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A Moradia 
A 
Piotr Kropotkin* 
Tradução: Cibele Saliba Rizek 
Socióloga, professora doutora do Departamento de Arquitetura e 
Urbanismo da EESC-USP, Av. Trabalhador Sancarlense, 400, 
Centro, CEP 13566-590, São Carlos, SP, (16) 3373-9822, 
cibele@uol.com.br 
referência 
I 
queles que acompanham com atenção as 
transformações espirituais dos trabalhadores, 
certamente observaram que um acordo se 
estabeleceu, sorrateiramente, a respeito de uma 
importante questão: a questão da habitação. Um 
fato é certo: tanto nas grandes quanto em várias 
pequenas cidades da França, os trabalhadores, pouco 
a pouco, concluem que as moradias habitadas não 
podem ser, em absoluto, de propriedade daqueles 
que são reconhecidos pelo Estado como seus 
proprietários. 
Trata-se de uma evolução que se completa nos 
espíritos, de forma que não será mais possível levar 
o povo a acreditar que o direito de propriedade 
das moradias é justo. 
A moradia não foi construída pelos proprietários; 
foi construída, decorada, coberta por papéis de 
parede, por centenas de trabalhadores que a fome 
empurrou para os canteiros de obras e que foram 
compelidos a aceitar um salário diminuto pelas 
necessidades de sobrevivência. 
O dinheiro gasto pelo pretenso proprietário não é 
um produto de seu próprio trabalho. Ele o acumulou, 
assim como se acumulam todas as riquezas, 
pagando aos trabalhadores dois terços ou apenas 
a metade daquilo que lhes era devido. 
Enfim, a moradia adquire seu valor atual graças ao 
lucro – e é sobretudo aqui que a enormidade salta 
aos olhos – que o proprietário consegue extrair 
dela. Ora, este lucro é resultante das circunstâncias 
relativas ao fato de que a moradia foi construída 
em uma cidade pavimentada, iluminada a gás, em 
comunicação regular com outras cidades, que reúne 
no seu interior estabelecimentos industriais, de 
comércio, ciência e arte; ao fato de que esta cidade 
está equipada com pontes, estações, monumentos 
de arquitetura que oferecem ao habitante mil 
elementos de conforto e mil prazeres desconhecidos 
nas aldeias; pelo menos vinte, trinta gerações 
trabalharam para tornar a cidade habitável, para 
saneá-la e embelezá-la. 
O valor de uma moradia em certos bairros de Paris 
é milionário, não porque ela contenha milhões em 
trabalho em suas paredes, mas porque ela está em 
Paris; porque depois de séculos, os operários, os 
artistas, os pensadores, os estudiosos e literatos 
contribuíram para fazer de Paris o que ela é hoje 
em dia: um centro industrial, comercial, político, 
artístico e científico; porque ela tem um passado; 
porque , graças à literatura, suas ruas são conhecidas, 
tanto no interior da França como nos países 
estrangeiros; porque ela é o produto do trabalho 
de dezoito séculos, de cinqüenta gerações de toda 
a nação francesa. 
Assim, quem tem o direito de se apropriar da mais 
ínfima parte desse terreno ou da última de suas 
construções, sem cometer uma injustiça gritante? 
Quem, portanto, tem o direito de vender a quem 
quer que seja a menor parcela desse patrimônio 
comum? 
Afirmamos que, a esse respeito, estabeleceu-se um 
acordo entre os trabalhadores. A idéia da moradia 
gratuita se manifestou durante a ocupação de Paris, 
De origem aristocrática, 
nascido em Moscou no ano 
de 1842, Piotr Alexeevich 
Kropotkin cursou a escola 
militar (Escola de Pagens) 
diretamente voltada para a 
formação da elite palaciana 
russa, servindo em seguida o 
exército do Czar, tendo 
atuado principalmente como 
geógrafo na Ásia oriental até 
os 30 anos de idade. Em 1872 
viaja à Suiça e lá desenvolve 
suas convicções políticas 
críticas da dominação 
capitalista, que vinha 
alimentando há algum tempo 
em sua terra. Do socialismo 
deriva ao anarquismo, 
elaborando a noção da 
cooperação voluntária em 
oposição à desigualdade 
social e à propriedade privada 
que fundamentariam o 
Estado. Segundo o verbete 
Anarquismo que elaborou 
para a Enciclopédia Britânica 
(1910), Anarquismo seria: “o 
nome dado ao princípio ou 
teoria de vida e conduta em 
que a sociedade é concebida 
sem governo — a harmonia 
em tal sociedade é obtida, 
não pela submissão a leis, ou 
pela obediência a alguma 
autoridade, mas pela livre 
concordância estabelecida 
entre vários grupos, 
territoriais e profissionais, 
livremente constituídos em 
favor da produção e do 
consumo, e também para a 
satisfação da infinita 
variedade de necessidades e 
aspirações de um ser 
r sco 3 2[2006 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do departamento de arquitetura e urbanismo eesc-usp 105
A Moradia 
quando se reivindicava a pura e simples anulação 
dos aluguéis reclamados pelos proprietários. Ela 
se manifestou durante a Comuna de 1871, quando 
a Paris operária esperava do Conselho da Comuna 
uma decisão viril sobre a abolição dos aluguéis. 
Esta será a primeira preocupação do homem pobre 
quando a Revolução eclodir. 
Em condições de revolução ou não, o trabalhador 
precisa de um abrigo, de uma habitação. Mas, seja 
ela inadequada ou insalubre, há sempre um 
proprietário que pode vos expulsar. É verdade que 
em uma revolução o proprietário não encontrará 
um oficial de justiça ou sargentos de polícia para 
jogar vossos trastes na rua. Mas, quem sabe se 
amanhã o novo governo, por mais que se pretenda 
revolucionário, não recobrará suas forças e não 
lançará a matilha policial contra vós! Pôde-se 
constatar que a Comuna proclamou a anulação 
dos aluguéis em dívida até 11 de abril – mas somente 
a partir do primeiro de abril!1 Depois dessa data 
era preciso pagar, mesmo que Paris estivesse sem 
eira nem beira, mesmo que a indústria estivesse 
parada e sem empregos e que os revolucionários 
não tivessem recursos além de seus trinta vinténs! 
Entretanto, é preciso que o trabalhador saiba que 
não pagando o proprietário, ele apenas aproveita 
a desorganização do poder. É preciso que ele saiba 
que a gratuidade da moradia é reconhecida por 
princípio e sancionada, por assim dizer, pelo 
consentimento popular; que a moradia gratuita é 
um direito, proclamado em alto e bom som pelo 
povo. 
Pois bem, vamos esperar que essa medida, que 
responde tão bem ao sentimento de justiça de todo 
homem honesto, seja tomada pelos socialistas que 
se encontram misturados aos burgueses em um 
governo provisório? Esperaríamos um bom tempo 
– até o retorno da reação! 
Eis porque, recusando o cachecol e o boné – signos 
de comando e submissão - permanecendo povo 
no meio do povo, os revolucionários sinceros 
trabalharão com esse mesmo povo para que a 
expropriação das moradias se torne um fato acabado. 
Trabalharão para criar uma corrente de idéias nessa 
direção; trabalharão para pôr essas idéias em prática 
e, quando elas amadurecerem, o povo realizará a 
expropriação das habitações, sem dar ouvidos às 
teorias que certamente cruzarão seu caminho sobre 
indenizações a pagar aos proprietários e outras 
baboseiras. 
No dia em que as casas forem expropriadas, os 
explorados, os trabalhadores terão compreendido 
que os novos tempos chegaram, que não restarão 
mais espinhas dorsais curvadas diante dos ricos e 
poderosos, que a Igualdade foi afirmada em plena 
luz, que a Revolução é um fato consumado e não 
um jogo teatral como já vimos por um número 
excessivo de vezes. 
II 
Se a idéia da expropriação se tornar popular, a 
execução prática não encontrará obstáculos 
insuperáveis, com que tanto se aprecia nos ameaçar. 
Certamente, os senhores que terão ocupado as 
poltronas vazias dos ministérios e da Prefeitura, 
devidamente adornados com seus galões, não 
deixarão de amontoar obstáculos. Mencionarão 
acordos com os proprietários sobre indenizações, 
levantarão estatísticas, elaborarão longos relatórios 
– tão longos que poderiam durar até o momento 
em que o povo, arrasado pela miséria e pelo 
desemprego, vendo que nada acontece, acabe por 
perder a fé na Revolução, deixando o campo livre 
aos reacionários, o que acabaria por tornar a 
expropriação burocrática odiosa aos olhos de todos. 
Quanto a isto há, com efeito, um obstáculo diante 
do qual tudo pode fracassar. Mas se o povo não se 
render às falsas razões com as quais se tenta ofuscá-lo; 
se compreender que uma vida nova exige 
procedimentos novos e se tomar por si mesmo a 
dura tarefa nas suas mãos – então, a expropriação 
poderá se fazer sem grandes dificuldades. 
_”Mas como? Como ela poderia ser feita?” – 
perguntar-nos-iam. –Sim, diremos, mas com uma 
certa reserva. Repugna-nos traçar nos mínimos 
detalhes os planos de expropriação. Sabemos de 
antemão que tudo que um homem ou um grupo 
podem sugerir hoje será superado pela vida humana. 
Esta, já dissemos, fará melhor - e com mais 
simplicidade - tudo o que se possa prever 
antecipadamente. 
civilizado. Em uma sociedade 
desenvolvida nessas linhas, 
as associações voluntárias 
que estarão presentes em 
todos os campos da atividade 
humana se extenderão de tal 
forma que substituirão o 
estado em todas suas 
funções. Elas constituirão 
uma rede composta por uma 
variedade infinita de grupos 
e federações de todos os 
tamanhos e graus, locais, 
regionais, nacionais e 
internacionais temporárias ou 
mais ou menos permanentes 
— para todos os possíveis 
propósitos: produção, 
consumo e troca, 
comunicações, arranjos 
sanitários, educação, 
proteção mútua, defesa do 
território, e assim por diante; 
e, por outro lado, para a 
satisfação de um número 
crescente de necessidades 
científicas, artísticas, literárias 
e sociais”. 
Dentre seus escritos 
destacam-se: A Conquista do 
Pão; Campos, Fábricas e 
Oficinas; Ajuda Mútua: Um 
Fator de Evolução; Em Torno 
de uma Vida ou Memórias de 
um Revolucionário, 
autobiografia; Humanismo 
Libertário e a Ciência 
Moderna. 
Kropotkin, permaneceu vários 
anos na Europa, com breves 
retornos à Russia, 
regressando em definitivo em 
maio de 1917, as portas da 
revolução de outubro 
daquele ano. Suas idéias o 
colocaram em conflito com as 
orientações do Partido 
Bolchevique, não tendo 
participado do governo 
provisório. Faleceu em 
Moscou em 1921. (N.E.) 
r sco 3 2[2006 referência 106
A Moradia 
E ainda, esboçando o método de acordo com o 
qual a expropriação e a repartição das riquezas 
expropriadas poderiam ser feitas sem a intervenção 
do governo, queremos apenas responder àqueles 
que declaram que isso é impossível. Mas insistimos 
em lembrar que de modo algum pretendemos 
preconizar esta ou aquela maneira de se organizar. 
O que nos importa é demonstrar apenas que a 
expropriação pode ser feita pela iniciativa popular 
e não pode ser feita de outro modo. 
É possível prever que, desde os primeiros atos de 
expropriação, venha a surgir nos bairros, na rua, 
nos blocos de casas, grupos de cidadãos de boa 
vontade que virão oferecer seus serviços para 
contabilizar apartamentos vazios, apartamentos 
atravancados por famílias numerosas, habitações 
insalubres e casas que, espaçosas demais para seus 
ocupantes, possam ser ocupadas por aqueles a 
quem falte o ar em suas choupanas. Em alguns 
dias, esses voluntários desfiarão pelas ruas e pelos 
bairros listas completas de todos os apartamentos 
salubres e insalubres, pequenos e espaçosos, 
habitações infectas e mansões suntuosas. 
Eles divulgarão livremente suas listas e, em pouco 
tempo, terão estatísticas completas. As estatísticas 
mentirosas podem ser fabricadas nos escritórios; a 
estatística verdadeira, exata, pode vir apenas de 
um indivíduo, remontando-se do simples ao 
composto. 
Então, sem esperar nada de ninguém, provavelmente 
os cidadãos encontrarão seus camaradas que 
habitam pardieiros e lhes dirão simplesmente: 
“Desta vez, camaradas, é a revolução de verdade. 
Venham esta noite a tal lugar. Todo o bairro estará 
lá e os apartamentos serão repartidos. Se não lhes 
convêm seus casebres, escolherão um dos 
apartamentos de cinco cômodos que estejam 
disponíveis. E assim que tiverdes feito a mudança, 
será negócio fechado. O povo armado falará àquele 
que queira vir para vos desalojar!” 
_” Mas todo mundo vai querer ter um apartamento 
de vinte cômodos” – dir-nos-iam. 
Isso não é verdade! O povo jamais exigiu ter a lua 
dentro de um balde de água. Ao contrário, cada 
vez que vemos aqueles que são iguais entre si 
corrigindo uma injustiça, somos tocados pelo bom 
senso e pelo sentimento de justiça pelos quais a 
massa é animada. Já se viu alguma vez a exigência 
do impossível? Já se viu o povo de Paris brigando 
quando ia receber sua ração de pão ou de lenha 
durante estes dois séculos? – Ficava-se na fila com 
uma resignação que os correspondentes dos jornais 
estrangeiros não se cansavam de admirar; e, no 
entanto, se sabia que os últimos a chegar passariam 
o dia sem pão e sem fogo. 
É certo que há instintos egoístas em demasia nos 
indivíduos isolados em nossas sociedades. Sabemos 
bem. Mas sabemos também que o melhor meio 
de despertar e nutrir estes instintos é confiar a 
questão da habitação a um escritório qualquer. 
Então, com efeito, todas as más paixões viriam à 
luz. Isso seria dirigido a quem tivesse uma mão 
forte em um escritório. A menor desigualdade 
estimularia os gritos; a menor vantagem dada a 
alguém geraria acusações – e não sem razão. 
Mas quando o povo mesmo, reunido nas ruas, 
nos bairros, nos setores da cidade, se encarrega de 
fazer os habitantes mudarem dos casebres para os 
apartamentos muito espaçosos dos burgueses, as 
inconveniências, as pequenas desigualdades seriam 
mais levemente consideradas. Raramente se fizeram 
apelos aos bons instintos das massas. Esses apelos 
foram feitos algumas vezes durante as revoluções, 
quando se tratava de salvar um barco que afundava 
- e jamais houve engano. Os trabalhadores, aqueles 
que labutam sempre responderam a esses apelos 
com abnegação. 
O mesmo vai ocorrer na próxima revolução. 
Apesar de tudo, provavelmente haverá injustiça. 
Não se saberá evitá-la. Em nossa sociedade há 
indivíduos que, por nenhum acontecimento, 
deixarão suas rotinas egoístas. Mas a questão não 
é saber se existirão injustiças ou não. A questão é 
saber como será possível limitar sua quantidade. 
Pois bem, toda história, toda experiência da 
humanidade, assim como a psicologia das 
sociedades estão aí para dizer que o modo mais 
equânime é remeter a questão aos interessados. 
r sco 3 2[2006 referência 107
A Moradia 
Além disso, apenas eles poderão considerar e regrar 
os mil detalhes que escapam necessariamente a 
toda repartição burocrática. 
III 
Além disso, não se trata absolutamente de fazer 
uma repartição igual das habitações; entretanto, 
os inconvenientes que perdurarem seriam facilmente 
reparados em uma sociedade que está no caminho 
da expropriação. 
Assim que os pedreiros, os trabalhadores da cantaria 
– aqueles trabalhadores da “construção”, em 
resumo - souberem que têm sua existência 
assegurada, eles retomariam de bom grado o 
trabalho a que estão acostumados por algumas 
horas por dia. Eles transformariam e reformariam 
os grandes apartamentos que necessitam de um 
Estado Maior de criados. E, em alguns meses, as 
casas salubres de modo diverso daquelas dos nossos 
dias, terão surgido. Àqueles que não estiverem 
suficientemente bem instalados, a Comuna 
anarquista poderá dizer: 
“Tenham paciência camaradas! Palácios salubres, 
confortáveis e belos, superiores em tudo àqueles 
que os capitalistas construíam, vão se erguer do 
solo de uma cidade livre. Eles serão daqueles que 
tiverem mais necessidade. A Comuna Anarquista 
não constrói para obter retorno em rendas. Os 
monumentos que ela erige para os cidadãos, 
produto do espírito coletivo, servirão de modelo à 
humanidade inteira – eles serão vossos!” 
Se o povo revoltado expropria as casas e proclama 
a gratuidade da moradia, a coletivização da habitação 
e o direito de cada família a uma habitação salubre, 
a Revolução terá ganho, desde o começo, um caráter 
comunista anarquista; caso contrário, 
permaneceremos atolados na lama do 
individualismo autoritário. 
É fácil prever as mil objeções que nos serão feitas, 
algumas de ordem teórica, outras de ordem prática. 
Isso porque tratar-se-á de manter a qualquer preço 
a iniqüidade, falando certamente em nome da 
justiça: -”Não é infame, escrever-se-á, que os 
parisienses se apoderem de belas casas e deixem 
os camponeses em choupanas?” Porém não nos 
enganemos. Os companheiros enraivecidos por 
justiça esquecem, por uma guinada de espírito que 
lhe é própria, a gritante desigualdade da qual se 
fazem defensores. 
Eles esquecem que, nessa mesma Paris, os 
trabalhadores estão sufocados em pardieiros – o 
trabalhador, sua mulher e seus filhos - ao mesmo 
tempo que, de sua janela, vêem-se os palácios dos 
ricos. Esquecem que gerações inteiras perecem em 
bairros atravancados, com falta de ar e de sol e que 
reparar essa injustiça deveria ser o primeiro dever 
da Revolução. 
Não nos detenhamos, assim, nessas reclamações 
interessadas. Sabemos que a desigualdade, que 
realmente existirá ainda entre Paris e as aldeias, é 
daquelas que diminuirá a cada dia; a aldeia não 
deixará de prover-se com habitações mais salubres 
do que as que existem hoje, assim que o camponês 
deixar de ser o animal de carga do fazendeiro, do 
fabricante, do agiota e do Estado. Para evitar uma 
injustiça temporária e reparável, será preciso manter 
a injustiça que existe há séculos? 
As objeções práticas também não são nada 
formidáveis. 
“Então é assim, dir-nos-ia um pobre diabo. Passando 
por privações, ele chegou a comprar uma moradia 
grande o suficiente para abrigar a família. Ele está 
tão feliz; vocês vão jogá-lo na rua também?” 
-Certamente não! Se a casa é suficiente apenas 
para abrigar sua família, que ele a habite! Que 
cultive o jardim sob sua janela! Nossos companheiros 
vão até mesmo lhe dar uma ajuda. Mas se houver 
dentro da moradia um apartamento que ele aluga 
a alguém, o povo irá encontrá-lo e lhe dirá: “Sabe, 
camarada, que você não deve mais nada a esse 
velho? Fique no seu apartamento e não pague mais 
nada: não é preciso temer o oficial de justiça, é o 
socialismo!” 
E se o proprietário ocupa sozinho vinte quartos e 
no bairro exista uma mãe com cinco filhos que 
moram em um único cômodo, pois bem, o povo 
verá que, em vinte quartos, depois de algumas 
reformas, é possível fazer uma boa moradia para a 
r sco 3 2[2006 referência 108
A Moradia 
mãe com os cinco filhos. Isso não é mais justo do 
que deixar a mãe com os cinco rebentos em um 
pardieiro e o senhor à vontade em seu castelo? 
Além disso o senhor se acostumará rapidamente, 
já que não terá mais empregados para arrumar os 
vinte quartos e sua esposa burguesa ficará encantada 
em se livrar da metade do apartamento. 
“Mas isso seria uma inversão completa”, escreverão 
os defensores da ordem. “mudanças que não terão 
fim! Seria melhor jogar todo mundo na rua e sortear 
os apartamentos!”. Muito bem, estamos 
convencidos que, se nenhuma espécie de governo 
se meter e se toda a transformação ficar confinada 
às mãos dos grupos que surgirem espontaneamente 
para essa árdua tarefa, os deslocamentos serão 
menos numerosos que aqueles que acontecem no 
espaço de um ano em razão da rapacidade2 dos 
proprietários. 
Há, em primeiro lugar, em todas as cidades de 
tamanho considerável um tão grande número de 
apartamentos desocupados que eles acabam quase 
por ser suficientes para alojar a maior parte dos 
habitantes dos cortiços. Quanto aos palácios e aos 
apartamentos suntuosos, muitas famílias operárias 
não chegariam a desejá-los: só se pode utilizá-los 
se forem mantidos por numerosa criadagem. Seus 
ocupantes ainda seriam forçados a procurar 
habitações menos luxuosas, e as esposas dos 
banqueiros teriam que cozinhar por si e para si 
mesmas. Pouco a pouco, sem que fosse necessário 
acompanhar o banqueiro com uma escolta de 
baionetas para uma mansarda e o habitante da 
mansarda para o palácio do banqueiro, a população 
repartir-se-á amigavelmente pelas habitações 
existentes, fazendo o mínimo de mudanças 
possíveis. Veremos as comunas agrárias distribuindo 
os campos, incomodando o mínimo possível os 
camponeses parcelários, de tal modo que só nos 
resta constatar o bom senso e a sagacidade dos 
procedimentos a que a Comuna recorre. Houve 
menos transferências de um território a outro com 
a Comuna Russa – que se estabeleceu por meio de 
vários levantamentos – do que com a propriedade 
individual com seus processos conduzidos diante 
dos tribunais. E querem nos fazer crer que os 
habitantes de uma cidade européia seriam mais 
bestiais ou menos organizados do que camponeses 
russos ou hindus. 
Além disso, toda revolução implica em uma certa 
transformação na vida cotidiana e aqueles que 
esperam atravessar uma grande crise sem que a 
burguesia seja jamais incomodada em suas refeições 
abastadas, correm o risco de ficar desapontados. 
Pode-se mudar de governo sem que o bom burguês 
jamais perca a hora do jantar; entretanto, desse 
modo, os crimes de uma sociedade contra aqueles 
que produzem refeição tão nutritiva não podem 
ser reparados. 
Haverá transtorno e isso é certo. Mas é preciso que 
esse transtorno não seja pura perda, é preciso que 
ela seja reduzida ao mínimo. E é ainda se voltando 
para os interesses – não cessamos de repetir- e 
não apenas aos escritórios – que se poderá obter a 
menor quantidade possível de inconvenientes para 
todos. 
O povo comete um erro atrás do outro quando 
tem que escolher nas urnas entre homens de soberba 
que disputam a honra de representá-lo e se 
encarregam de tudo fazer, saber e organizar. Mas 
quando ele tem que organizar aquilo que conhece, 
o que o toca diretamente, ele o faz melhor que 
todos os burocratas. Não foi isso que vimos na 
Comuna? E também na última greve em Londres? 
Não é isso que vemos todos os dias em cada comuna 
camponesa? 
r sco 3 2[2006 referência 109

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A moradia

  • 1. A Moradia A Piotr Kropotkin* Tradução: Cibele Saliba Rizek Socióloga, professora doutora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP, Av. Trabalhador Sancarlense, 400, Centro, CEP 13566-590, São Carlos, SP, (16) 3373-9822, cibele@uol.com.br referência I queles que acompanham com atenção as transformações espirituais dos trabalhadores, certamente observaram que um acordo se estabeleceu, sorrateiramente, a respeito de uma importante questão: a questão da habitação. Um fato é certo: tanto nas grandes quanto em várias pequenas cidades da França, os trabalhadores, pouco a pouco, concluem que as moradias habitadas não podem ser, em absoluto, de propriedade daqueles que são reconhecidos pelo Estado como seus proprietários. Trata-se de uma evolução que se completa nos espíritos, de forma que não será mais possível levar o povo a acreditar que o direito de propriedade das moradias é justo. A moradia não foi construída pelos proprietários; foi construída, decorada, coberta por papéis de parede, por centenas de trabalhadores que a fome empurrou para os canteiros de obras e que foram compelidos a aceitar um salário diminuto pelas necessidades de sobrevivência. O dinheiro gasto pelo pretenso proprietário não é um produto de seu próprio trabalho. Ele o acumulou, assim como se acumulam todas as riquezas, pagando aos trabalhadores dois terços ou apenas a metade daquilo que lhes era devido. Enfim, a moradia adquire seu valor atual graças ao lucro – e é sobretudo aqui que a enormidade salta aos olhos – que o proprietário consegue extrair dela. Ora, este lucro é resultante das circunstâncias relativas ao fato de que a moradia foi construída em uma cidade pavimentada, iluminada a gás, em comunicação regular com outras cidades, que reúne no seu interior estabelecimentos industriais, de comércio, ciência e arte; ao fato de que esta cidade está equipada com pontes, estações, monumentos de arquitetura que oferecem ao habitante mil elementos de conforto e mil prazeres desconhecidos nas aldeias; pelo menos vinte, trinta gerações trabalharam para tornar a cidade habitável, para saneá-la e embelezá-la. O valor de uma moradia em certos bairros de Paris é milionário, não porque ela contenha milhões em trabalho em suas paredes, mas porque ela está em Paris; porque depois de séculos, os operários, os artistas, os pensadores, os estudiosos e literatos contribuíram para fazer de Paris o que ela é hoje em dia: um centro industrial, comercial, político, artístico e científico; porque ela tem um passado; porque , graças à literatura, suas ruas são conhecidas, tanto no interior da França como nos países estrangeiros; porque ela é o produto do trabalho de dezoito séculos, de cinqüenta gerações de toda a nação francesa. Assim, quem tem o direito de se apropriar da mais ínfima parte desse terreno ou da última de suas construções, sem cometer uma injustiça gritante? Quem, portanto, tem o direito de vender a quem quer que seja a menor parcela desse patrimônio comum? Afirmamos que, a esse respeito, estabeleceu-se um acordo entre os trabalhadores. A idéia da moradia gratuita se manifestou durante a ocupação de Paris, De origem aristocrática, nascido em Moscou no ano de 1842, Piotr Alexeevich Kropotkin cursou a escola militar (Escola de Pagens) diretamente voltada para a formação da elite palaciana russa, servindo em seguida o exército do Czar, tendo atuado principalmente como geógrafo na Ásia oriental até os 30 anos de idade. Em 1872 viaja à Suiça e lá desenvolve suas convicções políticas críticas da dominação capitalista, que vinha alimentando há algum tempo em sua terra. Do socialismo deriva ao anarquismo, elaborando a noção da cooperação voluntária em oposição à desigualdade social e à propriedade privada que fundamentariam o Estado. Segundo o verbete Anarquismo que elaborou para a Enciclopédia Britânica (1910), Anarquismo seria: “o nome dado ao princípio ou teoria de vida e conduta em que a sociedade é concebida sem governo — a harmonia em tal sociedade é obtida, não pela submissão a leis, ou pela obediência a alguma autoridade, mas pela livre concordância estabelecida entre vários grupos, territoriais e profissionais, livremente constituídos em favor da produção e do consumo, e também para a satisfação da infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser r sco 3 2[2006 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do departamento de arquitetura e urbanismo eesc-usp 105
  • 2. A Moradia quando se reivindicava a pura e simples anulação dos aluguéis reclamados pelos proprietários. Ela se manifestou durante a Comuna de 1871, quando a Paris operária esperava do Conselho da Comuna uma decisão viril sobre a abolição dos aluguéis. Esta será a primeira preocupação do homem pobre quando a Revolução eclodir. Em condições de revolução ou não, o trabalhador precisa de um abrigo, de uma habitação. Mas, seja ela inadequada ou insalubre, há sempre um proprietário que pode vos expulsar. É verdade que em uma revolução o proprietário não encontrará um oficial de justiça ou sargentos de polícia para jogar vossos trastes na rua. Mas, quem sabe se amanhã o novo governo, por mais que se pretenda revolucionário, não recobrará suas forças e não lançará a matilha policial contra vós! Pôde-se constatar que a Comuna proclamou a anulação dos aluguéis em dívida até 11 de abril – mas somente a partir do primeiro de abril!1 Depois dessa data era preciso pagar, mesmo que Paris estivesse sem eira nem beira, mesmo que a indústria estivesse parada e sem empregos e que os revolucionários não tivessem recursos além de seus trinta vinténs! Entretanto, é preciso que o trabalhador saiba que não pagando o proprietário, ele apenas aproveita a desorganização do poder. É preciso que ele saiba que a gratuidade da moradia é reconhecida por princípio e sancionada, por assim dizer, pelo consentimento popular; que a moradia gratuita é um direito, proclamado em alto e bom som pelo povo. Pois bem, vamos esperar que essa medida, que responde tão bem ao sentimento de justiça de todo homem honesto, seja tomada pelos socialistas que se encontram misturados aos burgueses em um governo provisório? Esperaríamos um bom tempo – até o retorno da reação! Eis porque, recusando o cachecol e o boné – signos de comando e submissão - permanecendo povo no meio do povo, os revolucionários sinceros trabalharão com esse mesmo povo para que a expropriação das moradias se torne um fato acabado. Trabalharão para criar uma corrente de idéias nessa direção; trabalharão para pôr essas idéias em prática e, quando elas amadurecerem, o povo realizará a expropriação das habitações, sem dar ouvidos às teorias que certamente cruzarão seu caminho sobre indenizações a pagar aos proprietários e outras baboseiras. No dia em que as casas forem expropriadas, os explorados, os trabalhadores terão compreendido que os novos tempos chegaram, que não restarão mais espinhas dorsais curvadas diante dos ricos e poderosos, que a Igualdade foi afirmada em plena luz, que a Revolução é um fato consumado e não um jogo teatral como já vimos por um número excessivo de vezes. II Se a idéia da expropriação se tornar popular, a execução prática não encontrará obstáculos insuperáveis, com que tanto se aprecia nos ameaçar. Certamente, os senhores que terão ocupado as poltronas vazias dos ministérios e da Prefeitura, devidamente adornados com seus galões, não deixarão de amontoar obstáculos. Mencionarão acordos com os proprietários sobre indenizações, levantarão estatísticas, elaborarão longos relatórios – tão longos que poderiam durar até o momento em que o povo, arrasado pela miséria e pelo desemprego, vendo que nada acontece, acabe por perder a fé na Revolução, deixando o campo livre aos reacionários, o que acabaria por tornar a expropriação burocrática odiosa aos olhos de todos. Quanto a isto há, com efeito, um obstáculo diante do qual tudo pode fracassar. Mas se o povo não se render às falsas razões com as quais se tenta ofuscá-lo; se compreender que uma vida nova exige procedimentos novos e se tomar por si mesmo a dura tarefa nas suas mãos – então, a expropriação poderá se fazer sem grandes dificuldades. _”Mas como? Como ela poderia ser feita?” – perguntar-nos-iam. –Sim, diremos, mas com uma certa reserva. Repugna-nos traçar nos mínimos detalhes os planos de expropriação. Sabemos de antemão que tudo que um homem ou um grupo podem sugerir hoje será superado pela vida humana. Esta, já dissemos, fará melhor - e com mais simplicidade - tudo o que se possa prever antecipadamente. civilizado. Em uma sociedade desenvolvida nessas linhas, as associações voluntárias que estarão presentes em todos os campos da atividade humana se extenderão de tal forma que substituirão o estado em todas suas funções. Elas constituirão uma rede composta por uma variedade infinita de grupos e federações de todos os tamanhos e graus, locais, regionais, nacionais e internacionais temporárias ou mais ou menos permanentes — para todos os possíveis propósitos: produção, consumo e troca, comunicações, arranjos sanitários, educação, proteção mútua, defesa do território, e assim por diante; e, por outro lado, para a satisfação de um número crescente de necessidades científicas, artísticas, literárias e sociais”. Dentre seus escritos destacam-se: A Conquista do Pão; Campos, Fábricas e Oficinas; Ajuda Mútua: Um Fator de Evolução; Em Torno de uma Vida ou Memórias de um Revolucionário, autobiografia; Humanismo Libertário e a Ciência Moderna. Kropotkin, permaneceu vários anos na Europa, com breves retornos à Russia, regressando em definitivo em maio de 1917, as portas da revolução de outubro daquele ano. Suas idéias o colocaram em conflito com as orientações do Partido Bolchevique, não tendo participado do governo provisório. Faleceu em Moscou em 1921. (N.E.) r sco 3 2[2006 referência 106
  • 3. A Moradia E ainda, esboçando o método de acordo com o qual a expropriação e a repartição das riquezas expropriadas poderiam ser feitas sem a intervenção do governo, queremos apenas responder àqueles que declaram que isso é impossível. Mas insistimos em lembrar que de modo algum pretendemos preconizar esta ou aquela maneira de se organizar. O que nos importa é demonstrar apenas que a expropriação pode ser feita pela iniciativa popular e não pode ser feita de outro modo. É possível prever que, desde os primeiros atos de expropriação, venha a surgir nos bairros, na rua, nos blocos de casas, grupos de cidadãos de boa vontade que virão oferecer seus serviços para contabilizar apartamentos vazios, apartamentos atravancados por famílias numerosas, habitações insalubres e casas que, espaçosas demais para seus ocupantes, possam ser ocupadas por aqueles a quem falte o ar em suas choupanas. Em alguns dias, esses voluntários desfiarão pelas ruas e pelos bairros listas completas de todos os apartamentos salubres e insalubres, pequenos e espaçosos, habitações infectas e mansões suntuosas. Eles divulgarão livremente suas listas e, em pouco tempo, terão estatísticas completas. As estatísticas mentirosas podem ser fabricadas nos escritórios; a estatística verdadeira, exata, pode vir apenas de um indivíduo, remontando-se do simples ao composto. Então, sem esperar nada de ninguém, provavelmente os cidadãos encontrarão seus camaradas que habitam pardieiros e lhes dirão simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a revolução de verdade. Venham esta noite a tal lugar. Todo o bairro estará lá e os apartamentos serão repartidos. Se não lhes convêm seus casebres, escolherão um dos apartamentos de cinco cômodos que estejam disponíveis. E assim que tiverdes feito a mudança, será negócio fechado. O povo armado falará àquele que queira vir para vos desalojar!” _” Mas todo mundo vai querer ter um apartamento de vinte cômodos” – dir-nos-iam. Isso não é verdade! O povo jamais exigiu ter a lua dentro de um balde de água. Ao contrário, cada vez que vemos aqueles que são iguais entre si corrigindo uma injustiça, somos tocados pelo bom senso e pelo sentimento de justiça pelos quais a massa é animada. Já se viu alguma vez a exigência do impossível? Já se viu o povo de Paris brigando quando ia receber sua ração de pão ou de lenha durante estes dois séculos? – Ficava-se na fila com uma resignação que os correspondentes dos jornais estrangeiros não se cansavam de admirar; e, no entanto, se sabia que os últimos a chegar passariam o dia sem pão e sem fogo. É certo que há instintos egoístas em demasia nos indivíduos isolados em nossas sociedades. Sabemos bem. Mas sabemos também que o melhor meio de despertar e nutrir estes instintos é confiar a questão da habitação a um escritório qualquer. Então, com efeito, todas as más paixões viriam à luz. Isso seria dirigido a quem tivesse uma mão forte em um escritório. A menor desigualdade estimularia os gritos; a menor vantagem dada a alguém geraria acusações – e não sem razão. Mas quando o povo mesmo, reunido nas ruas, nos bairros, nos setores da cidade, se encarrega de fazer os habitantes mudarem dos casebres para os apartamentos muito espaçosos dos burgueses, as inconveniências, as pequenas desigualdades seriam mais levemente consideradas. Raramente se fizeram apelos aos bons instintos das massas. Esses apelos foram feitos algumas vezes durante as revoluções, quando se tratava de salvar um barco que afundava - e jamais houve engano. Os trabalhadores, aqueles que labutam sempre responderam a esses apelos com abnegação. O mesmo vai ocorrer na próxima revolução. Apesar de tudo, provavelmente haverá injustiça. Não se saberá evitá-la. Em nossa sociedade há indivíduos que, por nenhum acontecimento, deixarão suas rotinas egoístas. Mas a questão não é saber se existirão injustiças ou não. A questão é saber como será possível limitar sua quantidade. Pois bem, toda história, toda experiência da humanidade, assim como a psicologia das sociedades estão aí para dizer que o modo mais equânime é remeter a questão aos interessados. r sco 3 2[2006 referência 107
  • 4. A Moradia Além disso, apenas eles poderão considerar e regrar os mil detalhes que escapam necessariamente a toda repartição burocrática. III Além disso, não se trata absolutamente de fazer uma repartição igual das habitações; entretanto, os inconvenientes que perdurarem seriam facilmente reparados em uma sociedade que está no caminho da expropriação. Assim que os pedreiros, os trabalhadores da cantaria – aqueles trabalhadores da “construção”, em resumo - souberem que têm sua existência assegurada, eles retomariam de bom grado o trabalho a que estão acostumados por algumas horas por dia. Eles transformariam e reformariam os grandes apartamentos que necessitam de um Estado Maior de criados. E, em alguns meses, as casas salubres de modo diverso daquelas dos nossos dias, terão surgido. Àqueles que não estiverem suficientemente bem instalados, a Comuna anarquista poderá dizer: “Tenham paciência camaradas! Palácios salubres, confortáveis e belos, superiores em tudo àqueles que os capitalistas construíam, vão se erguer do solo de uma cidade livre. Eles serão daqueles que tiverem mais necessidade. A Comuna Anarquista não constrói para obter retorno em rendas. Os monumentos que ela erige para os cidadãos, produto do espírito coletivo, servirão de modelo à humanidade inteira – eles serão vossos!” Se o povo revoltado expropria as casas e proclama a gratuidade da moradia, a coletivização da habitação e o direito de cada família a uma habitação salubre, a Revolução terá ganho, desde o começo, um caráter comunista anarquista; caso contrário, permaneceremos atolados na lama do individualismo autoritário. É fácil prever as mil objeções que nos serão feitas, algumas de ordem teórica, outras de ordem prática. Isso porque tratar-se-á de manter a qualquer preço a iniqüidade, falando certamente em nome da justiça: -”Não é infame, escrever-se-á, que os parisienses se apoderem de belas casas e deixem os camponeses em choupanas?” Porém não nos enganemos. Os companheiros enraivecidos por justiça esquecem, por uma guinada de espírito que lhe é própria, a gritante desigualdade da qual se fazem defensores. Eles esquecem que, nessa mesma Paris, os trabalhadores estão sufocados em pardieiros – o trabalhador, sua mulher e seus filhos - ao mesmo tempo que, de sua janela, vêem-se os palácios dos ricos. Esquecem que gerações inteiras perecem em bairros atravancados, com falta de ar e de sol e que reparar essa injustiça deveria ser o primeiro dever da Revolução. Não nos detenhamos, assim, nessas reclamações interessadas. Sabemos que a desigualdade, que realmente existirá ainda entre Paris e as aldeias, é daquelas que diminuirá a cada dia; a aldeia não deixará de prover-se com habitações mais salubres do que as que existem hoje, assim que o camponês deixar de ser o animal de carga do fazendeiro, do fabricante, do agiota e do Estado. Para evitar uma injustiça temporária e reparável, será preciso manter a injustiça que existe há séculos? As objeções práticas também não são nada formidáveis. “Então é assim, dir-nos-ia um pobre diabo. Passando por privações, ele chegou a comprar uma moradia grande o suficiente para abrigar a família. Ele está tão feliz; vocês vão jogá-lo na rua também?” -Certamente não! Se a casa é suficiente apenas para abrigar sua família, que ele a habite! Que cultive o jardim sob sua janela! Nossos companheiros vão até mesmo lhe dar uma ajuda. Mas se houver dentro da moradia um apartamento que ele aluga a alguém, o povo irá encontrá-lo e lhe dirá: “Sabe, camarada, que você não deve mais nada a esse velho? Fique no seu apartamento e não pague mais nada: não é preciso temer o oficial de justiça, é o socialismo!” E se o proprietário ocupa sozinho vinte quartos e no bairro exista uma mãe com cinco filhos que moram em um único cômodo, pois bem, o povo verá que, em vinte quartos, depois de algumas reformas, é possível fazer uma boa moradia para a r sco 3 2[2006 referência 108
  • 5. A Moradia mãe com os cinco filhos. Isso não é mais justo do que deixar a mãe com os cinco rebentos em um pardieiro e o senhor à vontade em seu castelo? Além disso o senhor se acostumará rapidamente, já que não terá mais empregados para arrumar os vinte quartos e sua esposa burguesa ficará encantada em se livrar da metade do apartamento. “Mas isso seria uma inversão completa”, escreverão os defensores da ordem. “mudanças que não terão fim! Seria melhor jogar todo mundo na rua e sortear os apartamentos!”. Muito bem, estamos convencidos que, se nenhuma espécie de governo se meter e se toda a transformação ficar confinada às mãos dos grupos que surgirem espontaneamente para essa árdua tarefa, os deslocamentos serão menos numerosos que aqueles que acontecem no espaço de um ano em razão da rapacidade2 dos proprietários. Há, em primeiro lugar, em todas as cidades de tamanho considerável um tão grande número de apartamentos desocupados que eles acabam quase por ser suficientes para alojar a maior parte dos habitantes dos cortiços. Quanto aos palácios e aos apartamentos suntuosos, muitas famílias operárias não chegariam a desejá-los: só se pode utilizá-los se forem mantidos por numerosa criadagem. Seus ocupantes ainda seriam forçados a procurar habitações menos luxuosas, e as esposas dos banqueiros teriam que cozinhar por si e para si mesmas. Pouco a pouco, sem que fosse necessário acompanhar o banqueiro com uma escolta de baionetas para uma mansarda e o habitante da mansarda para o palácio do banqueiro, a população repartir-se-á amigavelmente pelas habitações existentes, fazendo o mínimo de mudanças possíveis. Veremos as comunas agrárias distribuindo os campos, incomodando o mínimo possível os camponeses parcelários, de tal modo que só nos resta constatar o bom senso e a sagacidade dos procedimentos a que a Comuna recorre. Houve menos transferências de um território a outro com a Comuna Russa – que se estabeleceu por meio de vários levantamentos – do que com a propriedade individual com seus processos conduzidos diante dos tribunais. E querem nos fazer crer que os habitantes de uma cidade européia seriam mais bestiais ou menos organizados do que camponeses russos ou hindus. Além disso, toda revolução implica em uma certa transformação na vida cotidiana e aqueles que esperam atravessar uma grande crise sem que a burguesia seja jamais incomodada em suas refeições abastadas, correm o risco de ficar desapontados. Pode-se mudar de governo sem que o bom burguês jamais perca a hora do jantar; entretanto, desse modo, os crimes de uma sociedade contra aqueles que produzem refeição tão nutritiva não podem ser reparados. Haverá transtorno e isso é certo. Mas é preciso que esse transtorno não seja pura perda, é preciso que ela seja reduzida ao mínimo. E é ainda se voltando para os interesses – não cessamos de repetir- e não apenas aos escritórios – que se poderá obter a menor quantidade possível de inconvenientes para todos. O povo comete um erro atrás do outro quando tem que escolher nas urnas entre homens de soberba que disputam a honra de representá-lo e se encarregam de tudo fazer, saber e organizar. Mas quando ele tem que organizar aquilo que conhece, o que o toca diretamente, ele o faz melhor que todos os burocratas. Não foi isso que vimos na Comuna? E também na última greve em Londres? Não é isso que vemos todos os dias em cada comuna camponesa? r sco 3 2[2006 referência 109