Este documento é uma antologia poética sobre o tema "Comer é um ato político". Contém poemas de vários autores abordando questões como fome, desigualdade social, acesso à alimentação e críticas à indústria alimentícia e à política. Apresenta também informações sobre os autores e uma breve introdução contextualizando o tema.
2. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
ELABORADA POR BIBLIOTECÁRIAJANAINA RAMOS – CRB-8/9166
C732
Comer é um ato político: antologia poética / Jéssica Iancoski
(Organizadora); Adriano Besen, Afonso Guerra-Baião, Alberto
Arecchi, et al. – Curitiba: Eu-i, 2022.
80 p.; 14 X 21 cm
ISBN 978-65-81362-21-8
1. Poesia. 2. Alimentação. 3. Fome. 4. Comida. 5. Literatura
brasileira. I. Iancoski, Jéssica (Organizadora). II. Besen,
Adriano. III. Guerra-Baião, Afonso. IV. Arecchi, Alberto. V.
Título.
CDD 869.91
Índice para catálogo sistemático
I. Poesia : Literatura brasileira
OUTROS AUTORES
Albinno Oliveira Grecco
Alex Sandro Silva de Oliveira
Alline Rodrigues
Alvaro Tallarico
Ana Luzia Oliveira
André Eitti Ogawa
André Machado de Azevedo
Angela Dondoni
Bruno Bucis
Carolina Freitas
Cezar Dias
Denis Scaramussa Pereira
Diane Ruedo
Emily Lima Bispo Bomfim
Flavia Ferrari
Flávio Theodósio Junkes
Gescélio Felipe Coutinho
Géssica Maria Menino
Guilherme Fischer
Gustavo Anjos
Hilda Palhares
Ian Anderson Gomes Dias
Jarbas Santos
Jeferson Ilha
Jéssica Iancoski
Joaquim Mattar
Karla (Carla Fontoura)
Lara Kadocsa
Lara Machado
Leandro Emanuel Pereira
Lua Pinkhasovna
Lucas da Costa
Manoel Roberto
Marcos Pontal
Marcus Groza
Mariana Imbelloni
Mateus Rodrigues Sales
Milena França
Nayra Menezes Silva
Neuzi Barbarini
Nirlei Maria Oliveira
Olivaldo Júnior
Paulo Maurílio Pereira
Pedro Luis
Renato Franco de Oliveira
Rozana Gastaldi Cominal
Sabrina Gesser
Sammis Reacher
Shirley Lima
Valdeck Almeida de Jesus
Valeska Magalhaes
Venâncio Grosso
Victor Coimbra
Viviane Cabrera
BRUNO BUCIS
BOCA DE GARFO (W)
na mira, alguns javaporcos
+
iguais que os porcos
+ não rendem boas feijoadas
ainda assim, assados, alimentam
nus
o prazer de enfiar
bem fundo
na lama
até o talo
a faca no fígado
i
ver sangrar dali o relincho de medo
ou o banho de ódio
nutre
ativo
o
desejo de vingança
já não porcos
já não parvos
já poucos
gritando sufocados
…
eviscerados pela
mudança
ensopados pela
segurança néscia
anal
3. GÉSSICA MARIA MENINO
A FOME
Como Carolina Maria de Jesus,
Consternada com a angústia e a miséria em seus dias de
Combate a fome. Nós ainda hoje infelizmente também
Combatemos essa querela.
Com o escudo no lado esquerdo e a espada,
Com sua prata reluzente na mão direita. Lutamos.
Com o rair do sol, e a brisa carregada pelo vento,
Continuamos mais uma jornada de incógnitas e superações.
Como uma - Joana d’Arc - , em terras brasileiras. Lutamos.
Com o alto preço do óleo, do feijão, do arroz, dos itens básicos,
Continuamos na luta da sobrevivência. Ao encontro da esperança, a
Caixa de Pandora. A curiosidade humana.
Corpo e suas exigências de matar a fome.
Confutando o lixo com o resgate de sobras,
Como ato político e de sobrevivência.
Comuniquemos talvez o noticiário.
Confusão, algazarra, gritos, protestos.
Conseguimos chamar a atenção para a nossa situação?!
Cadê os políticos nessa contestação?
Continuemos, pois, a Fome, é quem manda!
PRE
FÁ
CIO
ATO BANAL, NECESSIDADE BÁSICA,
PRAZER, PECADO, ISSO É COMER.
TEM A VER COM MANUTENÇÃO
DA VIDA - MESMO QUE TENTEM
(E TENTAM) - NINGUÉM VIVE (NEM
SOBREVIVE) SEM COMER. MAS TEM
A VER TAMBÉM COM A MORTE. PELO
EXCESSO OU PELA FALTA MORRE-SE,
MATA-SE, E TAMBÉM SE DOMINA O
OUTRO, O POBRE, O FAMINTO.
OFAMINTODOBRAOLOMBOAOSEU
ALGOZ, MAS TAMBÉM TRANSGRIDE
- O LADRÃO DE COMIDA É UM
FORA-DA-LEI – MAS TRANSGRIDE-
SE TAMBÉM PELO PRAZER, PELO
EXCESSO. QUANDO EM EXCESSO,
O COMER É PECADO, E PECADO
CAPITAL, PAI DE OUTROS VÍCIOS E
EXIGE CONTROLE, MODERAÇÃO.
COMER PODE, MAS SEM EXAGEROS.
COMIDA É CONTRADIÇÃO.
COMIDA É DOMINAÇÃO. HÁ UMA
INDÚSTRIA QUE NOS DIZ O QUE
COMER, QUE SUTILMENTE OU
DESCARADAMENTE, NOS INDUZ
A COMER O QUE INTERESSA AOS
DONOS DO PODER, FAZENDO
COM QUE SE DEIXE PARA TRÁS
AS DIFERENTES PRÁTICAS DO
COMER DOS POVOS. A COMPLEXA
LINGUAGEM DO COMER SE
RESUMINDO A UM COMBO DE
HAMBURGER E BATATAS FRITAS PARA
MUITOS E ÀS IGUARIAS.
GOURMETS, CHEIROSAS E
SABOROSAS, PARA POUCOS, MAS
TAMBÉM ELAS OBEDECEM AOS
CÂNONES DO MERCADO. COMIDA É
MODA.
4. ROZANA GASTALDI COMINAL
SÍNDROME DA POLÍTICA IRRITÁVEL
Enquanto seu lobo não vem,
as covas ardem
o olho do tigre tange sua presa na noite
e me perco no vazio da cadeia alimentar
O que é palatável?
Dignidade
sustento
arroz e feijão na mesa
diversidade
leitura de um mundo sustentável
O que é indigesto?
Fome
disputa por carcaça
tá osso
miséria
putrefação da dignidade humana
Nosso inimigo é o homem predador
somos presas fáceis
nessa luta desigual
na imundície do pátio da corrupção
Não, não, não desisto
bate em meu peito o instinto de sobrevivência
e solto o último suspiro:
— Eles não vão nos devorar!
COMIDA É ÉTICA, ESCOLHAS, CERTO,
ERRADO, OU OS DOIS JUNTOS.
MEDIADO PELAS SUAS CRENÇAS,
O COMEDOR É UM JULGADOR.
KOSHER? CARNÍVORO? VEGANO?
HINDUÍSTA? ADVENTISTA? COMER
É RELIGIÃO E COMO TAL PRODUZ
INTERDIÇÕES, “O QUE COME NÃO
DESPREZE O QUE NÃO COME; E
O QUE NÃO COME, NÃO JULGUE
O QUE COME; PORQUE DEUS O
RECEBEU POR SEU.”(ROMANOS 14:3)
COMIDA É ENCONTRO,
SOCIABILIDADE, EXPERIÊNCIA
SOCIAL. PLATÃO NOS DELEITA COM
UM BANQUETE, E NELE TRAZ AS
REGRAS DO AMOR, DA AMIZADE,
DO COMPANHEIRISMO. A COMIDA
INSERE O SUJEITO NA COMUNIDADE
COM A TRANSMISSÃO DE MODOS
DE SER, DE COMPORTAR. COMIDA É
DISCURSO PÚBLICO, E, PORTANTO,
POLÍTICA.
COMIDA EXPANDE HORIZONTES.
CRUZADAS E NAVEGAÇÕES
CARREGARAMOSCHEIROSESABORES
DAS ESPECIARIAS PARA UM OCIDENTE
INSÍPIDO. VIAJA-SE PARA COMER,
VIAJA-SE COMENDO. A EXPLORAÇÃO
DE CHEIROS E SABORES ESTIMULA
A IMAGINAÇÃO, EXCITA, DESPERTA,
E, POR MAIS QUE OS ESPECIALISTAS
TENTAM TRANSFORMAR A COMIDA
EM NUTRIENTE, ELA SERÁ SEMPRE A
VELHA E BOA COMIDA, ATIÇADORA
DE SENTIDOS. COMIDA É ESTÉTICA, É
BELEZA, É POESIA.
ESTÃO SERVIDOS?
NEUZI
BARBARINI
5. VIVIANE CABRERA
ABOMINAÇÃO
Dia desses no noticiário
Um acontecimento arbitrário
Lesou as retinas cansadas do meu coração.
Pessoas desesperadas revirando o lixão
Em busca de um resto de alimento
Que pudesse vir a ser sustento
Nos lares devastados
Pelo desemprego e fome acentuados,
Causados por uma política que visa à supremacia,
Que quer praticar a eugenia,
Exterminando os negros, pobres e miseráveis
Para que os ricos mantenham seus privilégios inalienáveis.
As retinas cansadas do meu coração
Gritam alto contra essa abominação.
Pretendem-se cristãos
Mas é ao diabo que rendem devoção
Ao espalhar destruição ao bem que estava consolidado.
Pró-família dizem ser.
No entanto, seu proceder
Fora dos holofotes
Constitui-se por pacotes
De maldades e vilania,
Tão imbuído de demagogia
Que a revolta suscita,
A indignação incita
No povo já cansado
De dizer amém ao ser explorado.
JÉSSICA IANCOSKI
DEMOCRACIA ROÍDA
o cachorro
roendo o osso
estendido ao sol
coça o siso
dourando ao léu
seus olhos franzidos
de prazer
como fazem os homens
sem rostos sob o véu
que se sentam à mesa
roendo a carne
do pobre animal vil
inciso incestuoso
a agonia chamada
democracia
6. IAN ANDERSON GOMES DIAS
O CASO DA FILA
Mãe, tenho fome.
Eu sei minha filha, continue na fila.
Mãe, que fila é essa? Onde ela leva?
Ela leva à comida, minha filha.
Mas porque há tanta gente na nossa frente?
Todo mundo tem de comer, minha filha.
Mas que cheiro é esse? Tudo aqui fede como aquela vez no lixão.
É o cheiro do caminhão que passou.
E o que havia no caminhão?
Comida, minha filha.
E é essa comida que vamos comer, mãe?
Se tivermos sorte.
Quem nos dá essa comida é maldoso de nos fazer esperar no sol.
Ninguém nos dá nada, minha filha.
Como assim, mãe?
Nós queremos comer e por isso temos de pagar.
Mãe, que é aquele negócio branco?
Qual, minha filha?
Aquele que o homem leva abraçado e não deixa ninguém ver,
[feito um tesouro.
Aquilo é osso, minha filha.
Mas porque ele quer um osso, mãe?
Para comer.
Mas osso é duro, mãe. Não dá para comer.
Dá. Tem de dar.
E todos aqui vem pegar osso também?
Todos vem, nem todos vão.
Que quer dizer, mãe?
Cala-te que já chega nossa vez e não deves incomodar
[o moço que vende o osso.
SABRINA GESSER
RESTOS DE ESPERANÇA
Chafurdam no lixo
em busca de alimento
Esperam na fila
por um saco de ossos
na fila esperam
Esperam quase-mortos
reviram seu lixo
comem seus ossos
Não há alimento digno
que satisfaça o irmão?
a não ser um saco
de humilhação?
E a vida continua
num país de iludidos...
A cegueira vem da Fome?
ou da Sede
pelo Poder Maldito?
Viva está
A Economia!
E eles lá, esperam
Até a morte, esperam
Por esperança, esperam
na fila, no lixo
no corpo cansado de fome
por um almoço
por uma janta
por restos
Esperam
7. VALESKA MAGALHAES
LUTA
a quem tem fome
não peça que tenha calma
na hierarquia das necessidades humanas
Maslow ilustra, intencionalmente ou não, um trauma
uma luta brutal onde só passa para a próxima fase
quem supera com destreza os desafios que encontra na base
ainda que no alicerce piramidal estejam o primário, o fisiológico,
aquilo que deveria ser um direito de todos e não o é,
não são poucos os que lutam desprovidos do essencial,
mas só quem supera todos os estágios nesse duelo chega ao topo
para encontrar a estima, o reconhecimento, a autorrealização,
e no processo consegue ter segurança e experimenta o prazer de pertencer,
conceitos abstratos e inatingível para quem sofre de inanição
porém, esse é um direito garantido ao lutador privilegiado
e há quem julgue o coitado, o indivíduo sem sobrenome,
com sede de sustento e esperança, como um adversário igual,
sem garra e motivação para alcançar o patamar mais elevado,
sem nunca ter entendido a regra que diz que quem tem fome tem pressa
pois nunca precisou sentir na pele o peso que se impõe com a verdade essa
que estabelece que primeiro o alimento precisa saciar a fome do corpo
para que brote o desejo de lutar para alimentar os anseios da alma.
LUA PINKHASOVNA
A FOME TEM ENDEREÇO
Engana-se quem pensa que a fome nasce na boca, nos estômagos ou
na mente,
alguns intuem, quase certeiros, que a mesma nasce nas calçadas de
terra, nos casebres, descendo vielas, favelas, até mesmo nas encostas
de morros, mas ela nasce mesmo é nos dedos
Nos subúrbios dos vácuos estomacais, constringem-se as dores da
miséria,
cravadas em quem leva a vida repetindo diariamente aos filhos em
meio ao afago das mãos um lastimável e doloroso: — dorme que
passa! — ao urgir da fome,
sendo palavras suficientes apenas para encher os ouvidos mas jamais
abrandar a dor do jejum imposto
Os campos abarrotados gritam, dizendo não serem culpados e que
seus solos são ricos e generosos, pois não lhes contaram o trajeto
percorrido por cada um de seus alimentos
que chega majoritariamente apenas a quem já possui o estômago
com tecidos irrompendo, e as sobras de ossos, jogadas ao lixo, com
um fiapo de pele, gordura grudada, sem um resquício de carne,
tornam-se comida, quase tão mais viva, que os corpos que as
recolhem
Nas mãos portando canetas, a fome passa pelas unhas, circunda as
páginas inertes, e mesmo assim rasura vidas deixadas à própria sorte
por quem tem na ponta dos dedos
as arestas para construir o mundo, mas empanzinado de si mesmo,
arquiteta milimetricamente castelos ególatras e distantes pontes
intransponíveis
8. mesmo tendo o poder de mudar o mundo, destina a fome a algum
endereço
Desvelando assim, o segredo de que a miséria é a maior fonte de
enriquecimento
e a fome é negócio, hegemonia, eugenia, preguiça, descaso, sadismo,
descompasso social cientificamente pensado por quem prospera no
caos
Enquanto eu sigo tecendo poesias, para almas alimentar, nos mais
altos escalões soberbos há inúmeros empanturrados sem nunca atingir
a saciedade moral de entender que em muitas casas, o prato vazio é o
principal.
LARA KADOCSA
VAMOS DEVORAR A CIDADE
vamos devorar a cidade
cortar o podre fora
digerir o que sobra
engolir as ruas
retomar o que é nosso
defecar o que não presta
comer beber transar
ser o que se é
fazer o que nos resta
9. LEANDRO EMANUEL PEREIRA
O TRAJE DOS ASSOBERBADOS
Um povo faminto;
Não pode pensar;
Perdido num labirinto;
Sem rumo para trilhar...
Sem pão, sem sonhos;
O curso da vida é rotineiro;
Uma dúzia de filhos;
Ao invés de uma casa, um chiqueiro...
O tempo adornará a falta de sorte;
Com eventos que casam pela insolência;
Ou simples desnorte;
A injustiça não entra em falência...
Uma sociedade de alienados;
Não questiona a infâmia;
Veste o traje dos assoberbados;
Afronta a vida sadia...
KARLA (CARLA FONTOURA)
A FOME DE ONTEM
A mente não sabe pra onde ir
Abriu aqui a fome e nada entrou na sua
Parece que sempre vou ficar aqui esperando a sua acabar.
Mais duas garfadas e a culpa desce à seco
Seu desespero me faz tonta.
Não dou conta de seguir como se nada fosse
O tempo me engana e de repente a gente se ajusta
Se acostuma de forma boba
Porque o buraco não diminuiu
Pra você
Eu só não enxergo(?) mais.
10. FLAVIA FERRARI
FRATURA
Para quem tem fome
As palavras são mais longas
O dia tem mais horas
O cansaço não deixa dormir
A paisagem é desfocada
Para quem tem fome
Nenhuma fé sustenta a oração
Quem dera fosse flor
Ser humano tem nome
Pensamento
Navio de cruzeiro
Fotografia na parede
Cartório com letreiro
Livro com dedicatória
Só não tem jeito
AFONSO GUERRA-BAIÃO
UM PRATO DE COMIDA
Um prato de comida põe beleza
na mesa de quem tem a mesa posta;
um prato de comida enche os olhos
de quem tem olhos rasos pela falta
de um marmitex que já não dá sopa;
um prato de comida serve o sonho
de um prato feito no olhar desfeito
de quem passa fome.
Um prato de comida mata a fome.
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