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São asas que se tornaram apenas ombros, e “os
                                                                ombros suportam o mundo”, como o poeta escreveu.




               ROMPI MINHA CRISÁLIDA



       Agora sou uma borboleta feliz e ansiosa que fia com
urgência a sua história. Sei que a minha existência é breve e
preciso projetar para o mundo tempo que hibernei.                     Vôo, vôo sim. Já tenho até na asa esquerda algumas
       No meu ciclo de larva eu já recolhia tudo a              violências de pássaros que não são nenhuma ilusão de ótica.
metamorfose das cores, o veneno necessário, a experiência       É ferida mesmo, marcas do bico de um predador que me
do mel.                                                         avistou nas asas da descoberta e quis me prender. Me feriu,
Involuntariamente eu me construía para o mundo, sugava          mas em troca recebeu o gosto do meu veneno. Não nasci
com as patas a seiva das plantas, me preparava para o dia       para perpetuar apenas a doçura do néctar, a seiva que trago
de voar.                                                        no corpo é também minha senha e minha arma.
Mal podia supor que as minhas asas seriam tatuadas de                  Simples, a minha natureza é feita de círculos, de
todas as formas, sobreposição de escamas cintilantes igual      quebra de planos, de aspirais.
a um telhado suspenso no ar.                                    Não tenho nada a ver com o vôo em linha reta, sou
       Asas, minha enseada e minha perdição.                    responsável por mim e pela aventura de outras borboletas,
       Acho mesmo que as antenas aguçadíssimas e olhos          minha vida é transgredir. Afinal de contas voar é com os
sensíveis ao som vieram dessa minha vontade de ir sempre        pássaros, e inverter o rumo das coisas, migrar sem descanso
além.                                                           no horizonte da procura, é com as borboletas.
       É arriscado voar e é por isso que vôo                           Por isso a minha história, aconteça o que acontecer,
Sou atraída por novas montanhas e desconhecidas planícies       só deve valer para quem sabe que toda verdade é sempre
– não posso esperar porque o tempo que me pertence é uma        um pedaço de outra coisa e que o vôo mais urgente é
única estação. Vôo para estar na aventura do Vôo e vôo          revolucionar os jardins.
também pelas borboletas domesticadas que perderam a
ousadia de voar.
(Jorge Miguel Marinho – professor de literatura
das
       Faculdades Integradas de Osasco-
       Extraído do livro “Na curva das Emoções”.)

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Rompi minha crisálida (borboletas)

  • 1. São asas que se tornaram apenas ombros, e “os ombros suportam o mundo”, como o poeta escreveu. ROMPI MINHA CRISÁLIDA Agora sou uma borboleta feliz e ansiosa que fia com urgência a sua história. Sei que a minha existência é breve e preciso projetar para o mundo tempo que hibernei. Vôo, vôo sim. Já tenho até na asa esquerda algumas No meu ciclo de larva eu já recolhia tudo a violências de pássaros que não são nenhuma ilusão de ótica. metamorfose das cores, o veneno necessário, a experiência É ferida mesmo, marcas do bico de um predador que me do mel. avistou nas asas da descoberta e quis me prender. Me feriu, Involuntariamente eu me construía para o mundo, sugava mas em troca recebeu o gosto do meu veneno. Não nasci com as patas a seiva das plantas, me preparava para o dia para perpetuar apenas a doçura do néctar, a seiva que trago de voar. no corpo é também minha senha e minha arma. Mal podia supor que as minhas asas seriam tatuadas de Simples, a minha natureza é feita de círculos, de todas as formas, sobreposição de escamas cintilantes igual quebra de planos, de aspirais. a um telhado suspenso no ar. Não tenho nada a ver com o vôo em linha reta, sou Asas, minha enseada e minha perdição. responsável por mim e pela aventura de outras borboletas, Acho mesmo que as antenas aguçadíssimas e olhos minha vida é transgredir. Afinal de contas voar é com os sensíveis ao som vieram dessa minha vontade de ir sempre pássaros, e inverter o rumo das coisas, migrar sem descanso além. no horizonte da procura, é com as borboletas. É arriscado voar e é por isso que vôo Por isso a minha história, aconteça o que acontecer, Sou atraída por novas montanhas e desconhecidas planícies só deve valer para quem sabe que toda verdade é sempre – não posso esperar porque o tempo que me pertence é uma um pedaço de outra coisa e que o vôo mais urgente é única estação. Vôo para estar na aventura do Vôo e vôo revolucionar os jardins. também pelas borboletas domesticadas que perderam a ousadia de voar.
  • 2. (Jorge Miguel Marinho – professor de literatura das Faculdades Integradas de Osasco- Extraído do livro “Na curva das Emoções”.)