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TRABALHO, FAMÍLIA E
RELAÇÕES
HOMEM/MULHER
REFLEXÕES A PARTIR
DO CASO JAPONÊS
Helena Hirata
Introdução
Uma problemática da divisão do trabalho, considerada sob o ângulo das relações
sociais de sexo e classe, é convergente com uma abordagem da questão salarial: a que
concebe o assalariamento no quadro da "articulação entre relações sociais fora do
trabalho e processo de trabalho" (1), em ruptura, portanto, com as análises feitas
tradicionalmente pela economia política.
De fato, uma determinada corrente teórica na França considera cada vez mais
indispensável a análise do trabalho doméstico, da família, do não-mercantil, para
compreender ou mesmo definir a relação salarial.
Esta contribuição pretende justamente questionar o estatuto do conceito de força
de trabalho como mercadoria, mostrando que a aparência de trabalhadores livres e
supostos iguais desmorona se tomarmos em consideração a existência ─ no terreno da
exploração do trabalho ─ de relações de opressão ou de dominação em vigor na esfera
não-mercantil.
Exemplos de reaparecimento, no domínio das relações de produção, dás relações
sociais existentes fora da esfera produtiva, podem ser dados: é o caso das "cantadas" nas
empresas, a respeito das quais várias pesquisas estão sendo iniciadas ─ impulsionadas
pelos movimentos feministas ─ e que mostram a reiteração, no quadro da empresa, das
relações de opressão e violência dos homens sobre as mulheres existentes na sociedade.
É também o caso do "paternalismo" ou do "familiarismo" nas empresas
japonesas, onde as relações pai/filho, pai/filha são transpostas na esfera salarial, com
tudo o que isso acarreta de disciplina, autoridade, afetividade e, portanto, de distante da
imagem do assalariado enquanto "livre vendedor de sua força de trabalho" (estudaremos
mais adiante o caso exemplar dos dormitórios industriais de mulheres no Japão
contemporâneo).
Procuramos, neste -texto, estudar os modos de articulação entre os locais de
reprodução (em especial a família) e o trabalho profissional, a partir de uma pesquisa
comparativa entre os modelos dominantes das relações sociais de sexo e classe nas
sociedades capitalistas ocidentais e no Japão.
Nossa abordagem consistiu em considerar conjuntamente os homens e as
mulheres, as estruturas familiares e o sistema produtivo: não se tratava de tomar como
objeto de estudo as mulheres ou o trabalho das mulheres na esfera assalariada ou
doméstica, como tem feito a sociologia do trabalho ou a sociologia da família clássica
(2). Não se trata tampouco de um trabalho sobre á família japonesa ou sobre as famílias
ocidentais - a respeito das quais existem trabalhos especializados (3), na medida em que
nossa reflexão diz respeito apenas à articulação entre o espaço familiar e o profissional.
A comparação com o Japão é, a nosso ver, particularmente esclarecedora na
medida em que os limites de demarcação entre trabalho e força de trabalho são, nesse
país, tão pouco definidos quanto os que separam o indivíduo do grupo ou as horas de
trabalho das horas extratrabalho. Queremos aqui insistir sobre uma dimensão essencial,
a nosso ver, da sociedade japonesa: o modo de articulação entre sistemas produtivos e
estruturas familiares sob a forma de fronteiras pouco definidas entre público e privado,
profissional e pessoal, trabalho e extratrabalho, empresa e sociedade: Este tipo de
articulação é que possibilita uma política de gestão da mão-de-obra baseada mais sobre
a pessoa do que sobre sua força de trabalho, sobretudo em se tratando de assalariados
homens de grandes empresas. Há, na realidade, um distanciamento do assalariamento
"clássico" ocidental, e do rapport capitalista em sua visão eurocentrista, tal como o
expressa, por exemplo, Joaquim Hirsch: "Quanto mais a troca entre produtores
privados se desenvolve, com a penetração da sociedade burguesa, mais o valor de troca
está na origem da coesão social, e mais cedo desaparecem a possibilidade e a
necessidade de instaurar a coesão da sociedade através das formas de dependência
pessoal e de sujeição direta"(4).
Pois, se a partir do caso dos países ditos "subdesenvolvidos", por exemplo, a
América Latina, foi possível demonstrar que não há um único capitalismo, um único
modo de assalariamento, um único tipo de desenvolvimento, refere-se pouco ao caso do
Japão para criticar pontos de vista de tipo eurocentrista.
O capitalismo japonês alimenta-se, justamente, dessas relações "de dependência
pessoal e de sujeição direta". É, na realidade, esse tipo de laços que torna a hierarquia na
esfera profissional tão eficaz quanto a que prevalece no âmbito da família. Ao mesmo
tempo, ele organiza suas práticas de gestão baseando-se sobre o grupo familiar e sobre
as relações de casal predominantes na sociedade japonesa. Vejamos assim as horas
extras não remuneradas (5); as horas de lazer fora da empresa para cimentar a coesão do
coletivo de trabalho, os círculos de controle de qualidade que servem para discutir e
resolver os problemas do local de trabalho mas que, em 30 a 60% dos casos, de acordo
com as diferentes fontes, reúnem-se fora das horas de trabalho, à noite, durante os fins
de semana, e sem remuneração adicional.
É fácil perceber que essas horas extras, essas atividades de grupo, esses círculos
de controle de qualidade, têm uma incidência direta sobre o tempo de laser e sobre o
tempo de vida familiar Todas essas atividades, na realidade, só podem existir porque as
mulheres, em seus lares, se encarregam da totalidade das tarefas domésticas e da
educação dos filhos, e na medida em que o casal sacrifica seu tempo de lazer e até de
coabitação (6).
Família e mobilidade interna no Japão
Uma prática de gestão comum no Japão ─ a mobilidade intra-empresa ─
constitui um exemplo extremo desse sacrifício do tempo de coabitação pelo casal em
proveito da empresa. Substituindo a mobilidade interempresa ─ fenômeno comum nos
países ocidentais mas quase existente nas grandes empresas japonesas onde o
recrutamento se dá na saída da escola e a carreira se desenvolve dentro de uma única
empresa ─, uma das formas de mobilidade (7) consiste na transferên cia, de um
estabelecimento para outro, dentro de uma mesmo grupo industrial.
Essas transferências atendem a objetivos múltiplos (promoção, formação
profissional, necessidades de mão-de-obra experimentada nos momentos de
reestruturação industrial e de mudança) (8), e mostram de forma exemplar como as
estruturas familiares, a relação com os filhos e a relação homens/mulheres existentes na
sociedade são aproveitadas pela empresa capitalista. Assim, o caso de um executivo
entrevistado por nós, que foi transferido 14 vezes entre 9 diferentes unidades de
produção entre 1943 e 1980. Casado em 1950 e pai de três filhos, ele coabitou apenas
muito excepcionalmente com sua família durante esses anos de transferência.
Essas viagens sistemáticas, às vezes muito demoradas, dos maridos para outras
regiões geográficas, levam geralmente as mulheres a assumirem a total responsabilidade
do lar, e os homens a encarregarem-se das tarefas domésticas (limpeza, louça, roupa)
nas casas colocadas à disposição pela empresa. Essa separação do marido do resto da
família é motivada pelo cuidado em assegurar a continuidade na escolaridade das
crianças (a freqüência dessas transferências, as dificuldades próprias ao sistema escolar
japonês exigindo tal separação). Ela também pode ser de longa duração quando se trata
de deslocamentos para o exterior para gerenciar a filial de uma firma multinacional (9).
A aceitação resignada dessas transferências tem sua explicação, a nosso ver, no
interior mesmo do sistema de emprego que permite atribuir ao grupo e não ao indivíduo
as responsabilidades e as tarefas produtivas. Esse sistema baseia-se num modo de
remuneração ligado mais ao tempo de casa que ao posto de trabalho, num emprego
muito estável e a longo prazo (para os trabalhadores homens, com estatuto regular, das
grandes empresas) e numa valorização da atividade coletiva, eliminando tanto as
responsabilidades quanto as performances estritamente individuais.
O tenkin só é possível, inclusive, na medida em que o sistema de salário e a
organização de trabalho não se baseiam sobre o posto individual e a qualificação do
trabalhador.
Por outro lado, as práticas de mobilidade interna são aceitas na medida em que
sua recusa levaria à exclusão do grupo, à perda irremediável do salário e estatuto
adquiridos na empresa. De fato a resistência sistemática à mobilidade pode ter
conseqüências negativas sobre a promoção ou sobre a remuneração (sobre o "bônus",
que constitui um elemento importante do salário). Ao mesmo tempo, essa mobilidade
substitui ─ formando o empregado através de atividades e experiências novas  a
mobilidade interempresas tal como é praticada no mundo do trabalho ocidental.
Porém, pode ser levantado um segundo nível da explicação a respeito mais
diretamente da relação homens/mulheres e das relações de casal predominantes na
sociedade japonesa. Apresentou-se o indivíduo como uma categoria do capitalismo
moderno e como base das relações amorosas no Ocidente (10). Porém, o indivíduo ─
cuja existência está na base da relação amorosa, relação esta que constitui o fundamento
do casamento nas sociedades européias ─ é no Japão reprimido ou ausente, em todo
caso, de pouco peso em relação ao grupo. Ainda hoje os casamentos arranjados
constituem quase 40% do total de casamentos (11). A separação não pode ser recebida
da mesma forma por casais que, sem se conhecer antes, casaram-se via apresentação de
parentes ou conhecidos. Nos países ocidentais, onde o casamento baseia-se
essencialmente na relação amorosa, portanto na existência de indivíduos, uma
transferência dos maridos sem sua família durante meses, ou mesmo anos, não poderia
ser aceita, e transferências até mais curtas ou ausências menos freqüentes poderiam
facilmente constituir motivo de divórcio ou separação. Ademais, as mulheres casadas
não exercendo geralmente, no Japão, atividades remuneradas, dependem
financeiramente de seus maridos, o que torna o divórcio praticamente impossível (12).
Salário, produtividade e esfera reprodutiva
Outro aspecto do capitalismo japonês deve ser lembrado. Trata-se da
especificidade da remuneração do trabalho e das fontes -─ extra-empresas -─ de
produtividade.
À pergunta sobre "o que paga o salário no Japão", pelo menos para os
assalariados regulares de sexo masculino das grandes empresas, pode-se responder
dizendo que o salário não paga a qualificação nem a experiência profissional na medida
em que ele é um seikatsu-hi tingin (a remuneração para viver). Fundamentalmente
determinado pelas necessidades de reprodução em cada etapa da vida do trabalhador, o
salário é adaptado às características da pessoa: é um zoku jin kyu (salário personalizado)
(13). Se ele paga a pessoa, a servidão, a lealdade, a polivalência, e a "dependência" no
sentido próprio da palavra, ele não paga as horas extras -─ de mais de 6 horas por dia a
partir do primeiro escalão hierárquico -─ nem as férias ─ as férias remuneradas existem
legalmente mas são negadas na prática habitual das empresas japonesas ─, nem o
trabalho das mulheres e da família em benefício da empresa. Nessa medida, só se pode
pensar o salário no interior da articulação produção/reprodução, o que diz muito
justamente Bernard Dingman, sem partir do caso japonês:
"A análise do salário é então inseparável da análise dos processos de
produção/reprodução dessa mercadoria particular e, portanto, da especificidade
desses processos que articulam e atravessam os espaços da produção e da circulação,
da produção e da reprodução grifos nossos), mas também da reprodução das
mercadorias e da reprodução social" (Dingman, p. 145) .
Essas características do salário são reforçadas pela importância que assumem os
modos não-monetários de remuneração ─ as recompensas de ordem simbólica como,
por exemplo, os almoços com os diretores da empresa, nas atividades dos "círculos de
controle de qualidade" ─,que parecem indicar um grau de generalização da forma
mercadoria muito diferente do fetichismo do capitalismo europeu. Tudo isso tem
conseqüências sobre o enfoque da produtividade do trabalho no caso japonês.
Se Philippe Zarifian nota a importância do tempo de socialização sobre o nível
de produtividade (Zarifian, 1985, p. 7), pensamos que é preciso ir além e analisar a
natureza das relações sociais que torna possível a incorporação desse tempo na
produção.
Se integrarmos os elementos indicados anteriormente, o problema econômico da
produtividade muito elevada do trabalho deve ser considerado diferentemente e não
apenas em termos de organização do trabalho assalariado. Essa produtividade, na
realidade, baseia-se amplamente, na organização da vida familiar e no sacrifício da
chamada "vida privada" em benefício da empresa (horas extras não remuneradas;
atividades de círculo de controle de qualidade; supressão voluntária das férias;
mobilidade geográfica do assalariado sem a sua família, na ocasião de uma nova
implantação industrial etc.). Finalmente, um questionamento das estatísticas sobre a
produtividade do trabalho, baseadas sobre as horas de trabalho declaradas pela empresa,
revela-se assim absolutamente indispensável.
Casamento e atividade profissional das mulheres
Se a organização da vida familiar é o fundamento da produtividade japonesa, é
preciso interrogar-se sobre as razões da aceitação de um modelo original de inserção
das mulheres nas fábricas japonesas; as operárias praticamente nunca têm mais de 24
anos. O casamento constitui o marco a partir do qual todo trabalho assalariado deve ser
interrompido, pelo menos durante um longo período, o que não é ─ ou deixou de ser ─
o caso nos países ocidentais.
A maioria das mulheres deixa o mercada de trabalho para criar os filhos e só
volta quando quinze anos de trabalho doméstico terminaram por inutilizar sua
qualificação inicial. Se os dados numéricos estão próximos dos da França ─ eles
mostram que as mulheres casadas constituem 57,6% da população assalariada feminina
(Prime..., 1981) em 1980 e 64% do conjunto dás mulheres. na população feminina
empregada em atividades não-agrícolas (Statistical..., 1981) em 1980 ─, eles ocultam
realidades bastantes diversas: de fato, o aumento do número de mulheres casadas ativas
nestes últimos anos deve-se fundamentalmente ao crescimento da participação de
mulheres mais velhas que já criaram seus filhos; é preciso interpretar a alta porcentagem
de mulheres casadas na população ativa feminina no Japão sabendo que 20% das
mulheres em 1980 ─ segundo alguns, o dobro em 1983 ─ trabalha em tempo parcial,
em condições muito precárias, sem garantias sociais e sem nenhum direito sindical (14).
Essa realidade pode ser explicada num primeiro momento pela estrutura e pelo
tipo de emprego feminino no Japão ─ pouco interessante, mal remunerado, sem
perspectiva de carreira. Porém, a falta de perspectivas de desenvolvimento profissional
e a falta de qualificação dos postos oferecidos às operárias não constituem uma
realidade exclusivamente japonesa.
Pensamos, por isso, que uma melhor explicação pode ser encontrada na
existência, absolutamente institucionalizada, de uma "filière" masculina e de uma
"fitière"feminina no Japão, a filière masculina constituída pela carreira profissional e a
feminina por progressões que podem ser realizadas nas artes domésticas japonesas, artes
tipicamente femininas e praticadas em grande escala (15). Essas artes domésticas, entre
as quais as mais representativas são o arranjo de flores (ikebana), a cerimônia do chá, a
confecção do kimono (wassai), a música e a dança tradicionais, são coroadas por
diplomas, o aperfeiçoamento podendo estender-se por dezenas de anos. A valorização
social dessas filières tipicamente femininas tem como contrapartida uma exclusão
sistemática das carreiras no mundo do trabalho assalariado. Essas filières paralelas e
exclusivas de cada um dos sexos só podem ser reforçadas pelo fato de que a sociedade
associa as mulheres à educação das crianças e à vida do lar, e os homens, à vida pública
e à empresa. O Estado só encoraja essa divisão sexual, incentivando-a por uma total
falta de participação de equipamentos sociais (inexistência de creches, as crianças
permanecendo em geral com a mãe ou com a avó, obrigação de preparar marmitas por
falta de restaurantes escolares etc.).
A ideologia em vigor apresenta também como extremamente positiva e
importante a tomada das responsabilidades de gestão da economia doméstica pelas
mulheres, que administram o orçamento familiar, permanecendo com o salário do
marido, prática esta que parece não ser equivalente nos países ocidentais.
O fundamento material da reprodução deste modelo ─ onde o estatuto das
mulheres na família é representado como uma fi- lière absolutamente distinta e em nada
inferior ─ consiste na desigualdade dos salários masculinos e femininos ─ uma das
mais acentuadas no mundo ─ que faz do casamento não apenas uma pré-condição para a
integração social das mulheres, mas também uma alternativa ao trabalho profissional em
termos de renda.
Família e gestão da mão-de-obra
Tratamos até aqui de um primeiro aspecto de articulação entre vida reprodutiva
e produção: o trabalho profissional e as estruturas familiares. Trataremos agora de um
segundo aspecto dessa articulação: o modelo familiar na gestão da mão-de-obra.
De fato, há reprodução, ou transferência/transposição na área do trabalho
assalariado, e em especial nas relações hierárquicas dentro da empresa, das relações
sociais existentes fora da relação salarial, e que supostamente não são constitutivas das
relações entre trabalhadores "livres e iguais". Pensamos na transposição/transferência
das relações homens/mulheres presentes na prática das "cantadas" e na
transposição/transferência das relações pai-filho na prática do "paternalismo" ou do
"familiarismo" na empresa japonesa moderna.
Na medida em que não temos elementos de pesquisa sobre as práticas de
"cantadas" nas empresas no caso do Japão, limitar-nos-emos aqui ao estudo do modelo
familiar na gestão da mão-de-obra.
O estudo das relações paternalistas de produção no Japão mostra até que ponto é
discutível a definição comum do paternalismo pela existência de benefícios sociais
diversos. Esse sentido, que define o paternalismo por seus atributos, termina indicando
mais as conseqüências de uma política, e não diz nada sobre o que constitui sua
essência: a superposição direta das relações de tipo salarial sobre as estruturas familiares
e as relações de parentesco.
De fato, a prática paternalista implica numa transposição da relação familiar nos
locais de produção, constituindo assim uma outra modalidade de relações sociais: a
análise dessas relações é, claramente, mais importante que a enumeração descritiva das
vantagens que a empresa japonesa oferece hoje a seus assalariados. Estas não diferem
dos privilégios de que se' beneficiam os assalariados de grandes empresas de países
ocidentais. Pelo contrário, dada a especificidade da família japonesa e das relações
homem/mulher existentes na sociedade, o paternalismo na indústria no Japão tem uma
configuração única, revestindo aspectos extremamente originais em sua instalação e
reprodução. Ele pode até ser considerado como uma dimensão essencial da política de
gestão da mão-de-obra na empresa japonesa, valendo tanto para as fábricas de mulheres
(têxtil e eletrônica), quanto para as fábricas de homens (petroquímica, siderúrgica, bens
de capital etc.). A seguir, os casos analisados mostrarão até que ponto uma mesma
política pode ter configurações diferentes e fundamentos opostos em se tratando de uma
mão-de-obra masculina ou feminina.
O paternalismo como política de gestão do trabalho e do extratrabalho
O paternalismo transforma em princípio hierárquico a relação de lealdade que se
deve aos mais velhos e que os filhos devem aos pais. Esse princípio se traduz, ao nível
da gestão da empresa, por critérios de promoção  as qualidades pessoais de fidelidade
e obediência pesam tanto (ou mais) quanto a performance profissional; por modos de
aprendizagem nos quais os velhos formam os mais novos; e por um sistema de salários
no qual as necessidades familiares são levadas mais em conta que a performance
profissional.
O sistema de liderança fica assim modelado por esse afrouxamento relativo dos
limites entre empresa e família, as relações existentes dentro da unidade familiar
podendo modelar a prática dos chefes. O chefe do grupo, o superior, o diretor da
empresa, dispõem, de fato, do subordinado como um pai dispõe de seu filho: enquanto
pessoa, e não apenas enquanto força de trabalho, controlando seu tempo de trabalho e
seu tempo fora do trabalho. O chefe é, claramente, não apenas a autoridade, mas
também o pai, o que implica em poder de comandar, educar, ordenar, com os corolários
que isto supõe: ser obedecido, aceito em seu papel de educador pela boa vontade na
aprendizagem por parte do subordinado. Essa regra geral é modulada segundo se trate
de homens ou de mulheres: nas fábricas de mulheres, o paternalismo é o poder da chefia
masculina sobre as operárias. Nesse caso, ele significa uma situação de inferioridade, de
subordinação e obediência das mulheres, que rege as relações entre mão-de-obra
feminina e masculina na empresa. A relação paternalista, em se tratando de mulheres, é
freqüentemente sinônimo de infantilização, relação pai/criança mais que relação pai/
,filho-filha.
A adoção dessa política paternalista de gestão da mão-de-obra é possibilitada
por um sistema de emprego que assegura uma estabilidade muito grande aos
assalariados homens (emprego chamado "vitalício", na realidade, a muito longo prazo)
(16) e uma instabilidade fundamental às assalariadas mulheres (uma operária passa sua
vida na fábrica dos 18 aos 24 anos, após os estudos secundários e antes do casamento).
O tipo de política paternalista nas indústrias empregando mão-de-obra masculina é
possibilitado por esse tipo de emprego, combinado à promoção por tempo de casa e à
baixa taxa de desemprego. Esse tipo de política nas fábricas de mulheres só é possível
por elas serem muito novas e solteiras e por estarem sob uma relação de assalariamento
por muito pouco tempo.
1. O paternalismo numa empresa de mão-de-obra masculina
É essencialmente ao nível de seus critérios de promoção que o modelo
paternalista e "familiar" é implementado nessa empresa. O diretor de pessoal (recursos
humanos) do grupo. que conhece pelo nome seus 5.000 subordinados diretos, integra as
qualidades vida "pessoal" e "privada" na avaliação dos indivíduos. As qualidades
humanas são os critérios explicitamente evocados para a promoção dos assalariados: ter
jimbo (estima, popularidade, prestígio), ou ninjo (sentimentos humanos, humanidade,
piedade), aptidões humanas "essenciais para um bom chefe de família e para um bom
líder".
A capacidade procurada consiste em fazer bem seu trabalho e, ao mesmo tempo,
"cuidar do enterro de um parente próximo do trabalhador", "resolver um
desentendimento: entre o trabalhador e sua esposa" etc. Inversamente, os "defeitos" ─
atitudes fora do trabalho, comportamento na família etc. ─ também pesam no
julgamento das aptidões do trabalhador para uma promoção.
A adoção do modelo de relação familiar na empresa está também presente na
definição dos escalões hierárquicos. De acordo com esse mesmo diretor de recursos
humanos, o "líder do grupo (hancho) é a mãe, o contramestre (kocho) o pai",
significando a proximidade do primeiro escalão hierárquico em relação ao grupo
operário, e a autoridade do escalão superior de comando.
2. O paternalismo nas indústrias com mão-de-obra feminina
O exemplo mais claro das relações paternalistas nas fábricas femininas é, sem
dúvida, o funcionamento dos dormitórios industriais de mulheres no Japão
contemporâneo. Este regime de funcionamento, que apaga completamente o limite entre
a vida produtiva e o "extratrabalho", era comum nas fábricas têxteis na Europa e nos
Estados Unidos no século XIX (17), mas as mudanças sociais, a evolução das relações
entre sexos, o desenvolvimento do trabalho assalariado tornaram progressivamente
difícil a reprodução desse sistema nas empresas ocidentais que utilizam trabalho
feminino. Esses dormitórios industriais abrigam a mão-de-obra feminina das fábricas do
setor tradicional (têxtil), mas também das indústrias dinâmicas e "de ponta" (eletrônica)
(80% dos efetivos femininos das fábricas pesquisadas em 1982 ali residia).
Uma primeira característica da prática paternalista nesses dormitórios consiste
no fato da indústria encarregar-se do alojamento e da educação das operárias.
O regime dos dormitórios transpõe a hierarquia familiar e, mais especificamente,
o papel paterno, para gestão da mão-de-obra, criando uma relação de autoridade e, ao
mesmo tempo, de proteção e educação das jovens operárias, cuja responsabilidade
direta incumbe ao próprio diretor da fábrica, assimilado ao pai.
Esse sistema, combinado à educação escolar antes ou depois do trabalho em
equipes, transfere para a empresa as tarefas dos pais: educação moral e social,
aprendizagem das normas de comportamento e obrigações de uma mãe de família e
dona-de-casa e ─ em contrapartida ─ a concessão de todos os direitos dos pais aos
chefes de empresa: o de castigar, de expulsar e controlar cada momento da vida no
trabalho e de lazer dai jovens operárias.
Os chefes de fábrica cuidam, de fato, de três aspectos importantes da vida de
seus subordinados, que caracterizam amplamente a vida cotidiana dessas operárias e o
sistema dos dormitórios em si. Em primeiro lugar, cuidam de sua formação:
aprendizagem das formas elementares da economia doméstica (poupança,
contabilidade), das regras da etiqueta feminina (reigi saho), dos métodos de limpeza, de
arrumação. Em segundo lugar, de seus estudos: trabalhando em fábrica, elas estudam no
secundário superior de 4 anos de duração, antes ou após o trabalho em turnos. Todos os
estabelecimentos empregando mulheres têm, também, uma escola de nível secundário
que ensina as "artes domésticas femininas": arranjo de flores, arte culinária, cerimônia
do chá, corte e costura, dança e canto tradicionais etc. Em terceiro lugar, de sua
moralidade: o desrespeito dos horários de volta ao dormitório à noite (mongen),
geralmente às 18 horas no primeiro ano de contratação, e às 21 horas nos anos
subseqüentes, leva à demissão por justa causa, sobretudo se esse atraso for conseqüência
de encontros na cidade considerados pela "gerência" como "moralmente duvidosos". No
caso de um estabelecimento industrial do ramo alimentar, a punição em caso de atraso é
muito reveladora do estatuto de "menor" das mulheres no Japão e da possibilidade que
têm as empresas japonesas de recorrer a métodos não admitidos em empresas industriais
de países ocidentais: as operárias devem fazer a faxina do dormitório durante uma
semana em caso de retorno após o horário-limite de 22 horas.
O sistema dos dormitórios, datando do fim do século XIX e início do século XX,
permite, na realidade, hoje, o incremento da produtividade do trabalho. A disciplina
imposta sobre as atividades extratrabalho permite, evidentemente, uma melhor
organização do trabalho produtivo, através do controle do absenteísmo, dos pequenos
atrasos, da prevenção de "acidentes" de saúde... As técnicas de motivação tais como as
reuniões dos "círculos de controle de qualidade", realizadas fora das horas de
expediente, são impostas ainda mais facilmente, já que as operárias praticamente nunca
voltam para casa, e sim permanecem sempre dentro do campo de controle dos chefes. O
comportamento moral, o comportamento no dormitório, podem também ser critérios
essenciais para as promoções e demissões da mão-de-obra feminina.
Quanto à remuneração desse trabalho, as operárias alojadas, em aparência
"livres vendedoras" de sua força de trabalho, não recebem a totalidade de seu salário, do
qual são descontados as despesas de alojamento, estudos e uma poupança compulsória,
feita pela empresa em nome da operária. A parte do salário recebida diretamente pela
operária jamais ultrapassa 50% do montante mensal.
Conclusão: algumas propostas teóricas.
Essas análises, que deveriam permitir uma melhor apreensão da natureza
contraditória do capital e de seus limites, nos conduzem a três propostas.
Em primeiro lugar, se o capital não for uma soma de riquezas mas uma relação
social de classe e de seio, as contradições do capital são mais importantes, e sua
natureza mais diversa do que se supôs tradicionalmente nas análises marxistas.
A aparência de trabalhadores livres e supostamente iguais sobre a qual se baseia
a dominação capitalista ─ é de fato desvendada pelo reaparecimento ─ esfera da
exploração do trabalho─ de relações de opressão ou dominação em vigor na esfera não
mercantil.
Em segundo lugar, uma crítica do capital enquanto relação social de classe e de
sexo deveria necessariamente passar por uma análise das formas de desmascaramento
da mercadoria força de trabalho (irrupção das relações de opressão homens/mulheres na
esfera dos processos de trabalho), da mesma maneira que o estudo das crises
econômicas ou dos golpes.de estado pode permitir desvendar a natureza do Estado
enquanto unidade pretensamente neutra e situada acima das classes.
Em terceiro lugar, a força de trabalho não é uma categoria universal,
quantificável e homogênea, mas concretamente, para os capitalistas, dentro do processo
de produção: masculina ou feminina, jovem ou velha, casada ou solteira. No caso
japonês, o capital aparece assim, por vezes, mais como exploração do trabalho (pessoa)
do que de força de trabalho e, nessa medida, formas de desvendamento de "des-
fetichização" múltiplas deveriam ser possíveis.
Levarem conta esses instantes de "des-fetichização" pode ser tornado possível,
de um lado, através de estudos dos processos de trabalho concretos, e, de outro, através
da comparação internacional.
É o que tentamos fazer e o que poderia também ser feito a partir de comparações
com outras sociedades ditas "primitivas" (18).
Notas Biográficas
1 - Cf. apresentação no seminário de Amiens Carnets des Atiliers de Recherche, n° 5.
Université de Picardie. 1985.
2 - A abordagem comparativa homens/mulheres, que está longe de ser uma abordagem
dominante em sociologia, foi conceitualizada por Danièle Kergoat (1984).
3 - Pensamos nas pesquisas sobre a família no Brasil, realizadas pelo CEBRAP, sob a
coordenação de Elza Berquó, pela Fundação Carlos Chagas, (cf. por exemplo Felicia
Madeira); pela Universidade de São Paulo (cf. trabalho de Lia Fukui); para .um censo
do estágio das pesquisas sobre a família na França, cf. as publicações resultantes do
Colloque National "Recherches et Familles", organizado em janeiro de 1983 pelo
Ministério da Indústria e da Pesquisa e pelo Secretariado de Estado sobre a Família; um
certo número de obras tratando da família no Japão são citadas em Bellevaire & Trihn
(1983).
4 - Hirsch, J. ."Eléments pour une théorie matérialiste de. l'État contemporain". In:
Vincent, J. M. (ed) L'État contem-. porain et le marxisme. Paris, ed. Maspéro, 1975, p.
27, citado por Salama (1983, p. 20). Cf. também a nota da p. 73 desta obra sobre o caso
japonês.
5 - Essas horas extras ultrapassam, às vezes, o máximo legal de 50 horas, cf. Kurumi
Suguita, "Le groupe de travail au Japon", comunicação apresentada na "Journée sur Ia
Societé Japonaise" da Societé Française de Sociologie,16 de novembro de 1984.
6 - Para um estudo sobre a contribuição das estruturas familiares durante a primeira
socialização ─ essencial para a vida profissional posterior: cf G.A. de Vos (1981).
7 - Sobre as formas mais comuns de mobilidade interna, cf. contribuição de Nohara e
Mac Maurice na "Journée sur Ia Sociologie Japonaise" citada, para uma discussão sobre
os motivos do recurso à mobilidade interna, cf. a contribuição de Sylvaine Trihn no
mesmo evento. Ciências Sociais do Japão Contemporâneo n° 7, editado pela "École des
Hautes Études en Sciences Sociales (Centre de Recherches sur le Japon Contemporaih),
março de 1985.
8 - Estudaremos o caso do grupo siderúrgico X, o primeiro produtor mundial de aço,
que possui uma dezena de estabelecimentos no conjunto do território japonês. Para a
criação de sua última unidade de fabricação no sul do país, 1972, não foi deito nenhum
recrutamento na região próxima da área industrial. O conjunto dos efetivos regulares,
3.600 em 1982, foi objeto de um deslocamento definitivo de três outros
estabelecimentos do grupo, entre os quais um situado a 2.000 km do novo local. Esses
efetivos regulares chefiavam, por outro lado, os 5.000 operários temporários e de
empreiteiras (mão-de-obra local).
Os motivos apontados pela direção da empresa para explicar esse recurso à mobilidade
intra-empresa em detrimento de um recrutamento no local estavam ligados à
possibilidade de início imediato e eficiente, permitido pelo trabalho dos funcionários
com uma experiência profissional anterior: "as pessoas da região não tinham
experiência siderúrgica. Não era possível recrutar e dar um treinamento rápido. Não é
como na eletrônica onde basta ter um supervisor homem e várias mulheres sem
qualificação" (entrevista com um responsável do departamento de engenharia industrial,
fevereiro de 1982).
No caso citado, a transferência definitiva para uma região distante 2.000 km implica na
mudança de toda a família do trabalhador, mas, mesmo neste caso, é preciso observar a
preeminência, o poder da empresa que arranca o trabalhador do seu meio (parentes,
vizinhos, família etc.).
8 - expatriados japoneses que deviam permanecer no Brasil durante 4 anos sem suas
famílias. Uma única viagem era paga pela empresa durante esse período para permitir-
lhes rever seus filhos e esposas.
9 - No caso de uma multinacional japonesa no ramo têxtil, a filial brasileira contava,
entre seus dirigentes,
10 - Para uma apresentação do indivíduo como categoria do capitalismo moderno e base
das relações amorosas no Ocidente, cf. Agnes Heller (1976).
11 - De acordo com as pesquisas feitas em lojas citadas por Juiti (1981).
12 - O divórcio é legal e comum, mas as estatísticas comparando a taxa de divórcio nos
EUA e no Japão mostram uma taxa muito mais baixa neste último. Ademais, a maioria
dos divórcios no Japão ocorre antes do fim do primeiro ano de casamento e parece ser
conseqüência dos casamentos arranjados que não tiveram sucesso. Cf. Saito Juiti,
(1981).
13 - Para a evolução desse sistema de emprego e remuneração, utilizamos os dados de
uma entrevista com Mikio Sumiya, presidente do Japan Institute of Labor (fevereiro de
82). Cf. também Sumiya (1963).
14 - Se as estatísticas oficiais contavam 2.560000 assalariadas em tempo parcial em
1980, três anos depois a revista Economisto de Tóquio estimava em 5.000.000 o
conjunto das assalariadas trabalhando em tempo parcial (Economisto, 1983, p. 106-111.
15 - Assim, segundo as estatísticas oficiais, a cerimônia do chá era praticada por
2.220.000 mulheres e o arranjo deflores por 5.930.000 em 1981; a população feminina
entre 15 e 24 anos de idade era de 7.886.000 pessoas (Statistical handbook of Japan,
1981).
16 - A inexatidão do termo provém do fato de que a aposentadoria ocorria aos 55 anos
até estes últimos anos; o assalariado devia passar mais ou menos 10 anos de sua vida
ativa em uma oura empresa, em geral com uma remuneração menor.
17 - A situação dos dormitórios de mulheres nos EUA era muito similar a dos
dormitórios contemporâneos no Japão: "In the mid-mineteenth century, when the
majority of the labour force consisted of young, unmarried women from rural New
England, the Company also regulated their behavior after working hours in order to
reassure their parents. The boardinghouses were closed and locked at 10:00 LM, churc
attendance was compulsory and alcohoil consumption was prohibited." (Hareven &
Langenbach, 1978, p. 14.) Sobre a França, cf. Guilbert (1966, p. 37-45); Kergoat (1982,
p. 45-46); "Les couvents soyeux" Les révoltes logiques n° 2, Ed. Solin, 1976, p. 19-39.
18 - Pode-se citar a compreensão dessas modalidades de exploração/dominação tornada
possível por alguns estudos antropológicos: cf. a análise das técnicas masculinas e
femininas (Chamoux, 1981a e 1981b). Cf. também a obra sobre a dominação masculina
nos Baruya de Papuásia (Godelier, 1982) e os números da revista L'Homme dedicados
ao tema da divisão sexual do trabalho. Cf. também Mathieu (1985).
Bibliografia
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Texto recebido para publicação em fevereiro de 1986
Tradução do francês de Marie Agnes Chauvel.
TAYLORISMO E
FORDISMO NO
TRABALHO BANCÁRIO:
AGENTES E CENÁRIOS
Roberto Grün
Este texto refere-se a uma pesquisa de campo realizada durante três anos num
banco multinacional, que tem seu centro de operações sediado em São Paulo. Numa
primeira versão, a pesquisa gerou uma dissertação de mestrado (Grün, 1985),
apresentada à PUC-SP no Programa de Ciências Sociais (orientada por Maria Andréia
Loyola). Naquela análise, as questões de organização do trabalho estavam subsumidas
na problemática geral da translação das classes médias para as grandes corporações. No
texto que apresento agora, a questão da organização ocupa o centro da exposição.
A especificidade do banco multinacional
A organização estudada implantou-se no Brasil no pós-guerra, a partir da
aquisição de uma casa bancária paulistana. Rapidamente transladou uma equipe
dirigente originária da matriz e de outros países. Sendo a atividade bancária não
produtiva (no sentido da economia política), a caracterização do status multinacional na
atividade bancária pode ser assinalado a partir da constatação de que o banco estudado
realiza uma efetiva divisão do trabalho ente e seus vários departamentos localizados nos
diversos pontos do globo, na sua função de intermediação financeira (participo do
conceito de multinacional de Clandler/Hymer). O volume proporcional de recursos
externos postos à disposição de seus clientes, bem como a forma com que eles foram
obtidos dão veracidade à constatação. Passando para um nível mais sensível de
evidência fenomênica, o caráter multinacional do banco aparece em sua inserção no
mercado financeiro nacional, onde ele atua como "banco de atacado", extraindo lucros
fundamentalmente de grandes operações realizadas com clientes do segmento
oligopolista e multinacional da economia. Este posicionamento lhe garante sobrelucros
nas atividades financeiras, que viabilizam a possibilidade de distribuição de uma
sobremassa salarial. Decorrem daí as particularidades de sua política de pessoal, que se
distingue da média dos bancos nacionais por três pontos básicos:
1. a aplicação de médias salariais e uma política de benefícios não monetários
superiores (Grün, 1985, p. 53 e s.);
2. um investimento proporcionalmente superior na qualificação de seu pessoal;
3. uma expectativa de permanência e de carreira ascendente também superior à
média do setor não estatal dos bancos.
De uma forma geral, as considerações acima levam-nos a vislumbrar uma arena
característica que performa os cenários estudados: trata-se, como que Fernandes (1975,
p. 268-9), de um nicho privilegiado dentro da economia nacional, onde a gestão de mão-
de-obra adquire características específicas, que a distinguem positivamente do ambiente
exterior. Estas condições geram uma forma de anteparo que amortece a eclosão dos
diversos fenômenos de agitação social/ sindical que poderiam tornar "quente" a
imposição das reorganizações do trabalho, tornando o processo frio, aparentemente
indolor. Veremos nos próximos segmentos que não é bem isso; trata-se efetivamente da
imposição de um novo arbitrário simbólico que encontra na organização um caldo de
cultura favorável para florescer.
Acredito que a tendência a imputar articulações da ,organização do trabalho a
genéricas necessidades de valorização do capital, acabam transformando este conceito-
chave na economia política materialista num ente metafísico, um demiurgo que paira
sobre todos e explica tudo. E, é claro, ao satisfazer o investigador com certezas
apriorísticas, interrompe decisivamente a marcha rumo ao conhecimento da realidade
concreta. Desta forma, a empresa, uma unidade de centralização de capitais, não pode
ser tratada como um monólito dirigido centralmente, a partir de uma genérica
compulsão metafísica, ainda mais no estágio monopolista da sociedade, quando a
identificação capital = capitalista = empresa torna-se uma abstração sem conexão maior
com a realidade sensível. Incorporando em seu seio parcelas sucessivas das pequenas
burguesias (e fazendo pequena parte da antiga burguesia), a empresa monopolista opera
a translação de parcelas significativas da estrutura social para dentro da organização.
Assim, a grande empresa torna-se uma arena onde os diversos segmentos da pequena
burguesia incorporada irão travar um jogo pesado de reclassificação social.
(Desrosières, Goy, Thevepot, 1983, p. 55-81). Acredito, portanto, que os diversos
artefatos "ideológicos" ou "tecnológicos" utilizados pelas subclasses de agentes na
pugna só adquirem sentido concreto quando referidos a seus utilizadores que, ao se
apropriarem dos instrumentos, sempre operam uma importante retradução do seu
conteúdo original, no que tange à aplicação efetiva do instrumento na prática da
organização, seja o instrumento uma teoria de controle de qualidade, um computador ou
mesmo um must da moda executiva.
Para mostrar a produção das reorganizações do trabalho, a arena toma a forma
de 3 cenários sucessivos, onde aparecem como atores principais: 1°) os antigos agentes
que articulam a primitiva configuração, organizada como um métier, gerido e
transmitido de forma autodidata; 2°) um cenário intermediário, surgido da tensão
produzida pelas lutas travadas entre os velhos atores, de um lado, e uma mescla
produzida pela justaposição de um segmento reconvertido do pessoal antigo e um novo
grupamento de agentes dotados de titulação universitária e forte competência social, de
outro lado; e 3°) a tensão produzida pela diferenciação dos agentes do segundo lado de
(2°), que os divide em "comerciais" e "informáticos".
A sucessão dos cenários não é necessariamente cronológica. Dependendo da
contribuição de cada um dos setores da organização para a valorização do capital do
conglomerado financeiro e das compulsões especificamente técnicas ou políticas, cada
um dos cenários prepondera, ou mesmo aparece com exclusividade. Desta forma, dos
vários setores pesquisados, pude extrair observações para compor os cenários e suas
variantes.
O primeiro cenário: a organização tradicional
A pesquisa da origem social dos bancários que produziram a primeira
configuração aponta para membros de uma franja da pequena burguesia urbana, que na
geração anterior a dos nossos agentes inseriam-se no tecido social como pequenos
comerciantes ou pequenos funcionários. No primeiro caso, a situação do pequeno
negócio familiar era sempre vista como de sobrevivência problemática. A quase
totalidade da amostra reivindica uma origem estrangeira e, assim fazendo, quer
distinguir-se positivamente da massa proletária. O caráter não manual do trabalho
bancário ─ explícito em fins da década de 50 e início da década de 60, época do
engajamento dos agentes na organização ─ reforça a pretensão de "trabalhadores
diferenciados" da amostra.
Não só a origem, mas também o comportamento dos agentes dentro da
organização aponta o caráter pequeno-burguês da amostra. Os nossos indivíduos
percorreram importantes carreiras ascendentes dentro do banco. Engajaram-se em
posições subalternas, os pisos da profissão bancária, mas que não eram de acesso
comum a toda a população que procurava emprego na época. Para isso, mobilizaram a
sua rede de relações sociais, pessoal ou da família, que afiançava o reconhecimento
social de sua boa origem, necessária para o engajamento numa empresa que tinha na
fidelidade e confiança os principais requisitos de admissão.
A qualificação profissional adquirida nas trajetórias distingue-se da qualificação
operária por não representar uma capacidade diferenciada de realizar um trabalho
específico. Mais do que uma qualificação profissional propriamente dita, trata-se de um
tipo de capital simbólico (Bourdieu, 1980) que os agentes acumulam no decorrer de sua
"vida organizacional", que corresponde no caso específico da atividade bancária, a ser o
agente um fiel depositário, cada vez mais confiável, da riqueza alheia que é gerida pelo
banco. Chamei esse "capital" de "capital-confiança". A sua acumulação primitiva
percorre duas fases: a primeira é a consciência performada pela socialização pequeno-
burguesa, que irá fazer do indivíduo uma pessoa reconhecida como possível de se tornar
um "igual" no meio bancário e portanto de conseguir o engajamento. A segunda fase é o
reconhecimento prático da capacidade do agente em amoldar-se às compulsões do meio
social e do processo de trabalho; agora trata-se de demonstrar á adesão aos critérios da
empresa A realização cotidiana de serviços que se alongam além dos limites da jornada
normal de trabalho e a não reivindicação de pagamento direto por essas "horas extras"
num cálculo implícito que permite vislumbrar o lucro futuro desse diferimento de
compensação, referenda o segundo estágio da acumulação primitiva (1). A remuneração
do capital-confiança acumulado e a sua acumulação num nível mais elevado passam a
ocorrer quando o indivíduo, já testado pela organização, passa a ocupar cargos
considerados de confiança, que, na escala hierárquica da empresa, vão desde a função
de caixa até os diversos níveis de chefia.
O aprendizado profissional neste estágio ancora-se na noção de métier.
Representando um momento em que o conhecimento organizacional é disseminado por
toda a organização e que ao mesmo tempo não tem nenhuma instância explícita de
codificação ou de reprodução, o ato de aprender a profissão de bancário irá confundir-se
inextrincavelmente com o ato de tornar-se um "homem de bem". O indivíduo aprende
observando seus colegas mais adiantados e o conteúdo dos trabalhos concretos é
apreendido no mesmo bloco que a assimilação dos comportamentos pessoais dos
imitados (Grignon, 1971). Performa-se assim um habitus profissional, que tem
tipicidade maior no artesanato tradicional.
O período do milagre econômico funcionou como um take-off no crescimento do
banco multinacional. Acompanhando o crescimento geral da economia, o banco
expandiu-se em flecha naquele período. E para ocupar os novos cargos de chefia
envolvendo enquadramento de pessoal, funções administrativas em geral e as novas
funções comerciais, os nossos agentes autodidatas serão os candidatos naturais. Afinal,
numa organização como o banco, moldada pela metaquestão da segurança, os
detentores do capital-confiança serão os maiores premiados pelo crescimento. Assim, a
organização reconhece o direito de apropriação fundado na nossa subespécie de capital
simbólico.
Mas o desenvolvimento do processo não é linear. Representando o coroamento
das estratégias encetadas pelos agentes autodidatas, a promoção aos cargos de chefia irá
reforçar ao máximo a inércia dos agentes em relação às novidades que estavam
surgindo no panorama empresarial. Assim, seu habitus profissional sedimentou-se e a
matriz de possibilidades de introjeção da realidade assim formada foi ineficaz para
produzir um direcionamento na nova época que estava se abrindo, que resguardasse a
posição relativa dos agentes autodidatas na organização.
O segundo cenário: a desvalorização do capital-confiança
A mudança de cenário na organização monopolista, que guarda feições de
mercado de trabalho primário, é um processo que se assemelha, em escala micro, à
Revolução Passiva gramsciana (Gramsci,1974, p. 142-3). É um processo realizado a
frio, onde a configuração da empresa muda significativamente sem grandes abalos, o
que permite-lhe funcionar normalmente enquanto processa as mudanças.
Os agentes ativos da transformação dividem-se em dois grupos: 1. um segmento
reconvertido do antigo grupo autodidata ─ esses indivíduos representam uma pequena
parcela daquele grupo, que consegue rearticular-se no novo tempo ─ para isso, realizam
investimentos pessoais adquirindo titulação de grau superior em cursos de freqüência
noturna, que se disseminam no nosso panorama escolar também na época do milagre.
Eles interessam-se pelas novidades informáticas e adotam rapidamente o léxico da nova
época, relativizando, em parte, os efeitos do habitus profissional em suas atitudes; 2. um
novo grupo de agentes que se engaja na organização a partir das novas empresas
financeiras que surgem com a conglomerização do banco. Esses agentes, que chamo de
técnicos, entram na organização já dispondo de importantes títulos universitários que
referendam uma qualificação genérica, imposta do exterior para a empresa. Isto
representa uma novidade completa para os antigos padrões, onde o banco, seus critérios
internos de avaliação, eram a medida para todas as coisas.
Juntos, os dois grupos atuam na empresa como agentes inovadores; os
portadores em carne e osso do management moderno. A introdução dessa modernidade,
que aliás parece ser a marca do período na maioria das empresas oligopolistas atuando
no Brasil, faz-se evidentemente às custas dos nossos agentes passivos, os quadros
autodidatas que não realizaram a reconversão e a massa subalterna que começava a
percorrer na época uma trajetória que, pelo antigo padrão, deveria levá-la às boas
colocações da organização. As antigas expectativas ─ realistas no período anterior ─ de
rentabilidade do capital-confiança já acumulado, desvanecem-se. Na empresa moderna,
os cargos importantes deverão ser preenchidos pelos agentes modernos. Por isso,
chamei esse processo de desvalorização do capital-confiança.
A produção da passividade dos antigos agentes é um processo nuançado, com
componentes internos e externos à organização entrelaçados. A disseminação, no
imaginário social brasileiro, dos pré julgados da ideologia tecnocrática, age formando o
caldo de cultura, o apriorismo básico que legitima desde a introdução das mudanças
organizacionais fomentadas pelo computador até o preterimento de candidatos internos
aos postos de prestígio da empresa, dando verossimilhança social aos veredictos
exarados dos testes psicológicos (Verdès-Leroux, 1978). Internamente temos a ação de
quatro mecanismos desencadeados pela organização, que, potenciados pelo fator
externo, irão produzir a passividade e pavimentar o caminho para as reorganizações do
trabalho.
A informática: expropriação do saber
No início da década de 70, o apogeu do milagre econômico, o computador
irrompe na vida organizacional brasileira como o seu principal signo de modernidade.
As organizações colocam o novo aparato "na vitrine". Embora precedido da introdução
de aparelhos eletromecânicos já com alguns instrumentos de controle, tais como as
máquinas de caixa Burroughs, a introdução do computador dará o pretexto para o
processo sistemático de desapropriação do saber de métier por parte da direção do
banco.
Preliminarmente, o novo demiurgo só ganha inteligibilidade quando colocado
num momento histórico em que a explosão universitária começa a dar frutos, através da
aparição, no mercado de trabalho, de um grande contingente de pessoal graduado em
escolas superiores, já com algum preparo informático ou familiaridade com o assunto
que permita a sua rápida assimilação. A introdução de matérias de informática e de
Organização e Métodos (O & M) nas escolas superiores e a criação de escolas livres,
comercializando esse novo saber, irão potenciar esse processo.
No banco, num primeiro momento, os manipuladores do novo aparato serão
recrutados no interior da organização, seguindo um padrão que parece ter sido geral nas
organizações já estruturadas que recebiam o computador (2). A maioria dos agentes que
se engaja no trabalho informático do banco na época vem de setores atingidos pela
modernização, os setores administrativos das agências, serviços de cobrança, de
contabilidade. O fundamental da nova capacitação desses agentes será conseguido com
o fornecimento dos "pacotes de treinamento", vendidos pelas fábricas de computadores
juntamente com as máquinas propriamente ditas. No início do processo, o seu
conhecimento prático das tarefas a serem introduzidas em ambiente informático será
fundamental na organização da desapropriação. Gradativamente, esses autodidatas que
se reconvertem através da informática vão sendo confinados à manutenção do sistema
computadorizado já existente, via de regra, o serviço de que já eram conhecedores antes
da introdução da nova tecnologia. Outra possibilidade bastante freqüente é o
direcionamento dos autodidatas reconvertidos para os setores de operação do Centro de
Processamento de Dados (CPD), que são produzidos na nova divisão técnica de trabalho
realizada pela informática. Ali, os autodidatas ocuparão funções tipicamente de
enquadramento de pessoal, no setor da organização burocrática que mais se parece com
uma fábrica; encarregado da produção diária de listagens, digitação, expedição etc.
As reconversões mais bem sucedidas serão aquelas em que o indivíduo adquire
os conhecimentos informáticos no trabalho, potencia/legitima o seu conhecimento
através da obtenção de diploma em curso superior e, dentro da organização, transfere-se
para os setores usuários da informática, onde o seu conhecimento tem alto valor
distintivo. Normalmente esses setores localizam-se em departamentos distantes em
termos geográficos da matriz, são as novas filiais recém-abertas e em estruturação.
Os grandes homens da nova era serão os "generalistas", os que "conseguirão
entender a informática como parte da estratégia geral do conglomerado financeiro de
modernização e de adequação à nova realidade". Esses novos agentes terão como pré-
condição para o seu sucesso o desligamento de qualquer trabalho concreto pré-existente
no banco, condição essa necessária para revolucionar os métodos de trabalho e, assim
fazendo, impor uma nova correlação de forças na organização. Os bancários
parcialmente reconvertidos, agarrados ainda a parcelas do conhecimento adquirido de
forma iniciática, não conseguirão dar o salto completo que representa o
abandono/relativização de seu conhecimento concreto adquirido na fase pré-
informática, isto é, romper com as amarras da ideologia de métier.
Na morfologia da empresa, a introdução do computador vai significar,
principalmente, o aparecimento de uma forte clivagem no trabalho administrativo. A
maior parte do trabalho de concepção dos novos conhecimentos passará a ser realizada
pelo pessoal informático. Esse processo aparece claro na configuração que. qualquer
novo procedimento adquire quando vai ser estudado/implantado na organização. Após
uma decisão tomada pela Diretoria da Empresa, seus superiores da matriz ou pelas
autoridades monetárias, que inicia um projeto de desenvolvimento de sistema, os
contornos do sistema são analisados pela alta gerência da área informática, que
circunscreve o âmbito do novo procedimento, delimitando as diversas áreas de atuação
dentro da empresa. O detalhamento da solução é realizado por uma equipe de analistas,
nivelados hierarquicamente no quadro de pessoal do banco com os cargos de baixa
gerência, que então submeterá o problema, já com uma solução delineada e com as
portas fechadas para uma solução alternativa, aos setores operacionais envolvidos.
Desta forma, o envolvimento desses últimos no trabalho de concepção será aparente,
uma espécie de ritual homologatório.
A configuração acima, que hoje parece natural, é na verdade um resultado do
processo de expropriação dos conhecimentos operacionais do métier de bancário, que é
realizado pelos reconvertidos e novos agentes, com o beneplácito da alta direção. O
principal vetor neste sentido é a elaboração dos manuais de organização. Em tese, esses
manuais, herdeiros das ordens de serviço da burocracia tradicional brasileira, deveriam
orientar a prática dos setores operacionais, indicando o caminho a ser seguido na
solução dos problemas. Na prática, os setores confinados aos autodidatas, as áreas
administrativas que deveriam ser seus maiores usuários, não os consultam por não terem
acesso à linguagem informática em que os manuais são redigidos, a qual exige o
conhecimento prévio de uma série de conceitos que não estão disseminados na
organização, ordenados a partir de uma lógica ─ traduzida num encadeamento de
tarefas ─ que não é a da prática dos setores autodidatas/usuários. Por outro lado, os
manuais também se tornam um instrumento de transferência de responsabilidades pois
qualquer instrução, exeqüível ou não, quando recebida pelo setor operacional
responsável pela sua execução, passa a ter realização obrigatória.
A necessidade de elaboração de manuais, sentida e deflagrada a partir do esforço
para homogeneizar os procedimentos das diversas seções dispersas na empresa, e para
facilitar a introdução dos novos procedimentos necessários à computação eletrônica dos
dados, acaba dando a oportunidade para a investigação exaustiva do conteúdo das
tarefas que constituem o mister da atividade bancária e a sua retradução na linguagem
informática, que assim se constitui numa tecnologia de despossessão/concentração de
conhecimentos. A partir do enquadramento das tarefas nos instrumentos de trabalho
próprios das novas funções ─ os fluxogramas, organogramas, checklists, quadros de
distribuição de trabalho etc. ─, a despossessão operacionaliza-se, com a concentração
"naturalizada" dos conhecimentos bancários em volumes compactos à disposição das
cúpulas (3). Ora, sendo os informáticos as pessoas capazes de apropriar-se do
conhecimento assim disposto, o resultado político dessa divisão técnica de trabalho fica
claro, conformando-se assim a conceituação geral de que a evolução dos processos de
trabalho em ambientes de alta tecnologia irá realizar a superqualificação de um lado
(técnico, moderno, titulado...), e a desqualificação do outro (bancário, autodidata,
operacional...).
Os ecos desse processo nas entrevistas com os autodidatas são bastantes
escamoteados, difusos, como se o total devotamento à organização que lhes é peculiar
impedisse a formulação da queixa. Assim, temos a situação traduzida em linguagem de
nostalgia: "Antigamente, se tinha algum problema, qualquer novidade, a gente resolvia
na própria agência, depois, se achava que tinha feito bem, comunicava pros colegas dos
outros departamentos e todo mundo ficava sabendo. Agora não tem graça, já vem tudo
pronto do Centro Administrativo. O máximo que o pessoal faz é ligar para a gente para
dar uma sondada. Assim, a gente perde o estímulo...": Em um caso, entretanto, através
da fala de um autodidata "desiludido", a trama fica explícita: "Os caras, esses
engenheiros que nunca entraram numa agência a não ser para descontar cheque, pegam
e inventam essas novidades como a cara deles. Daí, na hora de aplicar é com a gente. Se
não dá certo, é a gente que é burro porque não entendeu. Você liga pro cara para pedir
um esclarecimento, e o cidadão não só não te orienta, como te dá uma baita bronca; a
bomba fica sempre na nossa mão...". E mais adiante, identificando o entrevistador como
membro do pólo técnico da organização, temos: "Eu não tenho mais futuro aqui dentro,
é só esperar a aposentadoria. Daqui para frente só vai dar vocês no banco...".
Paralelamente, o ambiente já computadorizado reduz drasticamente a
necessidade de trabalhos extraordinários ─ os momentos fortes da acumulação inicial de
capital-confiança, como se depreende da entrevista a seguir: "Antes do computador, das
listagens de caixa, a gente tinha de preparar o conta-corrente todas as tardes, não era
moleza. Bancário era bancário de verdade, tinha de mostrar valor, ficar até de
madrugada se fosse preciso, mas no dia seguinte, tinha de estar tudo pronto Agora ficou
moleza, o pessoal tem tudo fácil, não dá mais para o pessoal mostrar o seu valor, o
computador faz tudo...".
A auditoria: expropriação da confiança
Os comentaristas que discorriam sobre a situação do mercado financeiro do
Brasil anterior a 1964, insistiam na idéia de que tínhamos uma infinidade de bancos e de
casas bancárias, mas que não tínhamos efetivamente um sistema bancário. Com isso,
queriam dizer que, embora extenso, o mercado financeiro apresentava uma disparidade
tal de procedimentos em cada um de seus agentes, que não podíamos falar na existência
de uma rede de serviços financeiros minimamente eficientes.
O projeto de modernização conservadora que se seguiu ao golpe de 1964, passou
pela elaboração e colocação em prática de uma política explícita de constituição de um
sistema financeiro nacional. E, dentre as medidas necessárias para dar crédito público
para o sistema, destaca-se a legislação e a sistematização dos processos de controle
sobre a atividade bancária, realizados através da constituição do Banco Central do
Brasil. A mesma legislação obriga os bancos a manterem o seu corpo particular de
auditores e, na sua versão da época da pesquisa, determina a realização de duas
inspeções internas em cada departamento do banco comercial. A obrigação legal, aliada
às necessidades de controle da matriz sobre as atividades de sua filial brasileira, vão
gerar um processo de sistematização das atividades de controle contábil outrora
dispersas pela empresa, com a criação de um departamento próprio paia tais atividades
dentro da organização.
Uma monografia descritiva e prescritiva sobre o setor bancário, publicada pelo
Instituto Brasileiro de Mercado de Capital (IBMEC) em 1972, relata o que deve ser um
departamento de auditoria, descrevendo uma situação que corresponde ao estado do
departamento que observamos:
"Compõe-se o Departamento de Inspetoria e Auditoria de um quadro de
funcionários denominados inspetores e auditores. Em síntese, a função destes é
percorrer as diversas agências do banco a fim de exercer a fiscalização direta das
atividades de cada uma. Faz-se mister que os inspetores e os auditores sejam
selecionados dentre os funcionários mais dignos de confiança porque, na prática, eles
representam a própria Alta Administração exercendo a supervisão de todo o
estabelecimento. No rol das tarefas pertinentes à inspetoria e à auditoria destacam-se as
seguintes: verificação do cumprimento dos regulamentos pelas agências, instruções etc.;
analisar se os níveis de encaixe técnico das agências atendem às necessárias precauções
de segurança; conferência do numerário e dos valores mantidos em tesouraria para
confronto com os dados fornecidos pela contabilidade; controle também sobre o próprio
gerente e sobre as diversas operações e serviços não só para verificar a sua qualidade
como também para comprovar se os negócios estão gerando lucro ou prejuízo; controle
da exatidão dos lançamentos e registros. Como se pode observar têm os inspetores e
auditores uma relativa ascendência sobre os gerentes das agências, a quem controlam.
Em qualquer caso, após todas as inspeções, a inspetoria e a auditoria devem enviar
minuciosos relatórios à Diretoria" (Bancos..., 1972).
Esses "funcionários mais dignos de confiança" serão recrutados realmente entre
os elementos da organização de confiança absoluta, mas também, e fundamentalmente,
no interior deste universo, entre os indivíduos que foram colocados e colocaram-se
diante da impossibilidade objetiva de seguir carreira ascensional no banco. Esse tipo de
recrutamento interno vai produzir auditores que erigem a minúcia e o espírito
investigativo na sua principal qualidade. Ora, sendo o pólo autodidata o que está sendo
relativizado na atual conjuntura, é natural que forneça a quase totalidade de quadros
para essa função. E assim, os conhecimentos de que esses auditores disporão para
exercer o seu trabalho serão os conhecimentos de métier, de eficiência máxima para
fiscalizar os seus pares, e pouco calibrados para as atividades dos técnicos.
A criação e aplicação desta nova tecnologia de controle será assim direcionada
para a fiscalização das atividades exercidas preferencialmente pelos bancários
autodidatas. A tentativa de ampliar o âmbito da sua atuação sobre a produção
informatizada é reveladora do processo de transformações que a empresa está passando:
o aumento das atividades submetidas à informática leva à necessidade de controle sobre
a sua atuação. Por isso, a gerência de auditoria, subordinada ao máximo poder decisório
existente no país, e com acesso direto à matriz, consegue a criação de um
subdepartamento para Auditoria de Sistemas. No recrutamento interno do pessoal para o
novo quadro surgem preferencialmente como candidatos os autodidatas reconvertidos
que trabalham no CPD, uma vez que estes, dentro de seu quadro referencial particular,
valorizam o prestígio que a nova função lhes atribui na empresa e também dispõem do
capital-confiança acumulado para serem assimilados no ambiente. Já os técnicos
desprezam essa oportunidade, que significa trabalhar num departamento com fama de
atraso e policialesco. Assim, para as novas funções, são recrutados autodidatas que,
enquanto informáticos, já tinham uma formação distorcida, com hipertrofia de
conhecimentos de alguns sistemas particulares, e atrofia dos conhecimentos mais
abstratos, de concepção e arquitetura de sistemas. No que tange aos trabalhos de
auditoria de novos sistemas, a sua, atuação acaba sendo também homologatória, a
exemplo dos setores autodidatas operacionais. No que tange à fiscalização dos sistemas
mais antigos, serão mais críticos. Entretanto, vivemos na era da nova revolução
informática, onde a importância dos antigos sistemas é pequena.
No processo geral que estamos descrevendo nessa seção ─ a relativização do
capital-confiança ─ a auditoria terá a sua eficiência máxima. À medida que o exercício
das funções de confiança passa a ser sistematicamente investigado, e com periodicidade
tal que impede o encobrimento da maioria das fraudes possíveis ─ com a tecnologia de
controle hoje existente ─ a "fraude" realizada com ordens de pagamento descrita no
filme O Bom Burguês seria descoberta no dia seguinte à primeira tentativa. O capital-
confiança acumulado nas trajetórias em que a confiança era o principal dos atributos,
deprecia-se, pois a qualidade em que ele se encarna deixa de ser vital para a
organização.
O treinamento: expropriação da autoconfiança
Na plena vigência do modo de dominação "antigo", a trajetória profissional
típica dos autodidatas performava um critério de excelência profissional que legitimava
as pretensões e o exercício das funções de chefia. O aparecimento do treinamento
profissional como corpo autônomo vai aqui significar a criação de uma dinâmica que
produz a invalidação daquele critério, retirando dos bancários as certezas que lhes
infundiam autoconfiança. Primeiramente, há que se assinalar que o treinamento
profissional vai ser objeto de incentivo governamental, a nível da criação de uma série
de isenções fiscais e de uma estrutura de ensino governamental a ser utilizada pelas
empresas, o que induz a pensar que a nova configuração do campo empresarial é um
objetivo implícito da estratégia seguida pelo governo federal.
Na empresa, o treinamento aparece como o instrumento de expropriação mais
opaco, pois confunde-se com a escola, a qual, na consciência dos pequeno-burgueses
autodidatas que analisamos, é democrática, aberta aos que merecem. Assim, temos a
apreciação modal: "Aqui ninguém tem a desculpa de que não teve chance. O banco dá
oportunidade para todo mundo. Se o cara não aproveita, é porque ele é preguiçoso ou é
burro. Então, o azar é dele...".
Acompanhamos na empresa a realização de três cursos de longa duração, o que
significa dois a três meses de seções diárias de oito horas, além de vários cursos
menores. Dos cursos longos, dois tiveram como público referencial os autodidatas e um
os técnicos (sobre a especificidade das escolas de empresa ver Grignon, 1971, p. 143-8).
A estrutura dos cursos divide-os em dois grandes blocos, de matérias específicas
da atividade bancária e de técnicas de comportamento. As primeiras são dosadas em
função do cargo que os treinandos irão desempenhar, promovendo uma atualização de
procedimentos, sempre de acordo com o seu conteúdo abstrato, retirado dos manuais de
organização. O corpo docente para essas matérias compõem-se fundamentalmente de
pessoal informático para a área administrativa e de especialistas em gestão comercial de
produtos específicos para os cursos da área comercial. Nos cursos dados para público da
área administrativa, em cuja atuação se supõe o exercício direto de funções de
enquadramento, as matérias comportamentais são técnicas de chefia e gestão de pessoal.
Nos cursos voltados para a área comercial, são técnicas de vendas.
Apesar de todas as manifestações de adesão à empresa que os autodidatas fazem
cotidianamente, a percepção do caráter de violência simbólica do treinamento é bem
delineado, como podemos depreender das manifestações abaixo descritas. Para as
matérias consideradas típicas do métier de bancário, temos: "Isso que eles querem me
ensinar, eu já sei, aprendi nos vinte anos que já estou no banco, eu acho que eles estão
querendo é ensinar o Padre Nosso ao vigário..." Usualmente, essas matérias são
ministradas em cursos que sacramentam a promoção de diversos funcionários para
novos cargos, e as turmas heterogêneas acabam levando a curricula mal balanceados.
De qualquer forma, os analistas de treinamento que organizam os cursos dizem que
"sempre é bom dar um reforço de conhecimentos para o pessoal...". Quando se trata de
treinamento visando a introdução de algum procedimento novo, entrando num universo
em que os atores pisam com pouca firmeza, temos: "...Eles mudam toda a rotina do
cheque sem consultar se a gente pode fazer como eles querem e forçam a gente a
aprender em quatro horas. A bomba sempre cai nas mãos...". Ou ainda: "...Eles chamam
a gente para vir de sábado, largar a família... dão umas aulas que eu não entendo nada e
depois deixam o pepino na nossa mão. Quando você liga para perguntar qualquer
dúvida, os caras te tratam mal. Não respeitam os anos que a gente tem de banco e ainda
te chamam de burro...".
A linguagem utilizada pelos informáticos, o léxico universal desta profissão, é
bastante diferente da linguagem dos bancários. Como esta falta de comunicação fica
evidente, a empresa passa, num segundo momento, a encarregar os autodidatas
reconvertidos da docência dos cursos. Daí a coisa fica picaresca, pois os treinadores
mostram-se ansiosos para demonstrar a sua pertinência ao grupo dos informáticos e
acabam utilizando-se da linguagem mais rebuscada possível, dentro do novo léxico.
Mas, como eles são elementos de prestígio dentro do bloco autodidata, a sua atuação
não é tão criticada: "O S. sabe tudo de banco, quando eu entrei aqui, ele já era chefe de
expediente. Na aula dele, pelo menos a gente pode perguntar que ele entende a
pergunta. Mas a gente entende tão pouco que às vezes nem dá para perguntar. É melhor
você fazer cara de inteligente, para eles pensarem que você entendeu tudo, e depois se
virar na Agência... ".
As matérias de comportamento, que trabalham mais diretamente a personalidade
dos treinandos, oferecem um vasto campo para a análise. O choque entre o velho estilo
de enquadramento, personificado nos treinamentos e o novo estilo, a ser definido pelos
treinadores, revela os pontos basilares dos dois estilos de vida que se defrontam
objetivamente. Em termos analíticos, aparece com transparência única a luta que
fornece a chave para a dinâmica empresarial do "segundo tempo". Estaremos aqui
diante do conflito entre os habitus ─ entendidos como estruturas de exteriorização e
interiorização da realidade construídas nas trajetórias sociais típicas ─
cronologicamente sucessivos que se defrontam na organização.
O conteúdo dos cursos mescla elementos de dinâmica de grupos com formas
"ecléticas" de sensibilização. Deve ser entendido no momento em que modernizar os
estilos de chefia passa a ser um objetivo importante dentro do projeto estratégico da
empresa. Neste tempo, os profissionais de relações humanas aplicam o essencial de sua
atenção e da sua ação no esforço dirigido para as chefias intermediárias, desta forma, a
sua estratégia particular de distinção dentro da empresa é a operacionalização das
técnicas que têm a possibilidade de mudar as atitudes de enquadramento do pessoal
subalterno, condição necessária para o sucesso dos projetos de renovação concebidos
pela direção geral (Villete, 1976).
A modernização das técnicas de chefia é a essência mesma da grande
modificação do modo de dominação que está se implantando. Trata-se de substituir os
antigos estilos, tidos atualmente como autoritários, por métodos de manipulação doce,
em que a compulsão para o enquadramento pareça uma necessidade vinda de dentro,
interiorizada profundamente pelos membros da organização e tida assim como natural.
As psicólogas da empresa, os agentes internos que manipulam com maior legitimidade e
desenvoltura a nova linguagem ─ a versão cientificizada da moral capitalista ─,
extrairão daí a sua força relativa. Os bancários autodidatas, colocados diante do novo
método, que lhes aparece como um discurso articulado, manipulado por pessoas
legítimas, que, além da organização, extraem sua legitimidade também do ambiente
externo que promove a "psicologia científica", estarão simbolicamente desarmados.
Os cursos de técnicas de chefia são ministrados na organização em dois ou três
dias ─ tempo integral. Compõem-se de três partes: a primeira é a apresentação pelo
docente de casos aparentemente concretos, nos quais se induz os indivíduos a acreditar
que o autoritarismo na chefia, ao excluir a participação dos subordinados na solução dos
problemas, acaba limitando a qualidade das soluções e tornando os subordinados
apáticos, isto é, pouco produtivos. Desta forma, o novo método aparece como a
democracia lutando contra o autoritarismo. Mas, a todo momento os treinadores fazem
presente que a democracia de que falam não tem nenhum sentido transcendente, ela é
superior porque dá melhores resultados (4).
A segunda parte do curso consiste na simulação de problemas, que devem ser
resolvidos primeiro individualmente e depois em grupo. O problema clássico
apresentado no banco ê idêntico ao que já vimos em outros ciclos de treinamento. Trata-
se da simulação de uma alunissagem, os seus preparativos e as manobras que devem ser
tomadas posteriormente, já na superfície lunar. Juntando os conhecimentos esparsos que
cada indivíduo tem das viagens espaciais, as soluções coletivas são mais eficientes do
que as tomadas individualmente. A indução ao futurismo da simulação acaba por fazer
passar a idéia de que os problemas complexos, sérios, modernos, devem ter solução
coletiva, sendo irremediavelmente passadistas as soluções individuais.
Uma vez minadas as defesas dos agentes, chegamos à terceira e última parte do
jogo. Agora os indivíduos deverão trazer casos concretos extraídos de sua vivência para
a discussão em grupo. Aí, o autoritarismo com que o evento foi conduzido e a pouca
eficácia da solução encontrada ficam sempre patentes. No caso dos autodidatas, é
freqüente a apresentação de casos que têm como protagonista principal o próprio
relator, e quando isso acontece, o curso passa a ser o palco de uma penosa mea culpa, ao
estilo das sessões de confissão das Igrejas Evangélicas.
A partir da trajetória social e profissional dos bancários treinados, chega a
parecer ingênuo que um curso de três dias, por mais dramático que tenha sido o seu
conteúdo, por mais acuradas que sejam as técnicas de sensibilização, possa alterar
fundamentalmente os estilos de chefia introjetados em toda a vida e dimensão
fundamental do habitus dos bancários. Isso sem falar que os bancários impõem viva
resistência às tentativas de conversão, sendo freqüentes os atritos entre o docente e os
treinandos, de tal forma que muitas vezes tais cursos são acompanhados por uma
autoridade superior do banco. Daí termos registrado impressões como: "Eu quero ver
essa mulher chefiando uma seção, se ela deixa o pessoal solto, ninguém trabalha. Ela
nunca foi chefe, nunca teve de dar produção, daí fica falando essas bobagens". Ou
então: "Eu já sou chefe aqui há seis anos e sempre deu tudo certo na linha dura, o banco
sempre funcionou assim. Se a gente fizer como eles querem, isso vira uma bagunça".
Mas então, para que servem esses cursos? Tendo realizado um curso semelhante,
e verificado o destino dos seus participantes após a conclusão, Villette (1976, p. 58-9)
nota que o seu resultado é o conhecimento do vocabulário expressivo das novas
maneiras e da nova moral. O reconhecimento da legitimidade dos preceitos ensinados
durante o curso podem conduzir o agente a julgamentos de valor negativos em relação
às formas de comportamento autoritárias que eram as suas, e a julgamentos muito
positivos em relação às atitudes que lembram, de perto ou de longe, aquelas que lhe
foram apresentadas no curso como as técnicas de relações sociais moralmente válidas e
cientificamente fundadas. É sobretudo do ponto de vista do superior hierárquico que a
eficiência dessa transformação de julgamentos de valor tem mais chance de parecer
sensível, porque o agente se mostra ao mesmo tempo ansioso em aplicar as novas
consignas - que lhe lembram aquelas dos jogos e exercícios dos seminários - e disposto
a admirar os fundamentos do novo modo de dominação. Em suma, trata-se mais de
desenvolver uma disposição a reconhecer o novo estilo de comportamento, do que de
ensinar alguma técnica. E nesse sentido, o seminário priva os agentes de suas "defesas
naturais" e coloca-os vulneráveis ao trabalho de moralização, de motivação, operado na
empresa.
Em nosso caso, além dos superiores, em geral portadores de títulos
universitários socializados ou reconvertidos à nova moral, também grande parte dos
subordinados dos autodidatas participarão da nova socialização. Enquanto os bancários
autodidatas encerram a sua escolaridade formal no segundo grau, é numeroso o pessoal
subalterno cursando escolas superiores, foros privilegiados de inculcação da nova
moral. As escolas que esses agentes freqüentam são de baixo prestígio no mercado de
trabalho, insuficientes para candidatá-los a carreiras no pólo técnico da organização,
mas suficientes para equipar os indivíduos de conceitos promotores de críticas
deslegitimadoras do comportamento de seus chefes e potenciar alguma possibilidade de
ascensão na empresa, "passando por cima" de seus chefes imediatos. Estes, aferrados
aos velhos estilos do métier, tendem a desvalorizar as tentativas de escolarização
superior de seus subordinados, escorados que estão em seu critério de excelência, o qual
pressupõe o acúmulo de capital-confiança, produzido a partir das horas de trabalho
extraordinárias, realizadas após o fim do expediente. Como os cursos possíveis de serem
freqüentados pelos subalternos são noturnos, a continuidade do padrão autodidata os
inviabilizaria. Mas, com a automação de um setor de gestão de pessoal na nova
configuração da empresa, os chefes perdem a capacidade de gerir a carreira de seus
subordinados, e a cada reconhecimento dado pela organização à nova trajetória ─ por
exemplo, estimulando a freqüência aos cursos noturnos através do pagamento das
mensalidades ─ o velho estilo também se desvaloriza. Desta forma, o humor
antiautoritário dos subordinados é potencialmente perigoso para o chefe autodidata,
despossuído agora do monopólio da violência simbólica.
Ao lado dos cursos de chefia, os programas de treinamento fornecem de maneira
combinada um curso de "organização". Este último é ministrado por pessoal informático
masculino, portanto de formação técnica, distinta da formação humanista das
psicólogas, e claramente realizam o trabalho "sujo" da distribuição da autoconfiança dos
bancários.
Participamos, como "meio aluno/meio instrutor" de um desses cursos, que foi a
combinação de introdução às técnicas de Organização e Métodos (O & M) e de
relativização dessas técnicas. Foi ensinada a elaboração de fluxogramas ─ a
representação gráfica de uma atividade em vários estágios, a partir de uma simbologia
reconhecida entre os profissionais de informática ─ e fornecido um gabarito com esses
símbolos para cada um dos presentes. Com esses instrumentos, cada um dos treinandos
fez um exercício prático do processo de administração da máquina fotocopiadora de um
escritório. Após a crítica da solução apresentada por cada um dos participantes, seus
erros de lógica eram comentados e o docente principal acabava a sessão dizendo que,
para cada tipo de problema, muitas soluções eram possíveis. Ato contínuo, os gabaritos
eram recolhidos, pois "custam caro e quem quiser que os compre, pois existem nas boas
papelarias...".
No dia seguinte foram contadas duas histórias exemplares, as fábulas
empresariais, destinadas à reflexão dos alunos dentro do "espírito da casa".
Depois das fábulas, o curso passa a demonstrar as virtudes da divisão racional do
trabalho e a importância da boa chefia. Os alunos são convidados a fazer aviões de
papel com diversas organizações. Primeiro sozinhos, depois em grupos aleatórios,
depois em uma linha de produção sem chefia e finalmente numa linha de produção com
chefia. Os resultados progressivamente maiores da produção em cada uma das fases
"demonstra" sucessivamente a superioridade do trabalho em grupo sobre o trabalho
individual, da linha de produção sobre o grupo indiferenciado e, finalmente, a
superioridade da linha de produção com chefia sobre a linha de produção acéfala. Esta
fase do curso transcorre num clima bastante amistoso, quase infantilizado, de
brincadeiras e camaradagem, que não é conseguido ao acaso, mas trabalhado.
A manutenção do clima é essencial para o suporte do módulo. Assim, o docente
deve provocar simpatia através de piadas, brincadeiras e, porque não, numa turma
composta exclusivamente de homens separados da família, a figura de uma auxiliar
considerada formosa. Estabelece-se então o clima para a interiorização dos esquemas
geradores das situações criadas. O engajamento nos jogos parece uma brincadeira, num
ambiente descontraído em que as pessoas se jogam voluntariamente nos papéis que lhes
pedem para exercer. De tudo isso, podemos dizer como Bourdieu que o ardil da razão
pedagógica reside principalmente no fato de extorquir o essencial sob a aparência de
exigir o insignificante, como o respeito às formas de respeito, que constituem a
manifestação mais visível e ao mesmo tempo mais natural de submissão à ordem
estabelecida, ou as concessões de polidez, que sempre escondem as concessões políticas
(Bourdieu, 1980, p. 117).
A articulação dos cursos de chefia com os de organização representam assim
para os autodidatas a retirada do tapete. Na verdade, o que se contesta é todo o seu estilo
de vida. O critério de excelência construído por eles é atacado sem mercê. O homem
acabado, completo, não deve ser mais rigoroso, diligente e cauteloso, mas flexível, que
até ontem para ele era sinônimo de esperto, oportunista, picareta e sabido. O mundo
então se invérte, foge aos pés. Mas a organização lhes fornece, pelo menos todos assim
acham, os instrumentos para se adaptar aos novos tempos. Eles não aproveitam a
chance, assim, passam a achar-se ultrapassados, e daí aceitam o papel de pequeno
intermediário. Os autodidatas já sabem que existem técnicas de organização e de chefia
diferentes das suas, e científicas, aprendidas na escola. Eles as viram, mas não chegaram
a aprender. Então, o problema é deles. Em suma, toda a organização acaba registrando o
assinalamento dos autodidatas no papel típico de chefes subalternos e intermediários, os
representantes do passado, um resíduo que deve ser progressivamente eliminado.
Puxaram o tapete...
A estratégia seguida pela rede bancária nacional, de concentrar a oferta de
serviços de todo o conglomerado financeiro hegemonizado pelos bancos comerciais nas
agências bancárias foi outro duro golpe sofrido pelos bancários de métier. Ao
transformar as agências bancárias em "supermercados de serviços", este processo gerou
o aprofundamento da especialização dos setores comerciais dos bancos.
Esse processo ocorre simultaneamente à introdução dos computadores centrais
nas organizações. Essa coincidência vai ser prenhe de conseqüências, pois os novos
produtos oferecidos já vão aparecer aos bancários na forma computadorizada. O
trabalho referente a eles nos postos administrativos vai se restringir à preparação de
dados abstratos para a introdução no computador. Assim, a via de acesso através da
apropriação prática dos conhecimentos referentes a esses produtos através de sua
manipulação administrativa vai ficar prejudicada. A coincidência não é fortuita, pois
apenas a partir da economia de escala proporcionada pelo computador é que se torna
uma alternativa razoável a concentração da oferta de serviços Os ecos do fenômeno na
consciência dos bancários aparecem como uma forma de alienação: "Seguros, leasing,
essas coisas todas, eu só tomo conhecimento quando estoura a conta do cliente (5), o
resto eu não entendo e nem quero saber, é coisa da área comercial ou do computador...".
Concretamente, a possibilidade de trajetórias profissionais que conduzam da área
administrativa para a área comercial, das zonas de mais baixo prestígio e remuneração
rumo à alta chefia, torna-se inviável no velho padrão em que a qualificação se conseguia
através do conhecimento prático adquirido no trabalho. Enrijece-se a estratificação
dentro da empresa. As perspectivas profissionais que em outros estágios do campo eram
possibilidades razoáveis para um bancário aplicado, desvanecem-se na nova
configuração (6).
Por outro lado, nos quadros da modernização à americana sofrida pelos bancos,
temos a aparição dos cargos de gerente de operações nos departamentos. Tratam-se de
indivíduos com atribuições exclusivamente, comerciais de elos de ligação entre a
clientela e o banco, operando com uma carteira de clientes limitada, da qual devem
acompanhar detidamente as necessidades e o desempenho. Essa nova função vai ser
introduzida na hierarquia da empresa entre o responsável administrativo dos
departamentos e o seu gerente geral. Esse último deixa assim de ter contato direto com.
os clientes, acompanhando-os através da mediação dos gerentes de operações. Desta
forma, a progressão das funções administrativas para as funções comerciais nas
agencias vai encontrar um obstáculo fïsico.
O preenchimento dos novos cargos vai já representar, em si mesmo, uma quebra
importante na tradição do banco. Não dispondo de pessoal interno apto a exercer as
novas funções na quantidade requerida, a empresa recorrerá ao recrutamento externo.
Os novos agentes serão treinados diretamente para as funções que irão exercer, a partir
de um módulo de ensino preparado para introduzir pessoas "de alto potencial e
formação universitária, mas sem conhecimentos de banco...". Estes serão engajados já
em postos privilegiados da carreira. Esse fato vai representar um marco importante nas
narrativas dos bancários. Não que não existisse recrutamento externo anteriormente,
mas então, os recrutados eram elementos considerados semelhantes pelos bancários, ou
porque vinham de outros bancos com carreira semelhante, ou porque percorriam
trajetórias homólogas. Agora, pelo contrário, trata-se de: "...uma molecada nova, tudo
gente metida que não conhece nada de banco e cai em cima da gente. Eles pegam o
bem-bom e a gente que se esforça há tantos anos continua parado...".
A introdução da nova figura ocorre concomitantemente com ao auge do
processo de oligopolização da economia industrial e comercial como um todo, que
também irá significar a desnacionalização da economia. Esse processo cria uma série de
postos especializados nas empresas oligopolistas, antes não existentes, ou de existência
embrionária. Eles serão ocupados pelas novas gerações de pessoal saído das escolas
superiores ─ o mesmo meio em que se recrutará os novos bancários do pólo técnico, e a
partir de processos de diferenciação interna análogos aos descritos para o banco. Trata-
se de um fenômeno importante e bem marcado nas empresas multinacionais - é o
registro social da figura do "executivo" que está se formando ─ onde os novos cargos
surgem já com as especificações para o seu preenchimento vindas da matriz, incluindo a
titulação de grau superior para o quadro de executivos médios. No país subdesenvolvido
em que a titulação de grau superior é menos freqüente do que no país de origem da
multinacional, de onde origina-se a norma, esta última acaba tendo assim um efeito de
super seleção (7).
Como a clientela preferencial do banco consiste justamente dessas empresas do
setor oligopolístico e das multinacionais, os bancários do pólo técnico tendem a ser mais
eficientes no trabalho de concentração das operações com os clientes, já que, portadores
de habitus produzidos em condições semelhantes ─ quando não, como revelaram nossas
observações, colegas de turmas de escola já previamente conhecidos ─ terão um espaço
de valoração das vantagens e reciprocidades das nuances de cada operação comercial
semelhante. Essa tendência também não pode ser dissociada do fato de que a cadeia de
novos produtos financeiros oferecidos pelos bancos só é interessante para empresas com
grau de organização avançado. Assim, as operações de leasing (arrendamento
mercantil), por exemplo, só interessam às empresas que possuem uma contabilidade
perfeita e um sistema de previsão econômica razoavelmente confiável, que permita uma
expectativa realista de uma cifra de lucros, contra os quais as despesas contabilizadas
através do leasing sejam efetivamente abatidas da carga de impostos.
Frente a esta situação, o antigo gerente formado nos moldes autodidatas tende a
ficar marginalizado. Esta tendência é entretanto contrariada, no momento da pesquisa,
pela situação de crise econômica. Neste momento as qualidades dos "antigos" são
revalorizadas, quando surge no horizonte o espectro das concordatas e falências
freqüentes. Agora, a empresa deve contemplar as virtudes de previsão por rumores. E
nesse quadro, surgem valorizações como a seguinte: "Antigamente a coisa era mais
fácil, a gente só fazia desconto de nota promissória ou de duplicata e via o saldo médio,
daí calculava a taxa. Hoje tem impostos, seguros, leasing, tudo isso para calcular. O
pessoal novo, que é bom de máquina, é que se dá bem. Mas em compensação, eles não
sabem ver quando uma duplicata está cheirando fria, não sabem correr atrás de alguém e
pressionar o cidadão até ele cumprir, ou então irem cima do fiador. E isso que eu quero
ver a garotada fazer, é a prova de fogo...". No mesmo sentido temos ainda: "... Nas
agências de bairro, antigamente, para saber se um cliente tava mal das pernas, você
ficava sabendo pelo vizinho dele, no bar, na rua. Hoje, tem de ver balanço, jornal...
Ficou complicado, diferente...".
Temos aqui um flagrante da nostalgia dos velhos tempos do capitalismo
concorrencial de pequenas unidades isoladas, de onde os antigos gerentes extraíam a sua
força relativa, o ambiente onde eles foram formados e de onde extraíram as suas
percepções. Embora relativizado esse passado convive com os aspectos modernos do
nosso tempo. É a realidade sensível nas praças menos dinâmicas, nas agências de
bairros distantes, mas não gratifica seus operadores. Uma vez que o padrão dominante
são os clientes do setor oligopolista da economia, as operações com clientes
concorrenciais têm de ser encaixadas num sistema de controle ─ análises de balanço,
situação patrimonial, perspectivas de mercado... ─ montado para avaliar as empresas
monopolistas. Desta forma, a avaliação do acerto ou equívoco das operações é
mensurada por controles insensíveis para acompanhai a marcha das empresas
concorrenciais ou da economia marginal, onde a contabilidade é apenas uma exigência
legal, realizada ex-post-factum, onde o patrimônio do proprietário confunde-se com o da
empresa e as perspectivas de mercado não aparecem nas publicações especializadas.
Dessa forma, fracassos em operações podem ser perfeitamente absorvidos pelo sistema
em caso de empresas oligopolísticas, uma vez que as normas para a concessão de
crédito foram obedecidas, mas quando as empresas são concorrenciais, os fracassos não
são absorvidos, pois sempre as concessões partem da avaliação subjetiva do gerente (8).
A analogia com o taylorismo
Poderíamos chamai de taylorização da atividade bancária todo o processo de
desencantamento do antigo métier, onde os quatro fatores acima descritos articulam-se
produzindo uma certa transparência do processo de trabalho, a serviço das direções.
Mas a analogia com o modo de organização industrial só é forte para as novas funções
que já nascem desencantadas, como a digitação de dados que, afinal, não é específica do
trabalho bancário. As funções bancárias mais típicas entretanto, realizadas nas agências,
setores de contabilidade, compensação, expedição, custódia etc., são de deflagração
independente de uma possível direção geral do banco, dependendo diretamente da
presença aleatória da clientela. Assim, a sua dissecação em tempos elementares ou
qualquer outra técnica de tempos e métodos não permite rearticulações do processo de
trabalho com ganhos de produtividade significativos, nas configurações onde ainda não
penetraram os sistema "on tine". O que vimos foram diversas tentativas que, num
primeiro momento, serviam muito mais para projetar seus idealizadores como membros
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  • 1. TRABALHO, FAMÍLIA E RELAÇÕES HOMEM/MULHER REFLEXÕES A PARTIR DO CASO JAPONÊS Helena Hirata Introdução Uma problemática da divisão do trabalho, considerada sob o ângulo das relações sociais de sexo e classe, é convergente com uma abordagem da questão salarial: a que concebe o assalariamento no quadro da "articulação entre relações sociais fora do trabalho e processo de trabalho" (1), em ruptura, portanto, com as análises feitas tradicionalmente pela economia política. De fato, uma determinada corrente teórica na França considera cada vez mais indispensável a análise do trabalho doméstico, da família, do não-mercantil, para compreender ou mesmo definir a relação salarial. Esta contribuição pretende justamente questionar o estatuto do conceito de força de trabalho como mercadoria, mostrando que a aparência de trabalhadores livres e supostos iguais desmorona se tomarmos em consideração a existência ─ no terreno da exploração do trabalho ─ de relações de opressão ou de dominação em vigor na esfera não-mercantil. Exemplos de reaparecimento, no domínio das relações de produção, dás relações sociais existentes fora da esfera produtiva, podem ser dados: é o caso das "cantadas" nas empresas, a respeito das quais várias pesquisas estão sendo iniciadas ─ impulsionadas pelos movimentos feministas ─ e que mostram a reiteração, no quadro da empresa, das relações de opressão e violência dos homens sobre as mulheres existentes na sociedade. É também o caso do "paternalismo" ou do "familiarismo" nas empresas japonesas, onde as relações pai/filho, pai/filha são transpostas na esfera salarial, com tudo o que isso acarreta de disciplina, autoridade, afetividade e, portanto, de distante da imagem do assalariado enquanto "livre vendedor de sua força de trabalho" (estudaremos mais adiante o caso exemplar dos dormitórios industriais de mulheres no Japão contemporâneo). Procuramos, neste -texto, estudar os modos de articulação entre os locais de reprodução (em especial a família) e o trabalho profissional, a partir de uma pesquisa
  • 2. comparativa entre os modelos dominantes das relações sociais de sexo e classe nas sociedades capitalistas ocidentais e no Japão. Nossa abordagem consistiu em considerar conjuntamente os homens e as mulheres, as estruturas familiares e o sistema produtivo: não se tratava de tomar como objeto de estudo as mulheres ou o trabalho das mulheres na esfera assalariada ou doméstica, como tem feito a sociologia do trabalho ou a sociologia da família clássica (2). Não se trata tampouco de um trabalho sobre á família japonesa ou sobre as famílias ocidentais - a respeito das quais existem trabalhos especializados (3), na medida em que nossa reflexão diz respeito apenas à articulação entre o espaço familiar e o profissional. A comparação com o Japão é, a nosso ver, particularmente esclarecedora na medida em que os limites de demarcação entre trabalho e força de trabalho são, nesse país, tão pouco definidos quanto os que separam o indivíduo do grupo ou as horas de trabalho das horas extratrabalho. Queremos aqui insistir sobre uma dimensão essencial, a nosso ver, da sociedade japonesa: o modo de articulação entre sistemas produtivos e estruturas familiares sob a forma de fronteiras pouco definidas entre público e privado, profissional e pessoal, trabalho e extratrabalho, empresa e sociedade: Este tipo de articulação é que possibilita uma política de gestão da mão-de-obra baseada mais sobre a pessoa do que sobre sua força de trabalho, sobretudo em se tratando de assalariados homens de grandes empresas. Há, na realidade, um distanciamento do assalariamento "clássico" ocidental, e do rapport capitalista em sua visão eurocentrista, tal como o expressa, por exemplo, Joaquim Hirsch: "Quanto mais a troca entre produtores privados se desenvolve, com a penetração da sociedade burguesa, mais o valor de troca está na origem da coesão social, e mais cedo desaparecem a possibilidade e a necessidade de instaurar a coesão da sociedade através das formas de dependência pessoal e de sujeição direta"(4). Pois, se a partir do caso dos países ditos "subdesenvolvidos", por exemplo, a América Latina, foi possível demonstrar que não há um único capitalismo, um único modo de assalariamento, um único tipo de desenvolvimento, refere-se pouco ao caso do Japão para criticar pontos de vista de tipo eurocentrista. O capitalismo japonês alimenta-se, justamente, dessas relações "de dependência pessoal e de sujeição direta". É, na realidade, esse tipo de laços que torna a hierarquia na esfera profissional tão eficaz quanto a que prevalece no âmbito da família. Ao mesmo tempo, ele organiza suas práticas de gestão baseando-se sobre o grupo familiar e sobre as relações de casal predominantes na sociedade japonesa. Vejamos assim as horas extras não remuneradas (5); as horas de lazer fora da empresa para cimentar a coesão do coletivo de trabalho, os círculos de controle de qualidade que servem para discutir e resolver os problemas do local de trabalho mas que, em 30 a 60% dos casos, de acordo com as diferentes fontes, reúnem-se fora das horas de trabalho, à noite, durante os fins de semana, e sem remuneração adicional. É fácil perceber que essas horas extras, essas atividades de grupo, esses círculos de controle de qualidade, têm uma incidência direta sobre o tempo de laser e sobre o tempo de vida familiar Todas essas atividades, na realidade, só podem existir porque as mulheres, em seus lares, se encarregam da totalidade das tarefas domésticas e da educação dos filhos, e na medida em que o casal sacrifica seu tempo de lazer e até de coabitação (6). Família e mobilidade interna no Japão Uma prática de gestão comum no Japão ─ a mobilidade intra-empresa ─ constitui um exemplo extremo desse sacrifício do tempo de coabitação pelo casal em proveito da empresa. Substituindo a mobilidade interempresa ─ fenômeno comum nos
  • 3. países ocidentais mas quase existente nas grandes empresas japonesas onde o recrutamento se dá na saída da escola e a carreira se desenvolve dentro de uma única empresa ─, uma das formas de mobilidade (7) consiste na transferên cia, de um estabelecimento para outro, dentro de uma mesmo grupo industrial. Essas transferências atendem a objetivos múltiplos (promoção, formação profissional, necessidades de mão-de-obra experimentada nos momentos de reestruturação industrial e de mudança) (8), e mostram de forma exemplar como as estruturas familiares, a relação com os filhos e a relação homens/mulheres existentes na sociedade são aproveitadas pela empresa capitalista. Assim, o caso de um executivo entrevistado por nós, que foi transferido 14 vezes entre 9 diferentes unidades de produção entre 1943 e 1980. Casado em 1950 e pai de três filhos, ele coabitou apenas muito excepcionalmente com sua família durante esses anos de transferência. Essas viagens sistemáticas, às vezes muito demoradas, dos maridos para outras regiões geográficas, levam geralmente as mulheres a assumirem a total responsabilidade do lar, e os homens a encarregarem-se das tarefas domésticas (limpeza, louça, roupa) nas casas colocadas à disposição pela empresa. Essa separação do marido do resto da família é motivada pelo cuidado em assegurar a continuidade na escolaridade das crianças (a freqüência dessas transferências, as dificuldades próprias ao sistema escolar japonês exigindo tal separação). Ela também pode ser de longa duração quando se trata de deslocamentos para o exterior para gerenciar a filial de uma firma multinacional (9). A aceitação resignada dessas transferências tem sua explicação, a nosso ver, no interior mesmo do sistema de emprego que permite atribuir ao grupo e não ao indivíduo as responsabilidades e as tarefas produtivas. Esse sistema baseia-se num modo de remuneração ligado mais ao tempo de casa que ao posto de trabalho, num emprego muito estável e a longo prazo (para os trabalhadores homens, com estatuto regular, das grandes empresas) e numa valorização da atividade coletiva, eliminando tanto as responsabilidades quanto as performances estritamente individuais. O tenkin só é possível, inclusive, na medida em que o sistema de salário e a organização de trabalho não se baseiam sobre o posto individual e a qualificação do trabalhador. Por outro lado, as práticas de mobilidade interna são aceitas na medida em que sua recusa levaria à exclusão do grupo, à perda irremediável do salário e estatuto adquiridos na empresa. De fato a resistência sistemática à mobilidade pode ter conseqüências negativas sobre a promoção ou sobre a remuneração (sobre o "bônus", que constitui um elemento importante do salário). Ao mesmo tempo, essa mobilidade substitui ─ formando o empregado através de atividades e experiências novas  a mobilidade interempresas tal como é praticada no mundo do trabalho ocidental. Porém, pode ser levantado um segundo nível da explicação a respeito mais diretamente da relação homens/mulheres e das relações de casal predominantes na sociedade japonesa. Apresentou-se o indivíduo como uma categoria do capitalismo moderno e como base das relações amorosas no Ocidente (10). Porém, o indivíduo ─ cuja existência está na base da relação amorosa, relação esta que constitui o fundamento do casamento nas sociedades européias ─ é no Japão reprimido ou ausente, em todo caso, de pouco peso em relação ao grupo. Ainda hoje os casamentos arranjados constituem quase 40% do total de casamentos (11). A separação não pode ser recebida da mesma forma por casais que, sem se conhecer antes, casaram-se via apresentação de parentes ou conhecidos. Nos países ocidentais, onde o casamento baseia-se essencialmente na relação amorosa, portanto na existência de indivíduos, uma transferência dos maridos sem sua família durante meses, ou mesmo anos, não poderia ser aceita, e transferências até mais curtas ou ausências menos freqüentes poderiam
  • 4. facilmente constituir motivo de divórcio ou separação. Ademais, as mulheres casadas não exercendo geralmente, no Japão, atividades remuneradas, dependem financeiramente de seus maridos, o que torna o divórcio praticamente impossível (12). Salário, produtividade e esfera reprodutiva Outro aspecto do capitalismo japonês deve ser lembrado. Trata-se da especificidade da remuneração do trabalho e das fontes -─ extra-empresas -─ de produtividade. À pergunta sobre "o que paga o salário no Japão", pelo menos para os assalariados regulares de sexo masculino das grandes empresas, pode-se responder dizendo que o salário não paga a qualificação nem a experiência profissional na medida em que ele é um seikatsu-hi tingin (a remuneração para viver). Fundamentalmente determinado pelas necessidades de reprodução em cada etapa da vida do trabalhador, o salário é adaptado às características da pessoa: é um zoku jin kyu (salário personalizado) (13). Se ele paga a pessoa, a servidão, a lealdade, a polivalência, e a "dependência" no sentido próprio da palavra, ele não paga as horas extras -─ de mais de 6 horas por dia a partir do primeiro escalão hierárquico -─ nem as férias ─ as férias remuneradas existem legalmente mas são negadas na prática habitual das empresas japonesas ─, nem o trabalho das mulheres e da família em benefício da empresa. Nessa medida, só se pode pensar o salário no interior da articulação produção/reprodução, o que diz muito justamente Bernard Dingman, sem partir do caso japonês: "A análise do salário é então inseparável da análise dos processos de produção/reprodução dessa mercadoria particular e, portanto, da especificidade desses processos que articulam e atravessam os espaços da produção e da circulação, da produção e da reprodução grifos nossos), mas também da reprodução das mercadorias e da reprodução social" (Dingman, p. 145) . Essas características do salário são reforçadas pela importância que assumem os modos não-monetários de remuneração ─ as recompensas de ordem simbólica como, por exemplo, os almoços com os diretores da empresa, nas atividades dos "círculos de controle de qualidade" ─,que parecem indicar um grau de generalização da forma mercadoria muito diferente do fetichismo do capitalismo europeu. Tudo isso tem conseqüências sobre o enfoque da produtividade do trabalho no caso japonês. Se Philippe Zarifian nota a importância do tempo de socialização sobre o nível de produtividade (Zarifian, 1985, p. 7), pensamos que é preciso ir além e analisar a natureza das relações sociais que torna possível a incorporação desse tempo na produção. Se integrarmos os elementos indicados anteriormente, o problema econômico da produtividade muito elevada do trabalho deve ser considerado diferentemente e não apenas em termos de organização do trabalho assalariado. Essa produtividade, na realidade, baseia-se amplamente, na organização da vida familiar e no sacrifício da chamada "vida privada" em benefício da empresa (horas extras não remuneradas; atividades de círculo de controle de qualidade; supressão voluntária das férias; mobilidade geográfica do assalariado sem a sua família, na ocasião de uma nova implantação industrial etc.). Finalmente, um questionamento das estatísticas sobre a produtividade do trabalho, baseadas sobre as horas de trabalho declaradas pela empresa, revela-se assim absolutamente indispensável. Casamento e atividade profissional das mulheres Se a organização da vida familiar é o fundamento da produtividade japonesa, é preciso interrogar-se sobre as razões da aceitação de um modelo original de inserção
  • 5. das mulheres nas fábricas japonesas; as operárias praticamente nunca têm mais de 24 anos. O casamento constitui o marco a partir do qual todo trabalho assalariado deve ser interrompido, pelo menos durante um longo período, o que não é ─ ou deixou de ser ─ o caso nos países ocidentais. A maioria das mulheres deixa o mercada de trabalho para criar os filhos e só volta quando quinze anos de trabalho doméstico terminaram por inutilizar sua qualificação inicial. Se os dados numéricos estão próximos dos da França ─ eles mostram que as mulheres casadas constituem 57,6% da população assalariada feminina (Prime..., 1981) em 1980 e 64% do conjunto dás mulheres. na população feminina empregada em atividades não-agrícolas (Statistical..., 1981) em 1980 ─, eles ocultam realidades bastantes diversas: de fato, o aumento do número de mulheres casadas ativas nestes últimos anos deve-se fundamentalmente ao crescimento da participação de mulheres mais velhas que já criaram seus filhos; é preciso interpretar a alta porcentagem de mulheres casadas na população ativa feminina no Japão sabendo que 20% das mulheres em 1980 ─ segundo alguns, o dobro em 1983 ─ trabalha em tempo parcial, em condições muito precárias, sem garantias sociais e sem nenhum direito sindical (14). Essa realidade pode ser explicada num primeiro momento pela estrutura e pelo tipo de emprego feminino no Japão ─ pouco interessante, mal remunerado, sem perspectiva de carreira. Porém, a falta de perspectivas de desenvolvimento profissional e a falta de qualificação dos postos oferecidos às operárias não constituem uma realidade exclusivamente japonesa. Pensamos, por isso, que uma melhor explicação pode ser encontrada na existência, absolutamente institucionalizada, de uma "filière" masculina e de uma "fitière"feminina no Japão, a filière masculina constituída pela carreira profissional e a feminina por progressões que podem ser realizadas nas artes domésticas japonesas, artes tipicamente femininas e praticadas em grande escala (15). Essas artes domésticas, entre as quais as mais representativas são o arranjo de flores (ikebana), a cerimônia do chá, a confecção do kimono (wassai), a música e a dança tradicionais, são coroadas por diplomas, o aperfeiçoamento podendo estender-se por dezenas de anos. A valorização social dessas filières tipicamente femininas tem como contrapartida uma exclusão sistemática das carreiras no mundo do trabalho assalariado. Essas filières paralelas e exclusivas de cada um dos sexos só podem ser reforçadas pelo fato de que a sociedade associa as mulheres à educação das crianças e à vida do lar, e os homens, à vida pública e à empresa. O Estado só encoraja essa divisão sexual, incentivando-a por uma total falta de participação de equipamentos sociais (inexistência de creches, as crianças permanecendo em geral com a mãe ou com a avó, obrigação de preparar marmitas por falta de restaurantes escolares etc.). A ideologia em vigor apresenta também como extremamente positiva e importante a tomada das responsabilidades de gestão da economia doméstica pelas mulheres, que administram o orçamento familiar, permanecendo com o salário do marido, prática esta que parece não ser equivalente nos países ocidentais. O fundamento material da reprodução deste modelo ─ onde o estatuto das mulheres na família é representado como uma fi- lière absolutamente distinta e em nada inferior ─ consiste na desigualdade dos salários masculinos e femininos ─ uma das mais acentuadas no mundo ─ que faz do casamento não apenas uma pré-condição para a integração social das mulheres, mas também uma alternativa ao trabalho profissional em termos de renda. Família e gestão da mão-de-obra
  • 6. Tratamos até aqui de um primeiro aspecto de articulação entre vida reprodutiva e produção: o trabalho profissional e as estruturas familiares. Trataremos agora de um segundo aspecto dessa articulação: o modelo familiar na gestão da mão-de-obra. De fato, há reprodução, ou transferência/transposição na área do trabalho assalariado, e em especial nas relações hierárquicas dentro da empresa, das relações sociais existentes fora da relação salarial, e que supostamente não são constitutivas das relações entre trabalhadores "livres e iguais". Pensamos na transposição/transferência das relações homens/mulheres presentes na prática das "cantadas" e na transposição/transferência das relações pai-filho na prática do "paternalismo" ou do "familiarismo" na empresa japonesa moderna. Na medida em que não temos elementos de pesquisa sobre as práticas de "cantadas" nas empresas no caso do Japão, limitar-nos-emos aqui ao estudo do modelo familiar na gestão da mão-de-obra. O estudo das relações paternalistas de produção no Japão mostra até que ponto é discutível a definição comum do paternalismo pela existência de benefícios sociais diversos. Esse sentido, que define o paternalismo por seus atributos, termina indicando mais as conseqüências de uma política, e não diz nada sobre o que constitui sua essência: a superposição direta das relações de tipo salarial sobre as estruturas familiares e as relações de parentesco. De fato, a prática paternalista implica numa transposição da relação familiar nos locais de produção, constituindo assim uma outra modalidade de relações sociais: a análise dessas relações é, claramente, mais importante que a enumeração descritiva das vantagens que a empresa japonesa oferece hoje a seus assalariados. Estas não diferem dos privilégios de que se' beneficiam os assalariados de grandes empresas de países ocidentais. Pelo contrário, dada a especificidade da família japonesa e das relações homem/mulher existentes na sociedade, o paternalismo na indústria no Japão tem uma configuração única, revestindo aspectos extremamente originais em sua instalação e reprodução. Ele pode até ser considerado como uma dimensão essencial da política de gestão da mão-de-obra na empresa japonesa, valendo tanto para as fábricas de mulheres (têxtil e eletrônica), quanto para as fábricas de homens (petroquímica, siderúrgica, bens de capital etc.). A seguir, os casos analisados mostrarão até que ponto uma mesma política pode ter configurações diferentes e fundamentos opostos em se tratando de uma mão-de-obra masculina ou feminina. O paternalismo como política de gestão do trabalho e do extratrabalho O paternalismo transforma em princípio hierárquico a relação de lealdade que se deve aos mais velhos e que os filhos devem aos pais. Esse princípio se traduz, ao nível da gestão da empresa, por critérios de promoção  as qualidades pessoais de fidelidade e obediência pesam tanto (ou mais) quanto a performance profissional; por modos de aprendizagem nos quais os velhos formam os mais novos; e por um sistema de salários no qual as necessidades familiares são levadas mais em conta que a performance profissional. O sistema de liderança fica assim modelado por esse afrouxamento relativo dos limites entre empresa e família, as relações existentes dentro da unidade familiar podendo modelar a prática dos chefes. O chefe do grupo, o superior, o diretor da empresa, dispõem, de fato, do subordinado como um pai dispõe de seu filho: enquanto pessoa, e não apenas enquanto força de trabalho, controlando seu tempo de trabalho e seu tempo fora do trabalho. O chefe é, claramente, não apenas a autoridade, mas também o pai, o que implica em poder de comandar, educar, ordenar, com os corolários que isto supõe: ser obedecido, aceito em seu papel de educador pela boa vontade na
  • 7. aprendizagem por parte do subordinado. Essa regra geral é modulada segundo se trate de homens ou de mulheres: nas fábricas de mulheres, o paternalismo é o poder da chefia masculina sobre as operárias. Nesse caso, ele significa uma situação de inferioridade, de subordinação e obediência das mulheres, que rege as relações entre mão-de-obra feminina e masculina na empresa. A relação paternalista, em se tratando de mulheres, é freqüentemente sinônimo de infantilização, relação pai/criança mais que relação pai/ ,filho-filha. A adoção dessa política paternalista de gestão da mão-de-obra é possibilitada por um sistema de emprego que assegura uma estabilidade muito grande aos assalariados homens (emprego chamado "vitalício", na realidade, a muito longo prazo) (16) e uma instabilidade fundamental às assalariadas mulheres (uma operária passa sua vida na fábrica dos 18 aos 24 anos, após os estudos secundários e antes do casamento). O tipo de política paternalista nas indústrias empregando mão-de-obra masculina é possibilitado por esse tipo de emprego, combinado à promoção por tempo de casa e à baixa taxa de desemprego. Esse tipo de política nas fábricas de mulheres só é possível por elas serem muito novas e solteiras e por estarem sob uma relação de assalariamento por muito pouco tempo. 1. O paternalismo numa empresa de mão-de-obra masculina É essencialmente ao nível de seus critérios de promoção que o modelo paternalista e "familiar" é implementado nessa empresa. O diretor de pessoal (recursos humanos) do grupo. que conhece pelo nome seus 5.000 subordinados diretos, integra as qualidades vida "pessoal" e "privada" na avaliação dos indivíduos. As qualidades humanas são os critérios explicitamente evocados para a promoção dos assalariados: ter jimbo (estima, popularidade, prestígio), ou ninjo (sentimentos humanos, humanidade, piedade), aptidões humanas "essenciais para um bom chefe de família e para um bom líder". A capacidade procurada consiste em fazer bem seu trabalho e, ao mesmo tempo, "cuidar do enterro de um parente próximo do trabalhador", "resolver um desentendimento: entre o trabalhador e sua esposa" etc. Inversamente, os "defeitos" ─ atitudes fora do trabalho, comportamento na família etc. ─ também pesam no julgamento das aptidões do trabalhador para uma promoção. A adoção do modelo de relação familiar na empresa está também presente na definição dos escalões hierárquicos. De acordo com esse mesmo diretor de recursos humanos, o "líder do grupo (hancho) é a mãe, o contramestre (kocho) o pai", significando a proximidade do primeiro escalão hierárquico em relação ao grupo operário, e a autoridade do escalão superior de comando. 2. O paternalismo nas indústrias com mão-de-obra feminina O exemplo mais claro das relações paternalistas nas fábricas femininas é, sem dúvida, o funcionamento dos dormitórios industriais de mulheres no Japão contemporâneo. Este regime de funcionamento, que apaga completamente o limite entre a vida produtiva e o "extratrabalho", era comum nas fábricas têxteis na Europa e nos Estados Unidos no século XIX (17), mas as mudanças sociais, a evolução das relações entre sexos, o desenvolvimento do trabalho assalariado tornaram progressivamente difícil a reprodução desse sistema nas empresas ocidentais que utilizam trabalho feminino. Esses dormitórios industriais abrigam a mão-de-obra feminina das fábricas do setor tradicional (têxtil), mas também das indústrias dinâmicas e "de ponta" (eletrônica) (80% dos efetivos femininos das fábricas pesquisadas em 1982 ali residia).
  • 8. Uma primeira característica da prática paternalista nesses dormitórios consiste no fato da indústria encarregar-se do alojamento e da educação das operárias. O regime dos dormitórios transpõe a hierarquia familiar e, mais especificamente, o papel paterno, para gestão da mão-de-obra, criando uma relação de autoridade e, ao mesmo tempo, de proteção e educação das jovens operárias, cuja responsabilidade direta incumbe ao próprio diretor da fábrica, assimilado ao pai. Esse sistema, combinado à educação escolar antes ou depois do trabalho em equipes, transfere para a empresa as tarefas dos pais: educação moral e social, aprendizagem das normas de comportamento e obrigações de uma mãe de família e dona-de-casa e ─ em contrapartida ─ a concessão de todos os direitos dos pais aos chefes de empresa: o de castigar, de expulsar e controlar cada momento da vida no trabalho e de lazer dai jovens operárias. Os chefes de fábrica cuidam, de fato, de três aspectos importantes da vida de seus subordinados, que caracterizam amplamente a vida cotidiana dessas operárias e o sistema dos dormitórios em si. Em primeiro lugar, cuidam de sua formação: aprendizagem das formas elementares da economia doméstica (poupança, contabilidade), das regras da etiqueta feminina (reigi saho), dos métodos de limpeza, de arrumação. Em segundo lugar, de seus estudos: trabalhando em fábrica, elas estudam no secundário superior de 4 anos de duração, antes ou após o trabalho em turnos. Todos os estabelecimentos empregando mulheres têm, também, uma escola de nível secundário que ensina as "artes domésticas femininas": arranjo de flores, arte culinária, cerimônia do chá, corte e costura, dança e canto tradicionais etc. Em terceiro lugar, de sua moralidade: o desrespeito dos horários de volta ao dormitório à noite (mongen), geralmente às 18 horas no primeiro ano de contratação, e às 21 horas nos anos subseqüentes, leva à demissão por justa causa, sobretudo se esse atraso for conseqüência de encontros na cidade considerados pela "gerência" como "moralmente duvidosos". No caso de um estabelecimento industrial do ramo alimentar, a punição em caso de atraso é muito reveladora do estatuto de "menor" das mulheres no Japão e da possibilidade que têm as empresas japonesas de recorrer a métodos não admitidos em empresas industriais de países ocidentais: as operárias devem fazer a faxina do dormitório durante uma semana em caso de retorno após o horário-limite de 22 horas. O sistema dos dormitórios, datando do fim do século XIX e início do século XX, permite, na realidade, hoje, o incremento da produtividade do trabalho. A disciplina imposta sobre as atividades extratrabalho permite, evidentemente, uma melhor organização do trabalho produtivo, através do controle do absenteísmo, dos pequenos atrasos, da prevenção de "acidentes" de saúde... As técnicas de motivação tais como as reuniões dos "círculos de controle de qualidade", realizadas fora das horas de expediente, são impostas ainda mais facilmente, já que as operárias praticamente nunca voltam para casa, e sim permanecem sempre dentro do campo de controle dos chefes. O comportamento moral, o comportamento no dormitório, podem também ser critérios essenciais para as promoções e demissões da mão-de-obra feminina. Quanto à remuneração desse trabalho, as operárias alojadas, em aparência "livres vendedoras" de sua força de trabalho, não recebem a totalidade de seu salário, do qual são descontados as despesas de alojamento, estudos e uma poupança compulsória, feita pela empresa em nome da operária. A parte do salário recebida diretamente pela operária jamais ultrapassa 50% do montante mensal. Conclusão: algumas propostas teóricas. Essas análises, que deveriam permitir uma melhor apreensão da natureza contraditória do capital e de seus limites, nos conduzem a três propostas.
  • 9. Em primeiro lugar, se o capital não for uma soma de riquezas mas uma relação social de classe e de seio, as contradições do capital são mais importantes, e sua natureza mais diversa do que se supôs tradicionalmente nas análises marxistas. A aparência de trabalhadores livres e supostamente iguais sobre a qual se baseia a dominação capitalista ─ é de fato desvendada pelo reaparecimento ─ esfera da exploração do trabalho─ de relações de opressão ou dominação em vigor na esfera não mercantil. Em segundo lugar, uma crítica do capital enquanto relação social de classe e de sexo deveria necessariamente passar por uma análise das formas de desmascaramento da mercadoria força de trabalho (irrupção das relações de opressão homens/mulheres na esfera dos processos de trabalho), da mesma maneira que o estudo das crises econômicas ou dos golpes.de estado pode permitir desvendar a natureza do Estado enquanto unidade pretensamente neutra e situada acima das classes. Em terceiro lugar, a força de trabalho não é uma categoria universal, quantificável e homogênea, mas concretamente, para os capitalistas, dentro do processo de produção: masculina ou feminina, jovem ou velha, casada ou solteira. No caso japonês, o capital aparece assim, por vezes, mais como exploração do trabalho (pessoa) do que de força de trabalho e, nessa medida, formas de desvendamento de "des- fetichização" múltiplas deveriam ser possíveis. Levarem conta esses instantes de "des-fetichização" pode ser tornado possível, de um lado, através de estudos dos processos de trabalho concretos, e, de outro, através da comparação internacional. É o que tentamos fazer e o que poderia também ser feito a partir de comparações com outras sociedades ditas "primitivas" (18). Notas Biográficas 1 - Cf. apresentação no seminário de Amiens Carnets des Atiliers de Recherche, n° 5. Université de Picardie. 1985. 2 - A abordagem comparativa homens/mulheres, que está longe de ser uma abordagem dominante em sociologia, foi conceitualizada por Danièle Kergoat (1984). 3 - Pensamos nas pesquisas sobre a família no Brasil, realizadas pelo CEBRAP, sob a coordenação de Elza Berquó, pela Fundação Carlos Chagas, (cf. por exemplo Felicia Madeira); pela Universidade de São Paulo (cf. trabalho de Lia Fukui); para .um censo do estágio das pesquisas sobre a família na França, cf. as publicações resultantes do Colloque National "Recherches et Familles", organizado em janeiro de 1983 pelo Ministério da Indústria e da Pesquisa e pelo Secretariado de Estado sobre a Família; um certo número de obras tratando da família no Japão são citadas em Bellevaire & Trihn (1983). 4 - Hirsch, J. ."Eléments pour une théorie matérialiste de. l'État contemporain". In: Vincent, J. M. (ed) L'État contem-. porain et le marxisme. Paris, ed. Maspéro, 1975, p. 27, citado por Salama (1983, p. 20). Cf. também a nota da p. 73 desta obra sobre o caso japonês. 5 - Essas horas extras ultrapassam, às vezes, o máximo legal de 50 horas, cf. Kurumi Suguita, "Le groupe de travail au Japon", comunicação apresentada na "Journée sur Ia Societé Japonaise" da Societé Française de Sociologie,16 de novembro de 1984.
  • 10. 6 - Para um estudo sobre a contribuição das estruturas familiares durante a primeira socialização ─ essencial para a vida profissional posterior: cf G.A. de Vos (1981). 7 - Sobre as formas mais comuns de mobilidade interna, cf. contribuição de Nohara e Mac Maurice na "Journée sur Ia Sociologie Japonaise" citada, para uma discussão sobre os motivos do recurso à mobilidade interna, cf. a contribuição de Sylvaine Trihn no mesmo evento. Ciências Sociais do Japão Contemporâneo n° 7, editado pela "École des Hautes Études en Sciences Sociales (Centre de Recherches sur le Japon Contemporaih), março de 1985. 8 - Estudaremos o caso do grupo siderúrgico X, o primeiro produtor mundial de aço, que possui uma dezena de estabelecimentos no conjunto do território japonês. Para a criação de sua última unidade de fabricação no sul do país, 1972, não foi deito nenhum recrutamento na região próxima da área industrial. O conjunto dos efetivos regulares, 3.600 em 1982, foi objeto de um deslocamento definitivo de três outros estabelecimentos do grupo, entre os quais um situado a 2.000 km do novo local. Esses efetivos regulares chefiavam, por outro lado, os 5.000 operários temporários e de empreiteiras (mão-de-obra local). Os motivos apontados pela direção da empresa para explicar esse recurso à mobilidade intra-empresa em detrimento de um recrutamento no local estavam ligados à possibilidade de início imediato e eficiente, permitido pelo trabalho dos funcionários com uma experiência profissional anterior: "as pessoas da região não tinham experiência siderúrgica. Não era possível recrutar e dar um treinamento rápido. Não é como na eletrônica onde basta ter um supervisor homem e várias mulheres sem qualificação" (entrevista com um responsável do departamento de engenharia industrial, fevereiro de 1982). No caso citado, a transferência definitiva para uma região distante 2.000 km implica na mudança de toda a família do trabalhador, mas, mesmo neste caso, é preciso observar a preeminência, o poder da empresa que arranca o trabalhador do seu meio (parentes, vizinhos, família etc.). 8 - expatriados japoneses que deviam permanecer no Brasil durante 4 anos sem suas famílias. Uma única viagem era paga pela empresa durante esse período para permitir- lhes rever seus filhos e esposas. 9 - No caso de uma multinacional japonesa no ramo têxtil, a filial brasileira contava, entre seus dirigentes, 10 - Para uma apresentação do indivíduo como categoria do capitalismo moderno e base das relações amorosas no Ocidente, cf. Agnes Heller (1976). 11 - De acordo com as pesquisas feitas em lojas citadas por Juiti (1981). 12 - O divórcio é legal e comum, mas as estatísticas comparando a taxa de divórcio nos EUA e no Japão mostram uma taxa muito mais baixa neste último. Ademais, a maioria dos divórcios no Japão ocorre antes do fim do primeiro ano de casamento e parece ser conseqüência dos casamentos arranjados que não tiveram sucesso. Cf. Saito Juiti, (1981).
  • 11. 13 - Para a evolução desse sistema de emprego e remuneração, utilizamos os dados de uma entrevista com Mikio Sumiya, presidente do Japan Institute of Labor (fevereiro de 82). Cf. também Sumiya (1963). 14 - Se as estatísticas oficiais contavam 2.560000 assalariadas em tempo parcial em 1980, três anos depois a revista Economisto de Tóquio estimava em 5.000.000 o conjunto das assalariadas trabalhando em tempo parcial (Economisto, 1983, p. 106-111. 15 - Assim, segundo as estatísticas oficiais, a cerimônia do chá era praticada por 2.220.000 mulheres e o arranjo deflores por 5.930.000 em 1981; a população feminina entre 15 e 24 anos de idade era de 7.886.000 pessoas (Statistical handbook of Japan, 1981). 16 - A inexatidão do termo provém do fato de que a aposentadoria ocorria aos 55 anos até estes últimos anos; o assalariado devia passar mais ou menos 10 anos de sua vida ativa em uma oura empresa, em geral com uma remuneração menor. 17 - A situação dos dormitórios de mulheres nos EUA era muito similar a dos dormitórios contemporâneos no Japão: "In the mid-mineteenth century, when the majority of the labour force consisted of young, unmarried women from rural New England, the Company also regulated their behavior after working hours in order to reassure their parents. The boardinghouses were closed and locked at 10:00 LM, churc attendance was compulsory and alcohoil consumption was prohibited." (Hareven & Langenbach, 1978, p. 14.) Sobre a França, cf. Guilbert (1966, p. 37-45); Kergoat (1982, p. 45-46); "Les couvents soyeux" Les révoltes logiques n° 2, Ed. Solin, 1976, p. 19-39. 18 - Pode-se citar a compreensão dessas modalidades de exploração/dominação tornada possível por alguns estudos antropológicos: cf. a análise das técnicas masculinas e femininas (Chamoux, 1981a e 1981b). Cf. também a obra sobre a dominação masculina nos Baruya de Papuásia (Godelier, 1982) e os números da revista L'Homme dedicados ao tema da divisão sexual do trabalho. Cf. também Mathieu (1985). Bibliografia BELLEVAIRE, Patrick & TRIHN, Sylvaine. "Bibüographie selective sur 1'évolution des relations sociales au Japon". Sciences Sociales du Japon Contemporain, n° 4, École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Centre de Documentation Sciences Hunaines/CNRS, out. 1983. CHAMOUX, M. N. "Les savoirs techniques et leur appropriation: les cas des Nahuas du Mexique". L'Homme, XXI, 3, 1981a. ____. "La diuision sexuelle du travail chez les Indiens du Mexique: idéologie des rôles et rôles de 1'idéologie". Critiques de l'Économie Politique, n° 17, 1981b. DINGMAN, Bernard. Le concept de rapport salarial: gènese, enjeux et perspecsines. Esthoque Formes de Mobilsation Salariale et théorie du Salariat, fascicule 2. GODELIER, Maurice. La production des grands hommes. Fayard, 1982.
  • 12. GUILBERT, Madeleine. Les fonctions des femmes dans l'industrie. La Haye, Ed. Mouton, 1966. HAREVEN, Tamara K. & LANGENBACH, Randolph. Amoskeag. Life and work in an American Factory City. New York, Pantheon Books, 1978. HELLER, Agnes. "The future of relations between the sexes". In: Humanisation of Socialism. Londres, Ed. Allison and Busby, 1976. JUITI, Saito. "Nihon jin no isho". Tokyo, Society for the Teaching Japanese as a Foreighn Language, 1981. KERGOAT, Danièle. Les ouvrières. Paris, Ed. Le Sycomore 1982. ____. "Plaidoyer pour une sociologie des rapports sociaux". In: Le sexe du travail. Presses Universitaires de Grenoble, 1984. "LES couvents soyeux". Les révoltes logiques, n°. 2, Ed. Solin, 1976. MATHIEU, N.C. (cood.). L'arraisonnement des femmes. 1985. PRIME Minister's Office. "Labour Force Survey, 1980". In: Problems of working women. The Japan Institute of Labor, 1981. SALAMA, Pierre (em col. com G. Mathias). L'État surdeveloppé. Ed. Découverte, 1983 STATISTICAL Handbook of Japan. Tokyo, Statistics Bureau, 1981. SUMIYA, Mikio. Social impact of industrialization in Japan, Ed. Unesco, 1963. VOS, G. A. de. "Apprenticeship and paternalism". In: Vogel, Ezra F. (ed.) Modern Japanese organization and decision-making. Ch. E. Tuttle Company, 1981. ZARIFIAN, Philippe. "Hypothèses sur le rapport entre socialisation et productivité dons une approche intime de classes sociales, fascículo 1. Colloque Formes de Mobilsation Salariale et Théorie du Salamat. Carnets des Atelieus de Recherche, n° 5, 1985. Texto recebido para publicação em fevereiro de 1986 Tradução do francês de Marie Agnes Chauvel.
  • 13. TAYLORISMO E FORDISMO NO TRABALHO BANCÁRIO: AGENTES E CENÁRIOS Roberto Grün Este texto refere-se a uma pesquisa de campo realizada durante três anos num banco multinacional, que tem seu centro de operações sediado em São Paulo. Numa primeira versão, a pesquisa gerou uma dissertação de mestrado (Grün, 1985), apresentada à PUC-SP no Programa de Ciências Sociais (orientada por Maria Andréia Loyola). Naquela análise, as questões de organização do trabalho estavam subsumidas na problemática geral da translação das classes médias para as grandes corporações. No texto que apresento agora, a questão da organização ocupa o centro da exposição. A especificidade do banco multinacional A organização estudada implantou-se no Brasil no pós-guerra, a partir da aquisição de uma casa bancária paulistana. Rapidamente transladou uma equipe dirigente originária da matriz e de outros países. Sendo a atividade bancária não produtiva (no sentido da economia política), a caracterização do status multinacional na atividade bancária pode ser assinalado a partir da constatação de que o banco estudado realiza uma efetiva divisão do trabalho ente e seus vários departamentos localizados nos diversos pontos do globo, na sua função de intermediação financeira (participo do conceito de multinacional de Clandler/Hymer). O volume proporcional de recursos externos postos à disposição de seus clientes, bem como a forma com que eles foram obtidos dão veracidade à constatação. Passando para um nível mais sensível de evidência fenomênica, o caráter multinacional do banco aparece em sua inserção no mercado financeiro nacional, onde ele atua como "banco de atacado", extraindo lucros fundamentalmente de grandes operações realizadas com clientes do segmento oligopolista e multinacional da economia. Este posicionamento lhe garante sobrelucros nas atividades financeiras, que viabilizam a possibilidade de distribuição de uma sobremassa salarial. Decorrem daí as particularidades de sua política de pessoal, que se distingue da média dos bancos nacionais por três pontos básicos: 1. a aplicação de médias salariais e uma política de benefícios não monetários superiores (Grün, 1985, p. 53 e s.); 2. um investimento proporcionalmente superior na qualificação de seu pessoal; 3. uma expectativa de permanência e de carreira ascendente também superior à média do setor não estatal dos bancos.
  • 14. De uma forma geral, as considerações acima levam-nos a vislumbrar uma arena característica que performa os cenários estudados: trata-se, como que Fernandes (1975, p. 268-9), de um nicho privilegiado dentro da economia nacional, onde a gestão de mão- de-obra adquire características específicas, que a distinguem positivamente do ambiente exterior. Estas condições geram uma forma de anteparo que amortece a eclosão dos diversos fenômenos de agitação social/ sindical que poderiam tornar "quente" a imposição das reorganizações do trabalho, tornando o processo frio, aparentemente indolor. Veremos nos próximos segmentos que não é bem isso; trata-se efetivamente da imposição de um novo arbitrário simbólico que encontra na organização um caldo de cultura favorável para florescer. Acredito que a tendência a imputar articulações da ,organização do trabalho a genéricas necessidades de valorização do capital, acabam transformando este conceito- chave na economia política materialista num ente metafísico, um demiurgo que paira sobre todos e explica tudo. E, é claro, ao satisfazer o investigador com certezas apriorísticas, interrompe decisivamente a marcha rumo ao conhecimento da realidade concreta. Desta forma, a empresa, uma unidade de centralização de capitais, não pode ser tratada como um monólito dirigido centralmente, a partir de uma genérica compulsão metafísica, ainda mais no estágio monopolista da sociedade, quando a identificação capital = capitalista = empresa torna-se uma abstração sem conexão maior com a realidade sensível. Incorporando em seu seio parcelas sucessivas das pequenas burguesias (e fazendo pequena parte da antiga burguesia), a empresa monopolista opera a translação de parcelas significativas da estrutura social para dentro da organização. Assim, a grande empresa torna-se uma arena onde os diversos segmentos da pequena burguesia incorporada irão travar um jogo pesado de reclassificação social. (Desrosières, Goy, Thevepot, 1983, p. 55-81). Acredito, portanto, que os diversos artefatos "ideológicos" ou "tecnológicos" utilizados pelas subclasses de agentes na pugna só adquirem sentido concreto quando referidos a seus utilizadores que, ao se apropriarem dos instrumentos, sempre operam uma importante retradução do seu conteúdo original, no que tange à aplicação efetiva do instrumento na prática da organização, seja o instrumento uma teoria de controle de qualidade, um computador ou mesmo um must da moda executiva. Para mostrar a produção das reorganizações do trabalho, a arena toma a forma de 3 cenários sucessivos, onde aparecem como atores principais: 1°) os antigos agentes que articulam a primitiva configuração, organizada como um métier, gerido e transmitido de forma autodidata; 2°) um cenário intermediário, surgido da tensão produzida pelas lutas travadas entre os velhos atores, de um lado, e uma mescla produzida pela justaposição de um segmento reconvertido do pessoal antigo e um novo grupamento de agentes dotados de titulação universitária e forte competência social, de outro lado; e 3°) a tensão produzida pela diferenciação dos agentes do segundo lado de (2°), que os divide em "comerciais" e "informáticos". A sucessão dos cenários não é necessariamente cronológica. Dependendo da contribuição de cada um dos setores da organização para a valorização do capital do conglomerado financeiro e das compulsões especificamente técnicas ou políticas, cada um dos cenários prepondera, ou mesmo aparece com exclusividade. Desta forma, dos vários setores pesquisados, pude extrair observações para compor os cenários e suas variantes. O primeiro cenário: a organização tradicional A pesquisa da origem social dos bancários que produziram a primeira configuração aponta para membros de uma franja da pequena burguesia urbana, que na
  • 15. geração anterior a dos nossos agentes inseriam-se no tecido social como pequenos comerciantes ou pequenos funcionários. No primeiro caso, a situação do pequeno negócio familiar era sempre vista como de sobrevivência problemática. A quase totalidade da amostra reivindica uma origem estrangeira e, assim fazendo, quer distinguir-se positivamente da massa proletária. O caráter não manual do trabalho bancário ─ explícito em fins da década de 50 e início da década de 60, época do engajamento dos agentes na organização ─ reforça a pretensão de "trabalhadores diferenciados" da amostra. Não só a origem, mas também o comportamento dos agentes dentro da organização aponta o caráter pequeno-burguês da amostra. Os nossos indivíduos percorreram importantes carreiras ascendentes dentro do banco. Engajaram-se em posições subalternas, os pisos da profissão bancária, mas que não eram de acesso comum a toda a população que procurava emprego na época. Para isso, mobilizaram a sua rede de relações sociais, pessoal ou da família, que afiançava o reconhecimento social de sua boa origem, necessária para o engajamento numa empresa que tinha na fidelidade e confiança os principais requisitos de admissão. A qualificação profissional adquirida nas trajetórias distingue-se da qualificação operária por não representar uma capacidade diferenciada de realizar um trabalho específico. Mais do que uma qualificação profissional propriamente dita, trata-se de um tipo de capital simbólico (Bourdieu, 1980) que os agentes acumulam no decorrer de sua "vida organizacional", que corresponde no caso específico da atividade bancária, a ser o agente um fiel depositário, cada vez mais confiável, da riqueza alheia que é gerida pelo banco. Chamei esse "capital" de "capital-confiança". A sua acumulação primitiva percorre duas fases: a primeira é a consciência performada pela socialização pequeno- burguesa, que irá fazer do indivíduo uma pessoa reconhecida como possível de se tornar um "igual" no meio bancário e portanto de conseguir o engajamento. A segunda fase é o reconhecimento prático da capacidade do agente em amoldar-se às compulsões do meio social e do processo de trabalho; agora trata-se de demonstrar á adesão aos critérios da empresa A realização cotidiana de serviços que se alongam além dos limites da jornada normal de trabalho e a não reivindicação de pagamento direto por essas "horas extras" num cálculo implícito que permite vislumbrar o lucro futuro desse diferimento de compensação, referenda o segundo estágio da acumulação primitiva (1). A remuneração do capital-confiança acumulado e a sua acumulação num nível mais elevado passam a ocorrer quando o indivíduo, já testado pela organização, passa a ocupar cargos considerados de confiança, que, na escala hierárquica da empresa, vão desde a função de caixa até os diversos níveis de chefia. O aprendizado profissional neste estágio ancora-se na noção de métier. Representando um momento em que o conhecimento organizacional é disseminado por toda a organização e que ao mesmo tempo não tem nenhuma instância explícita de codificação ou de reprodução, o ato de aprender a profissão de bancário irá confundir-se inextrincavelmente com o ato de tornar-se um "homem de bem". O indivíduo aprende observando seus colegas mais adiantados e o conteúdo dos trabalhos concretos é apreendido no mesmo bloco que a assimilação dos comportamentos pessoais dos imitados (Grignon, 1971). Performa-se assim um habitus profissional, que tem tipicidade maior no artesanato tradicional. O período do milagre econômico funcionou como um take-off no crescimento do banco multinacional. Acompanhando o crescimento geral da economia, o banco expandiu-se em flecha naquele período. E para ocupar os novos cargos de chefia envolvendo enquadramento de pessoal, funções administrativas em geral e as novas funções comerciais, os nossos agentes autodidatas serão os candidatos naturais. Afinal,
  • 16. numa organização como o banco, moldada pela metaquestão da segurança, os detentores do capital-confiança serão os maiores premiados pelo crescimento. Assim, a organização reconhece o direito de apropriação fundado na nossa subespécie de capital simbólico. Mas o desenvolvimento do processo não é linear. Representando o coroamento das estratégias encetadas pelos agentes autodidatas, a promoção aos cargos de chefia irá reforçar ao máximo a inércia dos agentes em relação às novidades que estavam surgindo no panorama empresarial. Assim, seu habitus profissional sedimentou-se e a matriz de possibilidades de introjeção da realidade assim formada foi ineficaz para produzir um direcionamento na nova época que estava se abrindo, que resguardasse a posição relativa dos agentes autodidatas na organização. O segundo cenário: a desvalorização do capital-confiança A mudança de cenário na organização monopolista, que guarda feições de mercado de trabalho primário, é um processo que se assemelha, em escala micro, à Revolução Passiva gramsciana (Gramsci,1974, p. 142-3). É um processo realizado a frio, onde a configuração da empresa muda significativamente sem grandes abalos, o que permite-lhe funcionar normalmente enquanto processa as mudanças. Os agentes ativos da transformação dividem-se em dois grupos: 1. um segmento reconvertido do antigo grupo autodidata ─ esses indivíduos representam uma pequena parcela daquele grupo, que consegue rearticular-se no novo tempo ─ para isso, realizam investimentos pessoais adquirindo titulação de grau superior em cursos de freqüência noturna, que se disseminam no nosso panorama escolar também na época do milagre. Eles interessam-se pelas novidades informáticas e adotam rapidamente o léxico da nova época, relativizando, em parte, os efeitos do habitus profissional em suas atitudes; 2. um novo grupo de agentes que se engaja na organização a partir das novas empresas financeiras que surgem com a conglomerização do banco. Esses agentes, que chamo de técnicos, entram na organização já dispondo de importantes títulos universitários que referendam uma qualificação genérica, imposta do exterior para a empresa. Isto representa uma novidade completa para os antigos padrões, onde o banco, seus critérios internos de avaliação, eram a medida para todas as coisas. Juntos, os dois grupos atuam na empresa como agentes inovadores; os portadores em carne e osso do management moderno. A introdução dessa modernidade, que aliás parece ser a marca do período na maioria das empresas oligopolistas atuando no Brasil, faz-se evidentemente às custas dos nossos agentes passivos, os quadros autodidatas que não realizaram a reconversão e a massa subalterna que começava a percorrer na época uma trajetória que, pelo antigo padrão, deveria levá-la às boas colocações da organização. As antigas expectativas ─ realistas no período anterior ─ de rentabilidade do capital-confiança já acumulado, desvanecem-se. Na empresa moderna, os cargos importantes deverão ser preenchidos pelos agentes modernos. Por isso, chamei esse processo de desvalorização do capital-confiança. A produção da passividade dos antigos agentes é um processo nuançado, com componentes internos e externos à organização entrelaçados. A disseminação, no imaginário social brasileiro, dos pré julgados da ideologia tecnocrática, age formando o caldo de cultura, o apriorismo básico que legitima desde a introdução das mudanças organizacionais fomentadas pelo computador até o preterimento de candidatos internos aos postos de prestígio da empresa, dando verossimilhança social aos veredictos exarados dos testes psicológicos (Verdès-Leroux, 1978). Internamente temos a ação de quatro mecanismos desencadeados pela organização, que, potenciados pelo fator
  • 17. externo, irão produzir a passividade e pavimentar o caminho para as reorganizações do trabalho. A informática: expropriação do saber No início da década de 70, o apogeu do milagre econômico, o computador irrompe na vida organizacional brasileira como o seu principal signo de modernidade. As organizações colocam o novo aparato "na vitrine". Embora precedido da introdução de aparelhos eletromecânicos já com alguns instrumentos de controle, tais como as máquinas de caixa Burroughs, a introdução do computador dará o pretexto para o processo sistemático de desapropriação do saber de métier por parte da direção do banco. Preliminarmente, o novo demiurgo só ganha inteligibilidade quando colocado num momento histórico em que a explosão universitária começa a dar frutos, através da aparição, no mercado de trabalho, de um grande contingente de pessoal graduado em escolas superiores, já com algum preparo informático ou familiaridade com o assunto que permita a sua rápida assimilação. A introdução de matérias de informática e de Organização e Métodos (O & M) nas escolas superiores e a criação de escolas livres, comercializando esse novo saber, irão potenciar esse processo. No banco, num primeiro momento, os manipuladores do novo aparato serão recrutados no interior da organização, seguindo um padrão que parece ter sido geral nas organizações já estruturadas que recebiam o computador (2). A maioria dos agentes que se engaja no trabalho informático do banco na época vem de setores atingidos pela modernização, os setores administrativos das agências, serviços de cobrança, de contabilidade. O fundamental da nova capacitação desses agentes será conseguido com o fornecimento dos "pacotes de treinamento", vendidos pelas fábricas de computadores juntamente com as máquinas propriamente ditas. No início do processo, o seu conhecimento prático das tarefas a serem introduzidas em ambiente informático será fundamental na organização da desapropriação. Gradativamente, esses autodidatas que se reconvertem através da informática vão sendo confinados à manutenção do sistema computadorizado já existente, via de regra, o serviço de que já eram conhecedores antes da introdução da nova tecnologia. Outra possibilidade bastante freqüente é o direcionamento dos autodidatas reconvertidos para os setores de operação do Centro de Processamento de Dados (CPD), que são produzidos na nova divisão técnica de trabalho realizada pela informática. Ali, os autodidatas ocuparão funções tipicamente de enquadramento de pessoal, no setor da organização burocrática que mais se parece com uma fábrica; encarregado da produção diária de listagens, digitação, expedição etc. As reconversões mais bem sucedidas serão aquelas em que o indivíduo adquire os conhecimentos informáticos no trabalho, potencia/legitima o seu conhecimento através da obtenção de diploma em curso superior e, dentro da organização, transfere-se para os setores usuários da informática, onde o seu conhecimento tem alto valor distintivo. Normalmente esses setores localizam-se em departamentos distantes em termos geográficos da matriz, são as novas filiais recém-abertas e em estruturação. Os grandes homens da nova era serão os "generalistas", os que "conseguirão entender a informática como parte da estratégia geral do conglomerado financeiro de modernização e de adequação à nova realidade". Esses novos agentes terão como pré- condição para o seu sucesso o desligamento de qualquer trabalho concreto pré-existente no banco, condição essa necessária para revolucionar os métodos de trabalho e, assim fazendo, impor uma nova correlação de forças na organização. Os bancários parcialmente reconvertidos, agarrados ainda a parcelas do conhecimento adquirido de forma iniciática, não conseguirão dar o salto completo que representa o
  • 18. abandono/relativização de seu conhecimento concreto adquirido na fase pré- informática, isto é, romper com as amarras da ideologia de métier. Na morfologia da empresa, a introdução do computador vai significar, principalmente, o aparecimento de uma forte clivagem no trabalho administrativo. A maior parte do trabalho de concepção dos novos conhecimentos passará a ser realizada pelo pessoal informático. Esse processo aparece claro na configuração que. qualquer novo procedimento adquire quando vai ser estudado/implantado na organização. Após uma decisão tomada pela Diretoria da Empresa, seus superiores da matriz ou pelas autoridades monetárias, que inicia um projeto de desenvolvimento de sistema, os contornos do sistema são analisados pela alta gerência da área informática, que circunscreve o âmbito do novo procedimento, delimitando as diversas áreas de atuação dentro da empresa. O detalhamento da solução é realizado por uma equipe de analistas, nivelados hierarquicamente no quadro de pessoal do banco com os cargos de baixa gerência, que então submeterá o problema, já com uma solução delineada e com as portas fechadas para uma solução alternativa, aos setores operacionais envolvidos. Desta forma, o envolvimento desses últimos no trabalho de concepção será aparente, uma espécie de ritual homologatório. A configuração acima, que hoje parece natural, é na verdade um resultado do processo de expropriação dos conhecimentos operacionais do métier de bancário, que é realizado pelos reconvertidos e novos agentes, com o beneplácito da alta direção. O principal vetor neste sentido é a elaboração dos manuais de organização. Em tese, esses manuais, herdeiros das ordens de serviço da burocracia tradicional brasileira, deveriam orientar a prática dos setores operacionais, indicando o caminho a ser seguido na solução dos problemas. Na prática, os setores confinados aos autodidatas, as áreas administrativas que deveriam ser seus maiores usuários, não os consultam por não terem acesso à linguagem informática em que os manuais são redigidos, a qual exige o conhecimento prévio de uma série de conceitos que não estão disseminados na organização, ordenados a partir de uma lógica ─ traduzida num encadeamento de tarefas ─ que não é a da prática dos setores autodidatas/usuários. Por outro lado, os manuais também se tornam um instrumento de transferência de responsabilidades pois qualquer instrução, exeqüível ou não, quando recebida pelo setor operacional responsável pela sua execução, passa a ter realização obrigatória. A necessidade de elaboração de manuais, sentida e deflagrada a partir do esforço para homogeneizar os procedimentos das diversas seções dispersas na empresa, e para facilitar a introdução dos novos procedimentos necessários à computação eletrônica dos dados, acaba dando a oportunidade para a investigação exaustiva do conteúdo das tarefas que constituem o mister da atividade bancária e a sua retradução na linguagem informática, que assim se constitui numa tecnologia de despossessão/concentração de conhecimentos. A partir do enquadramento das tarefas nos instrumentos de trabalho próprios das novas funções ─ os fluxogramas, organogramas, checklists, quadros de distribuição de trabalho etc. ─, a despossessão operacionaliza-se, com a concentração "naturalizada" dos conhecimentos bancários em volumes compactos à disposição das cúpulas (3). Ora, sendo os informáticos as pessoas capazes de apropriar-se do conhecimento assim disposto, o resultado político dessa divisão técnica de trabalho fica claro, conformando-se assim a conceituação geral de que a evolução dos processos de trabalho em ambientes de alta tecnologia irá realizar a superqualificação de um lado (técnico, moderno, titulado...), e a desqualificação do outro (bancário, autodidata, operacional...). Os ecos desse processo nas entrevistas com os autodidatas são bastantes escamoteados, difusos, como se o total devotamento à organização que lhes é peculiar
  • 19. impedisse a formulação da queixa. Assim, temos a situação traduzida em linguagem de nostalgia: "Antigamente, se tinha algum problema, qualquer novidade, a gente resolvia na própria agência, depois, se achava que tinha feito bem, comunicava pros colegas dos outros departamentos e todo mundo ficava sabendo. Agora não tem graça, já vem tudo pronto do Centro Administrativo. O máximo que o pessoal faz é ligar para a gente para dar uma sondada. Assim, a gente perde o estímulo...": Em um caso, entretanto, através da fala de um autodidata "desiludido", a trama fica explícita: "Os caras, esses engenheiros que nunca entraram numa agência a não ser para descontar cheque, pegam e inventam essas novidades como a cara deles. Daí, na hora de aplicar é com a gente. Se não dá certo, é a gente que é burro porque não entendeu. Você liga pro cara para pedir um esclarecimento, e o cidadão não só não te orienta, como te dá uma baita bronca; a bomba fica sempre na nossa mão...". E mais adiante, identificando o entrevistador como membro do pólo técnico da organização, temos: "Eu não tenho mais futuro aqui dentro, é só esperar a aposentadoria. Daqui para frente só vai dar vocês no banco...". Paralelamente, o ambiente já computadorizado reduz drasticamente a necessidade de trabalhos extraordinários ─ os momentos fortes da acumulação inicial de capital-confiança, como se depreende da entrevista a seguir: "Antes do computador, das listagens de caixa, a gente tinha de preparar o conta-corrente todas as tardes, não era moleza. Bancário era bancário de verdade, tinha de mostrar valor, ficar até de madrugada se fosse preciso, mas no dia seguinte, tinha de estar tudo pronto Agora ficou moleza, o pessoal tem tudo fácil, não dá mais para o pessoal mostrar o seu valor, o computador faz tudo...". A auditoria: expropriação da confiança Os comentaristas que discorriam sobre a situação do mercado financeiro do Brasil anterior a 1964, insistiam na idéia de que tínhamos uma infinidade de bancos e de casas bancárias, mas que não tínhamos efetivamente um sistema bancário. Com isso, queriam dizer que, embora extenso, o mercado financeiro apresentava uma disparidade tal de procedimentos em cada um de seus agentes, que não podíamos falar na existência de uma rede de serviços financeiros minimamente eficientes. O projeto de modernização conservadora que se seguiu ao golpe de 1964, passou pela elaboração e colocação em prática de uma política explícita de constituição de um sistema financeiro nacional. E, dentre as medidas necessárias para dar crédito público para o sistema, destaca-se a legislação e a sistematização dos processos de controle sobre a atividade bancária, realizados através da constituição do Banco Central do Brasil. A mesma legislação obriga os bancos a manterem o seu corpo particular de auditores e, na sua versão da época da pesquisa, determina a realização de duas inspeções internas em cada departamento do banco comercial. A obrigação legal, aliada às necessidades de controle da matriz sobre as atividades de sua filial brasileira, vão gerar um processo de sistematização das atividades de controle contábil outrora dispersas pela empresa, com a criação de um departamento próprio paia tais atividades dentro da organização. Uma monografia descritiva e prescritiva sobre o setor bancário, publicada pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capital (IBMEC) em 1972, relata o que deve ser um departamento de auditoria, descrevendo uma situação que corresponde ao estado do departamento que observamos: "Compõe-se o Departamento de Inspetoria e Auditoria de um quadro de funcionários denominados inspetores e auditores. Em síntese, a função destes é percorrer as diversas agências do banco a fim de exercer a fiscalização direta das atividades de cada uma. Faz-se mister que os inspetores e os auditores sejam
  • 20. selecionados dentre os funcionários mais dignos de confiança porque, na prática, eles representam a própria Alta Administração exercendo a supervisão de todo o estabelecimento. No rol das tarefas pertinentes à inspetoria e à auditoria destacam-se as seguintes: verificação do cumprimento dos regulamentos pelas agências, instruções etc.; analisar se os níveis de encaixe técnico das agências atendem às necessárias precauções de segurança; conferência do numerário e dos valores mantidos em tesouraria para confronto com os dados fornecidos pela contabilidade; controle também sobre o próprio gerente e sobre as diversas operações e serviços não só para verificar a sua qualidade como também para comprovar se os negócios estão gerando lucro ou prejuízo; controle da exatidão dos lançamentos e registros. Como se pode observar têm os inspetores e auditores uma relativa ascendência sobre os gerentes das agências, a quem controlam. Em qualquer caso, após todas as inspeções, a inspetoria e a auditoria devem enviar minuciosos relatórios à Diretoria" (Bancos..., 1972). Esses "funcionários mais dignos de confiança" serão recrutados realmente entre os elementos da organização de confiança absoluta, mas também, e fundamentalmente, no interior deste universo, entre os indivíduos que foram colocados e colocaram-se diante da impossibilidade objetiva de seguir carreira ascensional no banco. Esse tipo de recrutamento interno vai produzir auditores que erigem a minúcia e o espírito investigativo na sua principal qualidade. Ora, sendo o pólo autodidata o que está sendo relativizado na atual conjuntura, é natural que forneça a quase totalidade de quadros para essa função. E assim, os conhecimentos de que esses auditores disporão para exercer o seu trabalho serão os conhecimentos de métier, de eficiência máxima para fiscalizar os seus pares, e pouco calibrados para as atividades dos técnicos. A criação e aplicação desta nova tecnologia de controle será assim direcionada para a fiscalização das atividades exercidas preferencialmente pelos bancários autodidatas. A tentativa de ampliar o âmbito da sua atuação sobre a produção informatizada é reveladora do processo de transformações que a empresa está passando: o aumento das atividades submetidas à informática leva à necessidade de controle sobre a sua atuação. Por isso, a gerência de auditoria, subordinada ao máximo poder decisório existente no país, e com acesso direto à matriz, consegue a criação de um subdepartamento para Auditoria de Sistemas. No recrutamento interno do pessoal para o novo quadro surgem preferencialmente como candidatos os autodidatas reconvertidos que trabalham no CPD, uma vez que estes, dentro de seu quadro referencial particular, valorizam o prestígio que a nova função lhes atribui na empresa e também dispõem do capital-confiança acumulado para serem assimilados no ambiente. Já os técnicos desprezam essa oportunidade, que significa trabalhar num departamento com fama de atraso e policialesco. Assim, para as novas funções, são recrutados autodidatas que, enquanto informáticos, já tinham uma formação distorcida, com hipertrofia de conhecimentos de alguns sistemas particulares, e atrofia dos conhecimentos mais abstratos, de concepção e arquitetura de sistemas. No que tange aos trabalhos de auditoria de novos sistemas, a sua, atuação acaba sendo também homologatória, a exemplo dos setores autodidatas operacionais. No que tange à fiscalização dos sistemas mais antigos, serão mais críticos. Entretanto, vivemos na era da nova revolução informática, onde a importância dos antigos sistemas é pequena. No processo geral que estamos descrevendo nessa seção ─ a relativização do capital-confiança ─ a auditoria terá a sua eficiência máxima. À medida que o exercício das funções de confiança passa a ser sistematicamente investigado, e com periodicidade tal que impede o encobrimento da maioria das fraudes possíveis ─ com a tecnologia de controle hoje existente ─ a "fraude" realizada com ordens de pagamento descrita no filme O Bom Burguês seria descoberta no dia seguinte à primeira tentativa. O capital-
  • 21. confiança acumulado nas trajetórias em que a confiança era o principal dos atributos, deprecia-se, pois a qualidade em que ele se encarna deixa de ser vital para a organização. O treinamento: expropriação da autoconfiança Na plena vigência do modo de dominação "antigo", a trajetória profissional típica dos autodidatas performava um critério de excelência profissional que legitimava as pretensões e o exercício das funções de chefia. O aparecimento do treinamento profissional como corpo autônomo vai aqui significar a criação de uma dinâmica que produz a invalidação daquele critério, retirando dos bancários as certezas que lhes infundiam autoconfiança. Primeiramente, há que se assinalar que o treinamento profissional vai ser objeto de incentivo governamental, a nível da criação de uma série de isenções fiscais e de uma estrutura de ensino governamental a ser utilizada pelas empresas, o que induz a pensar que a nova configuração do campo empresarial é um objetivo implícito da estratégia seguida pelo governo federal. Na empresa, o treinamento aparece como o instrumento de expropriação mais opaco, pois confunde-se com a escola, a qual, na consciência dos pequeno-burgueses autodidatas que analisamos, é democrática, aberta aos que merecem. Assim, temos a apreciação modal: "Aqui ninguém tem a desculpa de que não teve chance. O banco dá oportunidade para todo mundo. Se o cara não aproveita, é porque ele é preguiçoso ou é burro. Então, o azar é dele...". Acompanhamos na empresa a realização de três cursos de longa duração, o que significa dois a três meses de seções diárias de oito horas, além de vários cursos menores. Dos cursos longos, dois tiveram como público referencial os autodidatas e um os técnicos (sobre a especificidade das escolas de empresa ver Grignon, 1971, p. 143-8). A estrutura dos cursos divide-os em dois grandes blocos, de matérias específicas da atividade bancária e de técnicas de comportamento. As primeiras são dosadas em função do cargo que os treinandos irão desempenhar, promovendo uma atualização de procedimentos, sempre de acordo com o seu conteúdo abstrato, retirado dos manuais de organização. O corpo docente para essas matérias compõem-se fundamentalmente de pessoal informático para a área administrativa e de especialistas em gestão comercial de produtos específicos para os cursos da área comercial. Nos cursos dados para público da área administrativa, em cuja atuação se supõe o exercício direto de funções de enquadramento, as matérias comportamentais são técnicas de chefia e gestão de pessoal. Nos cursos voltados para a área comercial, são técnicas de vendas. Apesar de todas as manifestações de adesão à empresa que os autodidatas fazem cotidianamente, a percepção do caráter de violência simbólica do treinamento é bem delineado, como podemos depreender das manifestações abaixo descritas. Para as matérias consideradas típicas do métier de bancário, temos: "Isso que eles querem me ensinar, eu já sei, aprendi nos vinte anos que já estou no banco, eu acho que eles estão querendo é ensinar o Padre Nosso ao vigário..." Usualmente, essas matérias são ministradas em cursos que sacramentam a promoção de diversos funcionários para novos cargos, e as turmas heterogêneas acabam levando a curricula mal balanceados. De qualquer forma, os analistas de treinamento que organizam os cursos dizem que "sempre é bom dar um reforço de conhecimentos para o pessoal...". Quando se trata de treinamento visando a introdução de algum procedimento novo, entrando num universo em que os atores pisam com pouca firmeza, temos: "...Eles mudam toda a rotina do cheque sem consultar se a gente pode fazer como eles querem e forçam a gente a aprender em quatro horas. A bomba sempre cai nas mãos...". Ou ainda: "...Eles chamam a gente para vir de sábado, largar a família... dão umas aulas que eu não entendo nada e
  • 22. depois deixam o pepino na nossa mão. Quando você liga para perguntar qualquer dúvida, os caras te tratam mal. Não respeitam os anos que a gente tem de banco e ainda te chamam de burro...". A linguagem utilizada pelos informáticos, o léxico universal desta profissão, é bastante diferente da linguagem dos bancários. Como esta falta de comunicação fica evidente, a empresa passa, num segundo momento, a encarregar os autodidatas reconvertidos da docência dos cursos. Daí a coisa fica picaresca, pois os treinadores mostram-se ansiosos para demonstrar a sua pertinência ao grupo dos informáticos e acabam utilizando-se da linguagem mais rebuscada possível, dentro do novo léxico. Mas, como eles são elementos de prestígio dentro do bloco autodidata, a sua atuação não é tão criticada: "O S. sabe tudo de banco, quando eu entrei aqui, ele já era chefe de expediente. Na aula dele, pelo menos a gente pode perguntar que ele entende a pergunta. Mas a gente entende tão pouco que às vezes nem dá para perguntar. É melhor você fazer cara de inteligente, para eles pensarem que você entendeu tudo, e depois se virar na Agência... ". As matérias de comportamento, que trabalham mais diretamente a personalidade dos treinandos, oferecem um vasto campo para a análise. O choque entre o velho estilo de enquadramento, personificado nos treinamentos e o novo estilo, a ser definido pelos treinadores, revela os pontos basilares dos dois estilos de vida que se defrontam objetivamente. Em termos analíticos, aparece com transparência única a luta que fornece a chave para a dinâmica empresarial do "segundo tempo". Estaremos aqui diante do conflito entre os habitus ─ entendidos como estruturas de exteriorização e interiorização da realidade construídas nas trajetórias sociais típicas ─ cronologicamente sucessivos que se defrontam na organização. O conteúdo dos cursos mescla elementos de dinâmica de grupos com formas "ecléticas" de sensibilização. Deve ser entendido no momento em que modernizar os estilos de chefia passa a ser um objetivo importante dentro do projeto estratégico da empresa. Neste tempo, os profissionais de relações humanas aplicam o essencial de sua atenção e da sua ação no esforço dirigido para as chefias intermediárias, desta forma, a sua estratégia particular de distinção dentro da empresa é a operacionalização das técnicas que têm a possibilidade de mudar as atitudes de enquadramento do pessoal subalterno, condição necessária para o sucesso dos projetos de renovação concebidos pela direção geral (Villete, 1976). A modernização das técnicas de chefia é a essência mesma da grande modificação do modo de dominação que está se implantando. Trata-se de substituir os antigos estilos, tidos atualmente como autoritários, por métodos de manipulação doce, em que a compulsão para o enquadramento pareça uma necessidade vinda de dentro, interiorizada profundamente pelos membros da organização e tida assim como natural. As psicólogas da empresa, os agentes internos que manipulam com maior legitimidade e desenvoltura a nova linguagem ─ a versão cientificizada da moral capitalista ─, extrairão daí a sua força relativa. Os bancários autodidatas, colocados diante do novo método, que lhes aparece como um discurso articulado, manipulado por pessoas legítimas, que, além da organização, extraem sua legitimidade também do ambiente externo que promove a "psicologia científica", estarão simbolicamente desarmados. Os cursos de técnicas de chefia são ministrados na organização em dois ou três dias ─ tempo integral. Compõem-se de três partes: a primeira é a apresentação pelo docente de casos aparentemente concretos, nos quais se induz os indivíduos a acreditar que o autoritarismo na chefia, ao excluir a participação dos subordinados na solução dos problemas, acaba limitando a qualidade das soluções e tornando os subordinados apáticos, isto é, pouco produtivos. Desta forma, o novo método aparece como a
  • 23. democracia lutando contra o autoritarismo. Mas, a todo momento os treinadores fazem presente que a democracia de que falam não tem nenhum sentido transcendente, ela é superior porque dá melhores resultados (4). A segunda parte do curso consiste na simulação de problemas, que devem ser resolvidos primeiro individualmente e depois em grupo. O problema clássico apresentado no banco ê idêntico ao que já vimos em outros ciclos de treinamento. Trata- se da simulação de uma alunissagem, os seus preparativos e as manobras que devem ser tomadas posteriormente, já na superfície lunar. Juntando os conhecimentos esparsos que cada indivíduo tem das viagens espaciais, as soluções coletivas são mais eficientes do que as tomadas individualmente. A indução ao futurismo da simulação acaba por fazer passar a idéia de que os problemas complexos, sérios, modernos, devem ter solução coletiva, sendo irremediavelmente passadistas as soluções individuais. Uma vez minadas as defesas dos agentes, chegamos à terceira e última parte do jogo. Agora os indivíduos deverão trazer casos concretos extraídos de sua vivência para a discussão em grupo. Aí, o autoritarismo com que o evento foi conduzido e a pouca eficácia da solução encontrada ficam sempre patentes. No caso dos autodidatas, é freqüente a apresentação de casos que têm como protagonista principal o próprio relator, e quando isso acontece, o curso passa a ser o palco de uma penosa mea culpa, ao estilo das sessões de confissão das Igrejas Evangélicas. A partir da trajetória social e profissional dos bancários treinados, chega a parecer ingênuo que um curso de três dias, por mais dramático que tenha sido o seu conteúdo, por mais acuradas que sejam as técnicas de sensibilização, possa alterar fundamentalmente os estilos de chefia introjetados em toda a vida e dimensão fundamental do habitus dos bancários. Isso sem falar que os bancários impõem viva resistência às tentativas de conversão, sendo freqüentes os atritos entre o docente e os treinandos, de tal forma que muitas vezes tais cursos são acompanhados por uma autoridade superior do banco. Daí termos registrado impressões como: "Eu quero ver essa mulher chefiando uma seção, se ela deixa o pessoal solto, ninguém trabalha. Ela nunca foi chefe, nunca teve de dar produção, daí fica falando essas bobagens". Ou então: "Eu já sou chefe aqui há seis anos e sempre deu tudo certo na linha dura, o banco sempre funcionou assim. Se a gente fizer como eles querem, isso vira uma bagunça". Mas então, para que servem esses cursos? Tendo realizado um curso semelhante, e verificado o destino dos seus participantes após a conclusão, Villette (1976, p. 58-9) nota que o seu resultado é o conhecimento do vocabulário expressivo das novas maneiras e da nova moral. O reconhecimento da legitimidade dos preceitos ensinados durante o curso podem conduzir o agente a julgamentos de valor negativos em relação às formas de comportamento autoritárias que eram as suas, e a julgamentos muito positivos em relação às atitudes que lembram, de perto ou de longe, aquelas que lhe foram apresentadas no curso como as técnicas de relações sociais moralmente válidas e cientificamente fundadas. É sobretudo do ponto de vista do superior hierárquico que a eficiência dessa transformação de julgamentos de valor tem mais chance de parecer sensível, porque o agente se mostra ao mesmo tempo ansioso em aplicar as novas consignas - que lhe lembram aquelas dos jogos e exercícios dos seminários - e disposto a admirar os fundamentos do novo modo de dominação. Em suma, trata-se mais de desenvolver uma disposição a reconhecer o novo estilo de comportamento, do que de ensinar alguma técnica. E nesse sentido, o seminário priva os agentes de suas "defesas naturais" e coloca-os vulneráveis ao trabalho de moralização, de motivação, operado na empresa. Em nosso caso, além dos superiores, em geral portadores de títulos universitários socializados ou reconvertidos à nova moral, também grande parte dos
  • 24. subordinados dos autodidatas participarão da nova socialização. Enquanto os bancários autodidatas encerram a sua escolaridade formal no segundo grau, é numeroso o pessoal subalterno cursando escolas superiores, foros privilegiados de inculcação da nova moral. As escolas que esses agentes freqüentam são de baixo prestígio no mercado de trabalho, insuficientes para candidatá-los a carreiras no pólo técnico da organização, mas suficientes para equipar os indivíduos de conceitos promotores de críticas deslegitimadoras do comportamento de seus chefes e potenciar alguma possibilidade de ascensão na empresa, "passando por cima" de seus chefes imediatos. Estes, aferrados aos velhos estilos do métier, tendem a desvalorizar as tentativas de escolarização superior de seus subordinados, escorados que estão em seu critério de excelência, o qual pressupõe o acúmulo de capital-confiança, produzido a partir das horas de trabalho extraordinárias, realizadas após o fim do expediente. Como os cursos possíveis de serem freqüentados pelos subalternos são noturnos, a continuidade do padrão autodidata os inviabilizaria. Mas, com a automação de um setor de gestão de pessoal na nova configuração da empresa, os chefes perdem a capacidade de gerir a carreira de seus subordinados, e a cada reconhecimento dado pela organização à nova trajetória ─ por exemplo, estimulando a freqüência aos cursos noturnos através do pagamento das mensalidades ─ o velho estilo também se desvaloriza. Desta forma, o humor antiautoritário dos subordinados é potencialmente perigoso para o chefe autodidata, despossuído agora do monopólio da violência simbólica. Ao lado dos cursos de chefia, os programas de treinamento fornecem de maneira combinada um curso de "organização". Este último é ministrado por pessoal informático masculino, portanto de formação técnica, distinta da formação humanista das psicólogas, e claramente realizam o trabalho "sujo" da distribuição da autoconfiança dos bancários. Participamos, como "meio aluno/meio instrutor" de um desses cursos, que foi a combinação de introdução às técnicas de Organização e Métodos (O & M) e de relativização dessas técnicas. Foi ensinada a elaboração de fluxogramas ─ a representação gráfica de uma atividade em vários estágios, a partir de uma simbologia reconhecida entre os profissionais de informática ─ e fornecido um gabarito com esses símbolos para cada um dos presentes. Com esses instrumentos, cada um dos treinandos fez um exercício prático do processo de administração da máquina fotocopiadora de um escritório. Após a crítica da solução apresentada por cada um dos participantes, seus erros de lógica eram comentados e o docente principal acabava a sessão dizendo que, para cada tipo de problema, muitas soluções eram possíveis. Ato contínuo, os gabaritos eram recolhidos, pois "custam caro e quem quiser que os compre, pois existem nas boas papelarias...". No dia seguinte foram contadas duas histórias exemplares, as fábulas empresariais, destinadas à reflexão dos alunos dentro do "espírito da casa". Depois das fábulas, o curso passa a demonstrar as virtudes da divisão racional do trabalho e a importância da boa chefia. Os alunos são convidados a fazer aviões de papel com diversas organizações. Primeiro sozinhos, depois em grupos aleatórios, depois em uma linha de produção sem chefia e finalmente numa linha de produção com chefia. Os resultados progressivamente maiores da produção em cada uma das fases "demonstra" sucessivamente a superioridade do trabalho em grupo sobre o trabalho individual, da linha de produção sobre o grupo indiferenciado e, finalmente, a superioridade da linha de produção com chefia sobre a linha de produção acéfala. Esta fase do curso transcorre num clima bastante amistoso, quase infantilizado, de brincadeiras e camaradagem, que não é conseguido ao acaso, mas trabalhado.
  • 25. A manutenção do clima é essencial para o suporte do módulo. Assim, o docente deve provocar simpatia através de piadas, brincadeiras e, porque não, numa turma composta exclusivamente de homens separados da família, a figura de uma auxiliar considerada formosa. Estabelece-se então o clima para a interiorização dos esquemas geradores das situações criadas. O engajamento nos jogos parece uma brincadeira, num ambiente descontraído em que as pessoas se jogam voluntariamente nos papéis que lhes pedem para exercer. De tudo isso, podemos dizer como Bourdieu que o ardil da razão pedagógica reside principalmente no fato de extorquir o essencial sob a aparência de exigir o insignificante, como o respeito às formas de respeito, que constituem a manifestação mais visível e ao mesmo tempo mais natural de submissão à ordem estabelecida, ou as concessões de polidez, que sempre escondem as concessões políticas (Bourdieu, 1980, p. 117). A articulação dos cursos de chefia com os de organização representam assim para os autodidatas a retirada do tapete. Na verdade, o que se contesta é todo o seu estilo de vida. O critério de excelência construído por eles é atacado sem mercê. O homem acabado, completo, não deve ser mais rigoroso, diligente e cauteloso, mas flexível, que até ontem para ele era sinônimo de esperto, oportunista, picareta e sabido. O mundo então se invérte, foge aos pés. Mas a organização lhes fornece, pelo menos todos assim acham, os instrumentos para se adaptar aos novos tempos. Eles não aproveitam a chance, assim, passam a achar-se ultrapassados, e daí aceitam o papel de pequeno intermediário. Os autodidatas já sabem que existem técnicas de organização e de chefia diferentes das suas, e científicas, aprendidas na escola. Eles as viram, mas não chegaram a aprender. Então, o problema é deles. Em suma, toda a organização acaba registrando o assinalamento dos autodidatas no papel típico de chefes subalternos e intermediários, os representantes do passado, um resíduo que deve ser progressivamente eliminado. Puxaram o tapete... A estratégia seguida pela rede bancária nacional, de concentrar a oferta de serviços de todo o conglomerado financeiro hegemonizado pelos bancos comerciais nas agências bancárias foi outro duro golpe sofrido pelos bancários de métier. Ao transformar as agências bancárias em "supermercados de serviços", este processo gerou o aprofundamento da especialização dos setores comerciais dos bancos. Esse processo ocorre simultaneamente à introdução dos computadores centrais nas organizações. Essa coincidência vai ser prenhe de conseqüências, pois os novos produtos oferecidos já vão aparecer aos bancários na forma computadorizada. O trabalho referente a eles nos postos administrativos vai se restringir à preparação de dados abstratos para a introdução no computador. Assim, a via de acesso através da apropriação prática dos conhecimentos referentes a esses produtos através de sua manipulação administrativa vai ficar prejudicada. A coincidência não é fortuita, pois apenas a partir da economia de escala proporcionada pelo computador é que se torna uma alternativa razoável a concentração da oferta de serviços Os ecos do fenômeno na consciência dos bancários aparecem como uma forma de alienação: "Seguros, leasing, essas coisas todas, eu só tomo conhecimento quando estoura a conta do cliente (5), o resto eu não entendo e nem quero saber, é coisa da área comercial ou do computador...". Concretamente, a possibilidade de trajetórias profissionais que conduzam da área administrativa para a área comercial, das zonas de mais baixo prestígio e remuneração rumo à alta chefia, torna-se inviável no velho padrão em que a qualificação se conseguia através do conhecimento prático adquirido no trabalho. Enrijece-se a estratificação dentro da empresa. As perspectivas profissionais que em outros estágios do campo eram
  • 26. possibilidades razoáveis para um bancário aplicado, desvanecem-se na nova configuração (6). Por outro lado, nos quadros da modernização à americana sofrida pelos bancos, temos a aparição dos cargos de gerente de operações nos departamentos. Tratam-se de indivíduos com atribuições exclusivamente, comerciais de elos de ligação entre a clientela e o banco, operando com uma carteira de clientes limitada, da qual devem acompanhar detidamente as necessidades e o desempenho. Essa nova função vai ser introduzida na hierarquia da empresa entre o responsável administrativo dos departamentos e o seu gerente geral. Esse último deixa assim de ter contato direto com. os clientes, acompanhando-os através da mediação dos gerentes de operações. Desta forma, a progressão das funções administrativas para as funções comerciais nas agencias vai encontrar um obstáculo fïsico. O preenchimento dos novos cargos vai já representar, em si mesmo, uma quebra importante na tradição do banco. Não dispondo de pessoal interno apto a exercer as novas funções na quantidade requerida, a empresa recorrerá ao recrutamento externo. Os novos agentes serão treinados diretamente para as funções que irão exercer, a partir de um módulo de ensino preparado para introduzir pessoas "de alto potencial e formação universitária, mas sem conhecimentos de banco...". Estes serão engajados já em postos privilegiados da carreira. Esse fato vai representar um marco importante nas narrativas dos bancários. Não que não existisse recrutamento externo anteriormente, mas então, os recrutados eram elementos considerados semelhantes pelos bancários, ou porque vinham de outros bancos com carreira semelhante, ou porque percorriam trajetórias homólogas. Agora, pelo contrário, trata-se de: "...uma molecada nova, tudo gente metida que não conhece nada de banco e cai em cima da gente. Eles pegam o bem-bom e a gente que se esforça há tantos anos continua parado...". A introdução da nova figura ocorre concomitantemente com ao auge do processo de oligopolização da economia industrial e comercial como um todo, que também irá significar a desnacionalização da economia. Esse processo cria uma série de postos especializados nas empresas oligopolistas, antes não existentes, ou de existência embrionária. Eles serão ocupados pelas novas gerações de pessoal saído das escolas superiores ─ o mesmo meio em que se recrutará os novos bancários do pólo técnico, e a partir de processos de diferenciação interna análogos aos descritos para o banco. Trata- se de um fenômeno importante e bem marcado nas empresas multinacionais - é o registro social da figura do "executivo" que está se formando ─ onde os novos cargos surgem já com as especificações para o seu preenchimento vindas da matriz, incluindo a titulação de grau superior para o quadro de executivos médios. No país subdesenvolvido em que a titulação de grau superior é menos freqüente do que no país de origem da multinacional, de onde origina-se a norma, esta última acaba tendo assim um efeito de super seleção (7). Como a clientela preferencial do banco consiste justamente dessas empresas do setor oligopolístico e das multinacionais, os bancários do pólo técnico tendem a ser mais eficientes no trabalho de concentração das operações com os clientes, já que, portadores de habitus produzidos em condições semelhantes ─ quando não, como revelaram nossas observações, colegas de turmas de escola já previamente conhecidos ─ terão um espaço de valoração das vantagens e reciprocidades das nuances de cada operação comercial semelhante. Essa tendência também não pode ser dissociada do fato de que a cadeia de novos produtos financeiros oferecidos pelos bancos só é interessante para empresas com grau de organização avançado. Assim, as operações de leasing (arrendamento mercantil), por exemplo, só interessam às empresas que possuem uma contabilidade perfeita e um sistema de previsão econômica razoavelmente confiável, que permita uma
  • 27. expectativa realista de uma cifra de lucros, contra os quais as despesas contabilizadas através do leasing sejam efetivamente abatidas da carga de impostos. Frente a esta situação, o antigo gerente formado nos moldes autodidatas tende a ficar marginalizado. Esta tendência é entretanto contrariada, no momento da pesquisa, pela situação de crise econômica. Neste momento as qualidades dos "antigos" são revalorizadas, quando surge no horizonte o espectro das concordatas e falências freqüentes. Agora, a empresa deve contemplar as virtudes de previsão por rumores. E nesse quadro, surgem valorizações como a seguinte: "Antigamente a coisa era mais fácil, a gente só fazia desconto de nota promissória ou de duplicata e via o saldo médio, daí calculava a taxa. Hoje tem impostos, seguros, leasing, tudo isso para calcular. O pessoal novo, que é bom de máquina, é que se dá bem. Mas em compensação, eles não sabem ver quando uma duplicata está cheirando fria, não sabem correr atrás de alguém e pressionar o cidadão até ele cumprir, ou então irem cima do fiador. E isso que eu quero ver a garotada fazer, é a prova de fogo...". No mesmo sentido temos ainda: "... Nas agências de bairro, antigamente, para saber se um cliente tava mal das pernas, você ficava sabendo pelo vizinho dele, no bar, na rua. Hoje, tem de ver balanço, jornal... Ficou complicado, diferente...". Temos aqui um flagrante da nostalgia dos velhos tempos do capitalismo concorrencial de pequenas unidades isoladas, de onde os antigos gerentes extraíam a sua força relativa, o ambiente onde eles foram formados e de onde extraíram as suas percepções. Embora relativizado esse passado convive com os aspectos modernos do nosso tempo. É a realidade sensível nas praças menos dinâmicas, nas agências de bairros distantes, mas não gratifica seus operadores. Uma vez que o padrão dominante são os clientes do setor oligopolista da economia, as operações com clientes concorrenciais têm de ser encaixadas num sistema de controle ─ análises de balanço, situação patrimonial, perspectivas de mercado... ─ montado para avaliar as empresas monopolistas. Desta forma, a avaliação do acerto ou equívoco das operações é mensurada por controles insensíveis para acompanhai a marcha das empresas concorrenciais ou da economia marginal, onde a contabilidade é apenas uma exigência legal, realizada ex-post-factum, onde o patrimônio do proprietário confunde-se com o da empresa e as perspectivas de mercado não aparecem nas publicações especializadas. Dessa forma, fracassos em operações podem ser perfeitamente absorvidos pelo sistema em caso de empresas oligopolísticas, uma vez que as normas para a concessão de crédito foram obedecidas, mas quando as empresas são concorrenciais, os fracassos não são absorvidos, pois sempre as concessões partem da avaliação subjetiva do gerente (8). A analogia com o taylorismo Poderíamos chamai de taylorização da atividade bancária todo o processo de desencantamento do antigo métier, onde os quatro fatores acima descritos articulam-se produzindo uma certa transparência do processo de trabalho, a serviço das direções. Mas a analogia com o modo de organização industrial só é forte para as novas funções que já nascem desencantadas, como a digitação de dados que, afinal, não é específica do trabalho bancário. As funções bancárias mais típicas entretanto, realizadas nas agências, setores de contabilidade, compensação, expedição, custódia etc., são de deflagração independente de uma possível direção geral do banco, dependendo diretamente da presença aleatória da clientela. Assim, a sua dissecação em tempos elementares ou qualquer outra técnica de tempos e métodos não permite rearticulações do processo de trabalho com ganhos de produtividade significativos, nas configurações onde ainda não penetraram os sistema "on tine". O que vimos foram diversas tentativas que, num primeiro momento, serviam muito mais para projetar seus idealizadores como membros