SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 11
Baixar para ler offline
AS MUDANÇAS NAS IMAGENS DO MÍTICO ARTUR: De Dux Bellorum a Rei
Cristão nas Visões de Nennius e Geoffrey de Monmouth
Adriana Zierer (UEMA/Brathair/Mnemosyne)1
In: ZIERER, Adriana (Org.) Uma Viagem pela Idade Média. São Luís: Ed. UEMA/
Apoio Fapema, 2010, p. 19-33.
Um reino próspero. Um rei justo e perfeito. Uma era de felicidade e abundância.
Por que Artur ainda chama tanto a nossa atenção? Porque no fundo o desejo de um
governante ideal capaz de resolver todos os nossos problemas ainda seja uma realidade.
Ou ainda, a possibilidade de que, se ele um dia existiu, um dia retornará, quando mais
precisarmos dele.
Será que houve uma única imagem sobre este grande rei e herói? O nosso
objetivo é provar que não. Se nas narrativas de origem céltica Artur está sempre
associado à figura do rei, nos primeiros escritos latinos sobre este indivíduo houve uma
modificação, uma passagem da idéia de dux bellorum (chefe guerreiro), nos escritos
atribuídos a Nennius, a de rei cristão invencível, simbologia tecida por Geoffrey de
Monmouth em uma importante obra, a Historia Regum Britanniae.
Qual a origem de Artur? Se ele existiu algum dia, era proveniente dos bretões,
povo de origem celta que habitava as Ilhas Britânicas. As populações que lá viviam
sempre estiveram em conflito, jamais havendo a unidade entre eles. A partir do século I
houve uma dominação superficial dos romanos no sudeste da ilha, quando
estabeleceram postos comerciais, realizaram a construção de estradas e estabeleceram o
Muro de Adriano visando separar os bretões — como os romanos chamaram os
moradores da ilha — de outros celtas inimigos, como os escotos (irlandeses) e pictos
(escoceses).
Com o esfacelamento do Império Romano do Ocidente, os anglos e saxões
ofereceram proteção aos bretões contra os inimigos, recebendo terras no território na
condição de federados, mas logo deixaram a posição de protetores para a de
dominadores, estabelecendo sete reinos independentes no século VI. Toda a terra
submetida ficou conhecida como terra dos anglos ou Inglaterra. Estes reinos saxões
também eram competitivos entre si, com a tendência dos reinos mais fortes absorverem
os mais fracos. É daí que surge a lenda arturiana, pois a existência de Artur não é
1
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente do Departamento de
História e Geografia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). É uma das coordenadoras dos
seguintes grupos de pesquisa no CNPq: Brathair (Grupo de Estudos Celtas e Germânicos) e Mnemosyne
(Laboratório de História Antiga e Medieval).
2
comprovada pelas fontes. Artur surge assim, como um mito de resistência e ligado a um
desejo de unificação que nunca existiu na Bretanha após a sua dominação pelos saxões.
Por isso, de acordo com a lenda, um dia ele voltaria para unir todos os bretões contra os
invasores. Pelo que sabemos através de Nennius, Artur teria sido um dux bellorum
(comandante militar) que venceu várias batalhas contra os inimigos, sendo a mais
importante a Batalha do Monte Badon, datada por uma outra fonte, os Annale Cambriae
(século X), como tendo ocorrido no ano 516 (BRUNEL, 1997, p. 101).
Neste momento de dominação saxã, a resistência dos bretões foi realizada no
País de Gales e a figura de Artur se tornou um símbolo de resistência aos invasores.
Assim a sua figura se tornou um mito. O mito é uma explicação simbólica da realidade,
ligada aos sentimentos e emoções, visando dar coesão a uma determinada coletividade
(CASSIRER, 1972, p. 134). Agrega funções integradoras, mobilizadoras e
esclarecedoras.
A imagem de Artur engloba provavelmente vários guerreiros em diferentes
épocas que realizaram a resistência contra os saxões. Mas é importante salientar que a
função mobilizadora do mito auxiliava os bretões a terem esperança no futuro ao
acreditar no retorno próximo de Artur para vencer os inimigos, auxiliando-os a serem
unidos e se acreditarem vencedores no campo das idéias.
Com a dominação anglo-saxã os bretões fugiram para as montanhas no oeste e
norte (Cornualha, País de Gales e Escócia), foram para o sul estabelecendo-se na
Pequena Bretanha, na Armórica (norte da França), fundiram-se com os conquistadores
ou foram mortos. Desta forma, as narrativas se espalharam. Contribuiu para a
popularização das narrativas arturianas nos territórios da Inglaterra e França a presença
de bardos, como o contador galês Bleheris ou Bleddri que transmitia as histórias
conhecidas pela tradição oral nas cortes (LOOMIS, 2000, p. 34).
ARTUR COMO DUX BELLORUM: A HISTÓRIA DOS BRETÕES (C. 800), DE
NENNIUS
Artur aparece pela primeira vez num texto latino na chamada Historia Brittonum
atribuída ao monge galês Nennius. No entanto, a obra não foi escrita por um único
copista, e sim por vários e por isso é anônima. Embora tenha sido redigida por volta do
ano 800, houve interpolações no manuscrito original até o século XIII.
3
É interessante observar que desde cedo nestes textos existe uma relação entre
Artur e o processo de cristianização uma vez que surge como um guerreiro cristão,
protegido nas batalhas pela Virgem Maria. Todo o relato possui um sentido religioso. Se
os bretões foram dominados, segundo o autor foi devido aos seus pecados. Seguindo a
preocupação cronística do período medieval, a narrativa se inicia com a genealogia
bíblica, começando com Adão, procurando sempre relacioná-la com a contagem do
número de anos passados, numa tentativa comum da época de controlar o tempo e
associá-lo à temporalidade cristã da salvação (GUREVITCH, 1990, p. 88). Depois, os
bretões também são relacionados a um antepassado da Antigüidade Clássica, o troiano
Bruto que lhes teria dado origem, até que por fim chegamos à sua história propriamente
dita.
Outra preocupação de fundo religioso é a conversão ao cristianismo, que ocupa
um papel central na narrativa. É interessante observar em todas as obras latinas até o
século XI que a justificativa cristã para a derrota dos bretões seriam os pecados deste
povo (SÉCHELLES, 1957, p. 185). Neste sentido, a culpa recairia principalmente sobre
o soberano mítico bretão do período, Vortigern (monarca lendário entre 425 e 450),
palavra que significa rei tirano (FARAL, 1929, t. I, p. 96), o qual teria feito um acordo
com os saxões para que estes defendessem a ilha dos outros invasores e estes ao
contrário traíram o soberano e dominaram o território.
Vortigern comete uma série de delitos: apaixona-se pela filha do pagão Hengist,
líder dos saxões, e casa-se com ela. Mais tarde, como a coroar suas atitudes condenáveis
aos olhos do clero, pratica um erro ainda mais grave, cometendo o incesto e casando-se
pela segunda vez com sua própria filha, com quem gera um herdeiro. Estes elementos
parecem justificar a posterior dominação dos bretões pelos saxões. O mau exemplo
dado pelo soberano teria arrastado toda a população ao paganismo na visão dos copistas
do relato.
É curioso notar que os personagens referentes à realeza bretã são todos
inventados (Faral, 1929, T. I, p. 95) enquanto que os referentes aos saxões foram muitas
vezes retirados de listas genealógicas cuja existência foi atestada, demonstrando o
pouco conhecimento dos cronistas sobre a história bretã no período.
Em contraponto com o rei tirânico, São Germano é a figura santa que tenta levar
o monarca ao bom caminho e mudar suas atitudes, sem sucesso. O cristianismo na
Bretanha foi introduzido entre os séculos III e IV por missionários como Santo Albano,
e mais tarde com o próprio São Germano.
4
São Germano (378-448) foi personagem histórico. Esteve duas vezes na
Bretanha no século V, tentando extirpar o pelagianismo, uma heresia que afirmava não
serem os humanos culpados pelo pecado de Adão, o qual era considerado uma falta
individual.
Outros personagens positivos na narrativa de Nennius são os lendários Vortimer,
filho de Vortigern que teria lutado decisivamente contra os inimigos, mas morrido
depois em batalha (NENNIUS, 2001, cap. 43) e Aurelius Ambrosius, associado por
Gildas, que escreveu a De Excidio et Conquestu Britanniae (século VI), a um soberano
vencedor do Monte Badon (GILDAS, 2001, cap. 25 e 26).
Na Historia Brittonum, Ambrósio faz previsões certeiras a Vortigern avisando
que seria derrotado pelos saxões e que debaixo do solo estavam duas serpentes, sendo
que uma delas representava a sua derrota. Mais tarde, na obra de Geoffrey de
Monmouth, este mesmo Aurélio seria o mago Merlin (MONMOUTH, 1993, p. 153-
174) e substitui à visão das serpentes pela dos dragões, significando igualmente o ocaso
de Vortigern.
Voltemos agora para a importância de Artur na obra atribuída a Nennius. O
guerreiro é citado em dois capítulos da obra. O capítulo 56 relata as doze batalhas
vencidas por Artur no Monte Badon. Se ele consegue sair vencedor é por seu sentido de
guerreiro cristão, ao contrário do rei pagão Vortigern, pois na última batalha, na qual
matou sozinho novecentos e sessenta saxões, carregava nos ombros a imagem da
Virgem Maria.
No capítulo 73 é descrito o túmulo do filho de Artur, Anir, que teria sido morto
pelo próprio pai. Este capítulo do texto está na parte referente às mirabilia da Bretanha e
também se relaciona a fontes célticas, pois menciona a marca do cão de Artur durante a
caçada ao porcus Troynt, acontecimento que aparece num conto galês chamado
Kulhwch e Olwen. Esta obra embora produzida no século XII, remonta ao século VII e
fala da caçada de Artur (na obra céltica visto também como um rei) ao javali Twrch
Twryth, uma das provas para que o seu primo Kulhwch pudesse se casar com Olwen
(Mabinogion, 2000, p. 180-181 e p. 203).
Uma das “coisas admiráveis” é que o túmulo de Anir, o filho de Artur, nunca
tinha uma dimensão exata, mudando de tamanho cada vez que era medido,
acontecimento maravilhoso que acaba por se relacionar com o próprio Artur.
5
ARTUR COMO REI CRISTÃO INVENCÍVEL: A HISTORIA REGUM
BRITANNIAE (C. 1135-1138), DE GEOFFREY DE MONMOUTH
Depois de séculos de dominação saxã na atual Inglaterra houve uma nova
invasão ao solo britânico, desta vez mais extensa que as anteriores, englobando os
territórios da Escócia e Irlanda que anteriormente não haviam sido conquistados. Os
novos invasores eram de origem normanda e conquistaram a atual Inglaterra em 1066,
por ocasião da Batalha de Hastings quando Guilherme da Normandia venceu o rei saxão
Haroldo.
Os normandos logo perceberam que poderiam beneficiar-se das crenças de
origem celta em seu próprio beneficio. Desta maneira, o rei Henrique I, (1100-1135), de
origem normanda, rei da Inglaterra e vassalo do rei francês Luís VI, o Gordo (1108-
1137) encomendou a um clérigo de origem bretã uma história da Bretanha na qual os
normandos apareciam como descendentes do mítico Artur. Desta forma pretendiam
fortalecer o seu poder de forma simbólica, sendo aceitos pelos bretões.
Com a morte de seus herdeiros masculinos e após a morte de Henrique, o trono
deveria passar para sua filha Matilde, casada com o conde de Anjou, Godofredo
Plantageneta, mas foi usurpado por Estevão de Blois (1135-1153). A guerra foi
deflagrada entre as duas partes, sem que o trono fosse recuperado, mas houve o acordo
de que com a morte de Estevão o descendente de Matilde, Henrique II, assumiria o
trono, o que ocorreu em 1154. A utilização da obra foi realizada com sucesso por
Henrique, após o fim da guerra civil, tanto que a mandou traduzir para o vernáculo no
ano seguinte a que se tornou rei, o Roman de Brut, de Wace.
Mas a Historia Regum já continha elementos importantes baseados na figura de
Artur que faziam frente a dinastia capetíngia, governante na França. O texto pretendia
valorizar o glorioso passado dos bretões, identificando-os aos normandos, os quais se
apresentavam como continuadores da linhagem bretã através de seu mais nobre
representante, Artur, que aparece no texto de Geoffrey como um rei cristão invencível,
conquistador de trinta reinos e do Império Romano. Sua ação está associada ao espírito
de Cruzada contra os “infiéis”, associados no texto com os pictos e escotos (embora de
origem céltica, respectivamente escoceses e irlandeses) e saxões (germanos).
O autor retraça a história dos reis bretões desde a sua origem, com Brutus,
bisneto de Enéias, que após várias peripécias teria chegado à atual Inglaterra, então
chamada Albion. De acordo com o texto, o nome Bretanha proviria de seu fundador,
6
Brutus. Brutus também tinha um companheiro, Corineus, lutador de gigantes, um
modelo de guerreiro épico.
A narrativa se inicia no século XII a.c. e segue até o último rei bretão
Cadwallader no século VII, passando pelo reinado de Artur, que ocupa um quarto da
obra. Também são citados outros reis como Leir e suas filhas, narrativa inspirada,
segundo Loomis (2000, p. 36) no conto oriental Barlaam and Josaphat.
O autor cita como inspiração autores como Gildas, escritor de De Excidio et
Conquestu Britanniae (século VI) e Beda, autor da Historia Eclesiástica Gentis
Anglorum (século VII), mas muito do que relata foi inspirado principalmente na
Historia Brittonum (c. 800), texto atribuído a Nennius, que sofreu várias interpolações
até o século XIII, sendo considerado anônimo, conforme já vimos. Geoffrey usa
livremente as suas fontes, sem se preocupar em ser fiel às mesmas.
De Nennius, Geoffrey retirou vários elementos como, por exemplo, a origem
troiana do fundador da Bretanha, que também é mencionada naquela obra. Além disso,
Geoffrey apresenta a figura de Merlin tal como a conhecemos hoje e que é proveniente
do Merlin Ambrósio, descrito por Nennius. Na Historia Brittonum, Nennius desenvolve
o personagem Ambrósio, filho de um incubo e uma donzela, o qual faz previsões
certeiras sobre o declínio do soberano usurpador na Betanha, Vortigern. Enquanto na
obra de Nennius são as serpentes debaixo do solo que são interpretadas por Merlin
como o declínio de Vortigern, na obra de Geoffrey o mesmo personagem prevê o ocaso
do governante bretão em virtude de dois dragões branco e vermelho que lutam debaixo
do solo.
Nesta narrativa, o mago produz a poção que faz o rei Uther adotar as feições de
Gorlois, marido da duquesa Ingerna (Igraine). Assim, enquanto Gorlois já estava morto,
Artur é concebido sem que a duquesa soubesse do disfarce. Porém, a ligação entre o
mago e o rei Artur termina neste ponto, sendo mencionado mais uma vez apenas as
profecias de Merlin sobre a conquista da Bretanha e o incerto retorno de Artur. Já a
Prophetia Merlini também escrita por Geoffreu de Monmouth trabalha com a figura do
Merlin Selvagem, associado ao bardo galês Myrddin.
Sobre a figura do Merlin Selvagem é interessante explicar a sua origem. Merlin
Selvagem é baseada na figura de um rei proveniente do norte da Bretanha e que lutou
pelos bretões contra os saxões no século VI. Este teria enlouquecido após uma batalha e
passara a vagar pela floresta, onde teria adquirido poderes sobrenaturais e durante esse
período só teve contato com animais. Há dados histórico-lendários que podem ligá-lo ao
7
rei Lailoken, da Escócia. (MARKALE, 1989). É na Historia Regum Britanniae que
Merlin é associado a Artur pela primeira vez já quando é o responsável pelo nascimento
daquele.
Segundo a Historia Regum Britanniae, com a morte de Uther, que havia
conseguido a unificação da Bretanha, seu filho Artur é coroado às pressas aos quinze
anos com o intuito de evitar uma invasão saxã. As primeiras ações de Artur demonstram
largueza (isto é, generosidade) e carisma pessoal. Assim, sua coragem e bondade faziam
com que todos o amassem.
Embora cite vários reinados, o que a caracterizaria como uma crônica, a Historia
Regum Britanniae não é linear; por exemplo, o anúncio do nascimento de Artur por
Merlin é uma antecipação. Após Utherpendragon ter assumido por meio da mágica de
Merlin as feições de Gorlois, esposo de Igraine, o autor prenuncia o futuro glorioso de
seu descendente: “é nesta noite que ela concebeu Artur, homem célebre entre todos, o
qual foi reconhecido em seguida por seu senso de honra.” (MONMOUTH, 1993, p.
198).
O relato de Geoffrey aproxima-se das canções de gesta porque Artur é
apresentado como um guerreiro invencível. O fato de ser um rei-guerreiro em luta com
os pagãos e de empreender uma guerra santa contra eles era um motivo do gênero épico.
Há também elementos da obra que a aproximam do romance, como discursos
diretos por parte do autor e várias descrições sobrenaturais associadas a Artur, como,
por exemplo, o Lago Lomond, causador de prodígios, como o das águias que se reuniam
anualmente para anunciar os eventos maravilhosos que ocorreriam no reino
(Monmouth, 1993, p. 212). Tal lago é inspirado nas descrições de Nennius sobre “As
Coisas Admiráveis da Bretanha” (NENNIUS, 2003, p. 248-253).
O relato de Geoffrey também criou uma origem fantástica para as pedras de
Stonehenge, que seriam provenientes da África e foram levadas para a Irlanda durante a
estadia dos gigantes ali. Merlin, por meio de magia, havia trazido essas pedras,
possuidoras de dons curativos, da Irlanda para a Inglaterra (MONMOUTH, 1993, p.
185).
Além valorizar o glorioso passado dos bretões, identificando-os aos normandos,
apresentados como descendentes de Artur, o relato de Geoffrey também buscava fazer
frente à monarquia francesa e ao seus principais heróis, Rolando e Carlos Magno.
Assim, existe uma clara relação entre Artur e Rolando, o herói da canção de
gesta francesa. Os anglo-normandos pretendiam dar uma resposta literária ao rei da
8
França, apresentando um herói guerreiro à altura de A Canção de Rolando (canção de
gesta composta no século XI, que se referia a um fato real da Alta Idade Média, a morte
de Rolando, sobrinho de Carlos Magno na Batalha de Roncesvales, contra os bascos,
mas que no relato são apresentados como muçulmanos). O personagem central da
narrativa é ligado à figura de Carlos Magno e consequentemente à dinastia capetíngia
(DUBY, 1982, p. 313 e p. 317). Na referida narrativa épica, o monarca francês é
apresentado como o único capaz de impedir os infiéis de dominarem a Europa.
Neste momento em que o poder régio começa a se fortalecer na França, os reis
da Inglaterra eram ao mesmo tempo vassalos do rei francês e passam a apresentar um
personagem tão cativante quanto o guerreiro Rolando para fazerem frente ao seu
suserano. Artur é também um guerreiro cristão perfeito e além de tudo é um monarca,
associado na narrativa à linhagem normanda.
O poderio de Artur na obra é tão grande que ele simbolicamente derrota o
soberano francês ao vencer em combate singular Frollo, um tribuno romano, governador
da Gália que o havia desafiado (MONMOUTH, 1993, p.217). Os normandos procuram
assim tanto agradar a população local, os bretões, ao abraçar um de seus mitos mais
caros, e ao mesmo tempo, fazer frente à monarquia francesa.
Visando ampliar o caráter da obra, Henrique II (1154-1189), neto de Henrique I,
mandou logo que a Historia Regum fosse traduzida em versos para o vernáculo, pelo
normando Robert Wace, o Roman de Brut (1155), para que fosse lida e vista como um
modelo em sua corte. É interessante lembrar que o monarca inglês havia se casado com
a ex-esposa do rei francês Henrique VII, Leonor da Aquitânia, aumentando ainda mais
as suas possessões na França.
É importante ressaltar ainda na Historia dos Reis da Bretanha a intertextualidade
com o texto de Nennius, especialmente quanto à figura de Artur, cujos traços guerreiros
ainda são marcantes. Um exemplo claro é que segundo Nennius ao explicar as doze
batalhas vencidas sob o comando de Artur contra os saxões afirma que o comandante
militar na oitava batalha “carregou a imagem de Santa Maria sempre virgem sobre seus
ombros; e os pagãos foram postos em debandada nesse dia” (NENNIUS, 2002, p. 244).
Alem disso na décima segunda batalha, a do Monte Badon “caíram em um dia
novecentos e sessenta homens de uma investida de Artur e ninguém os golpeou exceto o
próprio Artur, e em todas as batalhas ele saiu como vencedor” (NENNIUS, 2002, p.
244).
9
Seguindo a linha de raciocínio de Nennius, Geoffrey de Monmouth reafirma em
sua obra a proteção da Virgem Maria a Artur, a quem ele sempre invocava antes das
batalhas. E o caráter de invencibilidade do rei se reafirma, pois segundo Geoffrey,
vencia todos os seus oponentes: “Todos aqueles com quem se batia, invocando Deus,
morriam ao primeiro golpe de espada. Ele não suspendeu seu ataque até ter matado
quatrocentos e setenta soldados com sua única arma Caliburn” (MONMOUTH, 1993,
p.215).
O monarca bretão tinha características ambíguas, pois portava elementos pagãos
e cristãos: uma espada (Caliburn) forjada no Outro Mundo Céltico, a ilha de Avalon;
mas seu escudo Pridwen, a quem sempre apelava nas batalhas, continha a imagem da
Virgem Maria, tal como havia sido indicado por Nennius.
Outros momentos da narrativa enfatizam a coragem de Artur e sua ligação a
animais importantes no imaginário celta como o urso e o dragão. Artur ao longo do
manuscrito mata dois gigantes e um oponente em combate singular, o tribuno Frollo,
governante da Gália. Nesta luta, o rei é descrito por Geoffrey como um “leão feroz” que
partiu a cabeça de seu oponente, de grande estatura, em dois.
A morte de Artur ocorre devido à traição de seu sobrinho Mordret, que usurpa o
trono quando o tio empreendia a conquista de Roma. Até então invencível, Artur é
mortalmente ferido na luta contra ele, sendo levado à Ilha de Avalon para curar seus
ferimentos. A obra de Geoffrey atendendo aos interesses dos normandos, não diz, no
entanto, se Artur algum dia retornará, como afirmavam as velhas crenças.
A conquista dos bretões é vista no seu livro como um castigo divino. Com o
domínio saxão, uma série de calamidades se abatem sobre o país, como a peste e a
fome. O último rei bretão, Cadwallader, refugia-se na Armórica, e recebe de um anjo
um aviso para se dirigir ao papa de Roma, onde morre. A ressurreição dos bretões é
prometida para um dia no futuro, graças à fé cristã (MONMOUTH, 1993, p. 259-285).
Não por acaso o final da obra de Geoffrey é ambíguo, não sabemos se após a
luta mortal contra o sobrinho-usurpador do trono Mordred e depois do ferimento mortal,
Artur retornará um dia para salvar os bretões. Curiosamente em 1195 sob o patrocínio
do Plantageneta, que morreu pouco antes do evento, foram forjadas na abadia de
Glanstonbury as descobertas dos túmulos de Artur e Guinever. Os novos dominadores
queriam provar aos bretões que Artur não voltaria mais e que eles governariam a ilha
10
indefinidamente. Apesar disso, no período em que a obra foi escrita e muito depois, um
grande número de pessoas continuou acreditando no retorno de Artur.
A importância da retomada das narrativas arturianas repectivamente por Nennius
e depois por Geoffrey de Monmouth contribuiu para a difusão e desenvolvimento dos
relatos arturianos no Ocidente. Além disso, vários grupos sociais como os nobres, os
monarcas e o clero procuraram se apropriar das narrativas arturianas em seu benefício.
Cada autor ou anônimo foi criando novos elementos na aventura de Artur: Robert Wace
foi o criador da távola redonda, mesa ao redor da qual todos os cavaleiros se sentavam
como iguais; Chrétien de Troyes tornou os cavaleiros mais importantes que a figura do
rei e passou a relacionar o rei Artur e o Graal. E mais tarde, escribas do século XIII
transformaram o Graal, inicialmente apresentado como uma escudela ou travessa por
Chrétien, em cálice com o sangue de Cristo na Cruz e elemento fundamental para
garantir a prosperidade do reino arturiano. Este cálice, de acordo com a versão
cristianizada da narrativa, só poderia ser encontrado por um cristão puro, Galahad.
Na Península Ibérica a imagem cristianizada de Artur circulou principalmente
através da novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal (c. 1250). Ainda que nesta
obra Artur apareça como um rei pecador, ainda podemos ver suas atitudes guerreiras em
batalha quando, numa ocasião, cercaram o rei mais de vinte homens, enfatizando as
descrições do rei-guerreiro invencível inspirada em Nennius e em Geoffrey de
Monmouth.
Um outro relato ibérico que mostrava o caráter guerreiro do rei mítico aparece
no Libro de las Generaciones, crônica navarra escrita entre 1260 e 1270. Nesta crônica
há um resumo de Artur como rei, possuindo traços de herói ao matar dois dragões e
vencer o imperador romano, unindo portanto, mais uma vez, elementos da obra de
Nennius e de Geoffrey de Monmouth.
Desta forma, com a circulação das narrativas arturianas em todo o Ocidente, o
mito do rei perfeito, que teve por origem uma reação de resistência dos bretões contra os
invasores saxões fortaleceu-se com o tempo e adquiriu diversos enfoques, fazendo com
que o conheçamos até hoje.
REFERÊNCIAS
FONTES
11
GEOFFROY DE MONMOUTH. Historia Regum Britanniae (Histoire des Rois
de Bretagne). Traduite et comenté par Laurence Mathey-Maille. Paris: Les Belles
Lettres, 1993.
GEOFFREY DE MONMOUTH. Historia Regum Britanniae. In: FARAL,
Edmond. La Légende Arthuriene – Textes et Documents. Paris: Honoré
Champion, 1929, Tomo II, p. 256-308.
GILDAS. A Destruição da Bretanha e sua Conquista. Trad. e notas de Bruno
Oliveira. In: COSTA, Ricardo da (Org.). Testemunhos da História. Documentos
de História Antiga e Medieval. Vitória: EDUFES, 2003, p. 109-207. Tradução
disponível na Internet: http://www.ricardocosta.com/gildas.htm
Mabinogion. Trad. de José Domingos Morais. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000.
NENNIUS. História dos Bretões. Trad., apresentação e notas de Adriana Zierer. In:
COSTA, Ricardo (Org.). Testemunhos da História. Documentos de História
Antiga e Medieval. Vitória: EDUFES, 2003, p. 209-253. (tradução disponível na
Internet: http://www.ricardocosta.com/nennius.htm
ESTUDOS
BRUNEL, Pierre. (Org.). Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1997.
DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial
Estampa, 1982.
FARAL, Edmond. La Légende Arthuriene – Textes et Documents. Paris: Honoré
Champion, 1929, 3 Tomos.
GUREVITCH, Aron. As Categorias da Cultura Medieval. Lisboa: Caminho: 1990.
LOOMIS, Roger Sherman. The Development of Arthurian Romance. New York:
Dover, 2000.
MARKALE, Jean. Le Roi Arthur et la Société Celtique. Paris: Payot, 1996.
MARKALE, Jean. Merlim, o Mago. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
MATTHEY-MAILLE, Laurence. “Notes” In: GEOFFREY DE MONMOUTH.
Historia Regum Britanniae (Histoire des Rois de Bretagne). Traduite et comenté
par Laurence Mathey-Maille. Paris: Les Belles Lettres, 1993.
MELLO, José Roberto de A. “Os Alicerces Medievais da Inglaterra Moderna (1066-
1327). In: MONGELLI, Lênia Márcia (Coord.). Mudanças e Rumos: O Ocidente
Medieval (Séculos XI-XIII). São Paulo: Íbis, 1997, p. 17-51.
SAINERO, Ramón (Ed.). Sagas Celtas Primitivas en la Literatura Inglesa.
Madrid: Arkal, 1993.
SÉCHELLES, D. de. “L’Evolution et la Transformation du Mythe Arthurien dans le
Thème du Graal”. In: Romania. T. LXXVIII, 1957.
VASSALO, Ligia. “A Canção de Gesta e o Épico Medieval”. In: A Canção de
Rolando. Tradução de Ligia Vassalo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 1-18.
ZIERER, Adriana. “A História dos Bretões de Nennius (c. 800) e sua Relevância para a
Construção do Mito do Rei Artur”. In: Anais Eletrônicos do III Encontro de História
da ANPUH-ES (2000). http://www.anpuhes.cjb.net
ZIERER, Adriana. “Artur: de Guerreiro a Rei-Cristão nas Fontes Medievais Latinas e
Célticas”. In: Brathair. Revista Eletrônica de Estudos Celtas e Germânicos, 2 (1), 2002,
p. 40-54, www.brathair.com. Consultado em: 28/10/2010.
ZIERER, Adriana. “Artur nas Fontes Ibéricas Medievais (II): O Libro de las
Generaciones e o Nobiliário do Conde D. Pedro”. In: Brathair. Revista Eletrônica de
Estudos Celtas e Germânicos, 4 (2), 2004, p. 142-158, www.brathair.com . Consultado
em: 28/10/2010.

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a AS_MUDANCAS_NAS_IMAGENS_DO_MITICO_ARTUR.pdf

Formação da Europa feudal
Formação da Europa feudalFormação da Europa feudal
Formação da Europa feudal
Renata Telha
 
Dialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdf
Dialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdfDialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdf
Dialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdf
paulacristinaconteud
 
Prosa medieval
Prosa medievalProsa medieval
Prosa medieval
heleira02
 
Camilo janaina
Camilo janainaCamilo janaina
Camilo janaina
SEDUC-RO
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140
luisprista
 

Semelhante a AS_MUDANCAS_NAS_IMAGENS_DO_MITICO_ARTUR.pdf (20)

Invasões bárbaras e formação do feudalismo
Invasões bárbaras e formação do feudalismoInvasões bárbaras e formação do feudalismo
Invasões bárbaras e formação do feudalismo
 
Formação da Europa feudal
Formação da Europa feudalFormação da Europa feudal
Formação da Europa feudal
 
14. idade média no ocidente.
14. idade média no ocidente.14. idade média no ocidente.
14. idade média no ocidente.
 
slide de históra a-baixa-idade-mc3a9dia.ppt
slide de históra a-baixa-idade-mc3a9dia.pptslide de históra a-baixa-idade-mc3a9dia.ppt
slide de históra a-baixa-idade-mc3a9dia.ppt
 
Idade Média
Idade Média Idade Média
Idade Média
 
apontamentos memorial.docx
apontamentos memorial.docxapontamentos memorial.docx
apontamentos memorial.docx
 
NOVELAS DE CAVALARIA
NOVELAS DE CAVALARIANOVELAS DE CAVALARIA
NOVELAS DE CAVALARIA
 
As brumas de avalon
As brumas de avalonAs brumas de avalon
As brumas de avalon
 
Quando nosso mundo se tornou cristao paul veyne
Quando nosso mundo se tornou cristao   paul veyneQuando nosso mundo se tornou cristao   paul veyne
Quando nosso mundo se tornou cristao paul veyne
 
Dialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdf
Dialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdfDialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdf
Dialnet-DURANTWillCesarECristoAHistoriaDaCivilizacaoVolIII-9039647.pdf
 
Crise no império romano
Crise no império romanoCrise no império romano
Crise no império romano
 
Teste de preparação 1
Teste de preparação 1Teste de preparação 1
Teste de preparação 1
 
Prosa medieval
Prosa medievalProsa medieval
Prosa medieval
 
Prosa medieval
Prosa medievalProsa medieval
Prosa medieval
 
Resposta das questôes os sertões- euclides da cunha
Resposta das questôes   os sertões-  euclides da cunhaResposta das questôes   os sertões-  euclides da cunha
Resposta das questôes os sertões- euclides da cunha
 
A queda do império romano
A queda do império romanoA queda do império romano
A queda do império romano
 
Camilo janaina
Camilo janainaCamilo janaina
Camilo janaina
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 140
 
Memorial do convento
Memorial do conventoMemorial do convento
Memorial do convento
 
Hail_Arminius_O_Pai_dos_Alemaes_a_construcao_mitic.pdf
Hail_Arminius_O_Pai_dos_Alemaes_a_construcao_mitic.pdfHail_Arminius_O_Pai_dos_Alemaes_a_construcao_mitic.pdf
Hail_Arminius_O_Pai_dos_Alemaes_a_construcao_mitic.pdf
 

Mais de paulo viana

Atividades USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docx
Atividades   USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docxAtividades   USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docx
Atividades USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docx
paulo viana
 
0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
paulo viana
 
0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf
0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf
0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf
paulo viana
 
0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
paulo viana
 
0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
paulo viana
 
História dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdf
História dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdfHistória dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdf
História dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdf
paulo viana
 

Mais de paulo viana (17)

Atividades USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docx
Atividades   USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docxAtividades   USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docx
Atividades USO DA VIRGULA ampliando conhecimentos.docx
 
Atividades de Língua Portuguesa PRONOMES.docx
Atividades de Língua Portuguesa PRONOMES.docxAtividades de Língua Portuguesa PRONOMES.docx
Atividades de Língua Portuguesa PRONOMES.docx
 
Artigo e Numeral Diferenças.docx
Artigo e Numeral Diferenças.docxArtigo e Numeral Diferenças.docx
Artigo e Numeral Diferenças.docx
 
Advérbios.docx
Advérbios.docxAdvérbios.docx
Advérbios.docx
 
10 CLASSES DA MORFOLOGIA.doc
10 CLASSES DA MORFOLOGIA.doc10 CLASSES DA MORFOLOGIA.doc
10 CLASSES DA MORFOLOGIA.doc
 
0216P21013-MULT-LING-PORT-MT-EM-VU-MANUAL-001-416-PNLD22.pdf
0216P21013-MULT-LING-PORT-MT-EM-VU-MANUAL-001-416-PNLD22.pdf0216P21013-MULT-LING-PORT-MT-EM-VU-MANUAL-001-416-PNLD22.pdf
0216P21013-MULT-LING-PORT-MT-EM-VU-MANUAL-001-416-PNLD22.pdf
 
0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201137-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL5-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
 
0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf
0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf
0217P21201134-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL2-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2-1.pdf
 
0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201135-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL3-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
 
0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
0217P21201136-MULTIVERSOS-LINGUAGENS-VOL4-MANUAL-001-288-PNLD-2021-OBJ2.pdf
 
ANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdf
ANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdfANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdf
ANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdf
 
4ano-ALUNO-ciencias caderno do futuro.pdf
4ano-ALUNO-ciencias caderno do futuro.pdf4ano-ALUNO-ciencias caderno do futuro.pdf
4ano-ALUNO-ciencias caderno do futuro.pdf
 
VIOLINO - MÉTODO - Lambert Ribeiro.pdf
VIOLINO - MÉTODO - Lambert Ribeiro.pdfVIOLINO - MÉTODO - Lambert Ribeiro.pdf
VIOLINO - MÉTODO - Lambert Ribeiro.pdf
 
História dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdf
História dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdfHistória dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdf
História dos Bretões (c. 800) Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa.pdf
 
MIto de origem Linhagem Wessex.pdf
MIto de origem Linhagem Wessex.pdfMIto de origem Linhagem Wessex.pdf
MIto de origem Linhagem Wessex.pdf
 
ANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdf
ANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdfANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdf
ANATOMIA DOS ANIMAIS DOMESTICOS - KONIG 6ED.pdf
 
Atividades tipos sujeito
Atividades tipos sujeitoAtividades tipos sujeito
Atividades tipos sujeito
 

Último

Responde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptx
Responde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptxResponde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptx
Responde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptx
AntonioVieira539017
 
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptxSlide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
edelon1
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
LeloIurk1
 
Reta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdf
Reta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdfReta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdf
Reta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdf
WagnerCamposCEA
 

Último (20)

Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptxSlides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
 
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdfPROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
 
Responde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptx
Responde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptxResponde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptx
Responde ou passa na HISTÓRIA - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - 8º ANO.pptx
 
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptxSlides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
 
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdfProjeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
 
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.pptaula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
 
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
 
PROJETO DE EXTENSÃO I - Radiologia Tecnologia
PROJETO DE EXTENSÃO I - Radiologia TecnologiaPROJETO DE EXTENSÃO I - Radiologia Tecnologia
PROJETO DE EXTENSÃO I - Radiologia Tecnologia
 
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfCurrículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
 
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptxSlide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
Slide - EBD ADEB 2024 Licao 02 2Trim.pptx
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
 
Nós Propomos! Autocarros Elétricos - Trabalho desenvolvido no âmbito de Cidad...
Nós Propomos! Autocarros Elétricos - Trabalho desenvolvido no âmbito de Cidad...Nós Propomos! Autocarros Elétricos - Trabalho desenvolvido no âmbito de Cidad...
Nós Propomos! Autocarros Elétricos - Trabalho desenvolvido no âmbito de Cidad...
 
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdfApresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
 
praticas experimentais 1 ano ensino médio
praticas experimentais 1 ano ensino médiopraticas experimentais 1 ano ensino médio
praticas experimentais 1 ano ensino médio
 
P P P 2024 - *CIEJA Santana / Tucuruvi*
P P P 2024  - *CIEJA Santana / Tucuruvi*P P P 2024  - *CIEJA Santana / Tucuruvi*
P P P 2024 - *CIEJA Santana / Tucuruvi*
 
Antero de Quental, sua vida e sua escrita
Antero de Quental, sua vida e sua escritaAntero de Quental, sua vida e sua escrita
Antero de Quental, sua vida e sua escrita
 
Reta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdf
Reta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdfReta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdf
Reta Final - CNU - Gestão Governamental - Prof. Stefan Fantini.pdf
 
Seminário Biologia e desenvolvimento da matrinxa.pptx
Seminário Biologia e desenvolvimento da matrinxa.pptxSeminário Biologia e desenvolvimento da matrinxa.pptx
Seminário Biologia e desenvolvimento da matrinxa.pptx
 
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIAPROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
 

AS_MUDANCAS_NAS_IMAGENS_DO_MITICO_ARTUR.pdf

  • 1. AS MUDANÇAS NAS IMAGENS DO MÍTICO ARTUR: De Dux Bellorum a Rei Cristão nas Visões de Nennius e Geoffrey de Monmouth Adriana Zierer (UEMA/Brathair/Mnemosyne)1 In: ZIERER, Adriana (Org.) Uma Viagem pela Idade Média. São Luís: Ed. UEMA/ Apoio Fapema, 2010, p. 19-33. Um reino próspero. Um rei justo e perfeito. Uma era de felicidade e abundância. Por que Artur ainda chama tanto a nossa atenção? Porque no fundo o desejo de um governante ideal capaz de resolver todos os nossos problemas ainda seja uma realidade. Ou ainda, a possibilidade de que, se ele um dia existiu, um dia retornará, quando mais precisarmos dele. Será que houve uma única imagem sobre este grande rei e herói? O nosso objetivo é provar que não. Se nas narrativas de origem céltica Artur está sempre associado à figura do rei, nos primeiros escritos latinos sobre este indivíduo houve uma modificação, uma passagem da idéia de dux bellorum (chefe guerreiro), nos escritos atribuídos a Nennius, a de rei cristão invencível, simbologia tecida por Geoffrey de Monmouth em uma importante obra, a Historia Regum Britanniae. Qual a origem de Artur? Se ele existiu algum dia, era proveniente dos bretões, povo de origem celta que habitava as Ilhas Britânicas. As populações que lá viviam sempre estiveram em conflito, jamais havendo a unidade entre eles. A partir do século I houve uma dominação superficial dos romanos no sudeste da ilha, quando estabeleceram postos comerciais, realizaram a construção de estradas e estabeleceram o Muro de Adriano visando separar os bretões — como os romanos chamaram os moradores da ilha — de outros celtas inimigos, como os escotos (irlandeses) e pictos (escoceses). Com o esfacelamento do Império Romano do Ocidente, os anglos e saxões ofereceram proteção aos bretões contra os inimigos, recebendo terras no território na condição de federados, mas logo deixaram a posição de protetores para a de dominadores, estabelecendo sete reinos independentes no século VI. Toda a terra submetida ficou conhecida como terra dos anglos ou Inglaterra. Estes reinos saxões também eram competitivos entre si, com a tendência dos reinos mais fortes absorverem os mais fracos. É daí que surge a lenda arturiana, pois a existência de Artur não é 1 Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente do Departamento de História e Geografia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). É uma das coordenadoras dos seguintes grupos de pesquisa no CNPq: Brathair (Grupo de Estudos Celtas e Germânicos) e Mnemosyne (Laboratório de História Antiga e Medieval).
  • 2. 2 comprovada pelas fontes. Artur surge assim, como um mito de resistência e ligado a um desejo de unificação que nunca existiu na Bretanha após a sua dominação pelos saxões. Por isso, de acordo com a lenda, um dia ele voltaria para unir todos os bretões contra os invasores. Pelo que sabemos através de Nennius, Artur teria sido um dux bellorum (comandante militar) que venceu várias batalhas contra os inimigos, sendo a mais importante a Batalha do Monte Badon, datada por uma outra fonte, os Annale Cambriae (século X), como tendo ocorrido no ano 516 (BRUNEL, 1997, p. 101). Neste momento de dominação saxã, a resistência dos bretões foi realizada no País de Gales e a figura de Artur se tornou um símbolo de resistência aos invasores. Assim a sua figura se tornou um mito. O mito é uma explicação simbólica da realidade, ligada aos sentimentos e emoções, visando dar coesão a uma determinada coletividade (CASSIRER, 1972, p. 134). Agrega funções integradoras, mobilizadoras e esclarecedoras. A imagem de Artur engloba provavelmente vários guerreiros em diferentes épocas que realizaram a resistência contra os saxões. Mas é importante salientar que a função mobilizadora do mito auxiliava os bretões a terem esperança no futuro ao acreditar no retorno próximo de Artur para vencer os inimigos, auxiliando-os a serem unidos e se acreditarem vencedores no campo das idéias. Com a dominação anglo-saxã os bretões fugiram para as montanhas no oeste e norte (Cornualha, País de Gales e Escócia), foram para o sul estabelecendo-se na Pequena Bretanha, na Armórica (norte da França), fundiram-se com os conquistadores ou foram mortos. Desta forma, as narrativas se espalharam. Contribuiu para a popularização das narrativas arturianas nos territórios da Inglaterra e França a presença de bardos, como o contador galês Bleheris ou Bleddri que transmitia as histórias conhecidas pela tradição oral nas cortes (LOOMIS, 2000, p. 34). ARTUR COMO DUX BELLORUM: A HISTÓRIA DOS BRETÕES (C. 800), DE NENNIUS Artur aparece pela primeira vez num texto latino na chamada Historia Brittonum atribuída ao monge galês Nennius. No entanto, a obra não foi escrita por um único copista, e sim por vários e por isso é anônima. Embora tenha sido redigida por volta do ano 800, houve interpolações no manuscrito original até o século XIII.
  • 3. 3 É interessante observar que desde cedo nestes textos existe uma relação entre Artur e o processo de cristianização uma vez que surge como um guerreiro cristão, protegido nas batalhas pela Virgem Maria. Todo o relato possui um sentido religioso. Se os bretões foram dominados, segundo o autor foi devido aos seus pecados. Seguindo a preocupação cronística do período medieval, a narrativa se inicia com a genealogia bíblica, começando com Adão, procurando sempre relacioná-la com a contagem do número de anos passados, numa tentativa comum da época de controlar o tempo e associá-lo à temporalidade cristã da salvação (GUREVITCH, 1990, p. 88). Depois, os bretões também são relacionados a um antepassado da Antigüidade Clássica, o troiano Bruto que lhes teria dado origem, até que por fim chegamos à sua história propriamente dita. Outra preocupação de fundo religioso é a conversão ao cristianismo, que ocupa um papel central na narrativa. É interessante observar em todas as obras latinas até o século XI que a justificativa cristã para a derrota dos bretões seriam os pecados deste povo (SÉCHELLES, 1957, p. 185). Neste sentido, a culpa recairia principalmente sobre o soberano mítico bretão do período, Vortigern (monarca lendário entre 425 e 450), palavra que significa rei tirano (FARAL, 1929, t. I, p. 96), o qual teria feito um acordo com os saxões para que estes defendessem a ilha dos outros invasores e estes ao contrário traíram o soberano e dominaram o território. Vortigern comete uma série de delitos: apaixona-se pela filha do pagão Hengist, líder dos saxões, e casa-se com ela. Mais tarde, como a coroar suas atitudes condenáveis aos olhos do clero, pratica um erro ainda mais grave, cometendo o incesto e casando-se pela segunda vez com sua própria filha, com quem gera um herdeiro. Estes elementos parecem justificar a posterior dominação dos bretões pelos saxões. O mau exemplo dado pelo soberano teria arrastado toda a população ao paganismo na visão dos copistas do relato. É curioso notar que os personagens referentes à realeza bretã são todos inventados (Faral, 1929, T. I, p. 95) enquanto que os referentes aos saxões foram muitas vezes retirados de listas genealógicas cuja existência foi atestada, demonstrando o pouco conhecimento dos cronistas sobre a história bretã no período. Em contraponto com o rei tirânico, São Germano é a figura santa que tenta levar o monarca ao bom caminho e mudar suas atitudes, sem sucesso. O cristianismo na Bretanha foi introduzido entre os séculos III e IV por missionários como Santo Albano, e mais tarde com o próprio São Germano.
  • 4. 4 São Germano (378-448) foi personagem histórico. Esteve duas vezes na Bretanha no século V, tentando extirpar o pelagianismo, uma heresia que afirmava não serem os humanos culpados pelo pecado de Adão, o qual era considerado uma falta individual. Outros personagens positivos na narrativa de Nennius são os lendários Vortimer, filho de Vortigern que teria lutado decisivamente contra os inimigos, mas morrido depois em batalha (NENNIUS, 2001, cap. 43) e Aurelius Ambrosius, associado por Gildas, que escreveu a De Excidio et Conquestu Britanniae (século VI), a um soberano vencedor do Monte Badon (GILDAS, 2001, cap. 25 e 26). Na Historia Brittonum, Ambrósio faz previsões certeiras a Vortigern avisando que seria derrotado pelos saxões e que debaixo do solo estavam duas serpentes, sendo que uma delas representava a sua derrota. Mais tarde, na obra de Geoffrey de Monmouth, este mesmo Aurélio seria o mago Merlin (MONMOUTH, 1993, p. 153- 174) e substitui à visão das serpentes pela dos dragões, significando igualmente o ocaso de Vortigern. Voltemos agora para a importância de Artur na obra atribuída a Nennius. O guerreiro é citado em dois capítulos da obra. O capítulo 56 relata as doze batalhas vencidas por Artur no Monte Badon. Se ele consegue sair vencedor é por seu sentido de guerreiro cristão, ao contrário do rei pagão Vortigern, pois na última batalha, na qual matou sozinho novecentos e sessenta saxões, carregava nos ombros a imagem da Virgem Maria. No capítulo 73 é descrito o túmulo do filho de Artur, Anir, que teria sido morto pelo próprio pai. Este capítulo do texto está na parte referente às mirabilia da Bretanha e também se relaciona a fontes célticas, pois menciona a marca do cão de Artur durante a caçada ao porcus Troynt, acontecimento que aparece num conto galês chamado Kulhwch e Olwen. Esta obra embora produzida no século XII, remonta ao século VII e fala da caçada de Artur (na obra céltica visto também como um rei) ao javali Twrch Twryth, uma das provas para que o seu primo Kulhwch pudesse se casar com Olwen (Mabinogion, 2000, p. 180-181 e p. 203). Uma das “coisas admiráveis” é que o túmulo de Anir, o filho de Artur, nunca tinha uma dimensão exata, mudando de tamanho cada vez que era medido, acontecimento maravilhoso que acaba por se relacionar com o próprio Artur.
  • 5. 5 ARTUR COMO REI CRISTÃO INVENCÍVEL: A HISTORIA REGUM BRITANNIAE (C. 1135-1138), DE GEOFFREY DE MONMOUTH Depois de séculos de dominação saxã na atual Inglaterra houve uma nova invasão ao solo britânico, desta vez mais extensa que as anteriores, englobando os territórios da Escócia e Irlanda que anteriormente não haviam sido conquistados. Os novos invasores eram de origem normanda e conquistaram a atual Inglaterra em 1066, por ocasião da Batalha de Hastings quando Guilherme da Normandia venceu o rei saxão Haroldo. Os normandos logo perceberam que poderiam beneficiar-se das crenças de origem celta em seu próprio beneficio. Desta maneira, o rei Henrique I, (1100-1135), de origem normanda, rei da Inglaterra e vassalo do rei francês Luís VI, o Gordo (1108- 1137) encomendou a um clérigo de origem bretã uma história da Bretanha na qual os normandos apareciam como descendentes do mítico Artur. Desta forma pretendiam fortalecer o seu poder de forma simbólica, sendo aceitos pelos bretões. Com a morte de seus herdeiros masculinos e após a morte de Henrique, o trono deveria passar para sua filha Matilde, casada com o conde de Anjou, Godofredo Plantageneta, mas foi usurpado por Estevão de Blois (1135-1153). A guerra foi deflagrada entre as duas partes, sem que o trono fosse recuperado, mas houve o acordo de que com a morte de Estevão o descendente de Matilde, Henrique II, assumiria o trono, o que ocorreu em 1154. A utilização da obra foi realizada com sucesso por Henrique, após o fim da guerra civil, tanto que a mandou traduzir para o vernáculo no ano seguinte a que se tornou rei, o Roman de Brut, de Wace. Mas a Historia Regum já continha elementos importantes baseados na figura de Artur que faziam frente a dinastia capetíngia, governante na França. O texto pretendia valorizar o glorioso passado dos bretões, identificando-os aos normandos, os quais se apresentavam como continuadores da linhagem bretã através de seu mais nobre representante, Artur, que aparece no texto de Geoffrey como um rei cristão invencível, conquistador de trinta reinos e do Império Romano. Sua ação está associada ao espírito de Cruzada contra os “infiéis”, associados no texto com os pictos e escotos (embora de origem céltica, respectivamente escoceses e irlandeses) e saxões (germanos). O autor retraça a história dos reis bretões desde a sua origem, com Brutus, bisneto de Enéias, que após várias peripécias teria chegado à atual Inglaterra, então chamada Albion. De acordo com o texto, o nome Bretanha proviria de seu fundador,
  • 6. 6 Brutus. Brutus também tinha um companheiro, Corineus, lutador de gigantes, um modelo de guerreiro épico. A narrativa se inicia no século XII a.c. e segue até o último rei bretão Cadwallader no século VII, passando pelo reinado de Artur, que ocupa um quarto da obra. Também são citados outros reis como Leir e suas filhas, narrativa inspirada, segundo Loomis (2000, p. 36) no conto oriental Barlaam and Josaphat. O autor cita como inspiração autores como Gildas, escritor de De Excidio et Conquestu Britanniae (século VI) e Beda, autor da Historia Eclesiástica Gentis Anglorum (século VII), mas muito do que relata foi inspirado principalmente na Historia Brittonum (c. 800), texto atribuído a Nennius, que sofreu várias interpolações até o século XIII, sendo considerado anônimo, conforme já vimos. Geoffrey usa livremente as suas fontes, sem se preocupar em ser fiel às mesmas. De Nennius, Geoffrey retirou vários elementos como, por exemplo, a origem troiana do fundador da Bretanha, que também é mencionada naquela obra. Além disso, Geoffrey apresenta a figura de Merlin tal como a conhecemos hoje e que é proveniente do Merlin Ambrósio, descrito por Nennius. Na Historia Brittonum, Nennius desenvolve o personagem Ambrósio, filho de um incubo e uma donzela, o qual faz previsões certeiras sobre o declínio do soberano usurpador na Betanha, Vortigern. Enquanto na obra de Nennius são as serpentes debaixo do solo que são interpretadas por Merlin como o declínio de Vortigern, na obra de Geoffrey o mesmo personagem prevê o ocaso do governante bretão em virtude de dois dragões branco e vermelho que lutam debaixo do solo. Nesta narrativa, o mago produz a poção que faz o rei Uther adotar as feições de Gorlois, marido da duquesa Ingerna (Igraine). Assim, enquanto Gorlois já estava morto, Artur é concebido sem que a duquesa soubesse do disfarce. Porém, a ligação entre o mago e o rei Artur termina neste ponto, sendo mencionado mais uma vez apenas as profecias de Merlin sobre a conquista da Bretanha e o incerto retorno de Artur. Já a Prophetia Merlini também escrita por Geoffreu de Monmouth trabalha com a figura do Merlin Selvagem, associado ao bardo galês Myrddin. Sobre a figura do Merlin Selvagem é interessante explicar a sua origem. Merlin Selvagem é baseada na figura de um rei proveniente do norte da Bretanha e que lutou pelos bretões contra os saxões no século VI. Este teria enlouquecido após uma batalha e passara a vagar pela floresta, onde teria adquirido poderes sobrenaturais e durante esse período só teve contato com animais. Há dados histórico-lendários que podem ligá-lo ao
  • 7. 7 rei Lailoken, da Escócia. (MARKALE, 1989). É na Historia Regum Britanniae que Merlin é associado a Artur pela primeira vez já quando é o responsável pelo nascimento daquele. Segundo a Historia Regum Britanniae, com a morte de Uther, que havia conseguido a unificação da Bretanha, seu filho Artur é coroado às pressas aos quinze anos com o intuito de evitar uma invasão saxã. As primeiras ações de Artur demonstram largueza (isto é, generosidade) e carisma pessoal. Assim, sua coragem e bondade faziam com que todos o amassem. Embora cite vários reinados, o que a caracterizaria como uma crônica, a Historia Regum Britanniae não é linear; por exemplo, o anúncio do nascimento de Artur por Merlin é uma antecipação. Após Utherpendragon ter assumido por meio da mágica de Merlin as feições de Gorlois, esposo de Igraine, o autor prenuncia o futuro glorioso de seu descendente: “é nesta noite que ela concebeu Artur, homem célebre entre todos, o qual foi reconhecido em seguida por seu senso de honra.” (MONMOUTH, 1993, p. 198). O relato de Geoffrey aproxima-se das canções de gesta porque Artur é apresentado como um guerreiro invencível. O fato de ser um rei-guerreiro em luta com os pagãos e de empreender uma guerra santa contra eles era um motivo do gênero épico. Há também elementos da obra que a aproximam do romance, como discursos diretos por parte do autor e várias descrições sobrenaturais associadas a Artur, como, por exemplo, o Lago Lomond, causador de prodígios, como o das águias que se reuniam anualmente para anunciar os eventos maravilhosos que ocorreriam no reino (Monmouth, 1993, p. 212). Tal lago é inspirado nas descrições de Nennius sobre “As Coisas Admiráveis da Bretanha” (NENNIUS, 2003, p. 248-253). O relato de Geoffrey também criou uma origem fantástica para as pedras de Stonehenge, que seriam provenientes da África e foram levadas para a Irlanda durante a estadia dos gigantes ali. Merlin, por meio de magia, havia trazido essas pedras, possuidoras de dons curativos, da Irlanda para a Inglaterra (MONMOUTH, 1993, p. 185). Além valorizar o glorioso passado dos bretões, identificando-os aos normandos, apresentados como descendentes de Artur, o relato de Geoffrey também buscava fazer frente à monarquia francesa e ao seus principais heróis, Rolando e Carlos Magno. Assim, existe uma clara relação entre Artur e Rolando, o herói da canção de gesta francesa. Os anglo-normandos pretendiam dar uma resposta literária ao rei da
  • 8. 8 França, apresentando um herói guerreiro à altura de A Canção de Rolando (canção de gesta composta no século XI, que se referia a um fato real da Alta Idade Média, a morte de Rolando, sobrinho de Carlos Magno na Batalha de Roncesvales, contra os bascos, mas que no relato são apresentados como muçulmanos). O personagem central da narrativa é ligado à figura de Carlos Magno e consequentemente à dinastia capetíngia (DUBY, 1982, p. 313 e p. 317). Na referida narrativa épica, o monarca francês é apresentado como o único capaz de impedir os infiéis de dominarem a Europa. Neste momento em que o poder régio começa a se fortalecer na França, os reis da Inglaterra eram ao mesmo tempo vassalos do rei francês e passam a apresentar um personagem tão cativante quanto o guerreiro Rolando para fazerem frente ao seu suserano. Artur é também um guerreiro cristão perfeito e além de tudo é um monarca, associado na narrativa à linhagem normanda. O poderio de Artur na obra é tão grande que ele simbolicamente derrota o soberano francês ao vencer em combate singular Frollo, um tribuno romano, governador da Gália que o havia desafiado (MONMOUTH, 1993, p.217). Os normandos procuram assim tanto agradar a população local, os bretões, ao abraçar um de seus mitos mais caros, e ao mesmo tempo, fazer frente à monarquia francesa. Visando ampliar o caráter da obra, Henrique II (1154-1189), neto de Henrique I, mandou logo que a Historia Regum fosse traduzida em versos para o vernáculo, pelo normando Robert Wace, o Roman de Brut (1155), para que fosse lida e vista como um modelo em sua corte. É interessante lembrar que o monarca inglês havia se casado com a ex-esposa do rei francês Henrique VII, Leonor da Aquitânia, aumentando ainda mais as suas possessões na França. É importante ressaltar ainda na Historia dos Reis da Bretanha a intertextualidade com o texto de Nennius, especialmente quanto à figura de Artur, cujos traços guerreiros ainda são marcantes. Um exemplo claro é que segundo Nennius ao explicar as doze batalhas vencidas sob o comando de Artur contra os saxões afirma que o comandante militar na oitava batalha “carregou a imagem de Santa Maria sempre virgem sobre seus ombros; e os pagãos foram postos em debandada nesse dia” (NENNIUS, 2002, p. 244). Alem disso na décima segunda batalha, a do Monte Badon “caíram em um dia novecentos e sessenta homens de uma investida de Artur e ninguém os golpeou exceto o próprio Artur, e em todas as batalhas ele saiu como vencedor” (NENNIUS, 2002, p. 244).
  • 9. 9 Seguindo a linha de raciocínio de Nennius, Geoffrey de Monmouth reafirma em sua obra a proteção da Virgem Maria a Artur, a quem ele sempre invocava antes das batalhas. E o caráter de invencibilidade do rei se reafirma, pois segundo Geoffrey, vencia todos os seus oponentes: “Todos aqueles com quem se batia, invocando Deus, morriam ao primeiro golpe de espada. Ele não suspendeu seu ataque até ter matado quatrocentos e setenta soldados com sua única arma Caliburn” (MONMOUTH, 1993, p.215). O monarca bretão tinha características ambíguas, pois portava elementos pagãos e cristãos: uma espada (Caliburn) forjada no Outro Mundo Céltico, a ilha de Avalon; mas seu escudo Pridwen, a quem sempre apelava nas batalhas, continha a imagem da Virgem Maria, tal como havia sido indicado por Nennius. Outros momentos da narrativa enfatizam a coragem de Artur e sua ligação a animais importantes no imaginário celta como o urso e o dragão. Artur ao longo do manuscrito mata dois gigantes e um oponente em combate singular, o tribuno Frollo, governante da Gália. Nesta luta, o rei é descrito por Geoffrey como um “leão feroz” que partiu a cabeça de seu oponente, de grande estatura, em dois. A morte de Artur ocorre devido à traição de seu sobrinho Mordret, que usurpa o trono quando o tio empreendia a conquista de Roma. Até então invencível, Artur é mortalmente ferido na luta contra ele, sendo levado à Ilha de Avalon para curar seus ferimentos. A obra de Geoffrey atendendo aos interesses dos normandos, não diz, no entanto, se Artur algum dia retornará, como afirmavam as velhas crenças. A conquista dos bretões é vista no seu livro como um castigo divino. Com o domínio saxão, uma série de calamidades se abatem sobre o país, como a peste e a fome. O último rei bretão, Cadwallader, refugia-se na Armórica, e recebe de um anjo um aviso para se dirigir ao papa de Roma, onde morre. A ressurreição dos bretões é prometida para um dia no futuro, graças à fé cristã (MONMOUTH, 1993, p. 259-285). Não por acaso o final da obra de Geoffrey é ambíguo, não sabemos se após a luta mortal contra o sobrinho-usurpador do trono Mordred e depois do ferimento mortal, Artur retornará um dia para salvar os bretões. Curiosamente em 1195 sob o patrocínio do Plantageneta, que morreu pouco antes do evento, foram forjadas na abadia de Glanstonbury as descobertas dos túmulos de Artur e Guinever. Os novos dominadores queriam provar aos bretões que Artur não voltaria mais e que eles governariam a ilha
  • 10. 10 indefinidamente. Apesar disso, no período em que a obra foi escrita e muito depois, um grande número de pessoas continuou acreditando no retorno de Artur. A importância da retomada das narrativas arturianas repectivamente por Nennius e depois por Geoffrey de Monmouth contribuiu para a difusão e desenvolvimento dos relatos arturianos no Ocidente. Além disso, vários grupos sociais como os nobres, os monarcas e o clero procuraram se apropriar das narrativas arturianas em seu benefício. Cada autor ou anônimo foi criando novos elementos na aventura de Artur: Robert Wace foi o criador da távola redonda, mesa ao redor da qual todos os cavaleiros se sentavam como iguais; Chrétien de Troyes tornou os cavaleiros mais importantes que a figura do rei e passou a relacionar o rei Artur e o Graal. E mais tarde, escribas do século XIII transformaram o Graal, inicialmente apresentado como uma escudela ou travessa por Chrétien, em cálice com o sangue de Cristo na Cruz e elemento fundamental para garantir a prosperidade do reino arturiano. Este cálice, de acordo com a versão cristianizada da narrativa, só poderia ser encontrado por um cristão puro, Galahad. Na Península Ibérica a imagem cristianizada de Artur circulou principalmente através da novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal (c. 1250). Ainda que nesta obra Artur apareça como um rei pecador, ainda podemos ver suas atitudes guerreiras em batalha quando, numa ocasião, cercaram o rei mais de vinte homens, enfatizando as descrições do rei-guerreiro invencível inspirada em Nennius e em Geoffrey de Monmouth. Um outro relato ibérico que mostrava o caráter guerreiro do rei mítico aparece no Libro de las Generaciones, crônica navarra escrita entre 1260 e 1270. Nesta crônica há um resumo de Artur como rei, possuindo traços de herói ao matar dois dragões e vencer o imperador romano, unindo portanto, mais uma vez, elementos da obra de Nennius e de Geoffrey de Monmouth. Desta forma, com a circulação das narrativas arturianas em todo o Ocidente, o mito do rei perfeito, que teve por origem uma reação de resistência dos bretões contra os invasores saxões fortaleceu-se com o tempo e adquiriu diversos enfoques, fazendo com que o conheçamos até hoje. REFERÊNCIAS FONTES
  • 11. 11 GEOFFROY DE MONMOUTH. Historia Regum Britanniae (Histoire des Rois de Bretagne). Traduite et comenté par Laurence Mathey-Maille. Paris: Les Belles Lettres, 1993. GEOFFREY DE MONMOUTH. Historia Regum Britanniae. In: FARAL, Edmond. La Légende Arthuriene – Textes et Documents. Paris: Honoré Champion, 1929, Tomo II, p. 256-308. GILDAS. A Destruição da Bretanha e sua Conquista. Trad. e notas de Bruno Oliveira. In: COSTA, Ricardo da (Org.). Testemunhos da História. Documentos de História Antiga e Medieval. Vitória: EDUFES, 2003, p. 109-207. Tradução disponível na Internet: http://www.ricardocosta.com/gildas.htm Mabinogion. Trad. de José Domingos Morais. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000. NENNIUS. História dos Bretões. Trad., apresentação e notas de Adriana Zierer. In: COSTA, Ricardo (Org.). Testemunhos da História. Documentos de História Antiga e Medieval. Vitória: EDUFES, 2003, p. 209-253. (tradução disponível na Internet: http://www.ricardocosta.com/nennius.htm ESTUDOS BRUNEL, Pierre. (Org.). Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. FARAL, Edmond. La Légende Arthuriene – Textes et Documents. Paris: Honoré Champion, 1929, 3 Tomos. GUREVITCH, Aron. As Categorias da Cultura Medieval. Lisboa: Caminho: 1990. LOOMIS, Roger Sherman. The Development of Arthurian Romance. New York: Dover, 2000. MARKALE, Jean. Le Roi Arthur et la Société Celtique. Paris: Payot, 1996. MARKALE, Jean. Merlim, o Mago. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. MATTHEY-MAILLE, Laurence. “Notes” In: GEOFFREY DE MONMOUTH. Historia Regum Britanniae (Histoire des Rois de Bretagne). Traduite et comenté par Laurence Mathey-Maille. Paris: Les Belles Lettres, 1993. MELLO, José Roberto de A. “Os Alicerces Medievais da Inglaterra Moderna (1066- 1327). In: MONGELLI, Lênia Márcia (Coord.). Mudanças e Rumos: O Ocidente Medieval (Séculos XI-XIII). São Paulo: Íbis, 1997, p. 17-51. SAINERO, Ramón (Ed.). Sagas Celtas Primitivas en la Literatura Inglesa. Madrid: Arkal, 1993. SÉCHELLES, D. de. “L’Evolution et la Transformation du Mythe Arthurien dans le Thème du Graal”. In: Romania. T. LXXVIII, 1957. VASSALO, Ligia. “A Canção de Gesta e o Épico Medieval”. In: A Canção de Rolando. Tradução de Ligia Vassalo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 1-18. ZIERER, Adriana. “A História dos Bretões de Nennius (c. 800) e sua Relevância para a Construção do Mito do Rei Artur”. In: Anais Eletrônicos do III Encontro de História da ANPUH-ES (2000). http://www.anpuhes.cjb.net ZIERER, Adriana. “Artur: de Guerreiro a Rei-Cristão nas Fontes Medievais Latinas e Célticas”. In: Brathair. Revista Eletrônica de Estudos Celtas e Germânicos, 2 (1), 2002, p. 40-54, www.brathair.com. Consultado em: 28/10/2010. ZIERER, Adriana. “Artur nas Fontes Ibéricas Medievais (II): O Libro de las Generaciones e o Nobiliário do Conde D. Pedro”. In: Brathair. Revista Eletrônica de Estudos Celtas e Germânicos, 4 (2), 2004, p. 142-158, www.brathair.com . Consultado em: 28/10/2010.