Série de reportagens sobre um restaurante popular e a economia que gira em torno dele, em Porto Alegre (RS). Vencedora do Prêmio Sebrae Nacional de Jornalismo - Impresso. De Sebastião Ribeiro e Tatiana Cruz
1. ZERO HORA > DOMINGO | 12 | AGOSTO | 2007 Economia > | 19 |
Mais Alimentos consumidos
por dia no restaurante:
do que Carne: de 25 kg a 30 kg
Arroz: 6 kg a 10 kg
Feijão: 6 kg a 10 kg
Massa: 10 kg a 12 kg
feijão
N
Batata: 20 kg
Tomate: 11 kg
Refrigerante: 80 garrafas
de 290 ml
Gás de cozinha: 1 botijão
a cozinha dos Paesi, o relógio ainda não de 13 kg
marca 9h, e dona Jovilde está às voltas Carvão para o churrasco:
com as seis bocas do fogão. De touca, 10 kg
com apenas um pedaço de pão e uma Açúcar: 3 kg
xícara de café no estômago, a mãe do
bacharel em Direito Adriano e da estu-
dante de Psicologia Adriane se submete
de segunda a sábado a uma rotina de
mais de 12 horas de trabalho ajudada tam 30% da receita do bufê montado por
apenas por uma auxiliar. Osmar Paesi, marido de Jovilde, pai de
Às 4h30min, deixa a cama, na casa de Adriano e Adriane, morto há dois anos
dois andares onde mora com os filhos, em um acidente de carro. O pagamento é
nos fundos do terreno do Velho Cora- feito por cheque mensalmente, e o com-
ção, comprado há 13 anos pela família, provante do consumo dos funcionários é
e às 5h, inicia a peleja do todo dia. Passa um vale-refeição informal.A inadimplên-
o café, frita os pastéis e começa a se en- cia, dizem os Paesi, não passa de 10%.
volver com as “três misturas”: expressão – É um mercado bom enquanto hou-
que determina a variação do cardápio ao ver empresas. E tem de ser bufê, porque é
longo da semana. Além de feijão, arroz e um ramo de alimentação rápida – receita
salada, há revezamento de pratos no bu- Adriano.
fê. Um dia galeto, lasanha e polenta; no Capitalizar o negócio é a maior dificul-
outro bife, massa e maionese, por exem- dade da família. Quando não empata nas
plo. Isso sem contar a especialidade da contas, utiliza o lucro, que nunca passa de
casa: o coração de porco recheado com A cozinheira do Velho Coração nasceu Jovilde 30% sobre o faturamento, para educação.
bacon, tempero verde, além de especia- Tem ainda os R$ 600 do aluguel do andar
rias, e assado na churrasqueira pelo her- Baldissera no dia 21 de janeiro de 1947, em Linha de cima do restaurante.
deiro do negócio. No Velho Coração, são Graciema Baixa, à época localidade de Bento Aprumada atrás do caixa, Adriane
80 quilos por mês. trata de receber o pagamento dos clien-
Pelo passa-prato da parede – vestígio Gonçalves, e entrou na mocidade pensando em tes: são R$ 4,50 pelo bufê, com direito
de uma época em que reinava o serviço a ser freira. Mudou de idéia quando, numa reunião- a uma carne e sobremesa. Para 15 fre-
la carte –, vê-se o verde e branco das toa- gueses, essa conta fica para depois. Com
lhas quadriculadas cobrindo as 20 mesas dançante em homenagem à Nossa Senhora das letra redonda de colegial, a universitária
do salão principal. Até as 13h30min, 150 Graças, foi tirada para dançar por Osmar Paesi, com de 25 anos registra esses débitos no sur-
pessoas devem experimentar o tempero rado caderno azul claro com estampa de
de Jovilde, cercadas por 53 folhagens. A quem se casou em julho de 1973. flores. Mas tudo isso é um papel que não
maior parte dessa gente, cerca de 70%, é lhe cai bem.
funcionário de empresas da vizinhança. – Meu sonho é me formar em Psico-
São pessoas que formam um exército de pesquisa de orçamento familiar do IBGE. Ado Velho Coração, o número é baixo pa- logia e poder trabalhar numa empresa
macacões azuis e têm hora certa para sair Em 2003, o levantamento mostrava que ra Jovilde que, há cinco anos, comemora- – revela Adriane, que está no terceiro se-
e retornar ao emprego. Se, no almoço, a as famílias com renda de até R$ 400 gas- va circulação de 400 clientes pelo salão. mestre da faculdade. – Isso aqui é uma
refeição é em restaurante, não é por luxo, tavam somente 11,81% das despesas com Adriano justifica que o Porto Seco levou prisão. Não tenho vocação. É só para o
mas por obrigação. À noite, o jantar é em alimentação fora do lar (veja abaixo). embora as transportadoras, que davam meu sustento mesmo – completa.
casa. Restaurante por lazer é raridade nas Se parece um batalhão de gente mais vida à região. Hoje, os convênios com as Situação parecida à do irmão. Com o
classes mais baixas, como atesta a última de uma centena de comensais às mesas poucas empresas que restam represen- diploma de Direito conquistado há dois
anos, a mente de Adriano está em outro
lugar. Por mais que passe a manhã e o
R$ 4 mil ou +
almoço no Velho Coração, à tarde, usa
R$ 1 mil a R$ 1,2 mil Fora de casa uma sala de um amigo para auxiliar na
Fora de casa 37,05% No domicílio execução de 15 causas – todas de graça.
POR PEDAÇOS 20,51% 62,95% Se ganhar uma das ações, o rapaz que
As despesas com estuda para passar no exame da Ordem
alimentação conforme a No domicílio dos Advogados do Brasil fica com um
renda familiar, em R$: 79,49% percentual. E não se incomodaria em
R$ 2 mil a R$ 3 mil fechar as portas se pudesse viver dessa
Fora de casa
26,82%
outra profissão.
– É muito cansativo. A gente está sem-
No domicílio
pre envolvido – diz.
Fora de casa
73,18% A mãe, que almoça depois da saída
11,81% dos clientes, concorda:
– Depois que eles se formarem, por tu-
do que já trabalhei aqui, vai ser a hora de
A gerenta do Velho Coração, apelido os filhos sustentarem a mãe.
No domicílio Mas é só perto das 19h que o silêncio
88,19% que Adriane recebeu por ficar atrás retorna à cozinha do Velho Coração. De-
do caixa, sonha formar-se em pois de limpar os banheiros, Jovilde volta
para casa. Tem folga das panelas. É hora
Psicologia e viajar à Itália, terra de de os filhos se virarem preparando os
Até R$ 400 seus antepassados. Até hoje, o mais sanduíches do jantar.
longe que chegou foi Cascavel (PR). SEGUE >
2. Data Publicação : 12/08/2007
Prato do Dia 1 (série), Restaurante de bairro: O coração da Economia Popular, Alimento, Alimentação