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Epistemologia feminista, gênero e história
Gênero e história
1
Epistemologia feminista, gênero e história
Edita: CNT-Compostela, Agosto de 2012
www.cntgaliza.org
Primeira edição
Coordinação: Secretaria de Imprensa e Comunicação. CNT-Compostela
ISBN: 978-84-92428-63-2
Dépósito Legal: C 1523-2012
Imprime: Sacauntos
2
Epistemologia feminista, gênero e história por Margareth Rago
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Epistemologia feminista, gênero e história
Epistemologia feminista, gênero e história
Descobrindo historicamente o gênero
MARGARETH RAGO
3
Epistemologia feminista, gênero e história
4
Epistemologia feminista, gênero e história
Índice
Mulher, trabalho e anarquismo [Martín Paradelo
Núñez] 7
Epistemologia feminista, gênero e história 19
Introduzindo o debate 21
Epistemologia feminista: ensaiando alternativas 24
1.- A crítica feminista 27
2.- O projeto de ciência feminista
ou um modo feminista de pensar? 32
Feminismo e história 39
Finalizando... 45
Descobrindo históricamente o gênero 47
5
Epistemologia feminista, gênero e história
6
Epistemologia feminista, gênero e história
Mulher, trabalho e anarquismo
A mulher
e o trabalho
Pode parece de uma evidência simples, notória e palpável,
afirmar que a mulher trabalha. Também que a mulher sempre
trabalhou. Mas se perguntamos a uma importantísima massa de
gente, não necessariamente vinculada a uma ideologia especial-
mente reacionária, ou se revemos milhares de páginas de escri-
tos de carácter histórico, independentemente do seu grau de
academicismo e de militantismo, semelharia até difícil suster es-
ta afirmação.
Resulta especialmente suspeitoso, entre os múltiples
desaparecimentos do sujeito mulher, este referido ao trabalho.
Pensado assim de primeiras, séria muito difícil negar que a mul-
her está dotada de capacidade para o trabalho, assim como que
também está exposta à necessidade do trabalho. Moldar um dis-
curso que negue estas duas afirmações seria quase impossível,
estaria abocado mesmo ao ridículo. Sem embargo, não só gran-
de parte de qualquer população ou grupo humano, como queira
que se delimite este conceito, senão também da historiografia,
tendem a negá-las pela via do desaparecimento.
7
Epistemologia feminista, gênero e história
Com efeito, pode haver várias causas detrás deste facto.
Uma delas, e não em último lugar, o facto de manter a exclusi-
vidade da actividade produtiva em mãos do homem. Pode pare-
cer até evidente que o sujeito que se assalária é o homem, ou
que ao menos foi assim até a expansão do industrialismo. Isto
nem sempre foi assim, mas faz evidente a necessidade do ho-
mem emquanto que recetor dos benefícios do sistema patriar-
cal, se bem explorado insensivelmente dentro das confronta-
ções de classe, de manter um espaço próprio de poder desde o
que manifestar-se imprenscindível e superior. Daí a depreciação
da actividade feminina e a separação hierárquica das tarefas en-
tre os géneros. Também daí a diferença de valor atribuido (e re-
tribuido) a um trabalho levado a cabo por um homem e uma
mulher.
O trabalho não é uma actividade produtiva sujeita a diferen-
tes valores e criador de mais-valia. O trabalho é simplesmente
actividade. Este deslocamento do conceito de trabalho exclusi-
vamente para um âmbito de contradição de classe é extremada-
mente limitado, e se foi de grande importáncia à hora de definir
à classe trabalhadora de maneira autónoma e positiva, jogou
muito pouco favor para o caminho de emancipação do género
humano que o anarquismo ou qualquer pensamento revolucio-
nário deveria facilitar. A expansão e consolidação do patriarca-
do, como sistema de dominação da mulher pelo homem inde-
pendentemente da classe na que se produza, assentou-se, entre
outros muitos factores, nesta diferença.
O facto de relegar à mulher a uma série de trabalhos consi-
derados de inferior categoria dado que não producian mais-va-
lia, e portanto não eram pagos, e que não producian nada tangí-
vel, portanto era desprezados, obedece a uma lógica da domina-
8
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
ção que deve ser analisada e superada. O anarquismo, como sis-
tema que procura a emancipação integral de todas as pessoas,
deveria ter tido esta situação clara e te-la colocado num lugar
fulcral do seu discurso, tanto na sua análise da história como na
análise da exploração de uma classe por outra, e o anarco-sindi-
calismo, como estrutura desde a que se articula o anarquismo
no mundo do trabalho, deveria ter reagido fortemente contra
ela e te-la incorporado num lugar ponteiro das suas lutas. Mas
veremos que isto não sempre foi assim, às vezes antes ao con-
trário.
O anarquismo
ante o tema da mulher
Antes de mais faz-se necessário analisar as posições que o
anarquismo manteve nas diversas etapas sobre a própria figura
da mulher, o seu papel social e o alcance da emancipação de
que devia desfrutar. Não é o objectivo aqui aprofundar demais,
senão que simplesmente um revejo pelas grandes figuras e por
verdadeiros momentos de importância é revelador da posição
que geralmente adotou o anarquismo.
Entre os pensadores prévios a que Proudhon conforma-se
de maneira definida e positiva um corpus auto-denominado
anarquista, e que de maneira importante influiram nele, o que
com mas claridade se expressou nesta questão foi Charles Fou-
rier. Dentro do seu complexo e deslabazado pensamento, Fou-
rier compreendeu que condição fundamental de qualquer pro-
cesso de emancipação é que esta se realize em igualdade entre
todos os indivíduos, daí a sua insisténcia na necessidade da li-
9
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
bertação da mulher para a libertação do homem1
. Fourier foi
suficientemente lúzido para perceber a contradição que se dava
entre os géneros dentro do trabalho e como a mulher levava a
cabo em solitário uma série de actividades diferentes que de-
viam ser realizadas em comum para o bem do funcionamento
social, como por exemplo todas as relativas aos cuidados.
Esta posição era de uma importância excepcional e surpre-
ende que não fosse incorporada ao pensamento dos grandes
teóricos anarquistas do XIX. Antes ao contrário, a posição de
Proudhon será absolutamente reacionária e misógina. Proud-
hon nega de maneira radical a igualdade homem-mulher, até o
ponto de manifestar a impossibilidade de associação entre um
homem e uma mulher, devido às fundamentais diferenças e
qualidades de um e de outro2
. O homem sempre é melhor, não
há dúvida. Mas Proudhon ainda afina mais e nega toda a capaci-
dade de actividade autónoma para as mulheres e todo a tenta-
tiva de superação dos róis sexuais aos que é confinada. Para
Proudhon uma mulher só pode ser ama de casa ou prostituta3
.
Assim, Proudhon, que foi um excelente analista do sistema de
autoridade económico, estatista e religioso, e um entusiasta de-
1 “Os progressos sociais e mudanças de período operam-se em razão do progresso das mul-
heres cara à liberdade; e as decadéncias da ordem social operam-se em razão do mingua-
mento de liberdade das mulheres.” Fourier, Charles, Doctrina social, el falans-terio,
Madrid: Jucar, 1980. [As traduções desde as edições espanholas das obras
citadas são minhas]
2 “Entre a mulher e o homem pode haver amor, paixão, vínculos de amizade e todo quan-
to se queira, mas não há entre eles uma verdadeira sociedade. [...] Por isso, longe de aplau-
dir o que hoje se chama emancipação da mulher, inclino-me mais, se houvesse que chegar a
tal extremo, a enclausurá-la”. Proudhon, Pierre-Joseph, ¿Que és la propiedad?
Barcelona: Folio, 2002.
3 Proudhon, Pierre-Joseph, La pornocracia, Madrid: Huerga & Fierro, 1995
10
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
fensor da necessidade de superação desta tripla escravatura com
a constituição de uma nova sociedade baseada na igualdade e a
liberdade, foi capaz de deixar fora desta igualdade e desta li-
berdade à metade da população mundial. A posição de Proud-
hon jogou um papel muito importante e supôs a separação en-
tre socialismo e feminismo por muitos anos4
Bakunin pela sua parte não prestou especial atenção ao pa-
pel social da mulher nen à especificidade da exploração que so-
fria. Surpreende que um pensador que mostrou uma clarivi-
dência tão absoluta para a percepção de canto havia de autori-
tário em qualquer sistema e estrutura, desde o estado à religião
e ao próprio conhecimento, não tratasse em profundidade este
tema em concreto. A sua ausência no grosso do pensamento de
Bakunin não deve ter um carácter especialmente positivo, dada
a amplitude com que Bakunin analisou o alcance da autoridade
e os sistemas de exploração e repressão.
A postura de Kropotkin não melhorou as tendências ante-
riores. Kropoktin quase não trata este tema em nenhum lugar, e
mesmo surpreende que na sua definição da nova sociedade5
,
onde faz explicita referência à divisão do trabalho, reduza esta à
divisão entre trabalho intelectual e manual, limite o trabalho a
um trabalho exclusivamente produtivo e não faça teimosia nas
diferentes tarefas levada a cabo por cada género, como sim tin-
ha exposto Fourier. Sem embargo, Kropotkin mesmo negara de
certa forma o carácter da mulher como sujeito revolucionário.
Na sua chamada a todos os elementos susceptiveis de fazer par-
te do processo revolucionário que é o escrito Aos jovens, Kro-
potkin revê desde os trabalhadores aos artistas, desde os téc-
4 Beauvoir, Simone de, El segundo sexo, Madrid : Cátedra, 2005.
5 Kropotkin, Piotr La conquista del pan, Barcelona: Júcar, 1977.
11
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
nicos aos intelectuais, sem fazer uma só referência à mulher se
não é em canto que mãe e companheira, nen uma só referência
a um papel activo da mulher no processo de emancipação6
.
Isto não nega a presença de destacadas figuras femininas no
movimento anarquista de todos os lugares e jogando todos os
diversos papéis, como agitadoras, intelectuais, activistas, o que
for, mas a sua excepcionalidade, ou quando menos a fortíssima
desproporção respeito aos homens, ao menos é significativa, e
não só das diferentes repressões padecidas por um e outro gê-
nero, dado que é claro que não sempre os homens anarquistas
foram cómodos companheiros na emancipação das mulheres
anarquistas. Também não quer dizer que estas posições foram
únicas nem sempre as dominantes, mas sim manifesta uma mui-
to difícil assunção da diferente situação de exploração da mul-
her respeito ao homem e da situação de poder do homem res-
peito à mulher em qualquer situação social e a necessidade des-
ta superação. Mesmo quando se começa incorporar no pensa-
mento anarquista, tal vez por influência do anarco-sindicalismo,
a necessidade de emancipação da mulher, não se incorpora uma
análise especifica desta exploração e da necessidade de incorpo-
rá-la em igualdade à luta de libertação do proletariado, e falha-
se ao não ver que se as necessidades e as finalidades revolucio-
nárias são as mesmas nos sujeitos homem e mulher, não são as
mesmas as circunstâncias sociais das que partem. Armand in-
6 Esta é toda quanta palabra dirige Kropotkin às mulheres: “Enquanto que aca-
riñades a linda cabeça dessa criatura que dorme nos vossos braços, não pensastes nunca na
sorte que lhe aguarda se não mudam as presentes condições da sociedade? Não reflectis so-
bre o porvir reservado às vossas irmãs e aos vossos filhos? [...] Desejais que o vosso marido
e os vossos filhos estejam sempre à mercede do primeiro adventício que herdara dos seus pais
um capital com que poder exprotá-los?”. Kropotkin, Piotr, Palabras de un rebelde, Bar-
celona: Pastagana, 1977.
12
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
corporará com efeito esta necessidade da paralela libertação
masculina e feminina7
, me as não é quem de ver que também
dentro do sistema capitalista e em canto que proletária a mulher
padece uma segunda escravatura dentro da sua própria classe.
O anarco-sindicalismo do Estado espanhol é um bom
exemplo desta panorama. Desde os primeiros congressos da
Federação da Regional Espanhola da AIT, na altura de 1872,
definia-se a especial situação de opres-são da mulher e de-
fendia-se a sua emancipação começando pe-lo trabalho, perce-
bendo que relegar a mulher exclusivamente às funções do-
mésticas constituia uma submissão e uma dependência respeito
ao homem, se bem insistindo nas diferencias entre trabalhos
próprios de cada sexo8
. Isto não impediu que noutras ocasiões
se defenderam desde os sindicatos a proibição do trabalho fe-
minino como forma de paliar os efeitos do desemprego9
ou di-
ferenças entre os direitos defendidos para uns e outras, mas por
outra parte a própria CNT chegou estabelecer cotas de pari-
dade por género nos comités10
. Em efeito, foi desde o anarco-
sindicalismo que se deu uma maior compreensão da situação da
mulher, se bem em grande medida ficaram distanciadas as posi-
ções teóricas de várias das suas concretizações práticas.
Não se pode negar tampouco o destacado papel que jogou
7 Armand, Emile, El anarquismo individualista : lo que es, puede y vale, La Rioja:
Pepitas de calabaza, 2009.
8 Madrid, Francisco e Venza, Claudio, Antología documental del anarquismo espa-
ñol, tomo 1. Madrid: Fundación Anselmo Lorenzo, 2001.
9 Lorenzo, Anselmo, El proletariado militante, Madrid: Confederación Sindical
Solidaridad Obrera, 2005.
10 Congresos Anarcosindicalistas en España, 1870 – 1936, Toulousse – Paris: CNT,
1977.
13
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
o anarquismo nos movimentos de libertação da mulher que se
desenvolveram a partir dos anos sessenta, de uma amplitude
muito superior à que se dera até o momento. É a partir de aqui
que se procura uma ótica própria da mulher em todos os as-
peitos e que se procura incorporar o estudo do sujeito mulher a
qualquer disciplina científica. Ainda assim, a história fica à mar-
gem ou em desenvolvimento muito lento. É dentro deste tento
de enfoques femininos, que ao tempo levam aparellados novos
enfoques e o estudo de novos espaços, assim como a sua co-
nexão e introdução numa análise de classe e da ampliação do
âmbito do estudo da história, que se inscreve o trabalho de
Margareth Rago, entre muitas outras, que ademais tentará uma
vinculação com o anarquismo como metodologia de análise.
A importáncia do trabalho
para a escrita da história
Qualquer aproximação à compreensão do passado desde
uma perspectiva que tenha em conta as classes subalternas co-
mo protagonistas do movimento histórico não pode deixar de
lado que o trabalho constitui um tema ineludível, assim como
também o trabalho assalariado, assim como que é no trabalho
desde o que se concretizam as confrontações de classe em qual-
quer momento histórico, assim como é um espaço no que o ser
humano projecta também de maneira directa a sua criatividade
e a sua visão do mundo em um momento concreto. O trabalho
constitui um importantíssimo facto cultural, que mobiliza uma
muito ampla série de relações sociais, e a sua omissão em qual-
quer análise histórico de qualquer tempo e lugar só pode levar
ao insucesso ou à perduração daquela grande história, baseada
14
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
nos grandes factos (batalhas e matrimónios principalmente) re-
alizados por grandes homens (reis e demais dirigentes). Uma
história que tenha em conta o papel activo e autónomo das
classes subalternas não pode desprezar uma análise do marco
do trabalho para ser completa.
Como também não pode deixar de lado a incorporação do
análise do sujeito mulher como sujeito imerso numa realidade
diferenciada e numa situação relacional diferente da do sujeito
homem, ao menos em várias questões, entre elas o trabalho.
Por isso faz-se fundamental romper essa visão da mulher histo-
ricamente desligada do trabalho, assalariado ou não, para atingir
a completa integração da mulher como sujeito activo em qual-
quer processo histórico e para incorporar a visão do feminino à
análise destes processos, assim como de qualquer análise ou crí-
tica científica.
Isto é também o que propõe Margareth Rago e tantas outras
mulheres historiadoras. Simplesmente a incorporação da crítica
desde o feminino a qualquer processo gerador de conhecimen-
to e a integração de toda a prática desde a mulher como objecto
de estudo. Não se trata de uma posição militante feminista ou
de uma urxéncia da mulher para se reabilitar a si própria, que
também. Trata-se em último termo de avançar para uma his-
tória que seja capaz de perceber a complexidade dos processos
sociais desde uma ótica que tenha em conta a diversidade de su-
jeitos que participem deles. É evidente que o esquecimento,
abandono, dissimulação, ou como queiramos dizer, da mulher
como sujeito activo em tão grande parte da historiografia não
contribuiu de nenhuma maneira a proporcionar uma escrita his-
tórica satisfatória, senão que ao contrário contribuiu a assentar
a história como discurso ideológico das classes dominantes.
15
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
O trabalho
da mulher na arte
A arte, produção cultural que conserva grande validade
como fonte para estudar o passado, plasmou o trabalho da
mulher em multidão de tempos e lugares. Desde a cultura
egípcia até a Grécia clássica e a Roma monárquica ou imperial,
passando por Etrúria, o trabalho feminino teve variedade de re-
presentações em multidão de ofícios diferentes. Mulheres ven-
dedoras e padeiras aparecem como limitado exemplo mas
sendo umas das representações mais numerosas, mas podíamos
falar também das numerosas representações de mulheres fian-
deiras, amas-de-leite e parteiras da cerâmica grega.
Em época medieval a representação de mulheres trabalhan-
do é habitual. Em muitos casos trata-se de cenas de trabalhos
agrícolas, também por outra parte trabalho bem abundante na
época que alcançou um desenvolvimento importante como mo-
tivo artístico ao ser habitual nas representações dos meses do
ano, mas também em vários trabalhos artesanais. Aparecem em
grande número as mulheres realizando trabalhos de cuidados,
nomeadamente de enfermos, enquanto que a representação
mais numerosa é a da mulher fiandeira, mas há que destacar a
representação de maior variedade de ofícios. Estes exemplos re-
velam que a introdução no mundo laboral da mulher em época
medieval não era nada limitado, como assim mostram os exem-
plos de escultoras, boticárias, costureiras e por suposto agricul-
toras, mas podíamos falar também de mulheres ourives, pinto-
ras, queijeiras ou parteiras.
A partir da época moderna e depois desde a expansão do in-
16
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
dustrialismo e o sistema capitalista, a incorporação da mulher
ao trabalho assalariado foi maciça e indubitável, quase sempre
em trabalhos de importante penosidade e nas lamentáveis con-
dições que imperam no marco de relações capital-trabalho até a
expansão da luta de classes organizada da segunda metade do
XIX, despojada já do seu carácter espontáneo e que dará lugar
ao anarco-sindicalismo e conseguirá importantes melhoras nas
condições de trabalho. Neste sentido são vários os exemplos
que podiamos nomear, mulheres trabalhadoras das factorias in-
dústrias ou da minaria, e de sectores primários onde atingiram
muito forte presença, como foi a pesca.
Finalmente, não queremos deixar de lembrar que a militán-
cia operária da mulher não só existiu, senão que foi continuada
e desenvolvida em condições muito mais dificultosas que as dos
seus companheiros varões. Com efeito, a presença da mulher
no mundo sindical foi permanente desde fins do XIX, e a sua
participação nas mobilizações operárias, e na sua expressão
mais radicalizada, a greve geral, também foi documentada artís-
ticamente. Recordemos o quadro no que Judes Adler plasmou
uma greve da comuna de Montchanin na localidade borgoñona
de Lê Creusot. A manifestação vai encabeçada por uma mulher
que entoa A Internacional, hino reconhecido como próprio pe-
la classe operária de todo o mundo desde a sua criação na Co-
muna de Paris.
Martín Paradelo Núñez, Compostela, Junho de 2012
17
Mulher, trabalho e anarquismo
Epistemologia feminista, gênero e história
18
Epistemologia feminista, gênero e história
Epistemologia
feminista,
gênero e história
19
Epistemologia feminista, gênero e história
20
Epistemologia feminista, gênero e história
Introduzindo
o debate
Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era pos-
sível uma história das mulheres, num trabalho que se tornou
bastante conhecido, no qual expunha os inúmeros problemas
decorrentes do privilegiamento de um outro sujeito universal: a
mulher11
. Argumentava que muito se perdia nessa historiografia
que, afinal, não dava conta de pensar dinamicamente as relações
sexuais e sociais, já que as mulheres não vivem isoladas em
ilhas, mas interagem continuamente com os homens, quer os
consideremos na figura de maridos, pais ou irmãos, quer en-
quanto profissionais com os quais convivemos no cotidiano,
como os colegas de trabalho, os médicos, dentistas, padeiros ou
carteiros. Concluía pela necessidade de uma forma de produção
acadêmica que problematizasse as relações entre os sexos, mais
do que produzisse análises a partir do privilegamento do sujei-
to. Ao mesmo tempo, levantava polêmicas questões: existiria
uma maneira feminina de fazer/escrever a história, radicalmen-
te diferente da masculina? E, ainda, existiria uma memória espe-
cificamente feminina?
Em relação à primeira questão, Perrot respondia simultanea-
11Michelle Perrot - Une histoire des femmes est-elle possible? Paris: Rivage,
1984.
21
Epistemologia feminista, gênero e história
mente sim e não. Sim, porque entendia que há um modo de in-
terrogação próprio do olhar feminino, um ponto de vista espe-
cífico das mulheres ao abordar o passado, uma proposta de re-
leitura da História no feminino. Não, em se considerando que o
método, a forma de trabalhar e procurar as fontes não se di-
ferenciavam do que ela própria havia feito antes enquanto pes-
quisadora do movimento operário francês. Entendia, assim, que
o fato de ser uma historiadora do sexo feminino não alterava
em nada a maneira como estudara e recortara o objeto. Na ver-
dade, sua argumentação deslocava a discussão, deixando de
considerar o modo de produzir e narrar a História para focali-
zar o objeto de estudo, sem pensar, por exemplo, por que ela
não poderia ter trabalhado femininamente um objeto ou um te-
ma masculino?12
Ao mesmo tempo, Perrot destacava as diferen-
ças de registro da memória feminina, mais atenta aos detalhes
do que a masculina, mais voltada para as pequenas manifesta-
ções do dia-a-dia, geralmente pouco notadas pelos homens.13
Mais recentemente, outro prestigiado historiador francês ad-
vertiu contra os perigos de se investir a diferença entre os sexos
de uma força explicativa universal; de se observar os usos se-
xualmente diferenciados dos modelos culturais comuns aos
dois sexos; de se definir a natureza da diferença que marca a
prática feminina; e da incorporação feminina da dominação
masculina.14
Muito preocupado em reconhecer a importância da
12 Lembre-se que M.Perrot escrevera um importante estudo no campo da
História Social: les ouvriers en grève.france 1871-1890. mouton, 1974.
13 M. Perrot - “Práticas da Memória Feminina”, Revista Brasileira de História,
S.Paulo: Anpuh/Marco Zero, vol.9, no.18,1989.
14 Roger Chartier - “Diferenças entre os sexos e dominação simbólica”, Ca-
dernos PAGU, no.4, Unicamp, 1995.
22
Epistemologia feminista, gênero e história
diferenciação sexual das experiências sociais, Chartier revelava
certo constrangimento em relação à incorporação da categoria
do gênero, numa atitude bastante comum entre muitos historia-
dores, principalmente do sexo masculino.
Procuro, neste texto, levantar alguns pontos de reflexão so-
bre a epistemologia feminista e sua ressonância na historiogra-
fia. É da maior importância discutir questões tão candentes e
atuais, especialmente num encontro acadêmico que procura
perceber as possibilidades abertas para a produção do conheci-
mento pelas discussões que giram em torno da incorporação da
categoria do gênero e que apontam para a sexualização da expe-
riência humana no discurso.
23
Epistemologia feminista, gênero e história
Epistemologia feminista:
ensaiando alternativas
Ao menos no Brasil, é visível que não há nem clarezas, nem
certezas em relação a uma teoria feminista do conhecimento.
Não apenas a questão é pouco debatida mesmo nas rodas fe-
ministas, como, em geral, o próprio debate nos vem pronto, tra-
duzido pelas publicações de autoras do Hemisfério Norte. Há
quem diga, aliás, que a questão interessa pouco ao “feminismo
dos trópicos”, onde a urgência dos problemas e a necessidade
de rápida interferência no social não deixariam tempo para
maiores reflexões filosóficas.15
Contrariando posições e tentando aproximar-me da questão,
gostaria de esboçar algumas idéias. Afinal, se considerarmos
que a epistemologia define um campo e uma forma de produ-
ção do conhecimento, o campo conceitual a partir do qual ope-
ramos ao produzir o conhecimento científico, a maneira pela
qual estabelecemos a relação sujeito-objeto do conhecimento e
a própria representação de conhecimento como verdade com
que operamos, deveríamos prestar atenção ao movimento de
15 Uma instigante discussão sobre o tema, encontra-se em Roberto Cintra
Martins - “Filosofia da Ciência e feminismo: uma ligação natural”, in Lucila
Scavone (org.)- Tecnologias reprodutivas. Gênero e Ciência. S.Paulo: UNESP,
1996.
24
Epistemologia feminista, gênero e história
constituição de uma (ou seriam várias?) epistemologia femi-
nista, ou de um projeto feminista de ciência.16
O feminismo
não apenas tem produzido uma crítica contundente ao modo
dominante de produção do conhecimento científico, como
também propõe um modo alternativo de operação e articulação
nesta esfera. Além disso, se consideramos que as mulheres tra-
zem uma experiência histórica e cultural diferenciada da mascu-
lina, ao menos até o presente, uma experiência que várias já
classificaram como das margens, da construção miúda, da ges-
tão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova lingua-
gem, ou na produção de um contradiscurso, é inegável que
uma profunda mutação vem-se processando também na produ-
ção do conhecimento científico.
Certamente, a questão é muito mais complexa do que estou
formulando aqui, já que, de um lado, há outras correntes van-
guardistas do pensamento contemporâneo, atuando no sentido
das profundas desestabilizações e rupturas teóricas e práticas
em curso. Além do mais, seria ingênuo considerar que a teoria
feminista rompe absolutamente com os modelos de conheci-
mento dominantes nas Ciências Humanas, sem reconhecer que
se há rupturas, há também muitas permanências em relação à
tradição científica. No entanto, quero chamar a atenção especi-
ficamente para o aporte feminista às transformações em curso
no campo da produção do conhecimento.
Na consideração da existência de uma/várias epistemolo-
gia/s feminista/s, valeria então destacarmos, de início, dois
pontos: o primeiro aponta para a participação do feminismo na
ampla crítica cultural, teórica, epistemológica em curso, ao lado
16 A esse respeito, veja-se Linda Alcoff e Elizabeth Potter (orgs.) - Feminist
epistemologies. New York and London: Routledge, 1993.
25
Epistemologia feminista, gênero e história
da Psicanálise, da Hermenêutica, da Teoria Crítica Marxista, do
Desconstrutivismo e do Pósmodernismo. Esta crítica revela o
caráter particular de categorias dominantes, que se apresentam
como universais; propõe a crítica da racionalidade burguesa,
ocidental, marxista incluso, que não se pensa em sua dimensão
sexualizada, enquanto criação masculina, logo excludente. Port-
anto, denuncia uma racionalidade que opera num campo ensi-
mesmado, isto é, a partir da lógica da identidade e que não dá
conta de pensar a diferença. É neste ponto que o feminismo se
encontra especialmente com o pensamento pósmoderno, com a
crítica do sujeito, com as formulações de Derrida e Foucault,
entre outras17
. O segundo, embutido no primeiro, traz as pro-
postas desta nova forma de conceber a produção do conhe-
cimento, do projeto feminista de ciência alternativa, que se quer
potencialmente emancipador.
17 Vide a respeito Mary McCanney Gergen (ed.) - O pensamento feminista e
a estrutura do conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/EdUNB,
1993; Cláudia Costa Lima - “O leito de Procusto: gênero, linguagem e as teo-
rias feministas”, Cadernos PAGU, no.2, Unicamp, 1993.
26
Epistemologia feminista, gênero e história
1 - A crítica
feminista
Não é demais reafirmar que os principais pontos da crítica
feminista à ciência incidem na denúncia de seu caráter particula-
rista, ideológico, racista e sexista: o saber ocidental opera no in-
terior da lógica da identidade, valendo-se de categorias refle-
xivas, incapazes de pensar a diferença. Em outras palavras, ata-
cam as feministas, os conceitos com que trabalham as Ciências
Humanas são identitários e, portanto, excludentes. Pensase a
partir de um conceito universal de homem, que remete ao bran-
co heterossexual civilizado do Primeiro Mundo, deixando-se de
lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência. Da
mesma forma, as práticas masculinas são mais valorizadas e hie-
rarquizadas em relação às femininas, o mundo privado sendo
considerado de menor importância frente à esfera pública, no
imaginário ocidental.
Portanto, as noções de objetividade e de neutralidade que
garantiam a veracidade do conhecimento caem por terra, no
mesmo movimento em que se denuncia o quanto os padrões de
normatividade científica são impregnados por valores masculi-
nos, raramente filóginos. Mais do que nunca, a crítica feminista
evidencia as relações de poder constitutivas da produção dos
saberes, como aponta, de outro lado, Michel Foucault. Este
27
Epistemologia feminista, gênero e história
questionara radicalmente as representações que orientavam a
produção do conhecimento científico, tida como o ato de reve-
lação da essência inerente à coisa, a partir do desvendamento
do que se considerava a aparência enganosa e ideológica do fe-
nômeno. Especialmente nas Ciências Humanas, chegar à ver-
dade do acontecimento, “compreendê-lo objetivamente” signi-
ficava retirar a máscara que o envolvia na superfície e chegar às
suas profundezas. Foucault criticava, assim, a concepção domi-
nante na cultura ocidental de que o conhecimento, a produção
da verdade se daria pela coincidência entre o conceito e a coisa,
no movimento de superação da distância entre a palavra e a coi-
sa, entre a aparência e a essência.
A convergência entre a crítica feminista e as formulações
dos “filósofos da diferença”, como Foucault, Deleuze, Lyotard,
Derrida, entre outros, já foi observada por várias intelectuais.18
A filosofia pósmoderna propõe, a partir de um solo episte-
mológico que se constitui fora do marxismo, novas relações e
novos modos de operar no processo da produção do conheci-
mento: a “descrição das dispersões” (Foucault) e não a “síntese
das múltiplas determinações” (Marx); revelar o processo artifi-
cial de construção das unidades conceituais, temáticas suposta-
mente “naturais”: a desconstrução das sínteses, das unidades e
das identidades ditas naturais, ao contrário da busca de totaliza-
ção das multiplicidades. E, fundamentalmente, postula a noção
de que o discurso não é reflexo de uma suposta base material
das relações sociais de produção, mas produtor e instituinte de
“reais”. A produção do conhecimento se daria, assim, por ou-
18 Veja-se, por ex., Jane Flax - “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na
Teoria Feminista”, in Heloísa Buarque de Hollanda - Pósmodernismo e
política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
28
Epistemologia feminista, gênero e história
tras vias. Como disse Foucault:
“Mas não se trata aqui de neutralizar o discurso, transformá-lo em
signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que
permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em
sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em
uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às “coisas”, “despresentificá-
las”; (...) substituir o tesouro enigmático das “coisas” anteriores ao discur-
so pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses
objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto
de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que cons-
tituem, assim, suas condições de aparecimento histórico;”19
Do mesmo modo, as teóricas feministas propuseram não
apenas que o sujeito deixasse de ser tomado como ponto de
partida, mas que fosse considerado dinamicamente como efeito
das determinações culturais, inserido em um campo de comple-
xas relações sociais, sexuais e étnicas. Portanto, em se conside-
rando os “estudos da mulher”, esta não deveria ser pensada co-
mo uma essência biológica pré-determinada, anterior à História,
mas como uma identidade construída social e culturalmente no
jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras
e pelos discursos/saberes instituintes. Como se vê, a categoria
do gênero encontrou aqui um terreno absolutamente favorável
para ser abrigada, já que desnaturaliza as identidades sexuais e
postula a dimensão relacional do movimento constitutivo das
diferenças sexuais.
Vale ainda notar a aproximação entre as formulações da teo-
ria feminista e a valorização da cultura pelo pós-modernismo,
19 Michel Foucault - Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 1986, p.54
29
Epistemologia feminista, gênero e história
ao contrário da sociedade para o marxismo. Nesse contexto, a
História Cultural ganha terreno entre os historiadores, enfati-
sando a importância da linguagem, das representações sociais
culturalmente constituídas, esclarecendo que não há anteriorida-
de das relações econômicas e sociais em relação às culturais. O
discurso, visto como prática, passa a ser percebido como a prin-
cipal matéria prima do historiador, entendendo-se que se ele
não cria o mundo, apropria-se deste e lhe proporciona
múltiplos significados.20
É nesta perspectiva que Joan Scott, conhecida anteriormente
por seus trabalhos na área da História Social, ao procurar expli-
car alternativamente o “problema” da trabalhadora, a divisão
sexual do trabalho, a oposição entre o lar e o trabalho, inverte
radicalmente o caminho tradicional da interpretação histórica,
enfatisando a importância do discurso na constituição de uma
questão socio-econômica. A divisão sexual do trabalho é, então,
percebida como efeito do discurso. Segundo ela,
“Ao invés de procurar causas técnicas e estruturais específicas, devemos
estudar o discurso a partir do qual as divisões do trabalho foram estabeleci-
das segundo o sexo. O que deve produzir uma análise crítica mais apro-
fundada das interpretações históricas correntes.”21
Explica que a diferença sexual inscrita nas práticas e nos fa-
tos é sempre construída pelos discursos que a fundam e a legiti-
mam, e não como um reflexo das relações econômicas. Consi-
dera insustentável a difundida tese de que a industrialização
provocou uma separação entre o trabalho e o lar, obrigando as
20 Keith Jenkins - Re-thinking history. London: Routled-ge,1991.
21 Joan W. Scott - “La Travailleuse”, in G. Duby e M.Perrot (orgs.)- Histoire
des femmes, vol.4. Paris: Plon, 1991, p.428.
30
Epistemologia feminista, gênero e história
mulheres a escolher entre o trabalho doméstico e o assalariado.
Para ela, o discurso masculino, que estabeleceu a inferiorida-
de física e mental das mulheres, que definiu a partilha “aos ho-
mens, a madeira e os metais” e “às mulheres, a família e o tecido” pro-
vocou “uma divisão sexual da mão-de-obra no mercado de trabalho, reu-
nindo as mulheres em certos empregos, substituindo-as sempre por baixo de
uma hierarquia profissional, e estabelecendo seus salários em níveis insufi-
cientes para sua subsistência.” (idem)
31
Epistemologia feminista, gênero e história
2 – O projeto de ciência feminista
ou um modo feminista de pensar?
É dificil falar de uma epistemologia feminista, sem tocar na
discussão sobre os perigos da reafirmação do sujeito “mulher”
e de todas as cargas constitutivas dessa identidade no imaginá-
rio social. Afinal, como já se observou exaustivamente, a ques-
tão das relações sexuais e da mulher especificamente nasce a
partir das lutas pela emancipação deste sujeito antes definido
como “sexo fragil”. É na luta pela visibilidade da “questão fe-
minina”, pela conquista e ampliação dos seus direitos específi-
cos, pelo fortalecimento da identidade da mulher, que nasce um
contradiscurso feminista e que se constitui um campo femi-
nista do conhecimento. É a partir de uma luta política que nas-
ce uma linguagem feminista. E, no entanto, o campo teórico
que se constitui transforma-se a tal pon-to que, assim como a
História Cultural, deixa de lado a preocupação com a centrali-
dade do sujeito. Como se de repente os efeitos se desviassem
dos objetivos visados no ponto de partida: a categoria relacional
do gênero desinveste a preocupação de fortalecimento da iden-
tidade mulher, ao contrário do que se visava inicialmente com
um projeto alternativo de uma ciência feminista.
Esta é uma das principais dificuldades que emergem, ao se
tentar conceitualizar o campo epistemológico em que se funda
32
Epistemologia feminista, gênero e história
um conhecimento sobre as mulheres e, agora, sobre as relações
de gênero. A categoria do gênero, já observou Joan Scott, não
nasce no interior de um sistema de pensamento definido como
o conceito de classes em relação ao marxismo. Embora seja
apropriada como instrumento analítico extremamente útil, pro-
cede de um campo profundamente diverso daquele que tinha
como horizonte a emancipação social de determinados setores
sociais. Helen Longino observa, ainda, que foi depois do desen-
volvimento do pensamento feminista nas áreas da história, an-
tropologia, teoria literária, psicologia e sociologia que se passou
a pensar nos conceitos através dos quais se operava. A reflexão
filosófica foi posterior à prática teórica.22
Isto significa: 1) que houve uma incorporação das questões
feministas em diferentes campos da produção do conhecimento
científico, de fora para dentro, como por exemplo, na psicaná-
lise ou no campo marxista. Os temas da mulher e do gênero fo-
ram incorporados às questões colocadas pela historiografia
marxista, sem ter nascido a partir dela, enfrentando, aliás, sérias
dificuldades em seu interior. Sabemos como a questão das re-
lações entre os sexos, a história da sexualidade e do corpo, as
lutas políticas das mulheres foram secundarizadas no marxismo,
tidas como secundárias em relação às questões da luta das clas-
ses. Do mesmo modo, a questão étnica e racial. É impossível
deixar de pensar na reação que o livro História da Sexualidade,
de Foucault teve por parte dos historiadores ligados à História
Social, por exemplo. De certo modo, não se pensava nas rela-
ções sexuais como dimensão constitutiva da vida em sociedade
22 Helen E. Longino - “To See Feelingly: Reason, Passion, and Dialogue in
Feminist Philosophy”, in Donna C. Stanton e A. Stewart (org.) Feminisms in
the academy, Ann Arbor: The University of Michigan Press,1995, p.21.
33
Epistemologia feminista, gênero e história
e como uma das definidoras de nossa forma de operar concei-
tualmente. A sexualidade era identificado à força instintiva, bio-
lógica e, assim, não merecia ser historicizada. Este era o lugar
que tinha não apenas no marxismo, mas no imaginário ociden-
tal.
2) Esta incorporação, portanto, não se deu sem maiores
complicações. Porque a entrada dos temas feministas em cam-
pos epistemológicos masculinos provocou muitas desestabiliza-
ções e, mesmo, rupturas, a despeito das muitas permanências.
Os conceitos se mostravam estreitos demais para pensar a difer-
ença, aliás, masculinos, muitas vezes misóginos, precisavam ser
transformados, abandonados, questionados, refeitos. Como
lembra Elizabeth Grosz, não se tratava afinal de um simples es-
quecimento das mulheres de um campo neutro e objetivo de
conhecimentos: “Sua amnésia é estratégica e serve para assegurar as
bases patriarcais do conhecimento.”23
Além disso, esta entrada, por
exemplo, no campo do marxismo só foi possível porque este,
ao dar sinais de esgotamento, estava sendo amplamente critica-
do, vários conceitos se mostravam insuficientes, e os marxistas
partiam em busca de renovações conceituais, temáticas, de atua-
lização.24
3) Esta incorporação remete, ainda, a uma outra questão: a
que vem uma epistemologia feminista? Para que necessitamos
de uma nova ordem explicativa do mundo? Para melhor contro-
lar o pensamento e o mundo? Uma nova ordem das regras para
23 Elizabeth Grosz - “Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of
Reason”, in L.Alcoff e E.Potter, op.cit. p.206.
24 Veja-se a propósito Donna Haraway - “Saberes Localizados: a questão da
ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. UNICAMP,
Cadernos PAGU, no.5, 1995, P.14.
34
Epistemologia feminista, gênero e história
trazer poder político a um setor que se sente excluído? Sandra
Harding pergunta, então, ao lado de muitas outras feministas, se
não estaría-mos correndo o risco de repor o tipo de relação po-
der-saber que tanto criticamos:
“Como é que o feminismo pode redefinir totalmente a relação entre sa-
ber e poder, se ele está criando uma nova epistemologia, mais um conjunto
de regras para controlar o pensamento?”25
É possível contra-argumentar lembrando que não há como
fugir ao fato de que todas as minorias relativamente organiza-
das, e não apenas as mulheres, estão reivindicando uma fatia do
bolo da ciência e que nenhum dos grupos excluídos, - negros,
africanos, orientais, homossexuais, mulheres, com suas pro-
postas de epistemologias alternativas - feminista, terceiro mun-
dista, homossexual, operária - pode hoje reivindicar um lugar de
hegemonia absoluta na interpretação do mundo. Além disso, há
que se reconhecer as dimensões positivas da quebra das con-
cepções absolutizadoras, totalizadoras, que até recentemente
poucos percebiam como autoritárias, impositivas e hierarqui-
zantes. Não há dúvidas de que o modo feminista de pensar
rompe com os modelos hierárquicos de funcionamento da ciên-
cia e com vários dos pressupostos da pesquisa científica. Se a
crítica feminista deve “encontrar seu próprio assunto, seu próprio siste-
ma, sua própria teoria e sua própria voz,” como diz Showalter, é pos-
sível dizer que as mulheres estão construindo uma linguagem
nova, criando seus argumentos a partir de suas próprias pre-
missas.26
25 Sandra Harding - “A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Fe-
minista”, in Revista de Estudos Feministas, vol.1, no.1, 1993, Rio de Janeiro
CIEC/ECO/UFRJ, p.19.
26 Elaine Showalter - “A crítica feminista no território selvagem”, in Heloísa
35
Epistemologia feminista, gênero e história
Vamos dizer que podemos pensar numa epistemologia femi-
nista, para além do marxismo e da fenomenologia, como uma
forma específica de produção do conhecimento que traz a mar-
ca especificamente feminina, tendencialmente libertária, eman-
cipadora. Há uma construção cultural da identidade feminina,
da subjetividade feminina, da cultura feminina, que está eviden-
ciada no momento em que as mulheres entram em massa no
mercado, em que ocupam profissões masculinas e em que a cul-
tura e a linguagem se feminizam. As mulheres entram no espa-
ço público e nos espaços do saber transformando inevitavel-
mente estes campos, recolocando as questões, questionando,
colocando novas questões, transformando radicalmente. Sem
dúvida alguma, há um aporte feminino/ista específico, dife-
renciador, energizante, libertário, que rompe com um en-
quadramento conceitual normativo. Talvez daí mesmo a dificul-
dade de nomear o campo da epistemologia feminista.
Vejamos alguns aspectos desse aporte: o questionamento da
produção do conhecimento entendida como processo racional
e objetivo para se atingir a verdade pura e universal, e a busca
de novos parâmetros da produção do conhecimento. Aponta,
então, para a superação do conhecimento como um processo
meramente racional: as mulheres incorporam a dimensão subje-
tiva, emotiva, intuitiva no processo do conhecimento, questio-
nando a divisão corpo/mente, sentimento/razão. Simmel já fi-
zera esta observação, em 1902, ao indagar sobre as possíveis
contribuições da “Cultura Feminina” num mundo masculino, e
Helen Longino complementa:
“Em busca de parâmetros (groundings) conceituais e filosóficos alterna-
Buarque de Hollanda (org.) - Tendências e impasses. O Feminismo como Crí-
tica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.29.
36
Epistemologia feminista, gênero e história
tivos, muitos pensadores abraçaram modos de análise que rejeitam a dico-
tomização entre razão e paixão, entre saber e sentimento.”27
Para ela, o pensamento feminista trouxe a subjetividade
como forma de conhecimento. “We all see feelingly”, afirma,
o que se opõe radicalmente ao ideal de conhecimento objetivo
trazido das Ciências Naturais para as Ciências Humanas. En-
trando num mundo masculino, possuído por outros, a mulher
percebe que não detém a linguagem e luta por criar uma, ou
ampliar a existente: aqui se encontra a principal fonte do aporte
feminista à produção do conhecimento, à construção de novos
significados na interpretação do mundo.
Portanto, o feminismo propõe uma nova relação entre te-
oria e prática. Delineiase um novo agente epistêmico, não iso-
lado do mundo, mas inserido no coração dele, não isento e im-
parcial, mas subjetivo e afirmando sua particularidade. Ao con-
trário do desligamento do cientista em relação ao seu objeto de
conhecimento, o que permitiria produzir um conhecimento
neutro, livre de interferências subjetivas, clama-se pelo envolvi-
mento do sujeito com seu objeto. Uma nova idéia da produção
do conhecimento: não o cientista isolado em seu gabinete, tes-
tando seu método acabado na realidade empírica, livre das emo-
ções desviantes do contato social, mas um processo de conheci-
mento construído por individuos em interação, em diálogo crí-
tico, contrastando seus diferentes pontos de vista, alterando
suas observações, teorias e hipóteses, sem um método pronto.
Reafirma-se a idéia de que o caminho se constrói caminhando e
interagindo.
27 G. Simmel - “Cultura Feminina”, in Filosofia do amor. Rio de Janeiro:
Martins Fontes, 1993; Helen Longino, idem, p.20.
37
Epistemologia feminista, gênero e história
Defendendo o relativismo cultural, questiona também a
noção de que este conhecimento visa atingir a verdade pura,
essencial. Reconhece a particularidade deste modo de pensa-
mento e abandona a pretensào de ser a única possibilidade de
interpretação. Concordando com Sandra Harding: “Uma forma
de resolver o dilema seria dizer que a ciência e a episte-mologia feministas
terão um valor próprio ao lado, e fazendo parte integrante, de outras ciên-
cias e epistemologias - jamais como superiores às outras.”(p.23)
Enfatiza a historicidade dos conceitos e a co-existência
de temporalidades múltiplas. Nesta direção, a historiadora
Maria Odila Leite da Silva Dias mostra a confluência das ten-
dências historiográficas contemporâneas com as inquietações
feministas; defendendo a “instabilidade das categorias feminis-
tas” (Sandra Harding), fala em hermenêutica crítica e no histo-
rismo:
“a historiografia feminista segue os mesmos parâmetros (que a descons-
trução de Derrida, a arqueologia da Foucault, a teoria crítica marxista, a
história social e conceitual dos historistas alemães, a historiografia das
mentalidades), pois tem seu caminho metodológico aberto para a possibili-
dade de construir as diferenças e de explorar a diversidade dos papéis infor-
mais femininos.”28
Os estudos feministas inovam, então, na maneira como tra-
balham com as multiplicidades temporais, descartando a idéia
de linha evolutiva inerente aos processos históricos.
28 Maria Odila Leite da Silva Dias - “Teoria e método dos estudos feministas:
perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano”, in Al-bertina de O. Costa
e Cristina Bruschini (orgs.) - Uma questão de gê-nero. RJ.: Editora Rosa dos
Tempos/SP: Fundação Carlos Chagas, p.49.
38
Epistemologia feminista, gênero e história
Feminismo
e História
Seria interessante, por fim, pensar como os deslocamentos
teóricos produzidos pelo feminismo têm repercutido na pro-
dução historiográfica. A emergência de novos temas, de novos
objetos e questões, especialmente ao longo da década de seten-
ta deu maior visibilidade às mulheres enquanto agentes históri-
cos, incialmente a partir do padrão masculino da História So-
cial, extremamente preocupada com as questões da resistência
social e das formas de dominação política.29
Este quadro am-
pliou-se, posteriormente, com a explosão dos temas femininos
da Nouvelle Histoire, como bruxaria, prostituição, loucura,
aborto, parto, maternidade, saúde, sexualidade, a história das
emoções e dos sentimentos, entre outros.
É claro que muitos discordarão da divisão sexual dos temas
históricos acima proposta, já que há muitas outras dimensões
implicadas na ampliação do leque temático, principalmente a
crise da “historiografia da Revolução” e a redescoberta da Es-
cola dos Annales. Entretanto, poucos poderão negar que a en-
trada desses novos temas se fêz em grande parte pela pressão
crescente das mulheres, que invadiram as universidades e cria-
29 Margareth Rago - “As mulheres na Historiografia Brasileira”, in Zélia Lo-
pes (org.)- A história em debate, SP: Editora da UNESP, 1991.
39
Epistemologia feminista, gênero e história
ram seus próprios núcleos de estudo e pesquisa, a partir dos
anos setenta. Feministas assumidas ou não, as mulheres forçam
a inclusão dos temas que falam de si, que contam sua própria
história e de suas antepassadas e que permitem entender as ori-
gens de muitas crenças e valores, de muitas práticas sociais fre-
quentemente opressivas e de inúmeras formas de desclassifi-
cação e estigmatização. De certo modo, o passado já não nos
dizia e precisava ser re-interrogado a partir de novos olhares e
problematizações, através de outras categorias interpretativas,
criadas fora da estrutura falocêntrica especular.
A descoberta da origem da “mãe moderna” a partir do mo-
delo rousseauísta, proposta por Elisabeth Badinter, por exem-
plo, foi fundamental para se reforçar o questionamento do pa-
drão de maternidade que havia vigorado inquestionável até os
anos 60 e reforçar a luta feminista pela conquista de novos di-
reitos; a genealogia dos conceitos da prostituição, da homosse-
xualidade e da perversão sexual, entre outros, foi extremamente
importante enquanto reforçava a desconstrução prática das inú-
meras formas de normatização.30
A história do corpo feminino
trouxe à luz as inúmeras construções estigmatizadoras e misógi-
nas do poder médico, para o qual a constituição física da mul-
her por si só inviabilizaria sua entrada no mundo dos negócios
e da política. O questionamento das mitologias científicas sobre
sua suposta natureza, sobre a questão da maternidade, do corpo
e da sexualidade foi fundamental em termos da legitimação das
transformações libertadoras em curso.
O campo das experiências históricas consideradas dignas de
30 Vejam-se as discussões de Jurandir Freire Costa - “O referente da identida-
de homossexual”, in Richard Parker e Regina M. Barbosa (orgs.) - Sexualida-
des brasileiras. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
40
Epistemologia feminista, gênero e história
serem narradas ampliou-se consideravelmente e juntamente
com a emergência dos novos temas de estudo, isto é, com a vi-
sibilidade e dizibilidade que ganharam inúmeras práticas sociais,
culturais, religiosas, antes silenciadas, novos sujeitos femininos
foram incluídos no discurso histórico, partindo-se inicialmente
das trabalhadoras e militantes, para incluir-se, em seguida, as
bruxas, as prostitutas, as freiras, as parteiras, as loucas, as do-
mésticas, as professoras, entre outras. A ampliação do conceito
de cidadania, o direito à história e à memória não se processa-
vam apenas no campo dos movimentos sociais, passando a ser
incorporados no discurso, ou melhor, no próprio âmbito do
processo da produção do conhecimento.
Para tanto, novos conceitos e categorias tiveram de ser in-
troduzidos a partir das perguntas levantadas pelo feminismo e
dos deslocamentos teóricos e práticos provocados. Por que se
privilegiavam os acontecimentos da esfera pública e não os
constitutivos de uma história da vida privada? Por que se des-
prezava a cozinha, em relação à sala, e a casa em relação à rua?
Onde uma história dos segredos, das formas de circulação e co-
municação femininas, das fofocas, das redes interativas cons-
truídas nas margens, igualmente fundamentais para a constru-
ção da vida em sociedade? Quais as possibilidades de uma His-
tória no feminino? Não apenas a história das mulheres, mas a
história contada no registro feminino?31
Neste contexto, ficou evidente a precariedade e estreiteza do
instrumental conceitual disponível para registrar as práticas
31 Tânia Navarro Swain - “Feminino/Masculino no Brasil do século XVI: um
estudo historiográfico”,1995, (mimeo); Maria Izilda S. de Mattos e Fernando
A. de Faria - Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues: O Feminino, O Mas-
culino e Suas Relações. RJ: Bertrand Brasil, 1996.
41
Epistemologia feminista, gênero e história
sociais que passavam a ser percebidas, embora existentes desde
sempre. Para o historiador formado na tradição marxista, espe-
cialista na recuperação histórica das lutas sociais e da domina-
ção de classes, como falar das práticas desejantes, com que con-
ceitos poderia construir uma história do amor, da sexualidade,
do corpo ou do medo? Como trabalhar a questão da religiosida-
de e das reações diante da vida e da morte?
No casos dos estudos feministas, o sucesso da categoria do
gênero se explica, em grande parte, por ter dado uma resposta
interessante ao impasse teórico existente, quando se questiona-
va a lógica da identidade e se decretava o eclipse do sujeito. Ca-
tegoria relacional, como observa Joan Scott, encontrou campo
extremamente favorável num momento de grande mudança das
referências teóricas vigentes nas Ciências Humanas, e em que a
dimensão da Cultura passava a ser privilegiada sobre as de-
terminações da Sociedade. Assim como outras correntes de
pensamento, a teoria feminista propunha que se pensasse a
construção cultural das diferenças sexuais, negando radicalmen-
te o determinismo natural e biológico. Portanto, a dimensão
simbólica, o imaginário social, a construção dos múltiplos senti-
dos e interpretações no interior de uma dada cultura passavam
a ser priorizados em relação às explicações econômicas ou polí-
ticas.
Em termos da historiografia, estas concepções se aproxi-
mam das formuladas pela História Cultural. Esta põe em evi-
dência a necessidade de se pensar o campo das interpretações
culturais, a construção dos inúmeros significados sociais e cul-
turais pelos agentes históricos, as práticas da representação, dei-
xando muito claro que o predomínio prolongado da História
Social, de tradição marxista, secundarizou demais o campo da
42
Epistemologia feminista, gênero e história
subjetividade e da dimensão simbólica. Exceção feita a E.P.
Thompson, que aliás se tornou extremamente famoso apenas
na década de oitenta, grande parte dos estudos históricos de
tendência marxista mantinham-se presos ao campo da política e
da economia, este sendo considerado o “lugar do real” e da in-
teligibilidade da história. Apenas nas últimas décadas, passou-se
a falar incisivamente em imaginário social, nas representações
sociais, em subjetividade e, para tanto, a História precisou bus-
car aproximações com a Antropologia, a Psicanálise e a Litera-
tura. Além disso, na medida em que o discurso passou a ser do-
tado de positividade, os historiadores também perceberam que
era inevitável interrogar o próprio discurso e dimensionar suas
formas narrativas e interpretativas.
Em relação aos estudos feministas, e a despeito das inúme-
ras polêmicas em curso, vale notar que a categoria do gênero
abre, ainda, a possibilidade da constituição dos estudos sobre
os homens, num campo teórico e temático bastante renovado
e radicalmente redimensionado. Após a “revolução feminista” e
a conquista da visibilidade feminina, após a constituição da área
de pesquisa e estudos feministas, consagrada academicamente
em todo o mundo, os homens são chamados a entrar, desta vez,
em um novo solo epistêmico. É assim que emergem os estudos
históricos, antropológicos, sociológicos - interdisciplinares - so-
bre a masculinidade, com enorme aceitação. Cada vez mais,
portanto, crescem os estudos sobre as relações de gênero, sobre
as mulheres, em particular, ao mesmo tempo em que se consti-
tui uma nova área de estudos sobre os homens, não mais perce-
bidos enquanto sujeitos universais.
Sem dúvida alguma, os resultados das inúmeras perspectivas
abertas têm sido dos mais criativos e instigantes. O olhar femi-
43
Epistemologia feminista, gênero e história
nista permite reler a história da Colonização no Brasil, no sécu-
lo 16, a exemplo do que realiza a historiadora Tânia Navarro
Swain, desconstruindo as imagens e representações construídas
pelos viajantes sobre as formas de organização dos indígenas,
sobre a sexualidade das mulheres, supostamente fogosas e pro-
míscuas, instituindo sua amoralidade. Num excelente trabalho
genealógico, a historiadora revela como os documentos foram
apropriados e reinterpretados pela historiografia masculina,
através de conceitos extremamente misóginos, cristalizando-se
imagens profundamente negativas a respeito dos primeiros ha-
bitantes da terra, considerados para sempre incivilizados e inca-
pazes de cidadania.
Já Maria Izilda Matos e Fernando A. Faria, estudando as
composições musicais de Lupicínio Rodrigues, a partir da cate-
goria do gênero, descortinam as formas de construção cultural
das referências identitárias da feminilidade e da masculinidade,
nas décadas de quarenta e cinquenta, dominantes até recente-
mente. A partir da análise das letras de músicas produzidas pelo
famoso compositor gaúcho, podem visualizar não apenas as ex-
periências femininas, mas “seu universo de relações com o
mundo masculino”, numa proposta bastante enriquecedora e
inovadora.
44
Epistemologia feminista, gênero e história
Finalizando...
As possibilidades abertas para os estudos históricos pelas
teorias feministas são inúmeras e profundamente instigantes: da
descontrução dos temas e interpretações masculinos às novas
propostas de se falar femininamente das experiências do coti-
diano, da micro-história, dos detalhes, do mundo privado, rom-
pendo com as antigas oposições binárias e de dentro, buscando
respaldo na Antropologia e na Psicanálise, incorporando a di-
mensão subjetiva do narrador.
Na historiografia feminista, vale notar, a teoria segue a
experiência: esta não é buscada para comprovar aquela, aprio-
risticamente proposta. Opera-se uma deshierarquização dos
acontecimentos: todos se tornam passíveis de serem historiciza-
dos, e não apenas as ações de determinados sujeitos sociais, se-
xuais e étnicos das elites econômicas e políticas, ou de outros
setores sociais, como o proletariado-masculino-branco, tido co-
mo sujeito privilegiado por longo tempo, na produção acadêmi-
ca. Aliás, as práticas passam a ser privilegiadas em relação aos
sujeitos sociais, num movimento que me parece bastante de-
mocratizador. Assim, e como diria Paul Veyne, o que deve ser
privilegiado pelo historiador passa a ser dado pela temática que
ele recorta e constrói, e não por um consenso teórico exterior à
problemática, como acontecia antes quando se trabalhava com
o conceito de modo de produção, por exemplo, ou ainda, quan-
45
Epistemologia feminista, gênero e história
do a preocupação maior com o passado advinha de suas possi-
bilidades em dar respostas à busca da Revolução. A realidade já
não cede à teoria.
Enfim, parece que já não há mais dúvidas de que as mulhe-
res sabem inovar na reorganização dos espaços físicos, sociais,
culturais e aqui, pode-se complementar, nos intelectuais e cien-
tíficos. E o que me parece mais importante, sabem inovar liber-
tariamente, abrindo o campo das possibilidades interpretativas,
propondo múltiplos temas de investigação, formulando novas
problematizações, incorporando inúmeros sujeitos sociais,
construindo novas formas de pensar e viver.
46
Epistemologia feminista, gênero e história
Descobrindo
historicamente
o gênero
47
Epistemologia feminista, gênero e história
48
Epistemologia feminista, gênero e história
Em julho de 1990, logo após defender o doutorado com um
trabalho sobre a história da prostituição no Brasil, participei de
um encontro feminista em Nova York, onde ouvi, pela pri-
meira vez, as discussões em torno das relações de gênero. Os
gender studies já estavam a todo vapor naquele país e a con-
trovérsia em torno da “história das mulheres”, ou do “estudo
das relações de gênero”, parecia superada em favor do último.
No Brasil, iniciamos em seguida – Adriana Piscitelli, Elisa-
beth Lobo, Mariza Corrêa e eu – um grupo de estudos do gêne-
ro, com o firme propósito de constituirmos futuramente um
núcleo de pesquisa. A idéia foi reforçada pela participação no
seminário “Uma Questão de Gênero”, realizado num hotel-fa-
zenda próximo a Itu, em São Paulo. Aí reuniram-se intelectuais
feministas de todo o país, algumas vindas do exterior, debaten-
do em altíssimo nível as novas propostas epistemológicas do fe-
minismo. Heleieth Saffioti, Celi Pinto, Eva Blay, Maria Luiza
Heilborn, Eleonora Menicucci de Oliveira, Albertina de Olivei-
ra Costa, Cristina Bruschini, Elisabeth Lobo, Lia Zanotta, Lena
Levinas eram algumas das brilhantes acadêmicas presentes. Não
tardamos a criar na Unicamp o Núcleo de Estudos do Gênero
Pagu, nome, aliás, sugerido por Elisabeth Lobo. A partir do ano
seguinte, organizamos seminários, palestras, discussões, fizemos
planos e mais planos, criamos, enfim, um espaço destinado a
pesquisar assuntos ligados inicialmente à feminilidade e poste-
49
Epistemologia feminista, gênero e história
riormente à masculinidade, para o qual se integraram várias ou-
tras intelectuais prestigiadas, como a antropóloga Suely Koffes
e a socióloga Ana Maria Goldani. Iniciamos a publicação de
uma revista e o Cadernos Pagu não tem cessado de se difundir.
Construção social e cultural das diferenças sexuais, assim se
definiu o “gênero”, categoria que trazia muito desconforto para
todas nós pelo desconhecimento que a cercava. Afinal, estáva-
mos acostumadas, principalmente as historiadoras e sociólogas,
a lidar com conceitos acabados como classe, informados por
todo um sistema de pensamento extremamente articulado e,
nesse contexto, o gênero aparecia solto, meio que caído do
Norte para nos explicar a nós mesmas. Creio que a experiência
das antropólogas nos servia também como uma importante re-
ferência, pela maneira menos estruturada de olhar e trabalhar.
A perplexidade foi sendo progressivamente vencida à medi-
da em que nos inteirávamos de que esta também era uma cate-
goria relativamente recente nos países do Primeiro Mundo, sen-
do que, na França, muitas feministas se recusavam a incorporá-
la. De qualquer maneira, tornou-se obrigatória a leitura da his-
toriadora norte-americana Joan W. Scott, que felizmente já era
respeitada nos meios acadêmicos masculinos por suas pesquisas
anteriores na área de trabalho e movimentos sociais.32
Esse respaldo foi extremamente importante para referen-dar
uma posição absolutamente nova e desafiadora em nossas ins-
tituições tão cristalizadas. Aos poucos, o sucesso da categoria
por todo o país repercutiu vigorosamente em nossas próprias
práticas, facilitando a valorização do trabalho das intelectuais
32 Refiro-me a Scott, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, 16(2): 5-22, jul/dez de 1990.
50
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
feministas, nem sempre bem vistas, como sabemos. A risadinha
deu espaço à curiosidade e, aos poucos, os antropólogos, histo-
riadores e sociólogos, e não apenas algumas intelectuais, passa-
ram a pensar na importância da sexualização do discurso histo-
riográfico. O feminismo saía do gueto e irradiava seus fluidos
mornos e positivos pela academia.
É bem verdade que a entrada das mulheres nos círculos uni-
versitários já vinha produzindo uma certa feminização do espa-
ço acadêmico e das formas da produção dos saberes. Em outras
palavras, desde os anos setenta, as mulheres entravam maciça-
mente nas universidades e passavam a reivindicar seu lugar na
História. Juntamente com elas, emergiam seus temas e proble-
matizações, seu universo, suas inquietações, suas lógicas dife-
renciadas, seus olhares desconhecidos. Progressivamente, a cul-
tura feminina ganhou visibilidade, tanto pela simples presença
das mulheres nos corredores e nas salas de aula, como pela pro-
dução acadêmica que vinha à tona. Histórias da vida privada, da
maternidade, do aborto, do amor, da prostituição, da infância e
da família, das bruxas e loucas, das fazendeiras, empresárias, en-
fermeiras ou empregadas domésticas, fogões e panelas invadi-
ram a sala e o campo de observação intelectual ampliou-se con-
sideravelmente. O mundo acadêmico ganhava, assim, novos
contornos e novas cores.
Da história das mulheres passamos repentinamente a falar
na categoria do gênero, entre as décadas de 1980 e 1990. Uma
imensa literatura abriu-se, então, para nós: as pósestruturalistas,
com Derrida e Foucault à frente, dissolvendo os sujeitos e
apontando para a dimensão relacional da nova categoria; as
marxistas, procurando integrar rapidamente a nova categoria
em seu sistema de pensamento, sempre muito preocupadas em
51
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
garantir o lugar outrora hegemônico e agora compartilhado do
conceito de classe. Era como se nos dissessem: “tudo bem,
pensaremos as relações sexuais, mas desde que respeitemos que
a divisão social é mais importante do que a sexual.” As hierar-
quias eram, então, rapidamente repostas. E, finalmente, acena-
vam as psicólogas, com suas propostas e interpretações, mais li-
gadas às questões da maternidade e da crítica ao patriarcado.
Progressivamente, as feministas ortodoxas, que relutavam
em aceitar a reviravolta epistemológica em curso, por deslocar o
foco do “sujeito mulher” para a análise das relações de gênero,
questionavam o embaralhamento das identidades sexuais, apon-
tando para a importância de se preservar a identidade feminina
como forma de reforçar a agenda pública feminista e enca-
minhar as lutas políticas atuais.
De qualquer forma, foi ficando muito claro que vivíamos
uma profunda mutação no campo do conhecimento e que esta
não provinha apenas das problematizações levantadas pelo fe-
minismo. De vários lados, do “pensamento da diferença”, da
psicanálise, do novo historicismo, entre outras correntes críticas
do pensamento, emergia a crítica à razão, ao sujeito universal e
à lógica da identidade. O deslocamento do sujeito, a dissolução
e historicização das identidades, a desnaturalização de inúmeras
dimensões da vida social, cultural e sexual, um novo olhar se
construía. Foucault preparara o terreno radicalmente, ao ques-
tionar a naturalização do sujeito e as objetivações operadas pe-
las práticas discursivas dominantes. O filósofo francês apontava
para a maneira profundamente ahistórica com que trabalháva-
mos sujeitos e objetos, denunciando a ilusão de que éramos ví-
timas ao falarmos do sujeito universal, tomado por personagem
não apenas “de carne e osso”, mas de quem tudo emanava. Lo-
52
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
go, as feministas avançaram a crítica questionando a figura do
sujeito unitário, racional, masculino que se colocava como re-
presentante de toda a humanidade. As mulheres, portanto, não
tinham história, absolutamente excluídas pela figura divina do
Homem, que matara a Deus para se colocar em seu lugar.
Passamos, então, a perceber o deslocamento que se operava
de uma forma de pensamento “arborescente”, “pivotante”, co-
mo diz Deleuze, fundado no privilégio do sujeito e, portanto,
construído a partir da lógica da identidade, para as possibilida-
des de um pensamento relacional e diferencial, ou “rizomático”,
como propõe este.33
Trata-se, nessa referência, de perceber que
as subjetividades são históricas e não naturais, que os sujeitos
estão nos pontos de chegada e não de partida como acreditáva-
mos então; e ainda, que as conexões podem ser estabelecidas
entre campos, áreas, dimensões sem necessidade exterior préde-
terminada. Mulher e Homem, Criança, ou Trabalhadora, Pros-
tituta, Louca, nesse sentido, deveriam deixar de ser pensados
como naturezas biologicamente determinadas, aspecto que se
observa em todas as outras construções de identidade. A pró-
pria noção de identidade era historicizada e questionada junta-
mente com a ilusão da interioridade e da essência que a infor-
mava. A figura do sujeito tal como a pensamos era definitiva-
mente destruída, porque puramente ficcional. E passamos a re-
conhecer a reposição da mesma figura do sujeito em toda a par-
te, disfarçada, como diria Deleuze, por seu próprio nome.34
33 Sobre o pensamento arborescente e o rizomático, veja-se Deleuze, G. e
Guattari, F. Mil Platôs. São Paulo, Editora 34, 1996.
34 G. Deleuze e F. Guattari afirmam que escreveram o livro a dois, mas como
cada um são muitos, o livro foi feito por várias pessoas. Contudo, pensaram
que seria conveniente manter seus próprios nomes, porque esta seria a melhor
53
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
Há, ainda hoje, uma enorme resistência, sobretudo por parte
dos intelectuais de tradição marxista, ortodoxa e heterodoxa,
para entenderem a dissolução do sujeito operada por Foucault.
Não se trata, nessa lógica, de negar a existência dos seres
humanos e de suas práticas, como muitos afirmam, e muito me-
nos de encerrá-los nas grades disciplinares, atando suas capaci-
dades criadoras, mas de denunciar estas formas de prisão que
não se objetivam apenas no espaço carcerário propriamente di-
to. Na perspectiva foucaultiana, é bom lembrar, a identidade é
outra das grades que nos encerra, sobretudo a partir do século
19, assim como os micropoderes da vida cotidiana, com que
convivíamos até então com certa normalidade. O filósofo de-
nuncia a armadilha de que temos sido vítimas ao tomarmos um
modo histórico de produção da subjetividade, marcado funda-
mentalmente pela dimensão da sujeição na sociedade burguesa,
desde fins do século 18, como sendo natural para qualquer mo-
mento histórico. Nessa perspectiva, o indivíduo é uma constru-
ção relativamente recente, assim como o próprio social. E, mui-
to longe do que propõe o Iluminismo enquanto emancipação
do homem pela razão, temos nos abrigado sob os braços do Pai
ou da Mãe, do Médico ou do Diretor espiritual, da Autoridade,
enfim, ao invés de nos autonomizarmos pelo uso prático da
própria capacidade reflexiva. Comparando os vitorianos aos an-
tigos gregos e ainda aos romanos dos inícios da era cristã, Fou-
cault evidencia diferentes modos de subjetivação e de sujeição
ao longo da História. Com isso, propõe, para além das proble-
matizações em torno de nossas imagens do poder e da produ-
ção da verdade, uma história crítica dassubjetividades, o que
maneira de passarem despercebidos. Id., ib., p.11.
54
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
sem dúvida ainda está em grande parte por ser feito.35
Na área dos estudos feministas, a convergência das proble-
matizações é evidente, muito embora a preocupação central,
neste caso, seja a de questionar a dominação masculina consti-
tutiva das práticas discursivas e não-discursivas, das formas de
interpretação do mundo dadas como únicas e verdadeiras. As
mulheres reivindicam a construção de uma nova linguagem, que
revele a marca específica do olhar e da experiência cultural e
historicamente constituída de si mesmas. Mais do que a in-
clusão das mulheres no discurso histórico, trata-se, então, de
encontrar as categorias adequadas para conhecer os mundos fe-
mininos, para falar das práticas das mulheres no passado e no
presente e para propor novas possíveis interpretações inima-
gináveis na ótica masculina. Mais recentemente, a discussão se
volta para os próprios homens, também eles excluídos dos cam-
pos históricos em benefício da figura ficcional do Homem,
construído à imagem de Deus. Deixando de lado a polêmica re-
lativa à divisão de espaços que os estudos da masculinidade co-
locam, não há dúvida de que também os homens se descobrem
profundamente estrangeiros para si mesmos, ocultos que esta-
vam numa interpretação que os elevava à categoria de deuses.
A categoria do gênero permitiu, portanto, sexualizar as ex-
periências humanas, fazendo com que nos déssemos conta de
que trabalhávamos com uma narrativa extremamente dessexua-
lizadora, pois embora reconheçamos que o sexo faz parte cons-
titutiva de nossas experiências, raramente este é incorporado
35 Veja-se a respeito a brilhante tese de doutoramento de Prado Filho, Kleber.
Trajetórias para a leitura de uma história crítica das subjetividades na produ-
ção intelectual de Michel Foucault, defendida no Depto. de Sociologia da
USP, 1998.
55
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
enquanto dimensão analítica. É claro que não estou me refe-
rindo apenas à importância dos estudos da sexualidade, como a
história do amor, das práticas sexuais, da prostituição ou da ho-
mossexualidade. Muito mais do que isto, penso na dimensão se-
xual que constitui nossa subjetividade e que habita nossas prá-
ticas cotidianas, muito além das relações especificamente se-
xuais, como as entendemos. Uma partilha cultural que se tem
até recentemente considerado como fundamental entre o uni-
verso masculino e o feminino, separando os corpos e opondo-
os entre si. Ao mesmo tempo o desejo é pouco pensado e pro-
blematizado em nossos estudos, mesmo porque temos ainda
operado com categorias pouco flexíveis que dão conta de al-
gumas dimensões das relações sociais, muito mais racionais do
que emocionais, psíquicas, intuitivas, sentimentais e afetivas, o
que sem dúvida empobrece demais a experiência humana.
A categoria do gênero permitiu nomear campos das práticas
sociais e individuais que conhecemos mal, mas que intuímos de
algum modo. “O que escapa às classificações”, como diz Luce
Fabbri, no livro O Caminho, de 1952, em que define sua leitura
do anarquismo. Fundamentalmente, passamos a perceber que o
universo feminino é muito diferente do masculino, não simples-
mente por determinações biológicas, como propôs o século 19,
mas sobretudo por experiências históricas marcadas por valo-
res, sistemas de pensamento, crenças e simbolizações diferen-
ciadas também sexualmente.
O gênero tornou-se um instrumento valioso de análise que
permite nomear e esclarecer aspectos da vida humana com que
vínhamos trabalhando, impulsionados pela pressão dos pró-
prios documentos históricos. Para esclarecer, cito um exemplo
em minha experiência de pesquisa. Tendo encontrado roman-
56
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
ces femininos que falavam da prostituição já nos anos vinte em
São Paulo, observei as diferenças de interpretação do fenôme-
no pelo olhar masculino e pelo feminino. Ao contrário dos ro-
mances masculinos, em que as prostitutas morrem ou se rege-
neram indo viver no campo, a exemplo de Naná, de Emile Zo-
la, ou Lucíola, de José de Alencar, Laura Villares, em Vertigem,
romance de 1926, leva sua heroína, que se prostitui em São
Paulo e em Buenos Aires, ao ser recusada pelo noivo na cidade-
zinha do interior, a tornar-se rica e independente em Paris. A
cena final do romance se passa às margens do Sena, onde ela
circula alegremente, bonita e feliz. Encontrando-se com o anti-
go noivo, que a convida para jantar, responde perguntando-lhe
por sua esposa. Ao desvencilhar-se do pretendente, pensa con-
sigo mesma que havia escapado da situação estar no lugar da-
quela, presa num quarto de hotel, enquanto o marido seduzia
outras mulheres. Sorri satisfeita consigo mesma. A prostituição,
nesse imaginário, está associada à idéia da liberação feminina, já
que a cocotte se civiliza via o comércio do corpo, passa a cir-
cular nos espaços da sociabilidade das elites, enriquece-se pes-
soal e financeiramente e descobre-se enquanto mulher, o que
quer dizer, descobre o prazer sexual, o amor e o orgasmo.
Apesar do romantismo e da ingenuidade desta leitura, foi-se
tornando claro que as mulheres têm leituras do mundo bastante
diferenciadas das dos homens, que agenciam o espaço de outra
maneira, que o recortam a partir de uma perspectiva particular e
que não tínhamos até então instrumentos conceituais para nos
reportarmos a essas diferenciações. Ao mesmo tempo, parece-
me um grande avanço podermos abrir novos espaços para a
emergência de temas não pensados, de campos não problemati-
zados, de novas formas de construção das relações sociais não
57
Descobrindo historicamente o gênero
Epistemologia feminista, gênero e história
imaginadas pelo universo masculino. Sem incorrer na ilusão de
que as mulheres vêm libertar o mundo, acredito que a pluraliza-
ção possibilitada pela negociação entre os gêneros é fundamen-
tal não só para a construção de um novo pacto ético, mas para
a própria construção de um ser humano menos fragmentado
entre um lado supostamente masculino, ativo e racional e outro
feminino, passivo e emocional. A superação da lógica binária
contida na proposta da análise relacional do gênero, nessa dire-
ção, é fundamental para que se construa um novo olhar aberto
às diferenças.
Entendo também que a categoria do gênero não vem subs-
tituir nenhuma outra, mas atende à necessidade de ampliação de
nosso vocabulário para darmos conta da multiplicidade das
dimensões constitutivas das práticas sociais e individuais. Neste
caso, a dimensão sexual. O sexo participou indubitavelmente e
de forma central na construção histórica de nossa identidade
pessoal e coletiva, especialmente no Brasil, mas foi por muito
tempo colocado à margem na leitura das práticas sociais. A des-
construção dos mitos fundadores, acredito, passa pela leitura do
gênero de sua própria produção, ao lado de outras dimensões, é
claro. Mas, fundamentalmente, é importante que possamos per-
ceber a construção das diferenças sexuais histórica e cultural-
mente determinada, desnaturalizando portanto as representa-
ções cristalizadas no imaginário social. E isto não só na leitura
do passado, mas na própria construção de formas mais liber-
tárias de convivência no presente. A amizade só é possível entre
iguais, explica Maquiavel, e as negociações entre grupos sociais,
étnicos ou sexuais só podem ser feitas desde que o espaço se
deshierarquize e se abra , de modo mais libertário, à entrada das
multiplicidades e de novas subjetividades.
58
Descobrindo historicamente o gênero
Edgar Rodrigues: História do Movimento anarquista no
Brasil. História do Movimento anarquista em
Portugal.
Carme Blanco: Casas anarquistas de Mulleres libertarias.
Maître Simon: Viaxe humorística a través das relixións e
os dogmas. [Edição ilustrada]
Voltairine de Clayre: Desobediência civil. Fundamentos da
ação direta.
Rudolf Rocker: Porque sou anarquista.
Leandro Pita Romero: O anarquista.
Emma Goldman: O indivíduo na sociedade.
Maurice Joyeux: Autogestão, gestão operária, gestão
directa.
Deirdre Hogan: Feminismo, classe e anarquismo.
Emile Pouget: A sabotagem.
Outras publicações da CNT
Todas à venda em edição impresa,
aliás de disponiveis para descarga livre
no web www.cntgaliza.org
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Gênero, trabalho e epistemologia feminista na história

  • 1.
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  • 3.
  • 4. Epistemologia feminista, gênero e história Gênero e história 1
  • 5. Epistemologia feminista, gênero e história Edita: CNT-Compostela, Agosto de 2012 www.cntgaliza.org Primeira edição Coordinação: Secretaria de Imprensa e Comunicação. CNT-Compostela ISBN: 978-84-92428-63-2 Dépósito Legal: C 1523-2012 Imprime: Sacauntos 2 Epistemologia feminista, gênero e história por Margareth Rago encontra-se baixo uma Licença Creative Commons Reconocimiento- NoComercial-SinObraDerivada 3.0 España. Você é livre de copiar, distribuir e comunicar publicamente a obra Baixo as condições seguintes: • Reconhecimento — Deve reconhecer os créditos da obra da maneira especificada pelo autor ou o licenciador (mas não de uma maneira que sugira que tem o seu apoio ou apoiam o uso que faz da sua obra). • Não comercial — Não pode utilizar esta obra para fins comerciais. • Sem obras derivadas — Não se pode alterar, transformar ou gerar uma obra derivada a partir desta obra.
  • 6. Epistemologia feminista, gênero e história Epistemologia feminista, gênero e história Descobrindo historicamente o gênero MARGARETH RAGO 3
  • 8. Epistemologia feminista, gênero e história Índice Mulher, trabalho e anarquismo [Martín Paradelo Núñez] 7 Epistemologia feminista, gênero e história 19 Introduzindo o debate 21 Epistemologia feminista: ensaiando alternativas 24 1.- A crítica feminista 27 2.- O projeto de ciência feminista ou um modo feminista de pensar? 32 Feminismo e história 39 Finalizando... 45 Descobrindo históricamente o gênero 47 5
  • 10. Epistemologia feminista, gênero e história Mulher, trabalho e anarquismo A mulher e o trabalho Pode parece de uma evidência simples, notória e palpável, afirmar que a mulher trabalha. Também que a mulher sempre trabalhou. Mas se perguntamos a uma importantísima massa de gente, não necessariamente vinculada a uma ideologia especial- mente reacionária, ou se revemos milhares de páginas de escri- tos de carácter histórico, independentemente do seu grau de academicismo e de militantismo, semelharia até difícil suster es- ta afirmação. Resulta especialmente suspeitoso, entre os múltiples desaparecimentos do sujeito mulher, este referido ao trabalho. Pensado assim de primeiras, séria muito difícil negar que a mul- her está dotada de capacidade para o trabalho, assim como que também está exposta à necessidade do trabalho. Moldar um dis- curso que negue estas duas afirmações seria quase impossível, estaria abocado mesmo ao ridículo. Sem embargo, não só gran- de parte de qualquer população ou grupo humano, como queira que se delimite este conceito, senão também da historiografia, tendem a negá-las pela via do desaparecimento. 7
  • 11. Epistemologia feminista, gênero e história Com efeito, pode haver várias causas detrás deste facto. Uma delas, e não em último lugar, o facto de manter a exclusi- vidade da actividade produtiva em mãos do homem. Pode pare- cer até evidente que o sujeito que se assalária é o homem, ou que ao menos foi assim até a expansão do industrialismo. Isto nem sempre foi assim, mas faz evidente a necessidade do ho- mem emquanto que recetor dos benefícios do sistema patriar- cal, se bem explorado insensivelmente dentro das confronta- ções de classe, de manter um espaço próprio de poder desde o que manifestar-se imprenscindível e superior. Daí a depreciação da actividade feminina e a separação hierárquica das tarefas en- tre os géneros. Também daí a diferença de valor atribuido (e re- tribuido) a um trabalho levado a cabo por um homem e uma mulher. O trabalho não é uma actividade produtiva sujeita a diferen- tes valores e criador de mais-valia. O trabalho é simplesmente actividade. Este deslocamento do conceito de trabalho exclusi- vamente para um âmbito de contradição de classe é extremada- mente limitado, e se foi de grande importáncia à hora de definir à classe trabalhadora de maneira autónoma e positiva, jogou muito pouco favor para o caminho de emancipação do género humano que o anarquismo ou qualquer pensamento revolucio- nário deveria facilitar. A expansão e consolidação do patriarca- do, como sistema de dominação da mulher pelo homem inde- pendentemente da classe na que se produza, assentou-se, entre outros muitos factores, nesta diferença. O facto de relegar à mulher a uma série de trabalhos consi- derados de inferior categoria dado que não producian mais-va- lia, e portanto não eram pagos, e que não producian nada tangí- vel, portanto era desprezados, obedece a uma lógica da domina- 8 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 12. Epistemologia feminista, gênero e história ção que deve ser analisada e superada. O anarquismo, como sis- tema que procura a emancipação integral de todas as pessoas, deveria ter tido esta situação clara e te-la colocado num lugar fulcral do seu discurso, tanto na sua análise da história como na análise da exploração de uma classe por outra, e o anarco-sindi- calismo, como estrutura desde a que se articula o anarquismo no mundo do trabalho, deveria ter reagido fortemente contra ela e te-la incorporado num lugar ponteiro das suas lutas. Mas veremos que isto não sempre foi assim, às vezes antes ao con- trário. O anarquismo ante o tema da mulher Antes de mais faz-se necessário analisar as posições que o anarquismo manteve nas diversas etapas sobre a própria figura da mulher, o seu papel social e o alcance da emancipação de que devia desfrutar. Não é o objectivo aqui aprofundar demais, senão que simplesmente um revejo pelas grandes figuras e por verdadeiros momentos de importância é revelador da posição que geralmente adotou o anarquismo. Entre os pensadores prévios a que Proudhon conforma-se de maneira definida e positiva um corpus auto-denominado anarquista, e que de maneira importante influiram nele, o que com mas claridade se expressou nesta questão foi Charles Fou- rier. Dentro do seu complexo e deslabazado pensamento, Fou- rier compreendeu que condição fundamental de qualquer pro- cesso de emancipação é que esta se realize em igualdade entre todos os indivíduos, daí a sua insisténcia na necessidade da li- 9 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 13. Epistemologia feminista, gênero e história bertação da mulher para a libertação do homem1 . Fourier foi suficientemente lúzido para perceber a contradição que se dava entre os géneros dentro do trabalho e como a mulher levava a cabo em solitário uma série de actividades diferentes que de- viam ser realizadas em comum para o bem do funcionamento social, como por exemplo todas as relativas aos cuidados. Esta posição era de uma importância excepcional e surpre- ende que não fosse incorporada ao pensamento dos grandes teóricos anarquistas do XIX. Antes ao contrário, a posição de Proudhon será absolutamente reacionária e misógina. Proud- hon nega de maneira radical a igualdade homem-mulher, até o ponto de manifestar a impossibilidade de associação entre um homem e uma mulher, devido às fundamentais diferenças e qualidades de um e de outro2 . O homem sempre é melhor, não há dúvida. Mas Proudhon ainda afina mais e nega toda a capaci- dade de actividade autónoma para as mulheres e todo a tenta- tiva de superação dos róis sexuais aos que é confinada. Para Proudhon uma mulher só pode ser ama de casa ou prostituta3 . Assim, Proudhon, que foi um excelente analista do sistema de autoridade económico, estatista e religioso, e um entusiasta de- 1 “Os progressos sociais e mudanças de período operam-se em razão do progresso das mul- heres cara à liberdade; e as decadéncias da ordem social operam-se em razão do mingua- mento de liberdade das mulheres.” Fourier, Charles, Doctrina social, el falans-terio, Madrid: Jucar, 1980. [As traduções desde as edições espanholas das obras citadas são minhas] 2 “Entre a mulher e o homem pode haver amor, paixão, vínculos de amizade e todo quan- to se queira, mas não há entre eles uma verdadeira sociedade. [...] Por isso, longe de aplau- dir o que hoje se chama emancipação da mulher, inclino-me mais, se houvesse que chegar a tal extremo, a enclausurá-la”. Proudhon, Pierre-Joseph, ¿Que és la propiedad? Barcelona: Folio, 2002. 3 Proudhon, Pierre-Joseph, La pornocracia, Madrid: Huerga & Fierro, 1995 10 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 14. Epistemologia feminista, gênero e história fensor da necessidade de superação desta tripla escravatura com a constituição de uma nova sociedade baseada na igualdade e a liberdade, foi capaz de deixar fora desta igualdade e desta li- berdade à metade da população mundial. A posição de Proud- hon jogou um papel muito importante e supôs a separação en- tre socialismo e feminismo por muitos anos4 Bakunin pela sua parte não prestou especial atenção ao pa- pel social da mulher nen à especificidade da exploração que so- fria. Surpreende que um pensador que mostrou uma clarivi- dência tão absoluta para a percepção de canto havia de autori- tário em qualquer sistema e estrutura, desde o estado à religião e ao próprio conhecimento, não tratasse em profundidade este tema em concreto. A sua ausência no grosso do pensamento de Bakunin não deve ter um carácter especialmente positivo, dada a amplitude com que Bakunin analisou o alcance da autoridade e os sistemas de exploração e repressão. A postura de Kropotkin não melhorou as tendências ante- riores. Kropoktin quase não trata este tema em nenhum lugar, e mesmo surpreende que na sua definição da nova sociedade5 , onde faz explicita referência à divisão do trabalho, reduza esta à divisão entre trabalho intelectual e manual, limite o trabalho a um trabalho exclusivamente produtivo e não faça teimosia nas diferentes tarefas levada a cabo por cada género, como sim tin- ha exposto Fourier. Sem embargo, Kropotkin mesmo negara de certa forma o carácter da mulher como sujeito revolucionário. Na sua chamada a todos os elementos susceptiveis de fazer par- te do processo revolucionário que é o escrito Aos jovens, Kro- potkin revê desde os trabalhadores aos artistas, desde os téc- 4 Beauvoir, Simone de, El segundo sexo, Madrid : Cátedra, 2005. 5 Kropotkin, Piotr La conquista del pan, Barcelona: Júcar, 1977. 11 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 15. Epistemologia feminista, gênero e história nicos aos intelectuais, sem fazer uma só referência à mulher se não é em canto que mãe e companheira, nen uma só referência a um papel activo da mulher no processo de emancipação6 . Isto não nega a presença de destacadas figuras femininas no movimento anarquista de todos os lugares e jogando todos os diversos papéis, como agitadoras, intelectuais, activistas, o que for, mas a sua excepcionalidade, ou quando menos a fortíssima desproporção respeito aos homens, ao menos é significativa, e não só das diferentes repressões padecidas por um e outro gê- nero, dado que é claro que não sempre os homens anarquistas foram cómodos companheiros na emancipação das mulheres anarquistas. Também não quer dizer que estas posições foram únicas nem sempre as dominantes, mas sim manifesta uma mui- to difícil assunção da diferente situação de exploração da mul- her respeito ao homem e da situação de poder do homem res- peito à mulher em qualquer situação social e a necessidade des- ta superação. Mesmo quando se começa incorporar no pensa- mento anarquista, tal vez por influência do anarco-sindicalismo, a necessidade de emancipação da mulher, não se incorpora uma análise especifica desta exploração e da necessidade de incorpo- rá-la em igualdade à luta de libertação do proletariado, e falha- se ao não ver que se as necessidades e as finalidades revolucio- nárias são as mesmas nos sujeitos homem e mulher, não são as mesmas as circunstâncias sociais das que partem. Armand in- 6 Esta é toda quanta palabra dirige Kropotkin às mulheres: “Enquanto que aca- riñades a linda cabeça dessa criatura que dorme nos vossos braços, não pensastes nunca na sorte que lhe aguarda se não mudam as presentes condições da sociedade? Não reflectis so- bre o porvir reservado às vossas irmãs e aos vossos filhos? [...] Desejais que o vosso marido e os vossos filhos estejam sempre à mercede do primeiro adventício que herdara dos seus pais um capital com que poder exprotá-los?”. Kropotkin, Piotr, Palabras de un rebelde, Bar- celona: Pastagana, 1977. 12 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 16. Epistemologia feminista, gênero e história corporará com efeito esta necessidade da paralela libertação masculina e feminina7 , me as não é quem de ver que também dentro do sistema capitalista e em canto que proletária a mulher padece uma segunda escravatura dentro da sua própria classe. O anarco-sindicalismo do Estado espanhol é um bom exemplo desta panorama. Desde os primeiros congressos da Federação da Regional Espanhola da AIT, na altura de 1872, definia-se a especial situação de opres-são da mulher e de- fendia-se a sua emancipação começando pe-lo trabalho, perce- bendo que relegar a mulher exclusivamente às funções do- mésticas constituia uma submissão e uma dependência respeito ao homem, se bem insistindo nas diferencias entre trabalhos próprios de cada sexo8 . Isto não impediu que noutras ocasiões se defenderam desde os sindicatos a proibição do trabalho fe- minino como forma de paliar os efeitos do desemprego9 ou di- ferenças entre os direitos defendidos para uns e outras, mas por outra parte a própria CNT chegou estabelecer cotas de pari- dade por género nos comités10 . Em efeito, foi desde o anarco- sindicalismo que se deu uma maior compreensão da situação da mulher, se bem em grande medida ficaram distanciadas as posi- ções teóricas de várias das suas concretizações práticas. Não se pode negar tampouco o destacado papel que jogou 7 Armand, Emile, El anarquismo individualista : lo que es, puede y vale, La Rioja: Pepitas de calabaza, 2009. 8 Madrid, Francisco e Venza, Claudio, Antología documental del anarquismo espa- ñol, tomo 1. Madrid: Fundación Anselmo Lorenzo, 2001. 9 Lorenzo, Anselmo, El proletariado militante, Madrid: Confederación Sindical Solidaridad Obrera, 2005. 10 Congresos Anarcosindicalistas en España, 1870 – 1936, Toulousse – Paris: CNT, 1977. 13 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 17. Epistemologia feminista, gênero e história o anarquismo nos movimentos de libertação da mulher que se desenvolveram a partir dos anos sessenta, de uma amplitude muito superior à que se dera até o momento. É a partir de aqui que se procura uma ótica própria da mulher em todos os as- peitos e que se procura incorporar o estudo do sujeito mulher a qualquer disciplina científica. Ainda assim, a história fica à mar- gem ou em desenvolvimento muito lento. É dentro deste tento de enfoques femininos, que ao tempo levam aparellados novos enfoques e o estudo de novos espaços, assim como a sua co- nexão e introdução numa análise de classe e da ampliação do âmbito do estudo da história, que se inscreve o trabalho de Margareth Rago, entre muitas outras, que ademais tentará uma vinculação com o anarquismo como metodologia de análise. A importáncia do trabalho para a escrita da história Qualquer aproximação à compreensão do passado desde uma perspectiva que tenha em conta as classes subalternas co- mo protagonistas do movimento histórico não pode deixar de lado que o trabalho constitui um tema ineludível, assim como também o trabalho assalariado, assim como que é no trabalho desde o que se concretizam as confrontações de classe em qual- quer momento histórico, assim como é um espaço no que o ser humano projecta também de maneira directa a sua criatividade e a sua visão do mundo em um momento concreto. O trabalho constitui um importantíssimo facto cultural, que mobiliza uma muito ampla série de relações sociais, e a sua omissão em qual- quer análise histórico de qualquer tempo e lugar só pode levar ao insucesso ou à perduração daquela grande história, baseada 14 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 18. Epistemologia feminista, gênero e história nos grandes factos (batalhas e matrimónios principalmente) re- alizados por grandes homens (reis e demais dirigentes). Uma história que tenha em conta o papel activo e autónomo das classes subalternas não pode desprezar uma análise do marco do trabalho para ser completa. Como também não pode deixar de lado a incorporação do análise do sujeito mulher como sujeito imerso numa realidade diferenciada e numa situação relacional diferente da do sujeito homem, ao menos em várias questões, entre elas o trabalho. Por isso faz-se fundamental romper essa visão da mulher histo- ricamente desligada do trabalho, assalariado ou não, para atingir a completa integração da mulher como sujeito activo em qual- quer processo histórico e para incorporar a visão do feminino à análise destes processos, assim como de qualquer análise ou crí- tica científica. Isto é também o que propõe Margareth Rago e tantas outras mulheres historiadoras. Simplesmente a incorporação da crítica desde o feminino a qualquer processo gerador de conhecimen- to e a integração de toda a prática desde a mulher como objecto de estudo. Não se trata de uma posição militante feminista ou de uma urxéncia da mulher para se reabilitar a si própria, que também. Trata-se em último termo de avançar para uma his- tória que seja capaz de perceber a complexidade dos processos sociais desde uma ótica que tenha em conta a diversidade de su- jeitos que participem deles. É evidente que o esquecimento, abandono, dissimulação, ou como queiramos dizer, da mulher como sujeito activo em tão grande parte da historiografia não contribuiu de nenhuma maneira a proporcionar uma escrita his- tórica satisfatória, senão que ao contrário contribuiu a assentar a história como discurso ideológico das classes dominantes. 15 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 19. Epistemologia feminista, gênero e história O trabalho da mulher na arte A arte, produção cultural que conserva grande validade como fonte para estudar o passado, plasmou o trabalho da mulher em multidão de tempos e lugares. Desde a cultura egípcia até a Grécia clássica e a Roma monárquica ou imperial, passando por Etrúria, o trabalho feminino teve variedade de re- presentações em multidão de ofícios diferentes. Mulheres ven- dedoras e padeiras aparecem como limitado exemplo mas sendo umas das representações mais numerosas, mas podíamos falar também das numerosas representações de mulheres fian- deiras, amas-de-leite e parteiras da cerâmica grega. Em época medieval a representação de mulheres trabalhan- do é habitual. Em muitos casos trata-se de cenas de trabalhos agrícolas, também por outra parte trabalho bem abundante na época que alcançou um desenvolvimento importante como mo- tivo artístico ao ser habitual nas representações dos meses do ano, mas também em vários trabalhos artesanais. Aparecem em grande número as mulheres realizando trabalhos de cuidados, nomeadamente de enfermos, enquanto que a representação mais numerosa é a da mulher fiandeira, mas há que destacar a representação de maior variedade de ofícios. Estes exemplos re- velam que a introdução no mundo laboral da mulher em época medieval não era nada limitado, como assim mostram os exem- plos de escultoras, boticárias, costureiras e por suposto agricul- toras, mas podíamos falar também de mulheres ourives, pinto- ras, queijeiras ou parteiras. A partir da época moderna e depois desde a expansão do in- 16 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 20. Epistemologia feminista, gênero e história dustrialismo e o sistema capitalista, a incorporação da mulher ao trabalho assalariado foi maciça e indubitável, quase sempre em trabalhos de importante penosidade e nas lamentáveis con- dições que imperam no marco de relações capital-trabalho até a expansão da luta de classes organizada da segunda metade do XIX, despojada já do seu carácter espontáneo e que dará lugar ao anarco-sindicalismo e conseguirá importantes melhoras nas condições de trabalho. Neste sentido são vários os exemplos que podiamos nomear, mulheres trabalhadoras das factorias in- dústrias ou da minaria, e de sectores primários onde atingiram muito forte presença, como foi a pesca. Finalmente, não queremos deixar de lembrar que a militán- cia operária da mulher não só existiu, senão que foi continuada e desenvolvida em condições muito mais dificultosas que as dos seus companheiros varões. Com efeito, a presença da mulher no mundo sindical foi permanente desde fins do XIX, e a sua participação nas mobilizações operárias, e na sua expressão mais radicalizada, a greve geral, também foi documentada artís- ticamente. Recordemos o quadro no que Judes Adler plasmou uma greve da comuna de Montchanin na localidade borgoñona de Lê Creusot. A manifestação vai encabeçada por uma mulher que entoa A Internacional, hino reconhecido como próprio pe- la classe operária de todo o mundo desde a sua criação na Co- muna de Paris. Martín Paradelo Núñez, Compostela, Junho de 2012 17 Mulher, trabalho e anarquismo
  • 22. Epistemologia feminista, gênero e história Epistemologia feminista, gênero e história 19
  • 24. Epistemologia feminista, gênero e história Introduzindo o debate Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era pos- sível uma história das mulheres, num trabalho que se tornou bastante conhecido, no qual expunha os inúmeros problemas decorrentes do privilegiamento de um outro sujeito universal: a mulher11 . Argumentava que muito se perdia nessa historiografia que, afinal, não dava conta de pensar dinamicamente as relações sexuais e sociais, já que as mulheres não vivem isoladas em ilhas, mas interagem continuamente com os homens, quer os consideremos na figura de maridos, pais ou irmãos, quer en- quanto profissionais com os quais convivemos no cotidiano, como os colegas de trabalho, os médicos, dentistas, padeiros ou carteiros. Concluía pela necessidade de uma forma de produção acadêmica que problematizasse as relações entre os sexos, mais do que produzisse análises a partir do privilegamento do sujei- to. Ao mesmo tempo, levantava polêmicas questões: existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a história, radicalmen- te diferente da masculina? E, ainda, existiria uma memória espe- cificamente feminina? Em relação à primeira questão, Perrot respondia simultanea- 11Michelle Perrot - Une histoire des femmes est-elle possible? Paris: Rivage, 1984. 21
  • 25. Epistemologia feminista, gênero e história mente sim e não. Sim, porque entendia que há um modo de in- terrogação próprio do olhar feminino, um ponto de vista espe- cífico das mulheres ao abordar o passado, uma proposta de re- leitura da História no feminino. Não, em se considerando que o método, a forma de trabalhar e procurar as fontes não se di- ferenciavam do que ela própria havia feito antes enquanto pes- quisadora do movimento operário francês. Entendia, assim, que o fato de ser uma historiadora do sexo feminino não alterava em nada a maneira como estudara e recortara o objeto. Na ver- dade, sua argumentação deslocava a discussão, deixando de considerar o modo de produzir e narrar a História para focali- zar o objeto de estudo, sem pensar, por exemplo, por que ela não poderia ter trabalhado femininamente um objeto ou um te- ma masculino?12 Ao mesmo tempo, Perrot destacava as diferen- ças de registro da memória feminina, mais atenta aos detalhes do que a masculina, mais voltada para as pequenas manifesta- ções do dia-a-dia, geralmente pouco notadas pelos homens.13 Mais recentemente, outro prestigiado historiador francês ad- vertiu contra os perigos de se investir a diferença entre os sexos de uma força explicativa universal; de se observar os usos se- xualmente diferenciados dos modelos culturais comuns aos dois sexos; de se definir a natureza da diferença que marca a prática feminina; e da incorporação feminina da dominação masculina.14 Muito preocupado em reconhecer a importância da 12 Lembre-se que M.Perrot escrevera um importante estudo no campo da História Social: les ouvriers en grève.france 1871-1890. mouton, 1974. 13 M. Perrot - “Práticas da Memória Feminina”, Revista Brasileira de História, S.Paulo: Anpuh/Marco Zero, vol.9, no.18,1989. 14 Roger Chartier - “Diferenças entre os sexos e dominação simbólica”, Ca- dernos PAGU, no.4, Unicamp, 1995. 22
  • 26. Epistemologia feminista, gênero e história diferenciação sexual das experiências sociais, Chartier revelava certo constrangimento em relação à incorporação da categoria do gênero, numa atitude bastante comum entre muitos historia- dores, principalmente do sexo masculino. Procuro, neste texto, levantar alguns pontos de reflexão so- bre a epistemologia feminista e sua ressonância na historiogra- fia. É da maior importância discutir questões tão candentes e atuais, especialmente num encontro acadêmico que procura perceber as possibilidades abertas para a produção do conheci- mento pelas discussões que giram em torno da incorporação da categoria do gênero e que apontam para a sexualização da expe- riência humana no discurso. 23
  • 27. Epistemologia feminista, gênero e história Epistemologia feminista: ensaiando alternativas Ao menos no Brasil, é visível que não há nem clarezas, nem certezas em relação a uma teoria feminista do conhecimento. Não apenas a questão é pouco debatida mesmo nas rodas fe- ministas, como, em geral, o próprio debate nos vem pronto, tra- duzido pelas publicações de autoras do Hemisfério Norte. Há quem diga, aliás, que a questão interessa pouco ao “feminismo dos trópicos”, onde a urgência dos problemas e a necessidade de rápida interferência no social não deixariam tempo para maiores reflexões filosóficas.15 Contrariando posições e tentando aproximar-me da questão, gostaria de esboçar algumas idéias. Afinal, se considerarmos que a epistemologia define um campo e uma forma de produ- ção do conhecimento, o campo conceitual a partir do qual ope- ramos ao produzir o conhecimento científico, a maneira pela qual estabelecemos a relação sujeito-objeto do conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade com que operamos, deveríamos prestar atenção ao movimento de 15 Uma instigante discussão sobre o tema, encontra-se em Roberto Cintra Martins - “Filosofia da Ciência e feminismo: uma ligação natural”, in Lucila Scavone (org.)- Tecnologias reprodutivas. Gênero e Ciência. S.Paulo: UNESP, 1996. 24
  • 28. Epistemologia feminista, gênero e história constituição de uma (ou seriam várias?) epistemologia femi- nista, ou de um projeto feminista de ciência.16 O feminismo não apenas tem produzido uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimento científico, como também propõe um modo alternativo de operação e articulação nesta esfera. Além disso, se consideramos que as mulheres tra- zem uma experiência histórica e cultural diferenciada da mascu- lina, ao menos até o presente, uma experiência que várias já classificaram como das margens, da construção miúda, da ges- tão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova lingua- gem, ou na produção de um contradiscurso, é inegável que uma profunda mutação vem-se processando também na produ- ção do conhecimento científico. Certamente, a questão é muito mais complexa do que estou formulando aqui, já que, de um lado, há outras correntes van- guardistas do pensamento contemporâneo, atuando no sentido das profundas desestabilizações e rupturas teóricas e práticas em curso. Além do mais, seria ingênuo considerar que a teoria feminista rompe absolutamente com os modelos de conheci- mento dominantes nas Ciências Humanas, sem reconhecer que se há rupturas, há também muitas permanências em relação à tradição científica. No entanto, quero chamar a atenção especi- ficamente para o aporte feminista às transformações em curso no campo da produção do conhecimento. Na consideração da existência de uma/várias epistemolo- gia/s feminista/s, valeria então destacarmos, de início, dois pontos: o primeiro aponta para a participação do feminismo na ampla crítica cultural, teórica, epistemológica em curso, ao lado 16 A esse respeito, veja-se Linda Alcoff e Elizabeth Potter (orgs.) - Feminist epistemologies. New York and London: Routledge, 1993. 25
  • 29. Epistemologia feminista, gênero e história da Psicanálise, da Hermenêutica, da Teoria Crítica Marxista, do Desconstrutivismo e do Pósmodernismo. Esta crítica revela o caráter particular de categorias dominantes, que se apresentam como universais; propõe a crítica da racionalidade burguesa, ocidental, marxista incluso, que não se pensa em sua dimensão sexualizada, enquanto criação masculina, logo excludente. Port- anto, denuncia uma racionalidade que opera num campo ensi- mesmado, isto é, a partir da lógica da identidade e que não dá conta de pensar a diferença. É neste ponto que o feminismo se encontra especialmente com o pensamento pósmoderno, com a crítica do sujeito, com as formulações de Derrida e Foucault, entre outras17 . O segundo, embutido no primeiro, traz as pro- postas desta nova forma de conceber a produção do conhe- cimento, do projeto feminista de ciência alternativa, que se quer potencialmente emancipador. 17 Vide a respeito Mary McCanney Gergen (ed.) - O pensamento feminista e a estrutura do conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/EdUNB, 1993; Cláudia Costa Lima - “O leito de Procusto: gênero, linguagem e as teo- rias feministas”, Cadernos PAGU, no.2, Unicamp, 1993. 26
  • 30. Epistemologia feminista, gênero e história 1 - A crítica feminista Não é demais reafirmar que os principais pontos da crítica feminista à ciência incidem na denúncia de seu caráter particula- rista, ideológico, racista e sexista: o saber ocidental opera no in- terior da lógica da identidade, valendo-se de categorias refle- xivas, incapazes de pensar a diferença. Em outras palavras, ata- cam as feministas, os conceitos com que trabalham as Ciências Humanas são identitários e, portanto, excludentes. Pensase a partir de um conceito universal de homem, que remete ao bran- co heterossexual civilizado do Primeiro Mundo, deixando-se de lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência. Da mesma forma, as práticas masculinas são mais valorizadas e hie- rarquizadas em relação às femininas, o mundo privado sendo considerado de menor importância frente à esfera pública, no imaginário ocidental. Portanto, as noções de objetividade e de neutralidade que garantiam a veracidade do conhecimento caem por terra, no mesmo movimento em que se denuncia o quanto os padrões de normatividade científica são impregnados por valores masculi- nos, raramente filóginos. Mais do que nunca, a crítica feminista evidencia as relações de poder constitutivas da produção dos saberes, como aponta, de outro lado, Michel Foucault. Este 27
  • 31. Epistemologia feminista, gênero e história questionara radicalmente as representações que orientavam a produção do conhecimento científico, tida como o ato de reve- lação da essência inerente à coisa, a partir do desvendamento do que se considerava a aparência enganosa e ideológica do fe- nômeno. Especialmente nas Ciências Humanas, chegar à ver- dade do acontecimento, “compreendê-lo objetivamente” signi- ficava retirar a máscara que o envolvia na superfície e chegar às suas profundezas. Foucault criticava, assim, a concepção domi- nante na cultura ocidental de que o conhecimento, a produção da verdade se daria pela coincidência entre o conceito e a coisa, no movimento de superação da distância entre a palavra e a coi- sa, entre a aparência e a essência. A convergência entre a crítica feminista e as formulações dos “filósofos da diferença”, como Foucault, Deleuze, Lyotard, Derrida, entre outros, já foi observada por várias intelectuais.18 A filosofia pósmoderna propõe, a partir de um solo episte- mológico que se constitui fora do marxismo, novas relações e novos modos de operar no processo da produção do conheci- mento: a “descrição das dispersões” (Foucault) e não a “síntese das múltiplas determinações” (Marx); revelar o processo artifi- cial de construção das unidades conceituais, temáticas suposta- mente “naturais”: a desconstrução das sínteses, das unidades e das identidades ditas naturais, ao contrário da busca de totaliza- ção das multiplicidades. E, fundamentalmente, postula a noção de que o discurso não é reflexo de uma suposta base material das relações sociais de produção, mas produtor e instituinte de “reais”. A produção do conhecimento se daria, assim, por ou- 18 Veja-se, por ex., Jane Flax - “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista”, in Heloísa Buarque de Hollanda - Pósmodernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 28
  • 32. Epistemologia feminista, gênero e história tras vias. Como disse Foucault: “Mas não se trata aqui de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às “coisas”, “despresentificá- las”; (...) substituir o tesouro enigmático das “coisas” anteriores ao discur- so pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que cons- tituem, assim, suas condições de aparecimento histórico;”19 Do mesmo modo, as teóricas feministas propuseram não apenas que o sujeito deixasse de ser tomado como ponto de partida, mas que fosse considerado dinamicamente como efeito das determinações culturais, inserido em um campo de comple- xas relações sociais, sexuais e étnicas. Portanto, em se conside- rando os “estudos da mulher”, esta não deveria ser pensada co- mo uma essência biológica pré-determinada, anterior à História, mas como uma identidade construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes. Como se vê, a categoria do gênero encontrou aqui um terreno absolutamente favorável para ser abrigada, já que desnaturaliza as identidades sexuais e postula a dimensão relacional do movimento constitutivo das diferenças sexuais. Vale ainda notar a aproximação entre as formulações da teo- ria feminista e a valorização da cultura pelo pós-modernismo, 19 Michel Foucault - Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universi- tária, 1986, p.54 29
  • 33. Epistemologia feminista, gênero e história ao contrário da sociedade para o marxismo. Nesse contexto, a História Cultural ganha terreno entre os historiadores, enfati- sando a importância da linguagem, das representações sociais culturalmente constituídas, esclarecendo que não há anteriorida- de das relações econômicas e sociais em relação às culturais. O discurso, visto como prática, passa a ser percebido como a prin- cipal matéria prima do historiador, entendendo-se que se ele não cria o mundo, apropria-se deste e lhe proporciona múltiplos significados.20 É nesta perspectiva que Joan Scott, conhecida anteriormente por seus trabalhos na área da História Social, ao procurar expli- car alternativamente o “problema” da trabalhadora, a divisão sexual do trabalho, a oposição entre o lar e o trabalho, inverte radicalmente o caminho tradicional da interpretação histórica, enfatisando a importância do discurso na constituição de uma questão socio-econômica. A divisão sexual do trabalho é, então, percebida como efeito do discurso. Segundo ela, “Ao invés de procurar causas técnicas e estruturais específicas, devemos estudar o discurso a partir do qual as divisões do trabalho foram estabeleci- das segundo o sexo. O que deve produzir uma análise crítica mais apro- fundada das interpretações históricas correntes.”21 Explica que a diferença sexual inscrita nas práticas e nos fa- tos é sempre construída pelos discursos que a fundam e a legiti- mam, e não como um reflexo das relações econômicas. Consi- dera insustentável a difundida tese de que a industrialização provocou uma separação entre o trabalho e o lar, obrigando as 20 Keith Jenkins - Re-thinking history. London: Routled-ge,1991. 21 Joan W. Scott - “La Travailleuse”, in G. Duby e M.Perrot (orgs.)- Histoire des femmes, vol.4. Paris: Plon, 1991, p.428. 30
  • 34. Epistemologia feminista, gênero e história mulheres a escolher entre o trabalho doméstico e o assalariado. Para ela, o discurso masculino, que estabeleceu a inferiorida- de física e mental das mulheres, que definiu a partilha “aos ho- mens, a madeira e os metais” e “às mulheres, a família e o tecido” pro- vocou “uma divisão sexual da mão-de-obra no mercado de trabalho, reu- nindo as mulheres em certos empregos, substituindo-as sempre por baixo de uma hierarquia profissional, e estabelecendo seus salários em níveis insufi- cientes para sua subsistência.” (idem) 31
  • 35. Epistemologia feminista, gênero e história 2 – O projeto de ciência feminista ou um modo feminista de pensar? É dificil falar de uma epistemologia feminista, sem tocar na discussão sobre os perigos da reafirmação do sujeito “mulher” e de todas as cargas constitutivas dessa identidade no imaginá- rio social. Afinal, como já se observou exaustivamente, a ques- tão das relações sexuais e da mulher especificamente nasce a partir das lutas pela emancipação deste sujeito antes definido como “sexo fragil”. É na luta pela visibilidade da “questão fe- minina”, pela conquista e ampliação dos seus direitos específi- cos, pelo fortalecimento da identidade da mulher, que nasce um contradiscurso feminista e que se constitui um campo femi- nista do conhecimento. É a partir de uma luta política que nas- ce uma linguagem feminista. E, no entanto, o campo teórico que se constitui transforma-se a tal pon-to que, assim como a História Cultural, deixa de lado a preocupação com a centrali- dade do sujeito. Como se de repente os efeitos se desviassem dos objetivos visados no ponto de partida: a categoria relacional do gênero desinveste a preocupação de fortalecimento da iden- tidade mulher, ao contrário do que se visava inicialmente com um projeto alternativo de uma ciência feminista. Esta é uma das principais dificuldades que emergem, ao se tentar conceitualizar o campo epistemológico em que se funda 32
  • 36. Epistemologia feminista, gênero e história um conhecimento sobre as mulheres e, agora, sobre as relações de gênero. A categoria do gênero, já observou Joan Scott, não nasce no interior de um sistema de pensamento definido como o conceito de classes em relação ao marxismo. Embora seja apropriada como instrumento analítico extremamente útil, pro- cede de um campo profundamente diverso daquele que tinha como horizonte a emancipação social de determinados setores sociais. Helen Longino observa, ainda, que foi depois do desen- volvimento do pensamento feminista nas áreas da história, an- tropologia, teoria literária, psicologia e sociologia que se passou a pensar nos conceitos através dos quais se operava. A reflexão filosófica foi posterior à prática teórica.22 Isto significa: 1) que houve uma incorporação das questões feministas em diferentes campos da produção do conhecimento científico, de fora para dentro, como por exemplo, na psicaná- lise ou no campo marxista. Os temas da mulher e do gênero fo- ram incorporados às questões colocadas pela historiografia marxista, sem ter nascido a partir dela, enfrentando, aliás, sérias dificuldades em seu interior. Sabemos como a questão das re- lações entre os sexos, a história da sexualidade e do corpo, as lutas políticas das mulheres foram secundarizadas no marxismo, tidas como secundárias em relação às questões da luta das clas- ses. Do mesmo modo, a questão étnica e racial. É impossível deixar de pensar na reação que o livro História da Sexualidade, de Foucault teve por parte dos historiadores ligados à História Social, por exemplo. De certo modo, não se pensava nas rela- ções sexuais como dimensão constitutiva da vida em sociedade 22 Helen E. Longino - “To See Feelingly: Reason, Passion, and Dialogue in Feminist Philosophy”, in Donna C. Stanton e A. Stewart (org.) Feminisms in the academy, Ann Arbor: The University of Michigan Press,1995, p.21. 33
  • 37. Epistemologia feminista, gênero e história e como uma das definidoras de nossa forma de operar concei- tualmente. A sexualidade era identificado à força instintiva, bio- lógica e, assim, não merecia ser historicizada. Este era o lugar que tinha não apenas no marxismo, mas no imaginário ociden- tal. 2) Esta incorporação, portanto, não se deu sem maiores complicações. Porque a entrada dos temas feministas em cam- pos epistemológicos masculinos provocou muitas desestabiliza- ções e, mesmo, rupturas, a despeito das muitas permanências. Os conceitos se mostravam estreitos demais para pensar a difer- ença, aliás, masculinos, muitas vezes misóginos, precisavam ser transformados, abandonados, questionados, refeitos. Como lembra Elizabeth Grosz, não se tratava afinal de um simples es- quecimento das mulheres de um campo neutro e objetivo de conhecimentos: “Sua amnésia é estratégica e serve para assegurar as bases patriarcais do conhecimento.”23 Além disso, esta entrada, por exemplo, no campo do marxismo só foi possível porque este, ao dar sinais de esgotamento, estava sendo amplamente critica- do, vários conceitos se mostravam insuficientes, e os marxistas partiam em busca de renovações conceituais, temáticas, de atua- lização.24 3) Esta incorporação remete, ainda, a uma outra questão: a que vem uma epistemologia feminista? Para que necessitamos de uma nova ordem explicativa do mundo? Para melhor contro- lar o pensamento e o mundo? Uma nova ordem das regras para 23 Elizabeth Grosz - “Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason”, in L.Alcoff e E.Potter, op.cit. p.206. 24 Veja-se a propósito Donna Haraway - “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. UNICAMP, Cadernos PAGU, no.5, 1995, P.14. 34
  • 38. Epistemologia feminista, gênero e história trazer poder político a um setor que se sente excluído? Sandra Harding pergunta, então, ao lado de muitas outras feministas, se não estaría-mos correndo o risco de repor o tipo de relação po- der-saber que tanto criticamos: “Como é que o feminismo pode redefinir totalmente a relação entre sa- ber e poder, se ele está criando uma nova epistemologia, mais um conjunto de regras para controlar o pensamento?”25 É possível contra-argumentar lembrando que não há como fugir ao fato de que todas as minorias relativamente organiza- das, e não apenas as mulheres, estão reivindicando uma fatia do bolo da ciência e que nenhum dos grupos excluídos, - negros, africanos, orientais, homossexuais, mulheres, com suas pro- postas de epistemologias alternativas - feminista, terceiro mun- dista, homossexual, operária - pode hoje reivindicar um lugar de hegemonia absoluta na interpretação do mundo. Além disso, há que se reconhecer as dimensões positivas da quebra das con- cepções absolutizadoras, totalizadoras, que até recentemente poucos percebiam como autoritárias, impositivas e hierarqui- zantes. Não há dúvidas de que o modo feminista de pensar rompe com os modelos hierárquicos de funcionamento da ciên- cia e com vários dos pressupostos da pesquisa científica. Se a crítica feminista deve “encontrar seu próprio assunto, seu próprio siste- ma, sua própria teoria e sua própria voz,” como diz Showalter, é pos- sível dizer que as mulheres estão construindo uma linguagem nova, criando seus argumentos a partir de suas próprias pre- missas.26 25 Sandra Harding - “A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Fe- minista”, in Revista de Estudos Feministas, vol.1, no.1, 1993, Rio de Janeiro CIEC/ECO/UFRJ, p.19. 26 Elaine Showalter - “A crítica feminista no território selvagem”, in Heloísa 35
  • 39. Epistemologia feminista, gênero e história Vamos dizer que podemos pensar numa epistemologia femi- nista, para além do marxismo e da fenomenologia, como uma forma específica de produção do conhecimento que traz a mar- ca especificamente feminina, tendencialmente libertária, eman- cipadora. Há uma construção cultural da identidade feminina, da subjetividade feminina, da cultura feminina, que está eviden- ciada no momento em que as mulheres entram em massa no mercado, em que ocupam profissões masculinas e em que a cul- tura e a linguagem se feminizam. As mulheres entram no espa- ço público e nos espaços do saber transformando inevitavel- mente estes campos, recolocando as questões, questionando, colocando novas questões, transformando radicalmente. Sem dúvida alguma, há um aporte feminino/ista específico, dife- renciador, energizante, libertário, que rompe com um en- quadramento conceitual normativo. Talvez daí mesmo a dificul- dade de nomear o campo da epistemologia feminista. Vejamos alguns aspectos desse aporte: o questionamento da produção do conhecimento entendida como processo racional e objetivo para se atingir a verdade pura e universal, e a busca de novos parâmetros da produção do conhecimento. Aponta, então, para a superação do conhecimento como um processo meramente racional: as mulheres incorporam a dimensão subje- tiva, emotiva, intuitiva no processo do conhecimento, questio- nando a divisão corpo/mente, sentimento/razão. Simmel já fi- zera esta observação, em 1902, ao indagar sobre as possíveis contribuições da “Cultura Feminina” num mundo masculino, e Helen Longino complementa: “Em busca de parâmetros (groundings) conceituais e filosóficos alterna- Buarque de Hollanda (org.) - Tendências e impasses. O Feminismo como Crí- tica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.29. 36
  • 40. Epistemologia feminista, gênero e história tivos, muitos pensadores abraçaram modos de análise que rejeitam a dico- tomização entre razão e paixão, entre saber e sentimento.”27 Para ela, o pensamento feminista trouxe a subjetividade como forma de conhecimento. “We all see feelingly”, afirma, o que se opõe radicalmente ao ideal de conhecimento objetivo trazido das Ciências Naturais para as Ciências Humanas. En- trando num mundo masculino, possuído por outros, a mulher percebe que não detém a linguagem e luta por criar uma, ou ampliar a existente: aqui se encontra a principal fonte do aporte feminista à produção do conhecimento, à construção de novos significados na interpretação do mundo. Portanto, o feminismo propõe uma nova relação entre te- oria e prática. Delineiase um novo agente epistêmico, não iso- lado do mundo, mas inserido no coração dele, não isento e im- parcial, mas subjetivo e afirmando sua particularidade. Ao con- trário do desligamento do cientista em relação ao seu objeto de conhecimento, o que permitiria produzir um conhecimento neutro, livre de interferências subjetivas, clama-se pelo envolvi- mento do sujeito com seu objeto. Uma nova idéia da produção do conhecimento: não o cientista isolado em seu gabinete, tes- tando seu método acabado na realidade empírica, livre das emo- ções desviantes do contato social, mas um processo de conheci- mento construído por individuos em interação, em diálogo crí- tico, contrastando seus diferentes pontos de vista, alterando suas observações, teorias e hipóteses, sem um método pronto. Reafirma-se a idéia de que o caminho se constrói caminhando e interagindo. 27 G. Simmel - “Cultura Feminina”, in Filosofia do amor. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1993; Helen Longino, idem, p.20. 37
  • 41. Epistemologia feminista, gênero e história Defendendo o relativismo cultural, questiona também a noção de que este conhecimento visa atingir a verdade pura, essencial. Reconhece a particularidade deste modo de pensa- mento e abandona a pretensào de ser a única possibilidade de interpretação. Concordando com Sandra Harding: “Uma forma de resolver o dilema seria dizer que a ciência e a episte-mologia feministas terão um valor próprio ao lado, e fazendo parte integrante, de outras ciên- cias e epistemologias - jamais como superiores às outras.”(p.23) Enfatiza a historicidade dos conceitos e a co-existência de temporalidades múltiplas. Nesta direção, a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias mostra a confluência das ten- dências historiográficas contemporâneas com as inquietações feministas; defendendo a “instabilidade das categorias feminis- tas” (Sandra Harding), fala em hermenêutica crítica e no histo- rismo: “a historiografia feminista segue os mesmos parâmetros (que a descons- trução de Derrida, a arqueologia da Foucault, a teoria crítica marxista, a história social e conceitual dos historistas alemães, a historiografia das mentalidades), pois tem seu caminho metodológico aberto para a possibili- dade de construir as diferenças e de explorar a diversidade dos papéis infor- mais femininos.”28 Os estudos feministas inovam, então, na maneira como tra- balham com as multiplicidades temporais, descartando a idéia de linha evolutiva inerente aos processos históricos. 28 Maria Odila Leite da Silva Dias - “Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano”, in Al-bertina de O. Costa e Cristina Bruschini (orgs.) - Uma questão de gê-nero. RJ.: Editora Rosa dos Tempos/SP: Fundação Carlos Chagas, p.49. 38
  • 42. Epistemologia feminista, gênero e história Feminismo e História Seria interessante, por fim, pensar como os deslocamentos teóricos produzidos pelo feminismo têm repercutido na pro- dução historiográfica. A emergência de novos temas, de novos objetos e questões, especialmente ao longo da década de seten- ta deu maior visibilidade às mulheres enquanto agentes históri- cos, incialmente a partir do padrão masculino da História So- cial, extremamente preocupada com as questões da resistência social e das formas de dominação política.29 Este quadro am- pliou-se, posteriormente, com a explosão dos temas femininos da Nouvelle Histoire, como bruxaria, prostituição, loucura, aborto, parto, maternidade, saúde, sexualidade, a história das emoções e dos sentimentos, entre outros. É claro que muitos discordarão da divisão sexual dos temas históricos acima proposta, já que há muitas outras dimensões implicadas na ampliação do leque temático, principalmente a crise da “historiografia da Revolução” e a redescoberta da Es- cola dos Annales. Entretanto, poucos poderão negar que a en- trada desses novos temas se fêz em grande parte pela pressão crescente das mulheres, que invadiram as universidades e cria- 29 Margareth Rago - “As mulheres na Historiografia Brasileira”, in Zélia Lo- pes (org.)- A história em debate, SP: Editora da UNESP, 1991. 39
  • 43. Epistemologia feminista, gênero e história ram seus próprios núcleos de estudo e pesquisa, a partir dos anos setenta. Feministas assumidas ou não, as mulheres forçam a inclusão dos temas que falam de si, que contam sua própria história e de suas antepassadas e que permitem entender as ori- gens de muitas crenças e valores, de muitas práticas sociais fre- quentemente opressivas e de inúmeras formas de desclassifi- cação e estigmatização. De certo modo, o passado já não nos dizia e precisava ser re-interrogado a partir de novos olhares e problematizações, através de outras categorias interpretativas, criadas fora da estrutura falocêntrica especular. A descoberta da origem da “mãe moderna” a partir do mo- delo rousseauísta, proposta por Elisabeth Badinter, por exem- plo, foi fundamental para se reforçar o questionamento do pa- drão de maternidade que havia vigorado inquestionável até os anos 60 e reforçar a luta feminista pela conquista de novos di- reitos; a genealogia dos conceitos da prostituição, da homosse- xualidade e da perversão sexual, entre outros, foi extremamente importante enquanto reforçava a desconstrução prática das inú- meras formas de normatização.30 A história do corpo feminino trouxe à luz as inúmeras construções estigmatizadoras e misógi- nas do poder médico, para o qual a constituição física da mul- her por si só inviabilizaria sua entrada no mundo dos negócios e da política. O questionamento das mitologias científicas sobre sua suposta natureza, sobre a questão da maternidade, do corpo e da sexualidade foi fundamental em termos da legitimação das transformações libertadoras em curso. O campo das experiências históricas consideradas dignas de 30 Vejam-se as discussões de Jurandir Freire Costa - “O referente da identida- de homossexual”, in Richard Parker e Regina M. Barbosa (orgs.) - Sexualida- des brasileiras. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 40
  • 44. Epistemologia feminista, gênero e história serem narradas ampliou-se consideravelmente e juntamente com a emergência dos novos temas de estudo, isto é, com a vi- sibilidade e dizibilidade que ganharam inúmeras práticas sociais, culturais, religiosas, antes silenciadas, novos sujeitos femininos foram incluídos no discurso histórico, partindo-se inicialmente das trabalhadoras e militantes, para incluir-se, em seguida, as bruxas, as prostitutas, as freiras, as parteiras, as loucas, as do- mésticas, as professoras, entre outras. A ampliação do conceito de cidadania, o direito à história e à memória não se processa- vam apenas no campo dos movimentos sociais, passando a ser incorporados no discurso, ou melhor, no próprio âmbito do processo da produção do conhecimento. Para tanto, novos conceitos e categorias tiveram de ser in- troduzidos a partir das perguntas levantadas pelo feminismo e dos deslocamentos teóricos e práticos provocados. Por que se privilegiavam os acontecimentos da esfera pública e não os constitutivos de uma história da vida privada? Por que se des- prezava a cozinha, em relação à sala, e a casa em relação à rua? Onde uma história dos segredos, das formas de circulação e co- municação femininas, das fofocas, das redes interativas cons- truídas nas margens, igualmente fundamentais para a constru- ção da vida em sociedade? Quais as possibilidades de uma His- tória no feminino? Não apenas a história das mulheres, mas a história contada no registro feminino?31 Neste contexto, ficou evidente a precariedade e estreiteza do instrumental conceitual disponível para registrar as práticas 31 Tânia Navarro Swain - “Feminino/Masculino no Brasil do século XVI: um estudo historiográfico”,1995, (mimeo); Maria Izilda S. de Mattos e Fernando A. de Faria - Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues: O Feminino, O Mas- culino e Suas Relações. RJ: Bertrand Brasil, 1996. 41
  • 45. Epistemologia feminista, gênero e história sociais que passavam a ser percebidas, embora existentes desde sempre. Para o historiador formado na tradição marxista, espe- cialista na recuperação histórica das lutas sociais e da domina- ção de classes, como falar das práticas desejantes, com que con- ceitos poderia construir uma história do amor, da sexualidade, do corpo ou do medo? Como trabalhar a questão da religiosida- de e das reações diante da vida e da morte? No casos dos estudos feministas, o sucesso da categoria do gênero se explica, em grande parte, por ter dado uma resposta interessante ao impasse teórico existente, quando se questiona- va a lógica da identidade e se decretava o eclipse do sujeito. Ca- tegoria relacional, como observa Joan Scott, encontrou campo extremamente favorável num momento de grande mudança das referências teóricas vigentes nas Ciências Humanas, e em que a dimensão da Cultura passava a ser privilegiada sobre as de- terminações da Sociedade. Assim como outras correntes de pensamento, a teoria feminista propunha que se pensasse a construção cultural das diferenças sexuais, negando radicalmen- te o determinismo natural e biológico. Portanto, a dimensão simbólica, o imaginário social, a construção dos múltiplos senti- dos e interpretações no interior de uma dada cultura passavam a ser priorizados em relação às explicações econômicas ou polí- ticas. Em termos da historiografia, estas concepções se aproxi- mam das formuladas pela História Cultural. Esta põe em evi- dência a necessidade de se pensar o campo das interpretações culturais, a construção dos inúmeros significados sociais e cul- turais pelos agentes históricos, as práticas da representação, dei- xando muito claro que o predomínio prolongado da História Social, de tradição marxista, secundarizou demais o campo da 42
  • 46. Epistemologia feminista, gênero e história subjetividade e da dimensão simbólica. Exceção feita a E.P. Thompson, que aliás se tornou extremamente famoso apenas na década de oitenta, grande parte dos estudos históricos de tendência marxista mantinham-se presos ao campo da política e da economia, este sendo considerado o “lugar do real” e da in- teligibilidade da história. Apenas nas últimas décadas, passou-se a falar incisivamente em imaginário social, nas representações sociais, em subjetividade e, para tanto, a História precisou bus- car aproximações com a Antropologia, a Psicanálise e a Litera- tura. Além disso, na medida em que o discurso passou a ser do- tado de positividade, os historiadores também perceberam que era inevitável interrogar o próprio discurso e dimensionar suas formas narrativas e interpretativas. Em relação aos estudos feministas, e a despeito das inúme- ras polêmicas em curso, vale notar que a categoria do gênero abre, ainda, a possibilidade da constituição dos estudos sobre os homens, num campo teórico e temático bastante renovado e radicalmente redimensionado. Após a “revolução feminista” e a conquista da visibilidade feminina, após a constituição da área de pesquisa e estudos feministas, consagrada academicamente em todo o mundo, os homens são chamados a entrar, desta vez, em um novo solo epistêmico. É assim que emergem os estudos históricos, antropológicos, sociológicos - interdisciplinares - so- bre a masculinidade, com enorme aceitação. Cada vez mais, portanto, crescem os estudos sobre as relações de gênero, sobre as mulheres, em particular, ao mesmo tempo em que se consti- tui uma nova área de estudos sobre os homens, não mais perce- bidos enquanto sujeitos universais. Sem dúvida alguma, os resultados das inúmeras perspectivas abertas têm sido dos mais criativos e instigantes. O olhar femi- 43
  • 47. Epistemologia feminista, gênero e história nista permite reler a história da Colonização no Brasil, no sécu- lo 16, a exemplo do que realiza a historiadora Tânia Navarro Swain, desconstruindo as imagens e representações construídas pelos viajantes sobre as formas de organização dos indígenas, sobre a sexualidade das mulheres, supostamente fogosas e pro- míscuas, instituindo sua amoralidade. Num excelente trabalho genealógico, a historiadora revela como os documentos foram apropriados e reinterpretados pela historiografia masculina, através de conceitos extremamente misóginos, cristalizando-se imagens profundamente negativas a respeito dos primeiros ha- bitantes da terra, considerados para sempre incivilizados e inca- pazes de cidadania. Já Maria Izilda Matos e Fernando A. Faria, estudando as composições musicais de Lupicínio Rodrigues, a partir da cate- goria do gênero, descortinam as formas de construção cultural das referências identitárias da feminilidade e da masculinidade, nas décadas de quarenta e cinquenta, dominantes até recente- mente. A partir da análise das letras de músicas produzidas pelo famoso compositor gaúcho, podem visualizar não apenas as ex- periências femininas, mas “seu universo de relações com o mundo masculino”, numa proposta bastante enriquecedora e inovadora. 44
  • 48. Epistemologia feminista, gênero e história Finalizando... As possibilidades abertas para os estudos históricos pelas teorias feministas são inúmeras e profundamente instigantes: da descontrução dos temas e interpretações masculinos às novas propostas de se falar femininamente das experiências do coti- diano, da micro-história, dos detalhes, do mundo privado, rom- pendo com as antigas oposições binárias e de dentro, buscando respaldo na Antropologia e na Psicanálise, incorporando a di- mensão subjetiva do narrador. Na historiografia feminista, vale notar, a teoria segue a experiência: esta não é buscada para comprovar aquela, aprio- risticamente proposta. Opera-se uma deshierarquização dos acontecimentos: todos se tornam passíveis de serem historiciza- dos, e não apenas as ações de determinados sujeitos sociais, se- xuais e étnicos das elites econômicas e políticas, ou de outros setores sociais, como o proletariado-masculino-branco, tido co- mo sujeito privilegiado por longo tempo, na produção acadêmi- ca. Aliás, as práticas passam a ser privilegiadas em relação aos sujeitos sociais, num movimento que me parece bastante de- mocratizador. Assim, e como diria Paul Veyne, o que deve ser privilegiado pelo historiador passa a ser dado pela temática que ele recorta e constrói, e não por um consenso teórico exterior à problemática, como acontecia antes quando se trabalhava com o conceito de modo de produção, por exemplo, ou ainda, quan- 45
  • 49. Epistemologia feminista, gênero e história do a preocupação maior com o passado advinha de suas possi- bilidades em dar respostas à busca da Revolução. A realidade já não cede à teoria. Enfim, parece que já não há mais dúvidas de que as mulhe- res sabem inovar na reorganização dos espaços físicos, sociais, culturais e aqui, pode-se complementar, nos intelectuais e cien- tíficos. E o que me parece mais importante, sabem inovar liber- tariamente, abrindo o campo das possibilidades interpretativas, propondo múltiplos temas de investigação, formulando novas problematizações, incorporando inúmeros sujeitos sociais, construindo novas formas de pensar e viver. 46
  • 50. Epistemologia feminista, gênero e história Descobrindo historicamente o gênero 47
  • 52. Epistemologia feminista, gênero e história Em julho de 1990, logo após defender o doutorado com um trabalho sobre a história da prostituição no Brasil, participei de um encontro feminista em Nova York, onde ouvi, pela pri- meira vez, as discussões em torno das relações de gênero. Os gender studies já estavam a todo vapor naquele país e a con- trovérsia em torno da “história das mulheres”, ou do “estudo das relações de gênero”, parecia superada em favor do último. No Brasil, iniciamos em seguida – Adriana Piscitelli, Elisa- beth Lobo, Mariza Corrêa e eu – um grupo de estudos do gêne- ro, com o firme propósito de constituirmos futuramente um núcleo de pesquisa. A idéia foi reforçada pela participação no seminário “Uma Questão de Gênero”, realizado num hotel-fa- zenda próximo a Itu, em São Paulo. Aí reuniram-se intelectuais feministas de todo o país, algumas vindas do exterior, debaten- do em altíssimo nível as novas propostas epistemológicas do fe- minismo. Heleieth Saffioti, Celi Pinto, Eva Blay, Maria Luiza Heilborn, Eleonora Menicucci de Oliveira, Albertina de Olivei- ra Costa, Cristina Bruschini, Elisabeth Lobo, Lia Zanotta, Lena Levinas eram algumas das brilhantes acadêmicas presentes. Não tardamos a criar na Unicamp o Núcleo de Estudos do Gênero Pagu, nome, aliás, sugerido por Elisabeth Lobo. A partir do ano seguinte, organizamos seminários, palestras, discussões, fizemos planos e mais planos, criamos, enfim, um espaço destinado a pesquisar assuntos ligados inicialmente à feminilidade e poste- 49
  • 53. Epistemologia feminista, gênero e história riormente à masculinidade, para o qual se integraram várias ou- tras intelectuais prestigiadas, como a antropóloga Suely Koffes e a socióloga Ana Maria Goldani. Iniciamos a publicação de uma revista e o Cadernos Pagu não tem cessado de se difundir. Construção social e cultural das diferenças sexuais, assim se definiu o “gênero”, categoria que trazia muito desconforto para todas nós pelo desconhecimento que a cercava. Afinal, estáva- mos acostumadas, principalmente as historiadoras e sociólogas, a lidar com conceitos acabados como classe, informados por todo um sistema de pensamento extremamente articulado e, nesse contexto, o gênero aparecia solto, meio que caído do Norte para nos explicar a nós mesmas. Creio que a experiência das antropólogas nos servia também como uma importante re- ferência, pela maneira menos estruturada de olhar e trabalhar. A perplexidade foi sendo progressivamente vencida à medi- da em que nos inteirávamos de que esta também era uma cate- goria relativamente recente nos países do Primeiro Mundo, sen- do que, na França, muitas feministas se recusavam a incorporá- la. De qualquer maneira, tornou-se obrigatória a leitura da his- toriadora norte-americana Joan W. Scott, que felizmente já era respeitada nos meios acadêmicos masculinos por suas pesquisas anteriores na área de trabalho e movimentos sociais.32 Esse respaldo foi extremamente importante para referen-dar uma posição absolutamente nova e desafiadora em nossas ins- tituições tão cristalizadas. Aos poucos, o sucesso da categoria por todo o país repercutiu vigorosamente em nossas próprias práticas, facilitando a valorização do trabalho das intelectuais 32 Refiro-me a Scott, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, 16(2): 5-22, jul/dez de 1990. 50 Descobrindo historicamente o gênero
  • 54. Epistemologia feminista, gênero e história feministas, nem sempre bem vistas, como sabemos. A risadinha deu espaço à curiosidade e, aos poucos, os antropólogos, histo- riadores e sociólogos, e não apenas algumas intelectuais, passa- ram a pensar na importância da sexualização do discurso histo- riográfico. O feminismo saía do gueto e irradiava seus fluidos mornos e positivos pela academia. É bem verdade que a entrada das mulheres nos círculos uni- versitários já vinha produzindo uma certa feminização do espa- ço acadêmico e das formas da produção dos saberes. Em outras palavras, desde os anos setenta, as mulheres entravam maciça- mente nas universidades e passavam a reivindicar seu lugar na História. Juntamente com elas, emergiam seus temas e proble- matizações, seu universo, suas inquietações, suas lógicas dife- renciadas, seus olhares desconhecidos. Progressivamente, a cul- tura feminina ganhou visibilidade, tanto pela simples presença das mulheres nos corredores e nas salas de aula, como pela pro- dução acadêmica que vinha à tona. Histórias da vida privada, da maternidade, do aborto, do amor, da prostituição, da infância e da família, das bruxas e loucas, das fazendeiras, empresárias, en- fermeiras ou empregadas domésticas, fogões e panelas invadi- ram a sala e o campo de observação intelectual ampliou-se con- sideravelmente. O mundo acadêmico ganhava, assim, novos contornos e novas cores. Da história das mulheres passamos repentinamente a falar na categoria do gênero, entre as décadas de 1980 e 1990. Uma imensa literatura abriu-se, então, para nós: as pósestruturalistas, com Derrida e Foucault à frente, dissolvendo os sujeitos e apontando para a dimensão relacional da nova categoria; as marxistas, procurando integrar rapidamente a nova categoria em seu sistema de pensamento, sempre muito preocupadas em 51 Descobrindo historicamente o gênero
  • 55. Epistemologia feminista, gênero e história garantir o lugar outrora hegemônico e agora compartilhado do conceito de classe. Era como se nos dissessem: “tudo bem, pensaremos as relações sexuais, mas desde que respeitemos que a divisão social é mais importante do que a sexual.” As hierar- quias eram, então, rapidamente repostas. E, finalmente, acena- vam as psicólogas, com suas propostas e interpretações, mais li- gadas às questões da maternidade e da crítica ao patriarcado. Progressivamente, as feministas ortodoxas, que relutavam em aceitar a reviravolta epistemológica em curso, por deslocar o foco do “sujeito mulher” para a análise das relações de gênero, questionavam o embaralhamento das identidades sexuais, apon- tando para a importância de se preservar a identidade feminina como forma de reforçar a agenda pública feminista e enca- minhar as lutas políticas atuais. De qualquer forma, foi ficando muito claro que vivíamos uma profunda mutação no campo do conhecimento e que esta não provinha apenas das problematizações levantadas pelo fe- minismo. De vários lados, do “pensamento da diferença”, da psicanálise, do novo historicismo, entre outras correntes críticas do pensamento, emergia a crítica à razão, ao sujeito universal e à lógica da identidade. O deslocamento do sujeito, a dissolução e historicização das identidades, a desnaturalização de inúmeras dimensões da vida social, cultural e sexual, um novo olhar se construía. Foucault preparara o terreno radicalmente, ao ques- tionar a naturalização do sujeito e as objetivações operadas pe- las práticas discursivas dominantes. O filósofo francês apontava para a maneira profundamente ahistórica com que trabalháva- mos sujeitos e objetos, denunciando a ilusão de que éramos ví- timas ao falarmos do sujeito universal, tomado por personagem não apenas “de carne e osso”, mas de quem tudo emanava. Lo- 52 Descobrindo historicamente o gênero
  • 56. Epistemologia feminista, gênero e história go, as feministas avançaram a crítica questionando a figura do sujeito unitário, racional, masculino que se colocava como re- presentante de toda a humanidade. As mulheres, portanto, não tinham história, absolutamente excluídas pela figura divina do Homem, que matara a Deus para se colocar em seu lugar. Passamos, então, a perceber o deslocamento que se operava de uma forma de pensamento “arborescente”, “pivotante”, co- mo diz Deleuze, fundado no privilégio do sujeito e, portanto, construído a partir da lógica da identidade, para as possibilida- des de um pensamento relacional e diferencial, ou “rizomático”, como propõe este.33 Trata-se, nessa referência, de perceber que as subjetividades são históricas e não naturais, que os sujeitos estão nos pontos de chegada e não de partida como acreditáva- mos então; e ainda, que as conexões podem ser estabelecidas entre campos, áreas, dimensões sem necessidade exterior préde- terminada. Mulher e Homem, Criança, ou Trabalhadora, Pros- tituta, Louca, nesse sentido, deveriam deixar de ser pensados como naturezas biologicamente determinadas, aspecto que se observa em todas as outras construções de identidade. A pró- pria noção de identidade era historicizada e questionada junta- mente com a ilusão da interioridade e da essência que a infor- mava. A figura do sujeito tal como a pensamos era definitiva- mente destruída, porque puramente ficcional. E passamos a re- conhecer a reposição da mesma figura do sujeito em toda a par- te, disfarçada, como diria Deleuze, por seu próprio nome.34 33 Sobre o pensamento arborescente e o rizomático, veja-se Deleuze, G. e Guattari, F. Mil Platôs. São Paulo, Editora 34, 1996. 34 G. Deleuze e F. Guattari afirmam que escreveram o livro a dois, mas como cada um são muitos, o livro foi feito por várias pessoas. Contudo, pensaram que seria conveniente manter seus próprios nomes, porque esta seria a melhor 53 Descobrindo historicamente o gênero
  • 57. Epistemologia feminista, gênero e história Há, ainda hoje, uma enorme resistência, sobretudo por parte dos intelectuais de tradição marxista, ortodoxa e heterodoxa, para entenderem a dissolução do sujeito operada por Foucault. Não se trata, nessa lógica, de negar a existência dos seres humanos e de suas práticas, como muitos afirmam, e muito me- nos de encerrá-los nas grades disciplinares, atando suas capaci- dades criadoras, mas de denunciar estas formas de prisão que não se objetivam apenas no espaço carcerário propriamente di- to. Na perspectiva foucaultiana, é bom lembrar, a identidade é outra das grades que nos encerra, sobretudo a partir do século 19, assim como os micropoderes da vida cotidiana, com que convivíamos até então com certa normalidade. O filósofo de- nuncia a armadilha de que temos sido vítimas ao tomarmos um modo histórico de produção da subjetividade, marcado funda- mentalmente pela dimensão da sujeição na sociedade burguesa, desde fins do século 18, como sendo natural para qualquer mo- mento histórico. Nessa perspectiva, o indivíduo é uma constru- ção relativamente recente, assim como o próprio social. E, mui- to longe do que propõe o Iluminismo enquanto emancipação do homem pela razão, temos nos abrigado sob os braços do Pai ou da Mãe, do Médico ou do Diretor espiritual, da Autoridade, enfim, ao invés de nos autonomizarmos pelo uso prático da própria capacidade reflexiva. Comparando os vitorianos aos an- tigos gregos e ainda aos romanos dos inícios da era cristã, Fou- cault evidencia diferentes modos de subjetivação e de sujeição ao longo da História. Com isso, propõe, para além das proble- matizações em torno de nossas imagens do poder e da produ- ção da verdade, uma história crítica dassubjetividades, o que maneira de passarem despercebidos. Id., ib., p.11. 54 Descobrindo historicamente o gênero
  • 58. Epistemologia feminista, gênero e história sem dúvida ainda está em grande parte por ser feito.35 Na área dos estudos feministas, a convergência das proble- matizações é evidente, muito embora a preocupação central, neste caso, seja a de questionar a dominação masculina consti- tutiva das práticas discursivas e não-discursivas, das formas de interpretação do mundo dadas como únicas e verdadeiras. As mulheres reivindicam a construção de uma nova linguagem, que revele a marca específica do olhar e da experiência cultural e historicamente constituída de si mesmas. Mais do que a in- clusão das mulheres no discurso histórico, trata-se, então, de encontrar as categorias adequadas para conhecer os mundos fe- mininos, para falar das práticas das mulheres no passado e no presente e para propor novas possíveis interpretações inima- gináveis na ótica masculina. Mais recentemente, a discussão se volta para os próprios homens, também eles excluídos dos cam- pos históricos em benefício da figura ficcional do Homem, construído à imagem de Deus. Deixando de lado a polêmica re- lativa à divisão de espaços que os estudos da masculinidade co- locam, não há dúvida de que também os homens se descobrem profundamente estrangeiros para si mesmos, ocultos que esta- vam numa interpretação que os elevava à categoria de deuses. A categoria do gênero permitiu, portanto, sexualizar as ex- periências humanas, fazendo com que nos déssemos conta de que trabalhávamos com uma narrativa extremamente dessexua- lizadora, pois embora reconheçamos que o sexo faz parte cons- titutiva de nossas experiências, raramente este é incorporado 35 Veja-se a respeito a brilhante tese de doutoramento de Prado Filho, Kleber. Trajetórias para a leitura de uma história crítica das subjetividades na produ- ção intelectual de Michel Foucault, defendida no Depto. de Sociologia da USP, 1998. 55 Descobrindo historicamente o gênero
  • 59. Epistemologia feminista, gênero e história enquanto dimensão analítica. É claro que não estou me refe- rindo apenas à importância dos estudos da sexualidade, como a história do amor, das práticas sexuais, da prostituição ou da ho- mossexualidade. Muito mais do que isto, penso na dimensão se- xual que constitui nossa subjetividade e que habita nossas prá- ticas cotidianas, muito além das relações especificamente se- xuais, como as entendemos. Uma partilha cultural que se tem até recentemente considerado como fundamental entre o uni- verso masculino e o feminino, separando os corpos e opondo- os entre si. Ao mesmo tempo o desejo é pouco pensado e pro- blematizado em nossos estudos, mesmo porque temos ainda operado com categorias pouco flexíveis que dão conta de al- gumas dimensões das relações sociais, muito mais racionais do que emocionais, psíquicas, intuitivas, sentimentais e afetivas, o que sem dúvida empobrece demais a experiência humana. A categoria do gênero permitiu nomear campos das práticas sociais e individuais que conhecemos mal, mas que intuímos de algum modo. “O que escapa às classificações”, como diz Luce Fabbri, no livro O Caminho, de 1952, em que define sua leitura do anarquismo. Fundamentalmente, passamos a perceber que o universo feminino é muito diferente do masculino, não simples- mente por determinações biológicas, como propôs o século 19, mas sobretudo por experiências históricas marcadas por valo- res, sistemas de pensamento, crenças e simbolizações diferen- ciadas também sexualmente. O gênero tornou-se um instrumento valioso de análise que permite nomear e esclarecer aspectos da vida humana com que vínhamos trabalhando, impulsionados pela pressão dos pró- prios documentos históricos. Para esclarecer, cito um exemplo em minha experiência de pesquisa. Tendo encontrado roman- 56 Descobrindo historicamente o gênero
  • 60. Epistemologia feminista, gênero e história ces femininos que falavam da prostituição já nos anos vinte em São Paulo, observei as diferenças de interpretação do fenôme- no pelo olhar masculino e pelo feminino. Ao contrário dos ro- mances masculinos, em que as prostitutas morrem ou se rege- neram indo viver no campo, a exemplo de Naná, de Emile Zo- la, ou Lucíola, de José de Alencar, Laura Villares, em Vertigem, romance de 1926, leva sua heroína, que se prostitui em São Paulo e em Buenos Aires, ao ser recusada pelo noivo na cidade- zinha do interior, a tornar-se rica e independente em Paris. A cena final do romance se passa às margens do Sena, onde ela circula alegremente, bonita e feliz. Encontrando-se com o anti- go noivo, que a convida para jantar, responde perguntando-lhe por sua esposa. Ao desvencilhar-se do pretendente, pensa con- sigo mesma que havia escapado da situação estar no lugar da- quela, presa num quarto de hotel, enquanto o marido seduzia outras mulheres. Sorri satisfeita consigo mesma. A prostituição, nesse imaginário, está associada à idéia da liberação feminina, já que a cocotte se civiliza via o comércio do corpo, passa a cir- cular nos espaços da sociabilidade das elites, enriquece-se pes- soal e financeiramente e descobre-se enquanto mulher, o que quer dizer, descobre o prazer sexual, o amor e o orgasmo. Apesar do romantismo e da ingenuidade desta leitura, foi-se tornando claro que as mulheres têm leituras do mundo bastante diferenciadas das dos homens, que agenciam o espaço de outra maneira, que o recortam a partir de uma perspectiva particular e que não tínhamos até então instrumentos conceituais para nos reportarmos a essas diferenciações. Ao mesmo tempo, parece- me um grande avanço podermos abrir novos espaços para a emergência de temas não pensados, de campos não problemati- zados, de novas formas de construção das relações sociais não 57 Descobrindo historicamente o gênero
  • 61. Epistemologia feminista, gênero e história imaginadas pelo universo masculino. Sem incorrer na ilusão de que as mulheres vêm libertar o mundo, acredito que a pluraliza- ção possibilitada pela negociação entre os gêneros é fundamen- tal não só para a construção de um novo pacto ético, mas para a própria construção de um ser humano menos fragmentado entre um lado supostamente masculino, ativo e racional e outro feminino, passivo e emocional. A superação da lógica binária contida na proposta da análise relacional do gênero, nessa dire- ção, é fundamental para que se construa um novo olhar aberto às diferenças. Entendo também que a categoria do gênero não vem subs- tituir nenhuma outra, mas atende à necessidade de ampliação de nosso vocabulário para darmos conta da multiplicidade das dimensões constitutivas das práticas sociais e individuais. Neste caso, a dimensão sexual. O sexo participou indubitavelmente e de forma central na construção histórica de nossa identidade pessoal e coletiva, especialmente no Brasil, mas foi por muito tempo colocado à margem na leitura das práticas sociais. A des- construção dos mitos fundadores, acredito, passa pela leitura do gênero de sua própria produção, ao lado de outras dimensões, é claro. Mas, fundamentalmente, é importante que possamos per- ceber a construção das diferenças sexuais histórica e cultural- mente determinada, desnaturalizando portanto as representa- ções cristalizadas no imaginário social. E isto não só na leitura do passado, mas na própria construção de formas mais liber- tárias de convivência no presente. A amizade só é possível entre iguais, explica Maquiavel, e as negociações entre grupos sociais, étnicos ou sexuais só podem ser feitas desde que o espaço se deshierarquize e se abra , de modo mais libertário, à entrada das multiplicidades e de novas subjetividades. 58 Descobrindo historicamente o gênero
  • 62. Edgar Rodrigues: História do Movimento anarquista no Brasil. História do Movimento anarquista em Portugal. Carme Blanco: Casas anarquistas de Mulleres libertarias. Maître Simon: Viaxe humorística a través das relixións e os dogmas. [Edição ilustrada] Voltairine de Clayre: Desobediência civil. Fundamentos da ação direta. Rudolf Rocker: Porque sou anarquista. Leandro Pita Romero: O anarquista. Emma Goldman: O indivíduo na sociedade. Maurice Joyeux: Autogestão, gestão operária, gestão directa. Deirdre Hogan: Feminismo, classe e anarquismo. Emile Pouget: A sabotagem. Outras publicações da CNT Todas à venda em edição impresa, aliás de disponiveis para descarga livre no web www.cntgaliza.org