freqüentava (assiduamente) os Sacramentos, nem entendia de oração.
A sua piedade o fez ascender rapidamente, e em 1564 já era “mestre
de noviços e confessor”, dois ofícios nos quais se especializou, principal-
mente no primeiro. Tendo sido enviado para a Província da Andaluzia,
o Pe. Gil González, Provincial da Andaluzia, escreveu ao Superior dos
Jesuítas, Pe. Aquaviva que o maior bem que ele fez à sua província, e o
remédio mais salutar que lhe deu, foi o “haver trazido de lá o Pe. Afonso
Rodrigues”, de quem se dizia que “nasceu para criar pessoas em espí-
rito e devoção”.
Depois de algumas missões diversas, foi enviado para Córdoba,
onde “ordenou os três tomos das Virtudes [Exercícios de Perfeição e
Virtudes Cristãs]”. Em 1607, foi enviado para Sevilha, onde foi Mes-
1
Não confundir com Santo Afonso Rodrigues (1532-1617), irmão coadjutor da Companhia
de Jesus.
2
Essas informações e as que seguem, acerca da vida do Pe. Rodrigues, encontram-se no
artigo Tercer Centenário de la muerte del P. Alonso Rodríguez, Revista Razón y Fé, tomo 44, p.
141 e ss. Dele traduziremos livremente alguns trechos desta Apresentação.
7
8. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
tre de noviços, vindo a falecer em 1616, com a recepção dos últimos
sacramentos, inteireza de sentidos e tão grande sossego, “que mais pa-
recia estar dormindo do que morto”.
E morto não estava! “Eu sou a ressurreição e a vida; o que crê em
mim, ainda que esteja morto, viverá” (Jo, XI, 25). Vivia por meio da
perpetuação de sua obra espiritual, pois seu espírito foi retratado em
seus próprios escritos e práticas espirituais: “sua mais perfeita imagem,
escreveu o P. Antonio Solis, são suas obras impressas, em que se retratou
a si mesmo”.Vive ainda, portanto, pela verdade e pela virtude que trans-
mitiu a tantos homens com seus escritos, mesmo depois de sua morte.
É tal a devoção presente nos escritos do Pe. Rodrigues, que estes
conheceram um grande número de edições: 25 em espanhol, mais
de 60 em francês (em sete diferentes traduções), 20 em italiano, pelo
menos 10 em alemão e 8 em latim3. Ao todo, seu livro foi traduzido
em pelo menos 22 línguas, um atestado de sua grande aceitação en-
tre os fiéis como um instrumento efetivo para a prática de virtude. A
presente publicação, cuja tradução, bastante antiga, é de Fr. Pedro de
Santa Clara, foi composta com base na 3ª edição do livro publicada
pela editora portuguesa União Gráfica, em 1927; em alguns (poucos)
casos obscuros, cotejou-se a tradução com o original.
A importância deste livro, ademais, pode também ser medida pelas
recomendações que a ele deram os Santos, que nele colocaram um
selo de aprovação sobrenatural.
Santo Antônio Maria Claret nos diz, em sua Autobiografia, depois
de pregar os Exercícios Espirituais em 1862, que um dos propósitos
que se propunha a guardar era fazer a leitura espiritual com o texto do
Pe. Rodrigues.Várias vezes, ao longo de seu texto, Santo Antônio Ma-
ria Claret menciona o Pe. Rodrigues, direta ou indiretamente. A tal
ponto, de fato, os Exercícios de Perfeição do Pe. Rodrigues influen-
ciaram o santo, que ele chega a transcrever o texto do Pe. Rodrigues
praticamente ipsis litteris em algumas ocasiões, como quando fala da
importância dos livros espirituais.
Outro santo que o menciona expressamente é Santo Afonso Ma-
ria de Ligório; no seu livro “A Selva”, recomenda os Exercícios de
3
Informações essas contidas no verbete “Alonso Rodriguez” da Catholic Encyclopedia, que
pode ser consultada em www.newadvent.org.
8
9. Pe. Afonso Rodrigues
Perfeição do Pe. Rodrigues para a meia hora de leitura espiritual do
sacerdote, afirmando que é um livro cheio de piedade e unção.
Também o parecer dos teólogos que tratam sobre ascética cristã
é concorde com o dos santos. O Pe. Adolphe Tanquerey, conhecido
por seu domínio não só da seara das teologias dogmática e moral, mas
também da espiritualidade, afirma que a obra do Pe. Rodrigues é ex-
celente, ressaltando, sobretudo, sua praticidade. O Pe. A. Royo Marín,
que escreveu um importante livro acerca da perfeição cristã, também
enaltece o livro do Pe. Rodrigues.
Por fim, de tal maneira este livro do Pe. Rodrigues merece enalte-
cimento, que sua obra foi referenciada pelo Papa Pio XI, na Encíclica
Unigenitus Dei, que discorre sobre os critérios que devem inspirar a
formação do clero regular. Nela se diz:
“Leiam-se e considerem-se os utilíssimos escritos de S. Bernardo, do
Seráfico Doutor S. Boaventura, de Afonso Rodrigues e dos que, em
cada família religiosa, brilharam na arte de dirigir almas, cujo valor e
eficácia, longe de se perderem ou debilitarem com os anos, parecem hoje
ainda mais encarecidos”.4
O elenco de escritores que precedem a menção ao Pe. Rodrigues
dão uma noção da grandeza de sua obra.
E, de fato, não é de espantar que sua obra tenha alcançado posição
tão elevada nos conceitos eclesiásticos. Um rápido lançar de olhos
aos temas por ela tratados, e à forma como são abordados, confirma
que o livro é uma fonte de tesouros sobrenaturais como poucos o
são: “O Reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido num
campo, o qual, quando um homem o acha, esconde-o, e pelo gosto
que sente de o achar, vai, vende tudo o que tem, e compra aquele
campo” (Mat. XIII, 44).
Quanto aos temas abordados na primeira parte da5 obra, que trata
de vários meios para alcançar a virtude, podemos citar os seguintes:
a estima e o desejo de nosso crescimento espiritual, o cumprimento
exato dos deveres comuns, ao que ele confere bastante importância
(aproximando-se de Santa Teresinha do Menino Jesus e antecipan-
do-a, por assim de dizer), a retidão de intenção, caridade fraterna,
4
Acta Ap. Sedis, vol. XVI, pág. 142. Cf. Introdução ao livro publicado pela editora União
Gráfica, em 1927.
5
Cada parte, na edição brasileira, se divide em 2 tomos.
9
10. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
oração, presença de Deus, exame de consciência e conformidade com
a vontade de Deus.
Na segunda parte, trata da mortificação, modéstia, silêncio, humil-
dade, guerra contra as tentações e amor desordenado aos parentes,
alegria e tristeza e os tesouros que a Santa Missa encerra.
Por fim, na última parte, discorre acerca de algumas virtudes pró-
prias do estado religioso, tais como a finalidade da Companhia de
Jesus, os votos, em geral e em particular, a necessidade de observância
precisa das regras, consciência e correção fraterna.
No tratamento de matérias tão importantes quanto difíceis, o Pe.
Rodrigues prima pela clareza na explicitação dos conceitos, e adicio-
na grande riqueza às explicações com o uso de comparações simples e
familiares, mas sempre apropriadas, trazendo, por fim, exemplos edifi-
cantes e instrutivos, muitos relacionados às vidas dos padres do deserto
e dos santos, nas quais vemos o Evangelho prático.
Temos, portanto, a grande satisfação de, pela graça de Deus e de
Nossa Senhora, trazer novamente ao público brasileiro esse tesouro
de graças, rogando a Deus que, ao colocar em prática a doutrina aqui
exposta, por meio da dedicação assídua à oração mental, possamos
crescer no amor a Ele e sua Mãe Santíssima, até a consumação de
nossos dias.
Que, fiéis à Sua graça, possamos continuar firmes e ardentes na
propagação da verdadeira doutrina.
O Editor.
10
11. Pe. Afonso Rodrigues
Aos religiosos da companhia de Jesus
A quem lhe pedia escrevesse para certo mosteiro de monges alguns
avisos e conselhos espirituais, responde, escusando-se na carta 27 do
livro 6º do registro, o bem-aventurado S. Gregório: “Os religiosos que,
pela graça da compunção e oração, têm em si a fonte da sabedoria,
não necessitam de ser orvalhados com as minguadas correntes da nossa
secura. Como no Paraíso terreal não houve chuva, nem era necessá-
ria, porque uma fonte que do meio dele saia o regava copiosamen-
te, conservando-o verdejante, fresco e aprazível, assim o religioso que
está no Paraíso da Religião, e que alimenta em si a fonte da oração e
da compunção, não tem necessidade de ser por nós rociado, porque
ela basta para conservar sempre em sua alma o frescor e a formosu-
ra das virtudes”. Com maior razão me pudera eu escusar com Vossas
Reverências a quem o Senhor fez mercê de plantar neste paraíso da
Companhia de Jesus, e fecundar com a oração mental, que temos cada
dia em conformidade com as nossas Regras e Instituto, a qual S. João
Crisóstomo, num tratado que fez da oração, compara à fonte levantada
em meio dum jardim, que o conserva sempre pujante e vistoso. Mas
isso sucederia se eu pensasse dizer coisas que Vossas Reverências não
soubessem nem praticassem todos os dias. Porém, nesta obra, não tenho
em vista mais que refrescar, e trazer à memória o que todos mui bem
sabem e exercitam, em conformidade com o que nosso padre nos diz
nas Constituições; que para isso quer haja alguém que semanalmente,
ou ao menos de quinze em quinze dias, em práticas espirituais e exor-
tações públicas, nos exponha essas e outras coisas semelhantes, para que,
pela condição de nossa frágil natureza, nos não fujam da memória, e
assim cesse a execução delas; costume que pela bondade do Senhor
se exercita e pratica na Companhia, com não pequeno fruto dos que
nela vivem. E porque, ainda que com muita confusão minha, me exer-
citei neste ofício, por ordem da obediência, mais de quarenta anos, já
com os noviços, já com os antigos, juntando e recolhendo muitas coisas
tocantes a isso, pareceu a meu Superiores e a muitas outras pessoas a
quem devo respeito, que serviria a Deus Nosso Senhor e à Companhia,
limando e ordenando estes trabalhos, para que, assim, o fruto possa ser
mais universal, durável e perpétuo. Nesta obra imito o seráfico Doutor
11
12. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
S. Boaventura, que procedeu do mesmo modo, como ele mesmo diz no
prólogo dos seus livros, De profectu Religiosorum.
Também adverti que nas ditas Constituições acrescenta nosso Padre:
“Vel illi haec legere teneantur.” Haja quem dessas coisas faça lembrança,
ou eles sejam obrigados a lê-las. Muito contribuiu para encetar este
trabalho saber que também nós temos de regra, na Companhia, o
exercício tão proveitoso e recomendado pelos santos, de fazer todos os
dias leitura espiritual, para nosso aproveitamento. A isso ordeno princi-
palmente este livro, pondo diante dos olhos, com a possível clareza, as
coisas mais substanciais, práticas e ordinárias, em que, segundo a nossa
profissão e Instituto, nos havemos de exercitar, para que nos sirvam de
espelho, em que cada dia nos vejamos, fugindo do mal e imperfeito
que condena, e adornando as nossas almas com o bem e perfeito que
aconselha, para que assim agrademos mais à Divina Majestade.
E ainda que nisso o meu principal intento foi servir a meus Pa-
dres e Irmãos em Cristo caríssimos, a quem por muitos títulos tenho
particular obrigação, contudo, como a caridade se há de estender
quanto puder ser, o que é muito próprio do nosso Instituto, procu-
rei dispor esta obra de sorte que não só fosse proveitosa para nós e
para os demais religiosos, mas também para todos os que tratam de
virtude e perfeição.
Assim corresponde a obra ao título genérico “Exercícios de perfei-
ção e virtudes cristãs”. Chamam-se “Exercícios” porque se tratam as
coisas muito praticamente, para que assim melhor se possam pôr em
execução. Dividem-se em três partes, contendo cada uma oito tra-
tados. As citações põem-se em latim, porque, para os que entendem,
poderá ser muito proveitoso pela força e eficácia que têm as coisas
tomadas na sua fonte, principalmente sendo esta a Sagrada Escritura.
Para os que não entendem latim, não será impedimento, porque se
põem também em vernáculo; e para que nada os embarace, e o pos-
sam mais facilmente omitir, vai o latim com letra diferente.
Espero no Senhor que não será baldado o nosso trabalho, mas que
essa semente da palavra de Deus, lançada em tão boa terra, como é a
dos corações desejosos de alcançar a perfeição, há de produzir fruto
não só melhor de trinta, mas de sessenta e até de cem por um.
Afonso Rodrigues
12
15. Pe. Afonso Rodrigues
Tratado Primeiro
Da estimação, do desejo e da afeição que havemos de ter ao que
toca a nosso aproveitamento espiritual, e de algumas coisas que nos
ajudam para consegui-lo.
Capítulo I
Do apreço e da estimação que havemos de fazer das coisas espirituais.
No capítulo sétimo do livro da Sabedoria, diz o Sábio:6 Desejei a
inteligência e ela me foi dada; evoquei a Deus, e veio a mim o espírito da
sabedoria, e a preferi aos reinos e aos tronos e julguei que as riquezas nada
valiam em sua comparação; nem pus em paralelo com ela as pedras preciosas;
porque todo o ouro em sua comparação é uma pouca de areia, e a prata é
como lodo à sua vista. A verdadeira sabedoria, em que havemos de pôr
os olhos, é a perfeição, que consiste em nos unirmos com Deus por
amor, conforme aquilo do Apóstolo:7 Sobre todas as coisas, porém, tende
caridade, que é vínculo da perfeição, e nos ajunta e une com Deus; porque
a estimação, que Salomão aqui diz fez da sabedoria, essa havemos nós
de fazer da perfeição e de tudo o que conduz a ela; em sua compara-
ção tudo nos há de parecer uma pouca de areia, um pouco de lodo e
imundice, como diz o mesmo Apóstolo:8 Tudo avalio por imundice para
ganhar a Cristo.
Este é um meio mui particular para alcançar a perfeição, porque
quanto crescer em nosso coração a sua estima tanto progredirá o nosso
aproveitamento, toda a casa e toda a Religião. A razão disso é,porque à
estimação que fazemos de uma coisa, equivale o desejo que temos de
possuí-la. A vontade é potência cega; vai atrás do que lhe dita e propõe
o entendimento; e segundo a estimação e o apreço em que ele tem as
coisas, assim é a vontade e o desejo de alcançá-las; e como a vontade é
6
Propter hoc optavi, et datus est mihi sensus, et invocavi, et venit in me spiritus sapientiæ; et
præposui illam regnis, et sedibus, et divitias nihil esse duxi in conparatione illius; nec conparavi
illi lapidem pretiosum, quoniam omne aurum in conparatione illius harena est exigua, et
tanquam lutum æstimabitur argentum in conspectu illius. Sap.,VII, 7.
7
Super ominia autem haec, caritatem quod est vinculum perfectionis. Col., III, 14.
8
Omnia detrimentum feci et arbitror ut stercora ut Christum lucri faciam. Phil., III, 8.
15
16. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
rainha, que manda a todas as demais potências e forças interiores e ex-
teriores da alma, quanto ela estiver mais decidida e mais ardente for o
desejo que tem de uma coisa, com tanto maior eficácia porá os meios
e fará todas as diligências para alcançá-la. E assim importa muito que a
estimação e o apreço das coisas espirituais e do que pertence o nosso
aproveitamento seja grande, para que também seja grande a diligên-
cia em procurá-lo e consegui-lo, porque todas essas coisas costumam
correr igual paralelo.
O que contrata em pedras preciosas, é necessário que conheça e
estime seu valor, sob pena de ser enganado; porque se não as conhe-
ce, nem as sabe estimar, trocará e venderá alguma pedra de grande
preço por coisa de mui pouco valor. Nosso contrato é em pedras
preciosas:9 É semelhante o Reino dos Céus a um negociante que procura boas
pérolas. Somos negociadores do Reinos dos Céus: é necessário que
conheçamos e estimemos o preço e o valor da mercadoria em que
contratamos, para que não sejamos enganados, trocando o ouro pelo
lodo e o céu pela terra, que seria enorme engano: e assim diz o pro-
feta Jeremias:10 Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem o forte em sua
fortaleza, nem o rico em suas riquezas, mas só nisto se glorie o que se quiser
gloriar em saber-me e reconhecer-me a mim. Este é o maior dos tesouros,
conhecer, amar, e servir a Deus: esse é o maior negócio que podemos
ter: antes não temos outro, porque para ele fomos criados e para isso
vimos à religião: esse é nosso fim, e esse há de ser o nosso paradeiro,
nosso descanso e nossa glória.
Essa estimação, pois, e esse apreço da perfeição e das coisas espirituais
a ela pertencentes, quisera se imprimissem mui deveras nos corações de
todos e especialmente nos dos religiosos, e que uns a outros nos ajudás-
semos e incitássemos a cultivá-las não somente com palavras, tratando
muitas vezes disso em nossas práticas em convenções ordinárias, senão
muito mais com o exemplo de nossas obras. Nelas vejam o principiante
e o proficiente e todos que só das coisas espirituais se faz caso na Reli-
gião, e que cada um seja muito humilde, muito obediente, muito dado
9
Iterum simile est regnum cælorum homini negotiatori quærenti bonas margaritas. Matth.,
XIII, 45.
10
Hæc dicit Dominus non glorietur sapiens in sapientia sua, et non glorietur fortis in
fortitudine sua, et non glorietur dives in divitiis suis; sed in hoc glorietur qui gloriatur, scire,
et nosse me. Ier., IX, 23-24.
16
17. Pe. Afonso Rodrigues
ao recolhimento e à oração: não de que seja muito letrado, nem grande
pregador, nem dotado de outros dons naturais e humanos, como no-lo
diz nosso bem-aventurado Padre Inácio nas Constituições11. E desde o
principio é necessário que entendam todos isso, e se vão criando com
este leite, para que desde logo ponha cada um os olhos e o coração
não em sair grande letrado ou excelente pregador, senão em sair muito
humilde e muito mortificado, vendo que isso é o que cá se estima, e
do que se faz muito caso, e que isso é finalmente o que prezam os que
caem em si desenganados, e que estes são os queridos e estimados de
todos. Não queremos dizer que nos havemos de dar à virtude para ser-
mos queridos e estimados, senão que vendo que isso é o que se estima,
e do que se faz mais caso na Religião, caia cada um na conta, e diga:
Sem dúvida isso é o melhor, isso é o que me convém, por esse caminho
irei acertado: quero dar-me à virtude e tratar deveras do meu aprovei-
tamento, que tudo o mais sem essas coisas é vaidade.
Daqui se entenderá quanto dano podem fazer os que em suas prá-
ticas e convenções só se ocupam de engenhos, habilidade, talentos, e
de qualificar e engrandecer a este e àquele; porque quando os mais
moços veem essas práticas nos mais velhos, imaginam que isso é o
que corre, e o que cá se estima, e que por essa via hão de medrar,
valer e ter estimação: e assim nessas coisas põem os olhos, e vai neles
crescendo o apreço e a estimação do que são letras, habilidades e en-
genho, e diminuindo o apreço e a estimação de tudo o que é virtude,
humildade e mortificação, e vão fazendo pouco caso dessas coisas em
comparação ao resto, atrevendo-se a faltar antes a essas virtudes que ao
demais; do que se segue que muitos dão em afrouxar, e o que é mais,
até em sair da Religião. Melhor fora que as conversas versassem sobre
quão importante e necessária é a virtude e a humildade, e quão pou-
co aproveitam sem ela as letras e habilidades, ou, para melhor dizer,
quanto danam; e não gerar e criar neles, com essas práticas, desejo de
honra e de luzir e serem tidos por bons engenhos e grandes talentos,
que costuma ser princípio de sua perdição.
Súrio, na vida de S. Fulgêncio abade, traz um bom exemplo a este
propósito. Diz que quando este santo prelado via que alguns dos seus
religiosos eram grandes trabalhadores, e que em todo o dia não paravam,
11
Const. P. X, § 2; Reg. 16 Summ.
17
18. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
servindo e ajudando a casa, mas notava, por outra parte, que nas coisas
espirituais não eram tão diligentes, e que na oração, leitura e recolhi-
mento espiritual punham menos cuidado, não os amava, nem estimava
muito, nem julgava que o merecessem. Porém, quando via algum muito
afeiçoado às coisas espirituais, muito cuidadoso de seu aproveitamento,
ainda que por outra parte não pudesse fazer nada em casa nem servir de
coisa alguma, por ser débil e doente, a esse, diz, amava particularmente e
estimava muito, e com razão. Porque que importa possuir grandes dotes
e talentos se não é obediente e sujeito, e o Superior não pode fazer dele
o que quer? Especialmente se porventura daí tira ocasião para tomar
alguma liberdade e querer isenções: melhor fora que nunca tivesse essas
habilidades e esses talentos. Se o Superior houvera de dar a Deus conta
de haver tido em sua casa gente muito bem afazendada e de grandes
dotes, bom seria; porém, não é isso o de que há de dar conta, senão
do cuidado,que teve de que seus súditos aproveitassem em espírito e
fossem cada dia crescendo na virtude, e que se empregassem em seus
ministérios e ofícios, segundo as forças e os talentos que o Senhor deu
a cada um, não perdendo por este respeito coisa alguma de seu aprovei-
tamento: e disso mesmo pedirá Deus conta ao súdito. Certamente (diz
aquele Santo), no dia do juízo nos não perguntarão o que lemos, mas o
que fizemos, nem se falámos bem, mas se honestamente vivemos12.
Mandou Cristo nosso Redentor seus discípulos a pregar, e diz o
sagrado Evangelho que voltaram muito contentes e satisfeitos13, di-
zendo: Senhor, fizemos maravilhas e milagres, e até mesmos demônios
se nos sujeitavam, e nos obedeciam em vosso nome. Respondeu-lhes
o Senhor do mundo: “Não ponhais o vosso contentamento e o vosso prazer
nas maravilhas que obrais e nos milagres que fazeis, ou na obediência que
vos têm os demônios , mas gozai-vos e alegrai-vos, porque vossos nomes estão
escritos no Céu”. Havemos de pôr todo o nosso contentamento e todo
o nosso prazer em adquirir e ganhar o Reino dos Céus, porque o de-
mais sem isso não nos aproveitará de coisa alguma:14 “Que aproveita ao
homem ganhar todo o mundo com detrimento da sua alma?”.
12
In hoc nolite gaudere, quia spiritus vobis subjiciuntur; gaudete autem, quod nomina vestra
scripta sunt in coelis; Kempis, De Imit Christi, I, 3.
13
Luc., X, 17.
14
Quid enim prodest homini si mundum universum lucretur, animæ vero suæ detrimentum
patiatur aut quam dabit homo commutationem pro anima sua. Matth., XVI. 26.
18
19. Pe. Afonso Rodrigues
Pois se isso dizemos, e o diz o mesmo Cristo das ocupações e mi-
nistérios espirituais de ganhar e converter almas, que nem por isso nos
havemos de esquecer de nós, porque de nada nos aproveitarão, ainda
que convertamos todo o mundo, que será das demais ocupações? Não
é razão que o religioso ande tão absorto e embebido nos estudos, nem
se deixe levar tanto das ocupações exteriores, que se esqueça de seu
próprio aproveitamento, de sua oração do exame de consciência, do
exercício da mortificação e penitência, e que o último lugar tenham as
coisas espirituais, e o pior tempo seja para elas, e que se alguma coisa
se houver de deixar, seja o exercício das virtudes, porque isso seria
viver sem espírito, e não como religioso.
Conta S. Doroteu15 que fizera enfermeiro a seu discípulo Dositeu,
o qual era muito diligente em seu oficio, tinha muito cuidado dos en-
fermos, as camas muito bem feitas, os aposentos mui bem arranjados, e
tudo mui limpo e asseado. Indo pois S. Doroteu a visitar a enfermaria,
disse-lhe Dositeu: Padre, a mim me vem um pensamento de vanglória,
o qual me diz: Como tens tudo perfeito! Como se agradará de ti teu
Superior! Porém, S. Doroteu lhe deu uma tal resposta, com que lhe
lançou do pensamento toda a vaidade. Muito serviçal te tens mostra-
do, ó Dositeu. Saíste muito bom enfermeiro e assaz diligente, porém
não saíste bom religioso. Procure, pois, cada um que não se possa dizer
isto dele: muito bom enfermeiro ou muito bom porteiro saíste, mas
não saíste bom religioso. Muito bom estudante ou letrado ou bom
pregador saíste, porém não bom religioso: porque não viemos cá para
isso, senão a ser bons religiosos. Isso é o que havemos de estimar, pro-
curar e ter sempre diante dos olhos: e todas as demais coisas havemos
de tomar como acessórias e como por acrescentamento a respeito do
nosso aproveitamento, conforme aquelas palavras de Cristo: 16 Buscai
em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará.
Daqueles padres do ermo lemos17 que, porque não podiam estar
sempre lendo, meditando e orando, se ocupavam, no tempo que lhes
sobejava, em fazer cestinhos e outras obras de mãos por não estarem
ociosos, e alguns deles no fim do ano punham o fogo a tudo o que
15
In Vita S. Dosithei.
16
Quærite autem primum regnum, et justitiam ejus, et omnia hæc adicientur vobis. Matth.,
VI, 33.
17
Cass., de abb Paul, lib. 10 cap. XIV.
19
20. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
tinham feito, porque dessas coisas não necessitavam para se sustentarem,
mas somente trabalhavam por ocupar o tempo e não estarem ociosos.
Assim nós, no que principalmente havemos de pôr os olhos, é em nosso
próprio aproveitamento; e os demais negócios e ocupações, ainda que
sejam com os próximos, os havemos de tomar como tomavam os santos
Padres a obra dos cestinhos, não para que por esta causa nos esqueçamos
de nós, nem para perder por seu respeito um ponto de perfeição.
Assim havemos de ir sempre neste fundamento, e tê-lo como pri-
meiro princípio: que os exercícios espirituais que tocam a nosso apro-
veitamento próprio, os havemos de pôr sempre em primeiro lugar,
não os deixando por nenhuma causa, porque eles são os que nos hão
de conservar e adiantar na virtude; e em esses faltando, logo se co-
nhecerá em nós a fraqueza. Assaz temos experiência que, quando não
andamos como devemos, sempre é porque afrouxamos nos exercícios
espirituais.18 O meu coração secou, porque me esqueci de comer o meu pão. Se
nos faltam o mantimento e o sustento da alma, claro está que havemos
de andar fracos e desmaiados; e assim nos encomenda isso muito nos-
so santo Padre, e disso nos avisa muitas vezes, como quando diz: “O
estudo, em que se hão de ocupar os que estão em provação e todos,
deve ser sobre o que toca à própria abnegação, e para crescer mais
na virtude e perfeição”.19 Em outro lugar, diz: Deem todos às coisas
espirituais seu tempo, e procurem devoção, quanta a divina graça lhes
comunicar. Em outro diz: Empreguem todos o tempo, que lhes for
assinado, na oração, meditação e leitura, com toda a diligência no Se-
nhor.20 E note-se aquela palavra com toda a diligência.
Daqui se pode vir no conhecimento que, por muitas ocupações que
qualquer tenha de obediência e de seu oficio, não é vontade dos Su-
periores que deixe seus exercícios espirituais ordinários; porque não
há Superior que queira que algum quebrante suas regras e regras tão
principais como estas: e assim ninguém intente corar e encobrir sua
imperfeição e negligência nos exercícios espirituais, com o véu e a capa
da obediência, dizendo: Não pude fazer oração ou exame, ou leitura
espiritual, porque me teve ocupado a obediência; não é a obediência
18
Ps., CI, 5.
19
Const. P III, c. 1. § 27 et Reg. 12 Summ.
20
Reg. 21 Summ. Reg. 1 Comm.
21
Bas. Serm. de renuntiat. sæculi.
20
21. Pe. Afonso Rodrigues
a que faz esse impedimento, mas sim descuido do particular e a pouca
afeição que ele tem às coisas espirituais. Diz S. Basílio21 que havemos de
procurar ser muito fiéis em dar a Deus os tempos que temos assinalados
para a oração e para nossos exercícios espirituais; e se alguma vez, por
alguma ocupação forçosa, não pudermos ter a oração ou o exame a seu
tempo, havemos de ficar com um tal desejo e uma tal fome de os suprir
e restaurar o mais depressa que pudermos, qual a que nos urge quando
nos falta a ração corporal do alimento, ou o sono necessário, por termos
gastado a noite com um enfermo ,confessando-o ou ajudando-o a bem
morrer; que esta logo a procuramos satisfazer, e para isso nos não falta
tempo. Essa é a vontade dos Superiores, quando a algum religioso ocu-
pam no tempo de seus exercícios espirituais, por assim ser algumas vezes
necessário; mas nem por isso querem quem os deixem, mas apenas os
dilatem, e os supram depois muito completamente, conforme aquilo do
Sábio22: Nada te impeça de orar sempre. Não diz: não impeças, mas: nada te
impeça ou estorve: não haja impedimento, nem estorvo, que te devirta
de teres sempre a tua oração; e para o bom religioso não o há nunca,
porque sempre acha tempo para a suprir e restaurar.
De S. Doroteu 23 se conta que, sendo hospedeiro e recolhendo-se
muito tarde, e levantando-se à noite muitas vezes para acomodar os
hóspedes, com tudo isso se levantava com os demais à sua oração, para
o que tinha pedido a um monge que o despertasse, porque o desper-
tador, sabendo a ocupação que ele tivera, não o fazia. E é de notar que
o santo não estava ainda de todo são de umas febres que o atormen-
taram. Bom desejo era esse de não faltar a seus exercícios espirituais e
não deixar-se ficar com qualquer moléstia, e andar depois todo o dia
desconcertado. Também se conta um santo velho que viu um anjo,
que incensava a todos os que tinham ido com cuidado à oração, e
também incensava os lugares desocupados dos que faltavam, impedi-
dos pela obediência; porém, não incensava os lugares daqueles que a
ela faltavam por negligência sua. Bom exemplo é esse para consolação
dos que, por ocupações da obediência, não podem acudir a seu tempo
com os demais aos exercícios espirituais, e para que procuremos não
faltar a eles por nosso descuido.
22
Non inpediaris operari semper. Eccle., XVIII, 22
23
Doroth., Sermo. seu Doctr. II in Biblioth. Patrum, tom. 3.
21
22. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
Capítulo II
Da afeição e do desejo que havemos de ter da virtude e da perfeição
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.24
Justiça, ainda que seja nome particular de uma das quatro virtudes car-
deais e distinta das outras, contudo também é nome comum de toda a
virtude e santidade. À boa e virtuosa vida chamamos justiça, e o santo
virtuoso, dizemos que é justo.25 A justiça dos bons os livrará, diz o Sábio.
Quer dizer: A santidade de sua vida os livrará; e assim se toma nesse
sentido em muitos lugares da Escritura.26 Se a vossa justiça não for maior
que a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus, diz Cristo,
nosso Redentor; e vale o mesmo que dizer: Se a vossa virtude, religião
e santidade não forem maiores. E da mesma sorte se entendem aquelas
palavras, que disse o mesmo Cristo a S. João Batista, quando o recusava
batizar: 27 Assim nos convém cumprir toda a justiça. Assim convém para dar
exemplo de obediência, humildade, e de toda a perfeição. Dessa sorte se
toma também nas palavras presentes. Diz, pois, Cristo, nosso Redentor:
Bem-aventurados os que têm desejo e afeição à virtude e à perfeição,
que têm fome e sede dela, porque esses serão fartos, e esses a alcançarão.
É esta uma das oito bem-aventuranças, que o mesmo Senhor nos ensi-
nou e pregou naquele admirável sermão do monte. Sobre essas palavras,
diz S. Jerônimo: Não basta qualquer desejo da virtude, e perfeição, mas
é necessário que tenhamos fome e sede dela, que possamos dizer com o
profeta: 28 Da mesma sorte que o cervo ferido e perseguido dos caçadores deseja
as fontes das águas, assim a minha alma vos deseja a Vós, meu Deus.
É essa uma coisa de tanta importância que, como principiámos a
dizer no capítulo passado, dela pende todo o nosso aproveitamento
espiritual: esse é o principio e o único meio para alcançar a perfeição,
conforme aquilo do Sábio: 29 O principio para alcançar a sabedoria (que é
24
Beati, qui esuriunt, et sitiunt justitiam quoniam ipsi saturabuntur. Matth.,V, 6.
25
Justitia rectorum liberabit eos. Prov., XI. 6
26
Dico enim vobis quia nisi abundaverit justitia vestra plus quam scribarum et Pharisæorum
non intrabitis in regnum cælorum. Matth.,V. 20.
27
Sic enim decet nos implere omnem justitiam. Matth., III, 15.
28
Quemadmodum desiderat cervus ad fontes aquarum, ita desiderat anima mea ad te, Deus.
Ps., XLI, 2.
29
Initium enim illius verissima est disciplinæ concupiscentia. Sap.,VI, 18.
22
23. Pe. Afonso Rodrigues
o conhecimento e amor de Deus, em que consiste a nossa perfeição) é
um verdadeiro e entranhável desejo dela. E a razão disso é, como dizem os
filósofos, porque em todas as coisas e assinaladamente nas obras mo-
rais, o amor e o desejo do fim são a primeira causa, que move todas as
outras a obrar. De tal sorte que, quanto maiores são o amor e o desejo
do fim, tanto são maiores o cuidado e a diligência que se põem para
alcançá-lo. E assim importa muito que o desejo e a afeição da virtude
e a perfeição sejam grandes, para que também o cuidado e a diligência
em procurá-los sejam grandes.
É tão importante e necessário para o nosso aproveitamento que
haja em nós esse desejo e que nos saia do coração e nos leve após si,
sem necessidade de outro estímulo, que, daquele que não o tiver, mui-
to pouco se pode esperar. Ponhamos exemplo no religioso, e poderá
cada um aplicar a si a doutrina, conforme o seu estado. Bom e neces-
sário é, na Religião, o cuidado e a vigilância dos Superiores sobre os
súditos; necessária é a repreensão e a penitência. Porém, não há muito
que fiar daquele que só por isso faz as coisas; quando muito, procederá
bem por algum tempo, em quanto andam sobre ele. Porém, se o bom
procedimento não lhe nascer do interior do coração, do verdadeiro
desejo de seu aproveitamento, não se deve fazer muito caso da emen-
da, porque não poderá durar.
Essa é a diferença que há entre as coisas que se movem com movi-
mentos violentos e as que se movem com movimentos naturais. As que
se movem com movimentos violentos, como o que obram nasce de
uma força e impressão alheia, quanto mais se adiantam, tanto mais se
afrouxam, e vão enfraquecendo, como quando atirais ao ar uma pedra.
Mas nas coisas que se movem com movimento natural, como quan-
do a pedra vai para seu centro, é ao contrário, porque quanto mais
caminha, mais ligeiramente se move. Essa é, pois, também a diferença
que vai dos que obram por temor da penitência e da repreensão – ou
porque os estão vendo, ou por outros respeitos humanos – aos que se
movem por amor da virtude e por desejo puro de agradar a Deus. A
emenda daqueles não dura mais que enquanto dura a repreensão e o
cuidado com que sobre eles se anda, e logo vai afrouxando. Isso, refere
S. Gregório, acontecia com sua tia Gordiana,30 a qual, repreendendo-a
30
Greg. Hom. 38 in Evang.
23
24. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
as outras duas irmãs suas,Tarsila e Emiliana, da leviandade de seus cos-
tumes – e porque não guardava a gravidade que convinha ao hábito
da Religião que tinha –, enquanto durava a repreensão, mostrava gra-
vidade em seu rosto, e parecia que fazia da reprimenda boa aceitação;
porém, passada a hora da repreensão e do castigo, perdia aquela fingida
gravidade, e gastava o tempo em conversações levianas e em desen-
fadar-se com a companhia das donzelas leigas que havia no mosteiro.
Era como arco, encurvado por valente corda, que, em afrouxando esta,
também ele afrouxa e torna a seu antigo estado. Como não lhe nascia
do coração o desejo, e só era violento, não podia perseverar.
Esse negócio da perfeição não é negócio que se tenha de fazer por
força, mas há de nascer do coração, e por essa razão disse Cristo nosso
Redentor àquele moço do Evangelho31: Se queres ser perfeito. Porém,
se vós não quereis, não bastarão todas as diligências e os meios que
podem pôr os superiores para vos fazer perfeito. Essa é a solução e a
resposta daquela pergunta que fez S. Boaventura.32 Qual é a causa por
que antigamente bastava (diz o Santo) um Superior para mil monges, e
para três mil e cinco mil que, segundo S. Jerônimo e Santo Agostinho,
costumavam estar debaixo de um Superior, e agora para dez, e ainda
para menos, não basta um Superior? A causa disso é porque aqueles
monges antigos tinham em seu coração um vivo e ardente desejo
da perfeição, e aquele fogo que ardia lá dentro os obrigava a tomar
muito a peito seu próprio aproveitamento, e caminhar com grande
fervor33. Os justos resplandecerão e discorrerão como faíscas por um
canavial. Com essa metáfora nos declara muito bem o Espírito Santo
a velocidade ligeireza com que caminham os justos pelo caminho da
virtude, quando se ateia esse fogo no seu coração. Correrão, diz, como
faíscas de fogo pelo canavial.Vede e reparai com que velocidade e com
quanta ligeireza corre a chama por um canavial seco, quando nele
pega o fogo. Pois dessa mesma sorte correm os justos pelo caminho da
virtude, quando estão abrasados desse divino fogo.
Assim o estavam aqueles monges antigos, e por essa razão não ne-
cessitavam de Superior que os incitasse, mas sim que lhes fosse à mão
31
Si vis perfectus esse. Matth., XIX, 21.
32
Bonav. Opus de Perfect. Relig. lib. 1, c. 39.
33
Fulgebunt et tamquam scintillæ in harundineto discurrent. Sap., III, 7.
24
25. Pe. Afonso Rodrigues
em seus fervores. Porém, quando falta o desejo da perfeição, não só
não bastará um Superior para dez, mas nem dez superiores bastarão
para um, nem o poderão fazer perfeito, se ele não quiser. Está bem de
ver. Que aproveita visitar a oração? Depois que passar o visitador, não
pode cada um fazer o que quiser? E estando ali de joelhos, não pode
estar considerando no estudo, no negócio e em outras coisas imperti-
nentes? E quando vai dar conta da consciência, não pode dizer o que
quiser, e calar o que mais importa e afirmar que lhe vai bem, quando
não lhe vai bem, senão mal? Enfim, inútil é a diligência de fora, quan-
do dentro falta a vontade e o desejo verdadeiro.
Aqui vem a propósito uma resposta de S. Tomás de Aquino:
perguntando-lhe, em certa ocasião, uma irmã sua como se pode-
ria salvar, respondeu o Santo: “Querendo”. Se vos quereis salvar,
salvar-vos-eis; e se quereis aproveitar, aproveitareis; e se quiserdes
ser perfeito, sê-lo-eis. Todo o ponto da dificuldade está em querer,
e desejar deveras, e em que o desejo seja do coração, porque Deus,
da sua parte, está pronto para nos acudir. Porém, se não houver essa
vontade interior, tudo o que exteriormente podem fazer os Supe-
riores será inútil. Nós somos os que havemos de tomar a peito o
nosso aproveitamento, porque esse é o nosso negócio, que só a nós
importa e não a outrem, e por ele viemos à Religião. E tenha cada
um entendido que o dia em que afrouxar nesses desejos, e se esque-
cer de si e do que toca a seu aproveitamento, e não tiver cuidado de
fazer com perfeição seus exercícios espirituais, e um vivo e abrasado
desejo de aproveitar e adiantar na virtude e mortificação, nesse mes-
mo dia perdeu totalmente o seu negócio. Por essa causa nosso santo
Padre, no princípio das Constituições e Regras, nos põe isto por
fundamento.34 A interior lei da caridade e do amor, que o Espírito
Santo escreve e imprime nos corações, é a que nos há de conservar,
reger e levar adiante no caminho começado do divino serviço. Esse
fogo do amor de Deus, e o desejo da sua maior honra e glória, é o
que sempre nos há de incitar a subir e adiantar na virtude.
Quando deveras há esse desejo no coração, ele nos move a que,
com toda a diligência e todo o cuidado, empenhemo-nos em alcançar
o que desejamos, porque nossa inclinação é muito industriosa para
34
In Proem, Const. § 1.
25
26. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs
buscar e achar o que deseja, fim para o qual nunca lhe faltam meios.
Por isso, disse o Sábio35 que o princípio para alcançar a sabedoria é o
verdadeiro e íntimo desejo dela.
Outro bem, donde deriva a grande eficácia desse meio, traz consigo
o interior desejo da virtude, que facilita e suaviza as coisas, ainda que
de si sejam muito dificultosas. Senão, dizei-me: Por que se vos fez a
vós tão fácil o deixar o mundo e entrar na Religião, senão porque
vos nasceu do coração esse desejo? Deu-vos o Senhor uma vontade e
afeição grande à vida religiosa, que foi a graça da vocação; tirou-vos
a afeição às coisas do mundo, e vo-la pôs nas coisas da Religião. Com
isso vos ficou fácil entrar nela.
E qual será a razão por que aos que ficam lá no mundo lhes pa-
rece isso tão dificultoso? A razão é porque lhes não concedeu Deus
essa vontade e afeição que vos deu a vós; não os chamou Deus,
como eles dizem, nem lhes deu essa graça da vocação. Pois assim
como a vontade e o desejo que tivestes de ser religioso vos fizeram
tão fácil a entrada no claustro, que não bastaram vossos pais e pa-
rentes nem todo o mundo para vos apartar dele, assim também para
aproveitar na Religião, para que se vos facilitem seus exercícios, é
necessário que persevere a vontade e o desejo com que a ela vies-
tes. Com eles tudo vos será fácil; porém, em eles faltando, tudo vos
será dificultoso e costa acima. Essa é a causa por que algumas vezes
nos achamos tão pesados e outras em tão grandes apuros. Ninguém
deite as culpas às coisas nem aos Superiores, mas a si e à sua pouca
virtude e mortificação. O Padre Mestre Ávila diz:36 Um homem
robusto e sadio facilmente levanta um peso de uma arroba. Porém,
um doente ou uma criança diz: Ai, como pesa! Essa é a causa das
nossas dificuldades. As coisas são as mesmas e as sentíamos antes tão
fáceis que nem dávamos por elas. Nossa é a culpa, porque deven-
do ser homens e ter crescido na perfeição,37 até chegarmos a ser
perfeitos, como diz S. Paulo, somos meninos na virtude, e estamos
enfermiços e frouxos naquele desejo de aproveitamento com que
entramos na Religião.
35
Sap.,VI, 18
36
M. Avil. no Epistolário I. p. epist. 2
37
In virum perfectum. Ephes., IV, 13
26