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A HISTÓRIA HOJE: dúvidas, desafios, propostas
Roger Chartier

Apresentação
Apresentar Roger Chartier ao público brasileiro de ciências sociais advertido de
que homenageia os vinte anos do CPDOC faz sentido apenas como breve comentário à
reunião de sua vasta obra, ainda muito parcialmente conhecida no país.
Talvez um dos motivos desta difusão mais lenta de uma importante produção
seja o fato da grande participação de Roger Chartier em projetos coletivos de pesquisa,
obscurecendo ou obstaculizando a constituição de sua produção individual e seu
aparecimento como "autor" para um público mais amplo - o que não impede que seu
nome se consolide cada vez mais na França, culminando com sua designação como
directeur d'études da École des Hautes Études en Sciences Sociales (desde 1983) e,
mais recentemente, como diretor do Centre Alexandre Koyré (centro de estudos sobre a
história das ciências). Este grande investimento em projetos de pesquisa coletivos e de
vasto alcance, materializando a proposta de novas abordagens e de novos objetos no
também coletivo projeto de uma "nova história", no qual se incorpora desde jovem, no
que seria a "terceira geração" do grupo dos Annales, marca assim a sua trajetória inicial,
dando-lhe uma sólida base de pesquisa para sua produção ulterior.
Esta estratégia de pesquisa a longo prazo, que passa pelo trabalho em equipe
sobre novos objetos (ou sobre velhos objetos vistos de maneira nova), que é avessa às
estratégias autorais rápidas próximas do ensaísmo, e que carrega esse ônus do
reconhecimento mais tardio, abarca algumas linhas de investigação correlatas. A
primeira delas seria a análise histórica das instituições de ensino e das sociabilidades
intelectuais, onde se destaca o livro L'éducation en France du XVIe au XVIIle siècles, de
R. Chartier, M. M. Compère e D. Julia, publicado em 1976. A obra é referencia
obrigatória para a "pré-história" do sistema educacional republicano, que principalmente
a partir da Terceira República vem tendo um peso decisivo na sociedade francesa, e
desde meados dos anos 60 vem sendo estudado de forma inovadora pela equipe de
sociólogos colaboradores de Pierre Bourdieu, contribuições estas que muito
influenciaram o trabalho de Chartier.
Uma segunda linha de pesquisa, central no conjunto de sua obra, tem sido a da
história da leitura, das práticas de leitura e das práticas de escritura, constituindo-se,
através da história do livro, da edição e dos objetos tipográficos, em uma base para a
interrogação das teorias de recepção cultural e para a inovação da sociologia da cultura.
Esta tem sido uma preocupação permanente na obra de Chartier. Trabalhou inicialmente
com o historiador do livro Henri Jean Martin, de uma geração anterior de historiadores,
tendo ambos publicado entre 1983 e 1986 a obra em 3 volumes Histoire de l'édition
française (Paris, Ed. Promodis). Em seguida Chartier foi o organizador dos livros
Pratiques de lecture (Marseille, Rivages,1985), Les usages de l'imprimé (XVe-XIXe
siècles) (Paris, Fayard,1986) e Lecture et lecteurs dans la France de l'Ancien Régime
(Paris, Seuil, 1987). Escreveu o capítulo "As práticas do escrito" do volume 3 da
História da vida privada: do Renascimento às Luzes (São Paulo, Companhia das Letras,
1992), do qual é um dos organizadores, assim como o capítulo "Textos, impressão,
leituras", na coletânea Nova história cultural, organizada por Lyrin Hunt (São Paulo,
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
2

Martins Fontes, 1992). Mais recentemente publicou sozinho L'ordre des livres (Paris,
Alinéa,1992), a ser lançado no Brasil pela editora da UnB, sob o título A ordem dos
livros. Essa sócio-história das práticas culturais, utilizadora e produtora dos conceitos e
métodos dessa nova subdisciplina da história cultural, se faz assim através da história da
leitura entre os séculos XVI e XVIII, através da gênese das noções de público,
publicidade e publicação naqueles mesmos séculos, e finalmente através da diversidade
tanto das práticas de escritura e leitura, quanto de formas de circulação de textos e de
apropriações culturais.
A análise da cultura política nas suas várias configurações, dos círculos
cortesãos aos meios populares, constitui-se numa terceira linha de pesquisa em que a
produção de Roger Chartier também se notabiliza. Destaca-se aí o livro Les origines
culturelles de la Révolution Française (Seuil,1991, traduzido pela Editora da USP),
onde ele pôde aplicar os resultados de suas pesquisas anteriores à análise dos
antecedentes da Revolução Francesa, opondo-se ao mesmo tempo à explicação que
privilegia o que chama de retour du politique, esse retorno exclusivista das explicações
políticas, de uma filosofia política do sujeito como fonte livre da oferta de idéias,
independentemente de quaisquer limites de recepção cultural e social. Essa forma
clássica da história das idéias e da história dos grandes homens, apresentada como
última novidade durante as efemérides do recente bicentenário da Revolução Francesa onde se destacaram François Furet e os historiadores do Institut Raymond Aron - é
assim implicitamente polemizada por Chartier, que se coloca contra a corrente da
satisfação conformista e simplista com a derrocada contemporânea da idéia de
revolução política e social na Europa projetada para trás.
Nesta linha de pesquisa incluí-se também o estudo crítico das concepções dos
historiadores em torno da cultura popular, de que é exemplo sua análise da coleção da
Bibliothèque Bleue. Sua contribuição neste domínio, evitando a substantivação direta de
conjuntos culturais definidos como "populares", mas enfatizando ao contrário os modos
específicos pelos quais esses conjuntos culturais são apropriados por diferentes grupos
sociais, destacada por P Burke na introdução à edição espanhola, reproduzida na
brasileira, do seu livro Cultura popular na idade moderna (Companhia das Letras,
1989, p.24), pode ser encontrada em vários trabalhos: nos capítulos V ("Práticas e
representações: leituras camponesas em França no séc. XVIII"), VI ("Textos e edições:
literatura de cordel") e VII ("Cultura política e cultura popular no Antigo Regime") da
coletânea História cultural: entre práticas e representações (Lisboa/Rio, Difel/Bertrand
Brasil, 1991); no capítulo "Stratégies éditoriales et lecteurs populaires" da Histoire de
l'édition française, ou no artigo "La culture populaire en question" no nº 8 da revista
Histoire Hachette (abr-jun 1981).
Uma outra linha de pesquisa desenvolvida por este autor é a sua reflexão sobre o
ofício do historiador. O artigo "Le monde comme représentation" no número
comemorativo dos 60 anos de fundação da revista Annales (número especial "Histoire et
sciences sociales: un tournant critique", nov-dez 1989), assim como a introdução ao
História cultural ("Por uma sociologia histórica das práticas culturais"), e os dois
primeiros capítulos dessa coletânea, são textos que exemplificam essa preocupação com
o exame das condições de produção dos agentes da prática historiográfica, incluindo a
discussão dos conceitos e formas discursivas que fundam essa mesma prática. Tal
reflexão se manifesta desde a sua participação nos empreendimentos coletivos da
chamada terceira geração da escola dos Annales, como o livro La nouvelle histoire, que
ele organiza junto com Jacques Le Goff e Jacques Revel em 1978.
Essa reflexão desdobra-se numa outra dimensão a ser destacada na obra de
Roger Chartier, aquilo que poderíamos designar como uma militância histórica. Tal
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
3

militância aparece na sua atividade de divulgador de uma "nova história cultural", por
exemplo na sua participação no programa radiofônico semanal "Les lundis de 1'histoire"
na estação France Culture, iniciado por Le Goff, ou na sua coluna como crítico de
história na seção semanal de livros do jornal Le Monde. Essa atividade aparece também
na sua participação freqüente como estimulador do debate entre historiadores e entre
historiadores e sociólogos, como nas suas discussões com Robert Darnton e Pierre
Bourdieu - ver a propósito Pierre Bourdieu, Roger Chartier e Robert Darnton, "Dialogue
à propos de l'histoire culturelle", Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n.º 59, set.
1985, p. 86-93, e "Gens à histoire, gens sans histoire; dialogue Bourdieu/Chartier",
Politix, n.º 6, primavera 1989, p. 53-60. Da mesma ordem é a dedicação de Chartier
como prefaciador e introdutor da obra do sociólogo Norbert Elias na França -ver o
prefácio "Formation sociale et économie psychique: Ia société de cour dans le procès de
civilisation", a La société de cour (Paris, col. Champs-Flammarion, 1985 [lª ed. em
1974, sem prefácio]), incluído como capítulo III em História cultural ("Formação social
e habitus: uma leitura de N. Elias'; prefácio a La société des individus (Paris, Fayard,
1991), e prefácio a Engagement et distantiation (Paris Fayard, 1993). Igualmente
importante é sua atuação no debate entre a história cultural ou a história antropológica,
por um lado, e por outro, a história tradicional e a renovada história intelectual, ou ainda
no debate contra a tendência histórica recente do "retour du politique".
Caberia finalmente destacar alguns conceitos trabalhados por Chartier, centrais
na sua obra. Um deles seria o de representação, problematizada em suas diferentes
acepções. Chartier atribui grande importância ao conceito durkheimiano-maussiano de
representações coletivas e à ênfase dada por Bourdieu às lutas por formas de
classificações sociais, aproximando o conceito de mentalidade a estes outros. Além das
representações coletivas, Chartier destaca também a acepção de representação política,
de delegação. Um terceiro significado seria o de representação teatral de si e do grupo
(como salientam de diferentes maneiras outros autores como Goffman, E. P Thompson,
Geertz ou Foucault); finalmente, um quarto seria o que faz enfatizar a identidade de
classe ou de grupo.
Outros conceitos importantes são o de leitura, com suas ênfases nas práticas de
leitura e escritura (por onde Chartier se aproxima novamente de Bourdieu e também de
Michel de Certeau), e o de apropriação (em particular cultural, no sentido
antropológico, por onde ele se aproxima, além destes últimos citados, da leitura
sociológica, feita na França, da obra de Hoggart, sobre as utilizações da cultura nas
classes populares). Partindo da crítica à relação unívoca entre objetos culturais e classes
(ou grupos) sociais, Chartier está atento às mediações que diferenciam estes grupos
sociais através da produção, da apropriação, dos usos e das práticas culturais. Ele pode
assim salientar como as estruturas objetivas são culturalmente constituídas ou
construídas, a sociedade sendo ela própria uma representação coletiva.
Cabe finalizar dizendo que a nossa apropriação da obra de Roger Chartier pode
se enriquecer hoje, nesta conferência e no seminário a seguir, fornecendo-nos algo não
só do seu texto mas do seu contexto, que geralmente escapa nas importações de obras.
Certamente muito lucraremos com a sua simpática presença pessoal entre nós, no que
esperamos seja a primeira de outras visitas.
Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1993
José Sérgio Leite Lopes
Professor do PPGAS-UFRJ Antropólogo

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
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Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.

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  • 1. 1 A HISTÓRIA HOJE: dúvidas, desafios, propostas Roger Chartier Apresentação Apresentar Roger Chartier ao público brasileiro de ciências sociais advertido de que homenageia os vinte anos do CPDOC faz sentido apenas como breve comentário à reunião de sua vasta obra, ainda muito parcialmente conhecida no país. Talvez um dos motivos desta difusão mais lenta de uma importante produção seja o fato da grande participação de Roger Chartier em projetos coletivos de pesquisa, obscurecendo ou obstaculizando a constituição de sua produção individual e seu aparecimento como "autor" para um público mais amplo - o que não impede que seu nome se consolide cada vez mais na França, culminando com sua designação como directeur d'études da École des Hautes Études en Sciences Sociales (desde 1983) e, mais recentemente, como diretor do Centre Alexandre Koyré (centro de estudos sobre a história das ciências). Este grande investimento em projetos de pesquisa coletivos e de vasto alcance, materializando a proposta de novas abordagens e de novos objetos no também coletivo projeto de uma "nova história", no qual se incorpora desde jovem, no que seria a "terceira geração" do grupo dos Annales, marca assim a sua trajetória inicial, dando-lhe uma sólida base de pesquisa para sua produção ulterior. Esta estratégia de pesquisa a longo prazo, que passa pelo trabalho em equipe sobre novos objetos (ou sobre velhos objetos vistos de maneira nova), que é avessa às estratégias autorais rápidas próximas do ensaísmo, e que carrega esse ônus do reconhecimento mais tardio, abarca algumas linhas de investigação correlatas. A primeira delas seria a análise histórica das instituições de ensino e das sociabilidades intelectuais, onde se destaca o livro L'éducation en France du XVIe au XVIIle siècles, de R. Chartier, M. M. Compère e D. Julia, publicado em 1976. A obra é referencia obrigatória para a "pré-história" do sistema educacional republicano, que principalmente a partir da Terceira República vem tendo um peso decisivo na sociedade francesa, e desde meados dos anos 60 vem sendo estudado de forma inovadora pela equipe de sociólogos colaboradores de Pierre Bourdieu, contribuições estas que muito influenciaram o trabalho de Chartier. Uma segunda linha de pesquisa, central no conjunto de sua obra, tem sido a da história da leitura, das práticas de leitura e das práticas de escritura, constituindo-se, através da história do livro, da edição e dos objetos tipográficos, em uma base para a interrogação das teorias de recepção cultural e para a inovação da sociologia da cultura. Esta tem sido uma preocupação permanente na obra de Chartier. Trabalhou inicialmente com o historiador do livro Henri Jean Martin, de uma geração anterior de historiadores, tendo ambos publicado entre 1983 e 1986 a obra em 3 volumes Histoire de l'édition française (Paris, Ed. Promodis). Em seguida Chartier foi o organizador dos livros Pratiques de lecture (Marseille, Rivages,1985), Les usages de l'imprimé (XVe-XIXe siècles) (Paris, Fayard,1986) e Lecture et lecteurs dans la France de l'Ancien Régime (Paris, Seuil, 1987). Escreveu o capítulo "As práticas do escrito" do volume 3 da História da vida privada: do Renascimento às Luzes (São Paulo, Companhia das Letras, 1992), do qual é um dos organizadores, assim como o capítulo "Textos, impressão, leituras", na coletânea Nova história cultural, organizada por Lyrin Hunt (São Paulo, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
  • 2. 2 Martins Fontes, 1992). Mais recentemente publicou sozinho L'ordre des livres (Paris, Alinéa,1992), a ser lançado no Brasil pela editora da UnB, sob o título A ordem dos livros. Essa sócio-história das práticas culturais, utilizadora e produtora dos conceitos e métodos dessa nova subdisciplina da história cultural, se faz assim através da história da leitura entre os séculos XVI e XVIII, através da gênese das noções de público, publicidade e publicação naqueles mesmos séculos, e finalmente através da diversidade tanto das práticas de escritura e leitura, quanto de formas de circulação de textos e de apropriações culturais. A análise da cultura política nas suas várias configurações, dos círculos cortesãos aos meios populares, constitui-se numa terceira linha de pesquisa em que a produção de Roger Chartier também se notabiliza. Destaca-se aí o livro Les origines culturelles de la Révolution Française (Seuil,1991, traduzido pela Editora da USP), onde ele pôde aplicar os resultados de suas pesquisas anteriores à análise dos antecedentes da Revolução Francesa, opondo-se ao mesmo tempo à explicação que privilegia o que chama de retour du politique, esse retorno exclusivista das explicações políticas, de uma filosofia política do sujeito como fonte livre da oferta de idéias, independentemente de quaisquer limites de recepção cultural e social. Essa forma clássica da história das idéias e da história dos grandes homens, apresentada como última novidade durante as efemérides do recente bicentenário da Revolução Francesa onde se destacaram François Furet e os historiadores do Institut Raymond Aron - é assim implicitamente polemizada por Chartier, que se coloca contra a corrente da satisfação conformista e simplista com a derrocada contemporânea da idéia de revolução política e social na Europa projetada para trás. Nesta linha de pesquisa incluí-se também o estudo crítico das concepções dos historiadores em torno da cultura popular, de que é exemplo sua análise da coleção da Bibliothèque Bleue. Sua contribuição neste domínio, evitando a substantivação direta de conjuntos culturais definidos como "populares", mas enfatizando ao contrário os modos específicos pelos quais esses conjuntos culturais são apropriados por diferentes grupos sociais, destacada por P Burke na introdução à edição espanhola, reproduzida na brasileira, do seu livro Cultura popular na idade moderna (Companhia das Letras, 1989, p.24), pode ser encontrada em vários trabalhos: nos capítulos V ("Práticas e representações: leituras camponesas em França no séc. XVIII"), VI ("Textos e edições: literatura de cordel") e VII ("Cultura política e cultura popular no Antigo Regime") da coletânea História cultural: entre práticas e representações (Lisboa/Rio, Difel/Bertrand Brasil, 1991); no capítulo "Stratégies éditoriales et lecteurs populaires" da Histoire de l'édition française, ou no artigo "La culture populaire en question" no nº 8 da revista Histoire Hachette (abr-jun 1981). Uma outra linha de pesquisa desenvolvida por este autor é a sua reflexão sobre o ofício do historiador. O artigo "Le monde comme représentation" no número comemorativo dos 60 anos de fundação da revista Annales (número especial "Histoire et sciences sociales: un tournant critique", nov-dez 1989), assim como a introdução ao História cultural ("Por uma sociologia histórica das práticas culturais"), e os dois primeiros capítulos dessa coletânea, são textos que exemplificam essa preocupação com o exame das condições de produção dos agentes da prática historiográfica, incluindo a discussão dos conceitos e formas discursivas que fundam essa mesma prática. Tal reflexão se manifesta desde a sua participação nos empreendimentos coletivos da chamada terceira geração da escola dos Annales, como o livro La nouvelle histoire, que ele organiza junto com Jacques Le Goff e Jacques Revel em 1978. Essa reflexão desdobra-se numa outra dimensão a ser destacada na obra de Roger Chartier, aquilo que poderíamos designar como uma militância histórica. Tal Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
  • 3. 3 militância aparece na sua atividade de divulgador de uma "nova história cultural", por exemplo na sua participação no programa radiofônico semanal "Les lundis de 1'histoire" na estação France Culture, iniciado por Le Goff, ou na sua coluna como crítico de história na seção semanal de livros do jornal Le Monde. Essa atividade aparece também na sua participação freqüente como estimulador do debate entre historiadores e entre historiadores e sociólogos, como nas suas discussões com Robert Darnton e Pierre Bourdieu - ver a propósito Pierre Bourdieu, Roger Chartier e Robert Darnton, "Dialogue à propos de l'histoire culturelle", Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n.º 59, set. 1985, p. 86-93, e "Gens à histoire, gens sans histoire; dialogue Bourdieu/Chartier", Politix, n.º 6, primavera 1989, p. 53-60. Da mesma ordem é a dedicação de Chartier como prefaciador e introdutor da obra do sociólogo Norbert Elias na França -ver o prefácio "Formation sociale et économie psychique: Ia société de cour dans le procès de civilisation", a La société de cour (Paris, col. Champs-Flammarion, 1985 [lª ed. em 1974, sem prefácio]), incluído como capítulo III em História cultural ("Formação social e habitus: uma leitura de N. Elias'; prefácio a La société des individus (Paris, Fayard, 1991), e prefácio a Engagement et distantiation (Paris Fayard, 1993). Igualmente importante é sua atuação no debate entre a história cultural ou a história antropológica, por um lado, e por outro, a história tradicional e a renovada história intelectual, ou ainda no debate contra a tendência histórica recente do "retour du politique". Caberia finalmente destacar alguns conceitos trabalhados por Chartier, centrais na sua obra. Um deles seria o de representação, problematizada em suas diferentes acepções. Chartier atribui grande importância ao conceito durkheimiano-maussiano de representações coletivas e à ênfase dada por Bourdieu às lutas por formas de classificações sociais, aproximando o conceito de mentalidade a estes outros. Além das representações coletivas, Chartier destaca também a acepção de representação política, de delegação. Um terceiro significado seria o de representação teatral de si e do grupo (como salientam de diferentes maneiras outros autores como Goffman, E. P Thompson, Geertz ou Foucault); finalmente, um quarto seria o que faz enfatizar a identidade de classe ou de grupo. Outros conceitos importantes são o de leitura, com suas ênfases nas práticas de leitura e escritura (por onde Chartier se aproxima novamente de Bourdieu e também de Michel de Certeau), e o de apropriação (em particular cultural, no sentido antropológico, por onde ele se aproxima, além destes últimos citados, da leitura sociológica, feita na França, da obra de Hoggart, sobre as utilizações da cultura nas classes populares). Partindo da crítica à relação unívoca entre objetos culturais e classes (ou grupos) sociais, Chartier está atento às mediações que diferenciam estes grupos sociais através da produção, da apropriação, dos usos e das práticas culturais. Ele pode assim salientar como as estruturas objetivas são culturalmente constituídas ou construídas, a sociedade sendo ela própria uma representação coletiva. Cabe finalizar dizendo que a nossa apropriação da obra de Roger Chartier pode se enriquecer hoje, nesta conferência e no seminário a seguir, fornecendo-nos algo não só do seu texto mas do seu contexto, que geralmente escapa nas importações de obras. Certamente muito lucraremos com a sua simpática presença pessoal entre nós, no que esperamos seja a primeira de outras visitas. Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1993 José Sérgio Leite Lopes Professor do PPGAS-UFRJ Antropólogo Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
  • 4. 4 Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.