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DE SOUZA, Alice De Marchi Pereira. Clínica e Política: uma experiência limítrofe. Revista NAVCV Minas Gerais, n°
1. No prelo.




                             Clínica e Política: uma experiência limítrofe
                                    Alice De Marchi Pereira de Souza1


Resumo: Este artigo foi elaborado a partir da palestra “Clínica e Política no atendimento a vítimas
de violência”, proferida na Capacitação Interna dos Núcleos de Atendimento às Vítimas de Crimes
Violentos de Minas Gerais - NAVCV´s MG – no dia quatro de maio de 2012. Problematizamos
alguns atravessamentos no acompanhamento de pessoas atingidas por violência que tendem a se
naturalizar, principalmente no que tange aos processos de individualização e de exercício de
poder. Apresentamos algumas experimentações de práticas possíveis – sempre locais, provisórias,
contingenciais –, entendendo clínica como indissociada de política. Propomos a tomada de
caminhos de coletivização, balizados por uma escolha ético-política mais libertária inclusive para
o entendimento dos direitos humanos.
Palavras-chave: clínica; política; direitos humanos; coletivização.


        Entre conceito e prática
        Ao escrever sobre o imbricamento de clínica e política no acompanhamento de casos de
violência, as palavras têm de fazer sentido. É dizer, como já disseram Michel Foucault e Gilles
Deleuze (1979) na conversa-texto “Os Intelectuais e o Poder”: faz-se necessário que a teoria e os
conceitos sirvam, que sejam ferramentas de modo a funcionar – ou colocar para funcionar as
nossas práticas cotidianas. É essa a aposta deste artigo, escrito a partir da fala “Clínica e Política
no atendimento a vítimas de violência”, apresentada na Capacitação Interna dos Núcleos de
Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Minas Gerais (NAVCV´s) em maio de 2012.
        A possibilidade dos conceitos aqui apresentados operarem a realidade está também apoiada
numa experiência minha de trabalho em uma política voltada para pessoas atingidas por violência
– o Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio de Janeiro (CEAV/RJ). Ali, atuei de


1
  Psicóloga; mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense; doutoranda em Psicologia Social na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro; foi coordenadora do Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio
de Janeiro; atualmente é colaboradora do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.
2009 a 2011: primeiramente como psicóloga da equipe técnica e, em seguida, como coordenadora
do projeto. Este projeto foi gerido no referido estado pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos
de Petrópolis (CDDH de Petrópolis) de 2003 a 2011, em convênio direto com a Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Em meados de 2011, esta secretaria
comunicou que não mais renovaria seus convênios nem abriria novos editais para execução dos
CEAV´s nas diferentes unidades federativas do país. Em dezembro de 2011, o CEAV/RJ foi
encerrado2.


        Entre experiência e problematização
        Dialoguemos – desta vez através de Heliana Conde Rodrigues (2005) – com o filósofo que
pouco gostava de se deixar rotular, o “careca”3 Michel Foucault. O que o pensador chama de
“experiências transformadoras” podem tomar dois lugares diferentes: ora podem ser constituintes
do processo de escrita – “escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar a mesma coisa de
antes” (FOUCAULT, 2010, p.290) –; ora podem ser “ponto de partida para um trabalho teórico,
ético e político” – na medida em que referem-se a desassossegos e abalos sentidos no cotidiano e
aos quais não podemos escapar (RODRIGUES, 2005, p.21). Neste caso, a experiência nos força a
pensar, impulsionando à pesquisa e à escrita.
        O que trago aqui diz desse segundo sentido de experiência transformadora: é a vivência no
CEAV/RJ que me deslocou, que me desacomodou, que se fez “problema”. Problema não no
sentido de uma dificuldade, mas no sentido de uma questão, de uma pergunta, de uma
problematização. E o que é problematizar senão pensar? Esta é uma perspectiva desnaturalizadora
do que é o pensamento: concordo com Deleuze (1987), que dirá que só pensamos se formos
forçados a tanto. O pensamento, compreendido desta forma, não é um ato voluntário que um
suposto sujeito psicológico coloca em prática deliberadamente – como postulou Descartes e tantos
outros o reafirmaram – , e sim uma força que o acomete de forma a desencadear um processo de
desestabilização, de interferência inevitavelmente problematizadora de uma organização... e

2
  Tendo surgido no final dos anos 1990 e início dos 2000, estes centros de apoio e atendimento a vítimas de violência
adquiriram nomes e siglas diferentes dependendo do estado e da época em que foram executados: COAV, CEAV,
CRAVI, NAVCV, etc. Também varia quem o executa, podendo ser a sociedade civil organizada (na maioria das
vezes) e/ou administrações públicas (estaduais ou municipais). No caso do CEAV/RJ, o convênio sempre foi
diretamente com a SDH/PR. Desta forma, enquanto o CEAV/RJ foi encerrado, ainda existem programas deste tipo
nos diferentes estados do Brasil, desde que não em convênio direto com a SDH/PR.
3
  Permitimo-nos pegar de empréstimo esse carinhoso apelido dado ao pensador por Heliana Conde, professora doutora
no Instituto de Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
conseqüentemente criadora de algo novo. O pensamento, pois, passa a ser acontecimento: algo
pensa em mim. Veremos que essa disposição ao mundo, essa abertura ao encontro e à
transformação de si muito tem a ver com o que chamamos de uma clínica política.
        Analisemos, então, a experiência no CEAV e o que ela nos fez pensar.
        Comecemos pelo próprio nome do projeto. Sempre incomodou a equipe o termo “vítima”.
Porque, por mais que o seja tecnicamente importante para o Direito, no sentido de marcar a
posição de quem sofreu a violência no processo judicial – e isso de fato importa muito,
principalmente nos casos em que a violência foi perpetrada por agentes do Estado – ele carrega
consigo uma concepção de sujeito fechado em si. Uma noção de indivíduo intimizado, frágil,
vulnerável (aliás, também incomoda a expressão “vulnerabilidade social” e seus decorrentes...), de
certa forma até passivo. Muitos ex-presos políticos e torturados recusam essa nomenclatura e
preferem ser chamados de sobreviventes, recusando essa expressão que despotencializa, que
diminui (COIMBRA, 2007) – e que ao mesmo tempo é um tanto perigosa, pois por vezes a
vitimização pode ser experimentada como lugar de poder, justificando as mais terríveis e
ressentidas práticas, bem como pedidos por mais punição, mais cadeia, mais repressão.
        Vale um parênteses aqui: é preciso muito cuidado ao falarmos de “impunidade” e dizer que
a violência no Brasil se perpetua “por causa” dela. Hoje, o país tem cerca de 500 mil pessoas
presas; é a quarta maior população carcerária do mundo – só perdendo para Rússia, China e
Estados Unidos (KAWAGUTI, 2012)4. Entre 1995 e 2011, a taxa de encarceramento brasileira
quase triplicou (ANTUNES, 2012), ultrapassando vertiginosamente o crescimento da população
em geral, o que significaria uma população inteira atrás das grades dentro de algumas poucas
décadas, caso a equação continue assim. Ou seja: punição temos de sobra.
         Fica claro, desta forma, como é também fazendo o uso da referida figura da vítima que se
criam e reiteram mais e mais práticas de restrição de liberdade – que, como sabemos, atingem
prioritariamente quem é pobre, negro e morador de favelas e periferias. Ao invés de repetir
desenfreadamente que precisamos punir mais, talvez devêssemos, isso sim, questionar uma certa
seletividade do sistema judiciário, que tende sempre a poupar agentes do Estado quando estes são
os agressores. Quanto à discussão da função da prisão na sociedade, que não é nosso foco aqui,
deixemo-la em suspenso.
4
  A informação foi levantada pela organização não-governamental Centro Internacional para Estudos Prisionais
(ICPS, na sigla em inglês). Os Estados Unidos têm uma população carcerária de 2,2 milhões, a China de 1,6 milhão e
a Rússia de 740 mil pessoas.
Voltando ao contexto do CEAV/RJ, fomos percebendo que certos tipos de práticas eram
demandadas e esperadas. Tanto na concepção de projeto quanto no que os usuários expressavam e
no que uma experiência atual de “política pública” nos coloca como dado, instituído, óbvio.
       Essas práticas são perpassadas por algumas constantes, tais como:
      Colher denúncias;
      Atender e acompanhar casos individualmente;
      Identificar quais benefícios aos quais aqueles usuários têm direito;
      Encaminhar para serviços da rede estatal, tais como políticas de assistência e da saúde;
       encaminhar para psicoterapia (quase sempre individual) os usuários que pedem ou
       sinalizam de alguma forma uma demanda por escuta e tratamento psicológico;
      Em outros ambientes e ocasiões, realizar atividades de formação e educação em Direitos
       Humanos.
       Perpassando tais tarefas, estão muito bem definidas as tarefas que cada “especialista” da
equipe deve desempenhar: do advogado espera-se que colha a denúncia e instaure inquérito ou
processo e acompanhá-lo; o assistente social está incumbido de identificar os benefícios a que se
tem direito e articular vaga em escolas, informações na previdência social, entre outros; supõe-se
que ao psicólogo caiba ouvir o usuário da política e encaminhá-lo para uma psicoterapia. Isso diz
respeito à multidisciplinaridade ou à interdisciplinaridade: os especialismos estão muito bem
colocados, cada qual com a sua área, sem possibilidade de um fazer interferência na intervenção
do outro. Nesta lógica de divisão do trabalho – bastante capitalística, diga-se de passagem... – há
uma notável separação entre as disciplinas.
       Percebamos que intrínsecos a essas práticas também estão outros aspectos: a tutela sobre o
outro, já que o usuário chega para ser atendido, para que o outro lhe diga o que deve fazer. O
atendimento, a assistência e o assistencialismo também estão transversalizados nestas mesmas
práticas. Isto é, uma noção de cuidado de outrem, na qual o cuidador está de um lado e o indivíduo
cuidado está do outro: separação entre os peritos e as vítimas, os que sabem e os sabidos.
       Não à toa estamos acostumados a esses processos de individualização. Historicamente
aprendemos, no percurso do pensamento ocidental, a naturalizar as construções de um sujeito
fechado em si, ahistórico, psicologizado, indivisível, identitário. Podemos apontar para sinais do
surgimento disso em tempos longínquos, de Platão e sua Alegoria da caverna, passando por
Descartes e, mais tarde, por Kant (MACIEL, 1999). Mas é o Iluminismo (fim do século XVIII e
início do XIX) talvez a grande época na qual essa construção de modo-de-ser indivíduo se
consolida. É o período histórico em que o Homem é estabelecido como centro do universo e no
qual também emergem as separações entre público X privado, sujeito X realidade, interno X
externo. Também despontam as cidades e com elas o esquadrinhamento do espaço urbano, bem
como o ordenamento dos territórios e das populações. É preciso bem governar para manter uma
nação produtiva, inserida no modelo de produção e de economia da ordem mundial: ao Estado,
que já vinha se instituindo desde o século XVI, interessa agora a arte de governar – ou a
governamentalidade (FOUCAULT, 1979).
        As ciências humanas nascem neste momento, não por mera coincidência. É abandonada a
forma de governar absolutista e cruamente arbitrária: o Estado passa a se sofisticar cada vez mais,
de forma que o exercício do poder não está mais localizado nele (Estado), e sim pulverizado em
diferentes práticas que convergem para essa lógica de controle, de disciplina, de docilização de
corpos, de direção de cura e eliminação de desvios (IDEM, 1995).
        Portanto, em nosso presente impõe-se a questão: que ética, ou que clínica é essa que
estamos reproduzindo quando acatamos a “missão” de resolver problemas, dar respostas, curar,
apaziguar, acalmar (quem nunca ouviu que alguém precisa de um psicólogo porque está muito
“agitado”...) e dar encaminhamento aos casos de violência? Que escuta é essa que fazemos em
ONGs, em equipamentos de saúde, em consultórios, em tribunais àquilo que nos chega de forma
individualizada, familiarista, como um problema a ser resolvido? O quanto estamos trabalhando
no sentido do aperfeiçoamento do funcionamento da engrenagem de exercício de poder?
        É preciso estranhar esses automatismos. É preciso colocar as demandas que recebemos em
análise. É preciso fazer parada para análise. Para tanto, é preciso se colocar a si próprio em análise
e se fazer as perguntas: o que temos feito de nós mesmos? É preciso fazer a análise de nossas
implicações, o que significa nos perguntarmos: que efeitos nossas práticas estão produzindo no
mundo5? O quanto estamos percebendo o conflito, a desordem, o caos das populações com as
quais lidamos como forma mesmo de não se assujeitar a valores, pilares, marcas que não lhes
favorecem? Que mundos e existências nossa clínica tem engendrado ou contribuído para
engendrar?



5
 Para obter uma explanação mais profunda sobre o conceito de “análise de implicações”, sugiro conferir Coimbra e
Nascimento, 2008.
Entre clínica e política
        A respeito a palavra “clínica”, Eduardo Passos e Regina Benevides (2001) nos dirão que há
dois caminhos possíveis de serem tomados quanto à sua etimologia. Um deles, o mais conhecido,
é o do termo grego klinikos, que significa inclinar-se sobre o leito do paciente. Já o outro, menos
popular, é o do termo da filosofia de epicurista clinamen. Este designa o desvio que faz com que
os átomos, ao caírem no vazio devido a seu peso e velocidade, se choquem, acoplando-se na
composição das coisas. Aí reside a potência de geração de mundo. É muito mais na afirmação
desse desvio do que no debruçar-se sobre o paciente, portanto, que a clínica se faz. Já se percebe
que estamos tratando aqui de outro modo de entender a subjetividade: como um movimento
aberto, totalmente conectado ao mundo, imanente a ele, produtor e produzido pela realidade.
        A   partir   disso,    como    assegurar     espaços    políticos    de   acolhimento,     cuidado,
acompanhamento e criação de estratégias de enfrentamento à violência? De que formas colocar
para funcionar essa clínica que é mais marcada pelo clinamen?
        Ora, esses processos dizem de uma mudança de postura ético-política. No CEAV/RJ,
começamos a nos fazer indagações que foram abrindo espaço para o engendramento de outras
práticas que descrevo a seguir. É importante pontuar que essas não são técnicas replicáveis,
modelos ideais. São apenas experimentações datadas, contingenciais e locais. Logo veremos como
essas questões e as criações se conectam umas nas outras, como num efeito dominó:
       Quem sabe, ao invés de exclusivamente colher denúncias, não precisamos fabricar mais
        espaços para acolher histórias?
        Durar nessas histórias, durar mais num certo “não saber o que fazer”, mesmo que a
urgência de alguns casos casos nos exija respostas imediatas. Priorizar o que é urgente e imediato
em relação a o que pode – e às vezes precisa – ser vivenciado como problema. Lembro-me de uma
mulher que nos procurou porque estava em crise na relação, na iminência de se separar, e queria
ser orientada sobre seus direitos6. Havia ali questões práticas, mas também de ordem da
impossibilidade de “solucionar”. Não podemos cair no discurso da incompetência, tão tipicamente
concernente a nossa ordem econômica pautada pela necessidade de produtividade e eficiência
máximas (COIMBRA e NASCIMENTO, 2004). Há certas coisas que não se sabe fazer – e que

6
  Cabe informar que O CEAV/RJ, uma vez que era um projeto dentro do CDDH de Petrópolis, atendia, em
revezamento com equipes de outros projetos, o público em geral que procurava a instituição como referência em
Direitos Humanos. Assim, acolhíamos pelo menos inicialmente quem fosse que procurasse atendimento, mesmo que
desviassem do “público alvo” focado pelo projeto.
bom! Apenas ao falar, ao durar um pouco no problema, ficou claro que aquela questão precisava
ainda ser habitada por aquela mulher; o casal precisava experimentar esse impasse e suportá-lo
antes que ele pudesse se transformar em outra coisa. Acolher a sua história, desta forma, foi
fundamental.
      Quem sabe, ao invés atender e acompanhar casos individualmente e de exclusivamente
       identificar quais benefícios aos quais aqueles usuários têm direito, tomar caminhos de
       coletivização?.
       Isso pode significar várias coisas: atender em duplas, deixando que os saberes se misturem,
abdicando de nossos lugares seguros de especialistas. Dar visibilidade, tornar de domínio público
os casos que podem ser publicizados (após análise cuidadosa dos aspectos de risco), como
estratégia mesmo de encaminhamento e proteção, afirmando que aquela problemática não é de
ordem íntima, individual, mas que diz de uma produção social da violência e da importância
política do compartilhamento daquela experiência. Abdicar dos nossos lugares de especialistas não
só entre a equipe, mas também em relação a quem nos procura: no momento de pensar os
encaminhamentos para os casos, criar, junto com os usuários, as melhores estratégias de
enfrentamento à violência. Às vezes pode ser pela intimidação do lugar de saber-poder que
ocupamos o motivo pelo qual o usuário não conta de certas condições e certas redes que tem sobre
as quais não sabíamos. Acreditar mais nessa capacidade da pessoa atingida por violência de pensar
junto as formas de se proteger, recusando nossa tendência à tutela.
       Isso também é cuidado, é potencialização do sujeito. É, mais ainda, possibilitar e incentivar
a invenção e a consolidação de um cuidado de si. Isso não significa, de modo algum, deixar o
outro isolado e sozinho, mas sim dar as condições para que se componha junto uma rede de
cuidado. Devemos também estranhar as grandes noções de “família”, “criança”, “sexualidade”
que estamos acostumados a tomar como verdades absolutas e modelos a serem seguidos. É em
nome dessas verdades inabaláveis que categorizamos de antemão como boas ou ruins certas
formas de crescer, de educar, de brincar, de ser criança, de se relacionar em família ou casal.
Entender isso tudo como processos dos quais fazem parte vários atores é em si muito mais
rigoroso e cuidadoso para com os movimentos que acompanhamos.
       Nesse sentido, é importante conhecer a realidade de quem nos procura, fazendo também
um deslocamento de ir à favela ou aos bairros e sentir os cheiros, ouvir os barulhos que lá se
sentem e se compartilham.
   Ao invés de encaminhar para serviços da rede estatal, tais como políticas de assistência e
       da saúde e encaminhar quase que automaticamente para psicoterapia individual, prestar
       atenção a quem estamos encaminhando, fazer um encaminhamento cuidadoso.
        Isto é, se perguntar se aquela terapia será para apaziguar as forças revoltosas de uma mãe
que perdeu o filho executado por um policial (o que apenas contribuiria para o melhor
funcionamento da engrenagem existente), ou se vai ser realizada uma escuta que tome essa força
indignada como algo necessário e saudável, matéria potente para um processo clínico clinamen. A
pacificação – ou opacificação – de vidas retira das mesmas um brilho vital que reside na criação
de mundos. Nesta proposta, é preciso buscar um trabalho que não tenha pretensões ortopédicas de
ajustar comportamentos e minimizar intensidades, e seja, isso sim, aposta em outros arranjos
existenciais de menos sofrimento, de criações de si e de mundos possíveis.
       Essa também é uma questão colocada para nós que fazemos clínica: apostar na capacidade
de sonhar, criar outras vias de efetuação, fortalecer nossas utopias ativas. Apostar aí nos grupos:
não só em técnicas grupais, mas em movimentos sociais, eventos, coletivos que já existam ou,
ainda, criar essas situações de encontro, de compartilhamento, nas quais desestabilizações e
deslocamentos são provocados e outras posições são tomadas: de vítima a guerreiro, de humilhado
a corajoso por ter feito uma denúncia, de mãe sozinha a parceira, amiga. Isso, é claro, se o usuário
assim quiser e embarcar nesse movimento.
      E, por fim, ao invés de realizar atividades de formação e educação em Direitos Humanos,
       em outros ambientes e ocasiões, quem sabe colocar em análise as demandas ali mesmo,
       informar e discutir a respeito, por exemplo, de nosso modelo de segurança pública no
       momento mesmo do atendimento?
       Assim, a formação deixa de ser a passagem de um conteúdo de um suposto professor a
alunos e não precisa ser apenas através de cursos que, quando chegam à comunidade, tendem a se
esvaziar, mobilizar pouca gente e não fazer sentido para todo mundo. A oficina de construção
polifônica do que são, afinal, direitos humanos, passa a se dar na conexão e organicidade mesmo
dos problemas que se apresentam e das formas de enfrentá-los.


       Entre direitos humanos e singularidade
       Estamos aqui apontando o olhar para o campo de forças que produz a violência. Afirmando
clínica e política como uma experiência limítrofe porque habita os vários limites de que falamos
até aqui: entre os domínios de saberes, entre o individual e o coletivo, entre o psicológico e o
social. Uma experiência que não mais se refere a objetos, pessoas ou respostas a serem dadas, e
sim a movimentos a serem acompanhados, processos inacabados, trajetórias de vida – e por isso a
prudência, a delicadeza e o rigor (um rigor que, já vimos, nada tem a ver com a rigidez!).
Experiência arriscada, porém necessária, se o que queremos é inventar práticas de cuidado como
resistência.
         Para tanto, é necessário adotar outra concepção de direitos humanos. A Declaração
Universal de Direitos Humanos é burguesa, baseada em princípios da Revolução Francesa. É
preciso entendê-los como ética que transversaliza as nossas práticas, e não apenas como direitos,
marcos legais a serem aplicados ou assegurados (COIMBRA et al., 2008).
         É preciso saber que essa ética não se traduz em uma, mas em muitas práticas possíveis.
Que ela não se limita ao CEAV, ao NAVCV e nem mesmo aos psicólogos. Que ela diz de uma
forma de ver o mundo de estar nele, de afirmar mais vida, de criação de mundos outros e não de
“outros mundos”. Para isso, precisamos poder nos sentir parte desse processo, e não tão
preocupados em acertarmos invariavelmente:


                        Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos
                        desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar os
                        acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-
                        tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) É ao nível de cada tentativa que
                        se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle
                        (DELEUZE, 2006, p.218).




         REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


         ANTUNES, Claudia. Taxa de presos no Brasil quase triplica em 16 anos. Folha de São
Paulo,      São     Paulo,      25      de      março        de      2012.       Disponível        em:       <
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/33316-taxa-de-presos-no-brasil-quase-triplica-em-16-
anos.shtml>. Acesso em: 19 de junho de 2012.
       COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Refletindo sobre a prática profissional e o papel dos
conselhos. In: Cadernos Temáticos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo:
Profissionais frente à situação de tortura, vol. 2. São Paulo: CRPSP, 2007. Disponível em: <
http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/2/frames/fr_refletindo.aspx>.
Acesso em: 18 de junho de 2012.
       COIMBRA, Cecília Maria Bouças; LOBO, Lilia Ferreira; NASCIMENTO, Maria Livia.
Por uma invenção ética para os Direitos Humanos. In: Revista Psicologia Clínica, v.20. n.2, Rio
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56652008000200007&script=sci_arttext>. Acesso em: 20 de junho de 2012.
       COIMBRA, Cecília e NASCIMENTO, Maria Lívia do. Sobreimplicação: práticas de
esvaziamento político?, Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004. Disponível em: <
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       ______. Análise de implicações: desafiando nossas práticas de saber/poder. In: Geisler, A.
R. R.; Abrahão, A. L. e Coimbra, C. (Orgs.). Subjetividade, violência e direitos humanos:
produzindo novos dispositivos na formação em saúde. Niterói: EDUFF, 2008. Disponível em:
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       FOUCAULT, Michel. A Governamentalidade: Curso do Collège de France, 1 de fevereiro
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Simone M. (orgs.). Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: Abrapso Sul, 2005.

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Clínica e Política: uma experiência limítrofe

  • 1. DE SOUZA, Alice De Marchi Pereira. Clínica e Política: uma experiência limítrofe. Revista NAVCV Minas Gerais, n° 1. No prelo. Clínica e Política: uma experiência limítrofe Alice De Marchi Pereira de Souza1 Resumo: Este artigo foi elaborado a partir da palestra “Clínica e Política no atendimento a vítimas de violência”, proferida na Capacitação Interna dos Núcleos de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Minas Gerais - NAVCV´s MG – no dia quatro de maio de 2012. Problematizamos alguns atravessamentos no acompanhamento de pessoas atingidas por violência que tendem a se naturalizar, principalmente no que tange aos processos de individualização e de exercício de poder. Apresentamos algumas experimentações de práticas possíveis – sempre locais, provisórias, contingenciais –, entendendo clínica como indissociada de política. Propomos a tomada de caminhos de coletivização, balizados por uma escolha ético-política mais libertária inclusive para o entendimento dos direitos humanos. Palavras-chave: clínica; política; direitos humanos; coletivização. Entre conceito e prática Ao escrever sobre o imbricamento de clínica e política no acompanhamento de casos de violência, as palavras têm de fazer sentido. É dizer, como já disseram Michel Foucault e Gilles Deleuze (1979) na conversa-texto “Os Intelectuais e o Poder”: faz-se necessário que a teoria e os conceitos sirvam, que sejam ferramentas de modo a funcionar – ou colocar para funcionar as nossas práticas cotidianas. É essa a aposta deste artigo, escrito a partir da fala “Clínica e Política no atendimento a vítimas de violência”, apresentada na Capacitação Interna dos Núcleos de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Minas Gerais (NAVCV´s) em maio de 2012. A possibilidade dos conceitos aqui apresentados operarem a realidade está também apoiada numa experiência minha de trabalho em uma política voltada para pessoas atingidas por violência – o Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio de Janeiro (CEAV/RJ). Ali, atuei de 1 Psicóloga; mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense; doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro; foi coordenadora do Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio de Janeiro; atualmente é colaboradora do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.
  • 2. 2009 a 2011: primeiramente como psicóloga da equipe técnica e, em seguida, como coordenadora do projeto. Este projeto foi gerido no referido estado pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (CDDH de Petrópolis) de 2003 a 2011, em convênio direto com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Em meados de 2011, esta secretaria comunicou que não mais renovaria seus convênios nem abriria novos editais para execução dos CEAV´s nas diferentes unidades federativas do país. Em dezembro de 2011, o CEAV/RJ foi encerrado2. Entre experiência e problematização Dialoguemos – desta vez através de Heliana Conde Rodrigues (2005) – com o filósofo que pouco gostava de se deixar rotular, o “careca”3 Michel Foucault. O que o pensador chama de “experiências transformadoras” podem tomar dois lugares diferentes: ora podem ser constituintes do processo de escrita – “escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar a mesma coisa de antes” (FOUCAULT, 2010, p.290) –; ora podem ser “ponto de partida para um trabalho teórico, ético e político” – na medida em que referem-se a desassossegos e abalos sentidos no cotidiano e aos quais não podemos escapar (RODRIGUES, 2005, p.21). Neste caso, a experiência nos força a pensar, impulsionando à pesquisa e à escrita. O que trago aqui diz desse segundo sentido de experiência transformadora: é a vivência no CEAV/RJ que me deslocou, que me desacomodou, que se fez “problema”. Problema não no sentido de uma dificuldade, mas no sentido de uma questão, de uma pergunta, de uma problematização. E o que é problematizar senão pensar? Esta é uma perspectiva desnaturalizadora do que é o pensamento: concordo com Deleuze (1987), que dirá que só pensamos se formos forçados a tanto. O pensamento, compreendido desta forma, não é um ato voluntário que um suposto sujeito psicológico coloca em prática deliberadamente – como postulou Descartes e tantos outros o reafirmaram – , e sim uma força que o acomete de forma a desencadear um processo de desestabilização, de interferência inevitavelmente problematizadora de uma organização... e 2 Tendo surgido no final dos anos 1990 e início dos 2000, estes centros de apoio e atendimento a vítimas de violência adquiriram nomes e siglas diferentes dependendo do estado e da época em que foram executados: COAV, CEAV, CRAVI, NAVCV, etc. Também varia quem o executa, podendo ser a sociedade civil organizada (na maioria das vezes) e/ou administrações públicas (estaduais ou municipais). No caso do CEAV/RJ, o convênio sempre foi diretamente com a SDH/PR. Desta forma, enquanto o CEAV/RJ foi encerrado, ainda existem programas deste tipo nos diferentes estados do Brasil, desde que não em convênio direto com a SDH/PR. 3 Permitimo-nos pegar de empréstimo esse carinhoso apelido dado ao pensador por Heliana Conde, professora doutora no Instituto de Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • 3. conseqüentemente criadora de algo novo. O pensamento, pois, passa a ser acontecimento: algo pensa em mim. Veremos que essa disposição ao mundo, essa abertura ao encontro e à transformação de si muito tem a ver com o que chamamos de uma clínica política. Analisemos, então, a experiência no CEAV e o que ela nos fez pensar. Comecemos pelo próprio nome do projeto. Sempre incomodou a equipe o termo “vítima”. Porque, por mais que o seja tecnicamente importante para o Direito, no sentido de marcar a posição de quem sofreu a violência no processo judicial – e isso de fato importa muito, principalmente nos casos em que a violência foi perpetrada por agentes do Estado – ele carrega consigo uma concepção de sujeito fechado em si. Uma noção de indivíduo intimizado, frágil, vulnerável (aliás, também incomoda a expressão “vulnerabilidade social” e seus decorrentes...), de certa forma até passivo. Muitos ex-presos políticos e torturados recusam essa nomenclatura e preferem ser chamados de sobreviventes, recusando essa expressão que despotencializa, que diminui (COIMBRA, 2007) – e que ao mesmo tempo é um tanto perigosa, pois por vezes a vitimização pode ser experimentada como lugar de poder, justificando as mais terríveis e ressentidas práticas, bem como pedidos por mais punição, mais cadeia, mais repressão. Vale um parênteses aqui: é preciso muito cuidado ao falarmos de “impunidade” e dizer que a violência no Brasil se perpetua “por causa” dela. Hoje, o país tem cerca de 500 mil pessoas presas; é a quarta maior população carcerária do mundo – só perdendo para Rússia, China e Estados Unidos (KAWAGUTI, 2012)4. Entre 1995 e 2011, a taxa de encarceramento brasileira quase triplicou (ANTUNES, 2012), ultrapassando vertiginosamente o crescimento da população em geral, o que significaria uma população inteira atrás das grades dentro de algumas poucas décadas, caso a equação continue assim. Ou seja: punição temos de sobra. Fica claro, desta forma, como é também fazendo o uso da referida figura da vítima que se criam e reiteram mais e mais práticas de restrição de liberdade – que, como sabemos, atingem prioritariamente quem é pobre, negro e morador de favelas e periferias. Ao invés de repetir desenfreadamente que precisamos punir mais, talvez devêssemos, isso sim, questionar uma certa seletividade do sistema judiciário, que tende sempre a poupar agentes do Estado quando estes são os agressores. Quanto à discussão da função da prisão na sociedade, que não é nosso foco aqui, deixemo-la em suspenso. 4 A informação foi levantada pela organização não-governamental Centro Internacional para Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês). Os Estados Unidos têm uma população carcerária de 2,2 milhões, a China de 1,6 milhão e a Rússia de 740 mil pessoas.
  • 4. Voltando ao contexto do CEAV/RJ, fomos percebendo que certos tipos de práticas eram demandadas e esperadas. Tanto na concepção de projeto quanto no que os usuários expressavam e no que uma experiência atual de “política pública” nos coloca como dado, instituído, óbvio. Essas práticas são perpassadas por algumas constantes, tais como:  Colher denúncias;  Atender e acompanhar casos individualmente;  Identificar quais benefícios aos quais aqueles usuários têm direito;  Encaminhar para serviços da rede estatal, tais como políticas de assistência e da saúde; encaminhar para psicoterapia (quase sempre individual) os usuários que pedem ou sinalizam de alguma forma uma demanda por escuta e tratamento psicológico;  Em outros ambientes e ocasiões, realizar atividades de formação e educação em Direitos Humanos. Perpassando tais tarefas, estão muito bem definidas as tarefas que cada “especialista” da equipe deve desempenhar: do advogado espera-se que colha a denúncia e instaure inquérito ou processo e acompanhá-lo; o assistente social está incumbido de identificar os benefícios a que se tem direito e articular vaga em escolas, informações na previdência social, entre outros; supõe-se que ao psicólogo caiba ouvir o usuário da política e encaminhá-lo para uma psicoterapia. Isso diz respeito à multidisciplinaridade ou à interdisciplinaridade: os especialismos estão muito bem colocados, cada qual com a sua área, sem possibilidade de um fazer interferência na intervenção do outro. Nesta lógica de divisão do trabalho – bastante capitalística, diga-se de passagem... – há uma notável separação entre as disciplinas. Percebamos que intrínsecos a essas práticas também estão outros aspectos: a tutela sobre o outro, já que o usuário chega para ser atendido, para que o outro lhe diga o que deve fazer. O atendimento, a assistência e o assistencialismo também estão transversalizados nestas mesmas práticas. Isto é, uma noção de cuidado de outrem, na qual o cuidador está de um lado e o indivíduo cuidado está do outro: separação entre os peritos e as vítimas, os que sabem e os sabidos. Não à toa estamos acostumados a esses processos de individualização. Historicamente aprendemos, no percurso do pensamento ocidental, a naturalizar as construções de um sujeito fechado em si, ahistórico, psicologizado, indivisível, identitário. Podemos apontar para sinais do surgimento disso em tempos longínquos, de Platão e sua Alegoria da caverna, passando por Descartes e, mais tarde, por Kant (MACIEL, 1999). Mas é o Iluminismo (fim do século XVIII e
  • 5. início do XIX) talvez a grande época na qual essa construção de modo-de-ser indivíduo se consolida. É o período histórico em que o Homem é estabelecido como centro do universo e no qual também emergem as separações entre público X privado, sujeito X realidade, interno X externo. Também despontam as cidades e com elas o esquadrinhamento do espaço urbano, bem como o ordenamento dos territórios e das populações. É preciso bem governar para manter uma nação produtiva, inserida no modelo de produção e de economia da ordem mundial: ao Estado, que já vinha se instituindo desde o século XVI, interessa agora a arte de governar – ou a governamentalidade (FOUCAULT, 1979). As ciências humanas nascem neste momento, não por mera coincidência. É abandonada a forma de governar absolutista e cruamente arbitrária: o Estado passa a se sofisticar cada vez mais, de forma que o exercício do poder não está mais localizado nele (Estado), e sim pulverizado em diferentes práticas que convergem para essa lógica de controle, de disciplina, de docilização de corpos, de direção de cura e eliminação de desvios (IDEM, 1995). Portanto, em nosso presente impõe-se a questão: que ética, ou que clínica é essa que estamos reproduzindo quando acatamos a “missão” de resolver problemas, dar respostas, curar, apaziguar, acalmar (quem nunca ouviu que alguém precisa de um psicólogo porque está muito “agitado”...) e dar encaminhamento aos casos de violência? Que escuta é essa que fazemos em ONGs, em equipamentos de saúde, em consultórios, em tribunais àquilo que nos chega de forma individualizada, familiarista, como um problema a ser resolvido? O quanto estamos trabalhando no sentido do aperfeiçoamento do funcionamento da engrenagem de exercício de poder? É preciso estranhar esses automatismos. É preciso colocar as demandas que recebemos em análise. É preciso fazer parada para análise. Para tanto, é preciso se colocar a si próprio em análise e se fazer as perguntas: o que temos feito de nós mesmos? É preciso fazer a análise de nossas implicações, o que significa nos perguntarmos: que efeitos nossas práticas estão produzindo no mundo5? O quanto estamos percebendo o conflito, a desordem, o caos das populações com as quais lidamos como forma mesmo de não se assujeitar a valores, pilares, marcas que não lhes favorecem? Que mundos e existências nossa clínica tem engendrado ou contribuído para engendrar? 5 Para obter uma explanação mais profunda sobre o conceito de “análise de implicações”, sugiro conferir Coimbra e Nascimento, 2008.
  • 6. Entre clínica e política A respeito a palavra “clínica”, Eduardo Passos e Regina Benevides (2001) nos dirão que há dois caminhos possíveis de serem tomados quanto à sua etimologia. Um deles, o mais conhecido, é o do termo grego klinikos, que significa inclinar-se sobre o leito do paciente. Já o outro, menos popular, é o do termo da filosofia de epicurista clinamen. Este designa o desvio que faz com que os átomos, ao caírem no vazio devido a seu peso e velocidade, se choquem, acoplando-se na composição das coisas. Aí reside a potência de geração de mundo. É muito mais na afirmação desse desvio do que no debruçar-se sobre o paciente, portanto, que a clínica se faz. Já se percebe que estamos tratando aqui de outro modo de entender a subjetividade: como um movimento aberto, totalmente conectado ao mundo, imanente a ele, produtor e produzido pela realidade. A partir disso, como assegurar espaços políticos de acolhimento, cuidado, acompanhamento e criação de estratégias de enfrentamento à violência? De que formas colocar para funcionar essa clínica que é mais marcada pelo clinamen? Ora, esses processos dizem de uma mudança de postura ético-política. No CEAV/RJ, começamos a nos fazer indagações que foram abrindo espaço para o engendramento de outras práticas que descrevo a seguir. É importante pontuar que essas não são técnicas replicáveis, modelos ideais. São apenas experimentações datadas, contingenciais e locais. Logo veremos como essas questões e as criações se conectam umas nas outras, como num efeito dominó:  Quem sabe, ao invés de exclusivamente colher denúncias, não precisamos fabricar mais espaços para acolher histórias? Durar nessas histórias, durar mais num certo “não saber o que fazer”, mesmo que a urgência de alguns casos casos nos exija respostas imediatas. Priorizar o que é urgente e imediato em relação a o que pode – e às vezes precisa – ser vivenciado como problema. Lembro-me de uma mulher que nos procurou porque estava em crise na relação, na iminência de se separar, e queria ser orientada sobre seus direitos6. Havia ali questões práticas, mas também de ordem da impossibilidade de “solucionar”. Não podemos cair no discurso da incompetência, tão tipicamente concernente a nossa ordem econômica pautada pela necessidade de produtividade e eficiência máximas (COIMBRA e NASCIMENTO, 2004). Há certas coisas que não se sabe fazer – e que 6 Cabe informar que O CEAV/RJ, uma vez que era um projeto dentro do CDDH de Petrópolis, atendia, em revezamento com equipes de outros projetos, o público em geral que procurava a instituição como referência em Direitos Humanos. Assim, acolhíamos pelo menos inicialmente quem fosse que procurasse atendimento, mesmo que desviassem do “público alvo” focado pelo projeto.
  • 7. bom! Apenas ao falar, ao durar um pouco no problema, ficou claro que aquela questão precisava ainda ser habitada por aquela mulher; o casal precisava experimentar esse impasse e suportá-lo antes que ele pudesse se transformar em outra coisa. Acolher a sua história, desta forma, foi fundamental.  Quem sabe, ao invés atender e acompanhar casos individualmente e de exclusivamente identificar quais benefícios aos quais aqueles usuários têm direito, tomar caminhos de coletivização?. Isso pode significar várias coisas: atender em duplas, deixando que os saberes se misturem, abdicando de nossos lugares seguros de especialistas. Dar visibilidade, tornar de domínio público os casos que podem ser publicizados (após análise cuidadosa dos aspectos de risco), como estratégia mesmo de encaminhamento e proteção, afirmando que aquela problemática não é de ordem íntima, individual, mas que diz de uma produção social da violência e da importância política do compartilhamento daquela experiência. Abdicar dos nossos lugares de especialistas não só entre a equipe, mas também em relação a quem nos procura: no momento de pensar os encaminhamentos para os casos, criar, junto com os usuários, as melhores estratégias de enfrentamento à violência. Às vezes pode ser pela intimidação do lugar de saber-poder que ocupamos o motivo pelo qual o usuário não conta de certas condições e certas redes que tem sobre as quais não sabíamos. Acreditar mais nessa capacidade da pessoa atingida por violência de pensar junto as formas de se proteger, recusando nossa tendência à tutela. Isso também é cuidado, é potencialização do sujeito. É, mais ainda, possibilitar e incentivar a invenção e a consolidação de um cuidado de si. Isso não significa, de modo algum, deixar o outro isolado e sozinho, mas sim dar as condições para que se componha junto uma rede de cuidado. Devemos também estranhar as grandes noções de “família”, “criança”, “sexualidade” que estamos acostumados a tomar como verdades absolutas e modelos a serem seguidos. É em nome dessas verdades inabaláveis que categorizamos de antemão como boas ou ruins certas formas de crescer, de educar, de brincar, de ser criança, de se relacionar em família ou casal. Entender isso tudo como processos dos quais fazem parte vários atores é em si muito mais rigoroso e cuidadoso para com os movimentos que acompanhamos. Nesse sentido, é importante conhecer a realidade de quem nos procura, fazendo também um deslocamento de ir à favela ou aos bairros e sentir os cheiros, ouvir os barulhos que lá se sentem e se compartilham.
  • 8. Ao invés de encaminhar para serviços da rede estatal, tais como políticas de assistência e da saúde e encaminhar quase que automaticamente para psicoterapia individual, prestar atenção a quem estamos encaminhando, fazer um encaminhamento cuidadoso. Isto é, se perguntar se aquela terapia será para apaziguar as forças revoltosas de uma mãe que perdeu o filho executado por um policial (o que apenas contribuiria para o melhor funcionamento da engrenagem existente), ou se vai ser realizada uma escuta que tome essa força indignada como algo necessário e saudável, matéria potente para um processo clínico clinamen. A pacificação – ou opacificação – de vidas retira das mesmas um brilho vital que reside na criação de mundos. Nesta proposta, é preciso buscar um trabalho que não tenha pretensões ortopédicas de ajustar comportamentos e minimizar intensidades, e seja, isso sim, aposta em outros arranjos existenciais de menos sofrimento, de criações de si e de mundos possíveis. Essa também é uma questão colocada para nós que fazemos clínica: apostar na capacidade de sonhar, criar outras vias de efetuação, fortalecer nossas utopias ativas. Apostar aí nos grupos: não só em técnicas grupais, mas em movimentos sociais, eventos, coletivos que já existam ou, ainda, criar essas situações de encontro, de compartilhamento, nas quais desestabilizações e deslocamentos são provocados e outras posições são tomadas: de vítima a guerreiro, de humilhado a corajoso por ter feito uma denúncia, de mãe sozinha a parceira, amiga. Isso, é claro, se o usuário assim quiser e embarcar nesse movimento.  E, por fim, ao invés de realizar atividades de formação e educação em Direitos Humanos, em outros ambientes e ocasiões, quem sabe colocar em análise as demandas ali mesmo, informar e discutir a respeito, por exemplo, de nosso modelo de segurança pública no momento mesmo do atendimento? Assim, a formação deixa de ser a passagem de um conteúdo de um suposto professor a alunos e não precisa ser apenas através de cursos que, quando chegam à comunidade, tendem a se esvaziar, mobilizar pouca gente e não fazer sentido para todo mundo. A oficina de construção polifônica do que são, afinal, direitos humanos, passa a se dar na conexão e organicidade mesmo dos problemas que se apresentam e das formas de enfrentá-los. Entre direitos humanos e singularidade Estamos aqui apontando o olhar para o campo de forças que produz a violência. Afirmando clínica e política como uma experiência limítrofe porque habita os vários limites de que falamos
  • 9. até aqui: entre os domínios de saberes, entre o individual e o coletivo, entre o psicológico e o social. Uma experiência que não mais se refere a objetos, pessoas ou respostas a serem dadas, e sim a movimentos a serem acompanhados, processos inacabados, trajetórias de vida – e por isso a prudência, a delicadeza e o rigor (um rigor que, já vimos, nada tem a ver com a rigidez!). Experiência arriscada, porém necessária, se o que queremos é inventar práticas de cuidado como resistência. Para tanto, é necessário adotar outra concepção de direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos é burguesa, baseada em princípios da Revolução Francesa. É preciso entendê-los como ética que transversaliza as nossas práticas, e não apenas como direitos, marcos legais a serem aplicados ou assegurados (COIMBRA et al., 2008). É preciso saber que essa ética não se traduz em uma, mas em muitas práticas possíveis. Que ela não se limita ao CEAV, ao NAVCV e nem mesmo aos psicólogos. Que ela diz de uma forma de ver o mundo de estar nele, de afirmar mais vida, de criação de mundos outros e não de “outros mundos”. Para isso, precisamos poder nos sentir parte desse processo, e não tão preocupados em acertarmos invariavelmente: Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar os acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços- tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle (DELEUZE, 2006, p.218). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Claudia. Taxa de presos no Brasil quase triplica em 16 anos. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 de março de 2012. Disponível em: <
  • 10. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/33316-taxa-de-presos-no-brasil-quase-triplica-em-16- anos.shtml>. Acesso em: 19 de junho de 2012. COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Refletindo sobre a prática profissional e o papel dos conselhos. In: Cadernos Temáticos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo: Profissionais frente à situação de tortura, vol. 2. São Paulo: CRPSP, 2007. Disponível em: < http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/2/frames/fr_refletindo.aspx>. Acesso em: 18 de junho de 2012. COIMBRA, Cecília Maria Bouças; LOBO, Lilia Ferreira; NASCIMENTO, Maria Livia. Por uma invenção ética para os Direitos Humanos. In: Revista Psicologia Clínica, v.20. n.2, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103- 56652008000200007&script=sci_arttext>. Acesso em: 20 de junho de 2012. COIMBRA, Cecília e NASCIMENTO, Maria Lívia do. Sobreimplicação: práticas de esvaziamento político?, Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004. Disponível em: < http://www.slab.uff.br/textos/texto22.pdf>. Acesso em: 17 de junho de 2012. ______. Análise de implicações: desafiando nossas práticas de saber/poder. In: Geisler, A. R. R.; Abrahão, A. L. e Coimbra, C. (Orgs.). Subjetividade, violência e direitos humanos: produzindo novos dispositivos na formação em saúde. Niterói: EDUFF, 2008. Disponível em: <http://www.infancia-juventude.uerj.br/pdf/livia/analise.pdf>. Acesso em: 20 de junho de 2012. DELEUZE, Gilles. A imagem do pensamento. In: Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. ______. Controle e Devir. In: Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 218. FOUCAULT, Michel. A Governamentalidade: Curso do Collège de France, 1 de fevereiro de 1978. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 277-293. ______. O Sujeito e o Poder. Em: DREYFUS, Hubert & RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 ______. Conversa com Michel Foucault. In: Ditos e escritos VI: Repensar a Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. FOUCAULT, Michel e DELEUZE, Gilles. Os Intelectuais e o Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 69-78.
  • 11. KAWAGUTI, Luis. Brasil tem 4ª maior população carcerária do mundo e déficit de 200 mil vagas. BBC Brasil, São Paulo, 29 de maio de 2012. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml>. Acesso em: 19 de junho de 2012. MACIEL , Auterives. Pensamento e verdade em Freud. In: Revista Ágora a - Estudos em Teoria Psicanalítica. UFRJ, v. II, n. 1, 1999, p.75-89. PASSOS, Eduardo e BENEVIDES, Regina. Clínica e biopolítica na experiência do contemporâneo. In: Psicologia Clínica Pós- graduação e Pesquisa. PUC-RJ, v.13, n.1, 2001, p. 89-99. RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Para desencaminhar o presente Psi: biografia, temporalidade e experiência em Michel Foucault. In: GUARESCHI, Neuza M. F. & HÜNING, Simone M. (orgs.). Foucault e a Psicologia. Porto Alegre: Abrapso Sul, 2005.