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HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 1
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 2
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BRUNO
MIRANDA
EDITORIAL
Esta revista é uma daquelas realizações que nos dão
muito orgulho e ainda mais certeza de que o propósito
está no DNA da KICk, uma microempresa liderada por
mulheres movidas pela paixão e determinação de deixar
um legado significativo no mundo.
Há 15 anos, quando a KICk surgiu, ela já tinha o
objetivo de trabalhar comunicação com envolvimento,
engajamento e sustentabilidade. Neste caminho, foi
preciso nos reinventarmos e nos fortalecermos por
inúmeras vezes, contando com a união de pessoas e
potências que nos ajudaram a ir ainda mais longe.
Um marco decisivo na trajetória foi a pandemia de 2020,
quando decidimos, mesmo tendo que se despedir de
alguns clientes, focar apenas trabalhos alinhados com
os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da
ONU, com projetos de valor que fizessem a diferença.
Ouvimos comentários como "vocês são corajosas"
e "vocês são loucas”, mas tivemos a certeza de que
estávamos no caminho certo.
Em seis meses, bons contratos em consonância com
nossos propósitos surgiram! Após ajudarmos tantos
clientes a falarem e serem vistos, agora nos dedicamos
a ensiná-los a ouvir as pessoas e o planeta, agindo em
conformidade, construindo uma gestão amiga, com
resultados financeiros otimizados e uma comunicação
transparente e sincera, capaz de gerar alto valor à marca.
Nesta nova fase, nossos indicadores refletem conquistas
significativas. Cinco clientes aceitaram se tornar
signatários do Pacto Global e iniciaram seus relatórios
Caros leitores,
de sustentabilidade (GRI). Um adotou práticas de
investimento em equipamentos de menor impacto
ambiental e maior segurança. Além disso, outro
promoveu a inclusão ao lançar suas primeiras vagas
afirmativas para mulheres negras. Nosso trabalho
também tem gerado resultados expressivos no
engajamento, especialmente com grupos vulneráveis,
ao incentivar sua participação em consultas públicas
que antecedem a instalação de um porto.
Acreditamos que essas ações contribuem para um
futuro mais sustentável e inclusivo. Mas tem outra coisa
que temos certeza de que pode melhorar muito a vida
de todos: mostrar que tem gente, mesmo sem muito
dinheiro, com uma baita consciência do seu poder de
transformação e inspiração. Bons exemplos contagiam!
Uma de nossas tarefas de trabalho envolve descobrir e
registrar histórias de pessoas que em sua simplicidade
trazem uma versão melhor do que é ser humano e
como se relacionar com a natureza. Então, resolvemos
compartilhar com vocês o que Marias, Josés, Mários e
tantas outros fazem por aí para ter um mundo melhor.
Convidamos você a apreciar cada história contada e
também a ser encantado pelo impacto positivo que cada
um de nós pode proporcionar.
Conte conosco nesta jornada de transformação!
DANI KLEIN E MARIANA KLEIN
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 3
Sobre trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Minas, sobre
rodas em asfalto e terra batida, ou a pé sobre matas,
percorremos caminhos para encontrar abundantes
fontes de experiência. Vidas e vivências conduzem este
conteúdo, produzido a partir de entrevistas feitas com
mulheres e homens que habitam em municípios no
entorno da Bacia do Rio Doce, em Minas Gerais e no
Espírito Santo.
Os relatos, colhidos em 2022 e 2023, mostram trajetórias
com cursos bem diferentes que deságuam em um
mesmo propósito: preservação ambiental. Sementes
que viram mudas, mudam que viram árvores, árvores
que frutificam para a continuidade da semeadura: esse
é o círculo virtuoso cada vez mais potente que se quer
fertilizar.
Em tela, personagens reais como Mário Francisco de
Assis, proprietário de uma fazenda em Periquito (MG)
que é abraçada por um cinturão verde com mudas
nativas. Para que essas plantas chegassem até ele,
um outro trabalho importante é feito antes, a cata de
sementes, desempenhada por pessoas como Lúcia
Martins e Maria das Dores, moradoras do assentamento
do Movimento Sem Terra em Jampruca (MG), que
encontraram na atividade uma opção de renda. Índios
HISTÓRIASQUESE
ENTRELAÇAMEM
50TONSDEVERDE
da aldeia Pataxó Geru Tucunã, no Parque Estadual do
Rio Corrente, em Açucena (MG), também fazem parte
dessa rede de sustentabilidade.
Florestar, reflorestar, preservar, regenerar e conservar
são as ações praticadas por sujeitos, grupos e
comunidades em 50 tons de verde, expressos por
folhas, frutos e espécies arbóreas preservadas como
jacarandás, ipês e mogno-africano.
Para incentivar engajamento e despertar senso de
pertencimento à causa, também está incluída nesse
esforço a implantação de Sistemas Agroflorestais
(SAFs), que envolve terras como as de Felipe Veloso,
em Governador Valadares, um advogado que deixou o
escritório na cidade para viver no campo tocando seu
pedaço de chão; e de Ercilio Braun, em Colatina (ES), um
agricultor que já foi contaminado por agrotóxicos antes
de aderir à produção totalmente agroecológica.
Aqui você também vai ler sobre o falante Seu Chico e
sua área cercada para proteger a Mata Atlântica e um
casal com 20 mil filhas, as mudas para reflorestamento,
Roberto e Alessandra Pereira.
Todas essas histórias se entrelaçam tendo por elo o
Programa de Recuperação de Áreas de Preservação
Permanente e de Recarga Hídrica, da Fundação Renova,
como o apoio de parceiros. A iniciativa financia a
restauração florestal em propriedade da Bacia do Rio
Doce, com a meta de chegar a 40 mil hectares de áreas
de recarga hídrica e APPs e 5 mil nascentes ao longo
de dez anos. As medidas têm por objetivo compensar
o passivo ambiental ocasionado pelo rompimento da
barragem de Mariana em Fundão.
A trilha já foi traçada, com vários atores já marcando
seus passos. Convidamos você a conhecer esse percurso
por meio deste conteúdo. Uma boa leitura; uma boa
viagem.
APRESENTAÇÃO
Das sementes à floresta: o caminho
da recuperação da bacia do Rio Doce
Um casal com mais de 20 mil filhas
A reconstrução de vidas pelo Sistema
Agroflorestal na Bacia do Rio Doce O ABC de uma agrofloresta
Colheita de sementes nativas empodera
mulheres na Bacia do Rio Doce
Preservação de área diversifica
fontes de sustento
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 4
A viagem de trem pela centenária Estrada de Ferro Vitória
a Minas (EFVM) adianta o cenário que aguarda quem
chega a Periquito, um pequeno município com pouco
mais de 6 mil habitantes no interior de Minas Gerais, na
Região da Bacia do Rio Doce. Partindo do Espírito Santo,
são cerca de 600 quilômetros de campos esparsos e
Mata Atlântica, que refletem não só a abundância natural
brasileira, mas também a seca e a ocupação urbana.
Em Periquito, os cenários degradados dominam, mas
basta chegar perto da propriedade de Mário Francisco de
Assis e Maria das Mercedes Oliveira de Assis para sentir a
diferença. Na Fazenda Saião, distrito de São Sebastião do
Baixio, o cheiro fica mais fresco, o ar parece mais leve, o
verde se torna mais verde.
A água, antes escassa, brota das nascentes recuperadas
pelo trabalho do casal de produtores rurais dentro do
Programa de Recuperação de Áreas de Preservação
Permanente e de Recarga Hídrica da Fundação Renova.
A iniciativa, com o apoio de instituições parceiras, atua
para mobilizar proprietários rurais dispostos a participar
da restauração florestal. Mais de 1.100 propriedades em
aproximadamente 40 municípios da bacia do Rio Doce
já fazem parte dos programas que, por meio de editais,
oferecem insumos, assistência técnica e Pagamento por
Serviços Ambientais (PSA) a quem aderir.
A meta é mobilizar produtores e produtoras rurais para
a recuperação florestal de 40 mil hectares, sendo 30
mil pela técnica de condução de regeneração natural e
10 mil pela técnica de plantio total, além de mais 5 mil
nascentes.
De acordo com o especialista em meio ambiente da
Renova, Cláudio Barbosa Soares, até novembro de 2022
foi possível alcançar 1.687 nascentes e 10.760 hectares
em processo de recuperação nos programas, espaços
que estão no mínimo cercados para início do processo de
restauração.
“Essas bacias foram selecionadas através de um estudo
com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
e Universidade Federal de Viçosa (UFV), assim como a
localização das nascentes a serem recuperadas foram
definidas pelo Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio
Doce”, pontua Cláudio.
“TERRENOSEMÁGUANÃOVALENADA”
Seu Mário, 74 anos, e Dona Maria, 71, falam das ações
de reflorestamento com um entusiasmo e um amor que
contagiam.
Primeira família a aderir ao Programa de Recuperação,
eles já reflorestaram 11 hectares, o que equivale a 11
campos de futebol. Com as mudas fornecidas pela
Renova, formaram um cinturão verde em torno de sua
fazenda, ligando uma área degradada à floresta nativa
DASSEMENTES
ÀFLORESTA:O
CAMINHODA
RECUPERAÇÃODA
BACIADORIODOCE
Graças à mobilização de produtores rurais,
um novo cenário começa a brotar com as
nascentes na bacia do Doce
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DANI
KLEIN
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 5
que cobria a parte mais alta da propriedade.
Bananeiras, coqueiros, ipê-roxo, ipê-amarelo, jacarandá
e pau grande crescem nas áreas reflorestadas. Os locais
são cercados com arame e madeira, para evitar que
o gado ou os animais maiores pisem nas nascentes.
Três poços artesianos, duas lagoas e duas barraginhas,
construídas no alto da propriedade para segurar a água
das enxurradas, ajudam a irrigar a plantação.
Por causa do plantio das árvores, Seu Mário conta, as
nascentes não secam mais, e os animais têm pasto de
qualidade o ano todo. “Cuidando da natureza, a gente
está cuidando da gente. Plantando em cima como eu
plantei, a tendência é melhorar embaixo. Desce o adubo
e segura a água. Terreno sem água não vale nada”,
explica o pai de quatro filhos e avô de sete netos que
se aposentou como mecânico de siderúrgica e, há duas
décadas, dedica-se a cuidar da terra.
Os filhos moram fora da fazenda, mas também apoiam
o reflorestamento. Segundo Seu Mário, a prole não se
cansa de aproveitar o resultado da ação. “Eles chegam
aqui e é foto pra todo lado! Quando falei pro meu neto
que iria vender a propriedade, ele disse: ‘Não vende não,
vô, deixa só pra mim!’”, diverte-se. Com o mesmo bom
humor, o produtor garante: da terra em São Sebastião
do Baixio, ele só sai se for para o céu.
RAÍZESDOREFLORESTAMENTOESTÃOPERTODALI,
NACOLETADESEMENTES
As mudas que chegam à Fazenda Saião para se
tornarem floresta são plantadas na época das chuvas
e cumprem uma jornada de até um ano para que
estejam prontas para o plantio. Da coleta das sementes
ao processo de rustificação, que prepara a planta para
ambientes mais hostis e menos controlados do que o
viveiro, o cultivo de espécies nativas exige paciência e
dedicação.
Dalila e Wolnei Martins Coelho conhecem bem esta
rotina. Há 18 anos, o casal fornece mudas como as que
Seu Mário e Dona Maria usaram na restauração florestal
de sua propriedade. À frente do Viveiro de Mudas
Martins, em Governador Valadares, também são braços
que ajudam a dar vida ao Programa de Recuperação de
Áreas de Preservação Permanente e de Recarga Hídrica,
que se acredita ser a maior iniciativa de restauração de
Mata Atlântica a curto prazo no Brasil.
O Programa financia o plantio de mudas e o cercamento
de áreas estratégicas para recarga hídrica, com meta de
chegar em 40 mil hectares de terras e 5 mil nascentes
em mais de 60 municípios, ao longo de dez anos. Para
dar conta do desafio, aproximadamente 44 mil brotos
são necessários.
A produção é grande, mas segue o ritmo da natureza.
E assim, espécies como quaresmeira, pixingui, araçá,
jenipapo, jacarandá-cabiúna e jequitibá, entre outras,
são cultivadas no viveiro dos Martins, que também
preserva um pé carregado de lichias, para a alegria dos
visitantes.
“São oito meses produzindo e quatro meses expedindo
as mudas. Começa na germinação das sementes
“Quando eu cheguei aqui, não tinha
água nem para tomar banho. Hoje
eu não vejo mais o fundo da lagoa
rachado. Hoje eu vejo água. Posso
jogar água na minha capineira toda
que a água está aí.
Mário Francisco de Assis, proprietário da
Fazenda Saião, ao lado da mulher, Maria Assis
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DANI
KLEIN
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 6
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DANI
KLEIN
e segue. A partir de um período, deixamos que
elas fiquem diretamente no sol e com a metade da
adubação, para elas não acostumarem muito na vida
boa e, na hora de ir para o campo, resistirem o maior
tempo possível, principalmente na estiagem”, ensina
Wolnei.
RESULTADOSVÃOALÉMDOPLANTIO
Além dos evidentes resultados obtidos com o
reflorestamento, o plantio de mudas nativas da
Mata Atlântica na Bacia do Rio Doce fomenta a
economia local e cria conexões importantes para o
desenvolvimento sustentável das comunidades da
região. Uma dessas conexões é a Rede de Sementes e
Mudas da Bacia do Rio Doce, iniciativa que alimenta o
reflorestamento ao mesmo tempo em que gera renda
e fortalece saberes.
A Rede surgiu por causa da grande demanda de
sementes e mudas nativas para a execução do
Programa de Recuperação de Nascentes, Áreas
de Preservação Permanente e de outras ações
de reparação dos municípios atingidos pelo
rompimento da barragem de Fundão, mobilizando
em especial mulheres, quilombolas, trabalhadores de
assentamentos rurais e povos indígenas da Bacia do
Rio Doce.
POVOSTRADICIONAISESABERES
As comunidades demonstram seu envolvimento
com o projeto, inclusive grupos que têm a lida com a
natureza como tradição. Em outubro de 2022, a Rede
iniciou o segundo ciclo de coleta, retirando 309 quilos
de sementes manejadas por índios da aldeia Pataxó
Geru Tucunã, no Parque Estadual do Rio Corrente,
no município de Açucena. Com isso, passou de uma
tonelada o volume de sementes coletadas pelos
Pataxós ao longo do programa.
“Toda a aldeia hoje está envolvida na coleta de
sementes. Nossa comunidade vive a sustentabilidade.
Plantamos abacaxi, feijão, milho e mandioca para
consumo e venda, recolhemos sementes para
artesanato, plantio e curas. Com a coleta, muitas famílias
que não tinham atividade agora têm”, conta o cacique
Baiara Pataxó, líder da aldeia.
Para o cacique, o trabalho de reflorestamento fortaleceu
também a batalha da tribo pela demarcação de território
que eles ocupam desde 2010, quando deixaram a Terra
Indígena Barra Velha, no extremo sul da Bahia, em busca
de paz e água. Com o trabalho, espécies como cedro,
peroba, ipê amarelo e jequitibá voltaram a florescer.
Hoje, a agrofloresta cerca o espaço e estimula a atividade
econômica dos indígenas e a troca de saberes ancestrais.
A coletagem de sementes foi um estímulo ao sustentar
das famílias e também uma maneira de estar
conectado com a natureza. A área é muito grande, e
isso trouxe uma responsabilidade maior para nós, de
estar levando para o próximo o quão importante é
ele fazer a parte dele no cuidar da Mãe Terra”, afirma
Natália Braz, professora da aldeia. Segundo ela, quando
o grupo chegou na região, há 12 anos, havia apenas
uma árvore.
“A gente começou aquele trabalho
de formiguinha de recuperar
o nosso ambiente. A natureza,
quando você dá um espaço para
ela, ela regenera. É divino.
Natália Braz, professora da aldeia
REPORTAGEM: DANI KLEIN E ANA LAURA NAHAS
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 7
“Quebra a cabaça, espalha a semente, planta do lado que
o sol nascer.” Ao ritmo da batida dos chocalhos, a música
ouvida em uma tarde de janeiro introduz a conversa
para uma troca de conhecimentos e experiências que
frutificam na Bacia o Rio Doce. O palco para a prosa é o
assentamento do Movimento Sem Terra (MST) Ulisses
Oliveira, em Jampruca, Minas Gerais, onde os versos e a
melodia no canto de Lúcia Martins, 68 anos, e Maria das
Dores, 67, expressam um trabalho que lhes é familiar.
Moradoras desse território, elas viram suas vidas serem
transformadas a partir de uma iniciativa que fomenta
o crescimento dessas trajetórias pessoais, de grupos
vulneráveis e da economia florestal.
É o projeto Rede de Sementes da Bacia do Rio Doce,
que se tornou fonte de renda para pessoas, sobretudo
COLHEITADE
SEMENTESNATIVAS
EMPODERA
MULHERESNABACIA
DORIODOCE
Trabalho incentiva o crescimento de uma
geração de mulheres fortes e semeia o
caminho para reflorestamento
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BRUNO
MIRANDA
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 8
mulheres, em municípios da região e incentiva também
as atividades da ambientalista e viveirista Alessandra
Pereira, 43, e da proprietária rural Creusa Madeira, 38.
Coletiva e individualmente, os resultados fecundam.
No percurso de Lúcia e Maria, as sementes ajudam a
garantir recursos financeiros para os moradores do
assentamento. “Eu me sinto realizada”, ressalta Maria.
Já para Alessandra, são motivo de orgulho, pois
garantem o trabalho da produção de mudas e o plantio
em uma Reserva Florestal. E, para Creusa, o vínculo
é mais recente, mas igualmente relevante, por ser a
chance profissional abraçada após a perda da fonte
de sustento com a queda da barragem em Mariana,
também em Minas.
Em menos de 12 meses, foram coletadas 24 toneladas
de sementes, que vão contribuir na restauração da Mata
Atlântica, bioma o qual apresenta somente 12,5% da
floresta original.
O resultado obtido em 2022, primeiro ano de atividade
com as comunidades, representa a maior ação de
resgate de sementes nativas do mundo.
ASSIMCAMINHAASUSTENTABILIDADE
Em uma caminhada pelo assentamento sem terra, as
quatro mulheres compartilharam suas vivências.
A cada avançar na andança, a natureza mostra suas
dádivas: uma folha que Alessandra ensina a usar de
uma forma que ninguém conhecia; uma explicação de
Creusa sobre a aplicação de uma planta encontrada no
solo para tratar machucados; uma lição de Maria sobre
como reconhecer certos tipos de fruta; as informações
dadas por Lúcia referente à diversidade de modos com
que esses vegetais podem ser usados e técnicas simples
capazes de acelerar significativamente o trabalho de
beneficiamento.
Nessa rede de realidades, um outro percurso
também é traçado no compasso da rota da
sustentabilidade. As sementes recolhidas pegam
a estrada na Bacia do Rio Doce para a casa de
sementes e depois são destinadas às regiões de
plantio, com o objetivo de fortalecer o Programa
de Recuperação Áreas de Preservação Permanente
(APPs) e Recargas Hídricas e o de Recuperação de
Nascentes da Fundação Renova.
“Começamos com o piloto em 2017. O plano é que
os territórios a serem restaurados recebam um mix
de espécies, que após cada plantio alcancem 80% de
densidade e 80% de cobertura de copa, das áreas
naturais em estágio de regeneração avançado, em
quatro anos. Já temos parceria em áreas em que
Essas e outras histórias entrelaçadas pela Rede de
Sementes empoderam comunidades surgidas a partir
da reforma agrária, territórios quilombolas e aldeias
indígenas, abarcando em torno de 47 grupos. É a partir
das sementes colhidas e beneficiadas pelas dezenas
de Lúcias, Marias, Alessandras e Creusas que áreas
degradadas estão sendo recuperadas.
A meta estipulada de sementes em 2022 previa
20 toneladas, só com a ação das sementeiras e
sementeiros, para atender ao reflorestamento de 12.900
hectares, mas foi superada, com o intenso engajamento.
“Estou ajudando a
fazeraMataAtlântica
florescer de novo.
Creusa Madeira, proprietária rural
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BRUNO
MIRANDA
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 9
as árvores já chegaram a seis metros de altura. É
maravilhoso!”, informou Leandro Abrahão, analista de
Programas Socioambientais da Fundação Renova.
Essa variedade dos tipos de sementes disponíveis no
projeto, descrita por Leandro, contempla outra proposta
da Rede de Sementes: a renovação com diversidade.
O objetivo é recuperar uma parte da Mata Atlântica,
dentro do perímetro da Bacia do Doce, nos estados de
Minas Gerais e Espírito Santo, com espécies arbóreas e
arbustivas.
Para que isso aconteça, os 47 grupos envolvidos são
treinados pelo projeto após mobilizações e engajamento
das comunidades. Ao reunirem uma quantidade de
sementes recebem uma visita de avaliação da qualidade
por técnicos e vendem-nas para a Renova. Entre eles
estão: associações, cooperativas, coletores individuais,
proprietários rurais, Reservas Particulares do Patrimônio
Natural (RPPNs) e comunidades tradicionais, situados
em municípios como Sabinópolis (MG), contemplando
quilombolas locais, Jampruca (MG), Santa Maria do
Suaçuí (MG), São José do Safira (MG), Carmésia (MG) e
Açucena (MG), com atuação em aldeias indígenas, e Alto
Rio Novo (ES).
Inseridas nesses grupos, estão Alessandra, Lúcia,
Maria e Creusa, mulheres que inspiram outras a
entrarem no projeto e conseguirem a independência
enquanto ajudam o meio ambiente. “Antigamente,
falavam que só homem era capaz, pois, se mulher se
perdesse na floresta, morreria. E não é bem assim. Na
minha localidade, eu sou a primeira que trabalha com
isso. É muito bom conhecer a natureza, saber para
que serve cada coisa. Se um dia me perder em uma
mata, consigo sobreviver, identificar muitas coisas, o
que comer ou o que tem veneno. É muito legal saber
que, além de conhecer a floresta, estou contribuindo
para que floresçam com as sementes que recolho”,
afirma Creusa.
Diversidade não só de flora, mas também de gente é um
valor para a Rede, como aponta a técnica de sementes
Monique Alves. “Prezamos a equidade de gênero. Então,
se vai entrar um homem na rede, entrará também
uma mulher. Vamos também começar a pensar com
mais foco a governança para criar grupos que sejam
independentes. Assim, quando a Fundação Renova não
for a principal compradora, os participantes já terão
garantido seu mercado.”
GERAÇÃODESEMENTES
Independência também sempre foi prioridade para
Maria. Mãe solo, ela saía cedo para trabalhar e voltava
tarde para casa. Muitas vezes, não via os filhos
durante o dia. Era o único modo de garantir educação
para eles. Agora, de suas mãos sai o futuro da próxima
geração, os netos. Para isso, entre os pés de abóboras,
acerolas e manga, as mudas de jatobás, jacarandás e
outras árvores nativas têm seu canto no quintal para
crescer.
Elas também são plantadas no terreno de Lúcia
para que seu Sistema Agroflorestal (SAF) no Ulisses
Guimarães venha a prosperar. Assim são garantidos
tanto uma recuperação na região da Bacia do Rio
Doce quanto um retorno financeiro para a família.
“Antes, a gente não tinha muita renda, principalmente
as mulheres. Agora, a maioria vem das sementes”,
afirmou Maria.
O resultado financeiro só vem se consolidando por
meio da ação conjunta entre as mulheres que vivem
no Ulisses Guimarães. De duas a três vezes por
semana, um grupo parte para recolher as sementes. A
atividade chamou a atenção da neta de Lúcia, Dandara
Sofia, de 12 anos, que nas andanças no assentamento
junto ao grupo mostra já conhecer algumas sementes,
além de desejar continuar o trabalho da avó.
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BRUNO
MIRANDA
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BRUNO
MIRANDA
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 10
A mesma conexão entre diferentes gerações acontece
na vida de Maria. Com satisfação, ela conta que a neta
Larissa Coelho, 17, também a acompanha na colheita. A
inspiração da vida de sementeira da avó levou a jovem
a decidir por cursar Engenharia Florestal após o ensino
médio para ajudar no crescimento da região, algo que
enche Maria de orgulho. Com o dinheiro das vendas
para a Renova, a matriarca pretende ainda fortalecer o
ensino dos netos ao pagar os estudos. A primeira renda
originária do trabalho com sementes foi diretamente
destinada à compra de um notebook para as aulas de um
dos netos, e isso é só o começo.
Com acerolas na mão enquanto olha para o pedaço de
terra já em recuperação ambiental com as árvores por
ela plantadas, a assentada desabafa sobre uma outra
grande vontade.
Caratinga, atuando na preservação dos macacos desta
espécie. Lá, é responsável pelo berçário de sementes
e mudas locais, a partir das quais brotam centenas de
árvores nativas destinadas à recuperação ambiental da
Bacia do Rio Doce.
A ambientalista cresceu em uma vida cuidando da
natureza. De auxiliar de pesquisadores ambientais a
profissional que faz parte de um grande projeto de
restauração da Mata Atlântica, ela busca passar os
valores para a filha. “Quero muito que ela siga esse
caminho. Ensino o valor de ver a natureza crescer e
permanecer. Cuidar da natureza é algo constante. Laiane
já me ajuda no beneficiamento das sementes, torço que
leve para vida profissional também”, disse, animada.
No encontro no assentamento, Laiane, 15, grava ao
celular a mãe ao lado de Lúcia, Maria e Creusa enquanto
trocam ideias e os momentos da ambientalista ao
conhecer novas plantas, tudo para guardar o momento.
“O que ela faz é importante e inspirador. Ela acorda cedo
para dar conta de tudo. Tem que guardar este momento
de troca de conhecimento. Muita gente não conhece a
importância de manter a natureza”, enaltece.
Já Creusa, moradora de Revés do Belém, comunidade do
Município de Bom Jesus do Galho (MG), foi a última das
quatro a entrar no mundo de coleta e beneficiamento
“Meudesejoéqueeuvivaosuficientepara
verasárvoresqueestouplantandojá
enormes,equemeusbisnetosmevejamao
ladodelas.Veremcomoajudeiarecuperar.
Queeuestejaaquiparafalardaimportância
docuidadocomomeioambiente.
Maria das Dores, coletora de sementes
O mesmo desejo singelo, mas ao mesmo tempo
grandioso, é acalentado por Alessandra. Há mais de
20 anos cuidando da Reserva Particular do Patrimônio
Natural Feliciano Miguel Abdala (RPPN-FMA), a antiga
Fazenda Montes Claro, ela integra o Projeto Muriqui de
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HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 11
de sementes depois de perder a sua forma de
trabalho. A mudança de vida abriu portas para novos
conhecimentos, que foram compartilhados durante toda
a manhã no Ulisses Guimarães. Ao lado da filha Maria,
4 anos, a proprietária rural se espanta ao descobrir que
uma semente ao redor de sua residência tem grande
valor na natureza.
Desde que começou a se envolver com o projeto, ela
conheceu as funções de diversas plantas, a participação
de cada animal e a forma de usar esses saberes
adquiridos.
“A recuperação do Rio Doce me movimenta muito,
a gente engole até seco. O rio era um local onde se
buscava socorro. Se precisava de comida, buscava água
lá, dava sustento. Fico muito feliz de ajudar a reconstruir,
porque é algo até acima de dinheiro. Com as sementes,
entendemos que precisamos preservar”, analisa Creusa.
Mãe de outras duas meninas, Emily Madeira, 19, e
Carolina Madeira, 17, Creusa salienta que catar sementes
também é criar uma “geração de mulheres fortes. Além
de fazer a restauração, as sementes têm esse poder de
ajudar as pessoas a melhorar a vida”, finaliza.
UMAREDEDENTRODEUMACADEIA
Pelo Programa de Recuperação de Áreas de Preservação
Permanente e de Recarga Hídrica e pelo Programa de
Recuperação de Nascentes, as sementes beneficiadas são
lançadas em áreas com solo preparado para recuperação
ou enviadas para viveiros e cuidadas para germinar até
as mudas estarem fortes o suficiente para o plantio.
Ao chegarem a esse estágio, seguem para áreas de
recuperação, grande parte para as propriedades rurais
de parceiros do projeto, como Mário Francisco de Assis e
Maria das Mercedes Oliveira de Assis, em Periquito, além
de aldeias indígenas e assentamentos.
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BRUNO
MIRANDA
REPORTAGEM: DANIKLEIN, MIKAELLA MOZER E ANDREIA PEGORETTI
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 12
UMCASAL
COMMAISDE
20MILFILHAS
Em um oásis na Bacia do Doce, casal manteve
por anos a esperança de salvar os muriquis
e está prestes a ver o sonho se realizar
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BRUNO
MIRANDA
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 12
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 13
A frase ecoa por entre cerca de 1.000 hectares, na Bacia
do Rio Doce, situados entre os municípios de Caratinga
e Ipanema, no Estado de Minas Gerais, uma área
repleta de Mata Atlântica e com uma biodiversidade
impressionante. Enquanto fala, Roberto Paulino Pereira
aponta para uma bucólica casinha branca onde, há
46 anos, sua mãe lhe dava a luz, com ajuda de uma
parteira.
A Fazenda Montes Claro, adquirida em 1944 pelo
cafeicultor Feliciano Miguel Abdala, com a promessa
de não desmatar e cuidar do fragmento florestal onde
viviam flora e animais em extinção, já era um oásis
no meio de plantações de cana e café, entre outros.
Roberto cresceu nesse cenário, vendo de perto a
diferença entre preservação e exploração do solo e,
em um convívio harmônico com muitas espécies raras
de plantas e animais, aprendeu a amar e respeitar a
natureza. Ele não estava sozinho em suas descobertas
ecológicas e sonhos de defender o meio ambiente.
A amiga de infância Alessandra de Souza Pereira,
43 anos, diz que não nasceu na Fazenda, porque
chegou a tempo à maternidade, mas respira a
mesma fragrância verde desde seus primeiros dias
e compartilha do mesmo amor pelo ecossistema
local. Um sentimento que acabou unindo os dois na
juventude, na formação de uma grande família, que
gerou uma filha humana, Laienne de Souza Pereira,
de 14 anos, e mais de 20 mil mudas de árvores,
filhas cuidadas pelo casal desde o tratamento e
beneficiamento de sementes até o momento do
plantio.
DEFAZENDAARESERVA
Em 2001, com o falecimento de Seu Feliciano, surgiu
uma preocupação com o futuro do local. Seria ele
dividido entre os herdeiros? Vendido e transformado em
uma área de monocultura? Mas a resposta da família
não poderia dar maior felicidade para quem, por tanto
tempo, se dedicou a cuidar. A fazenda foi transformada
em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural
(RPPN), com o nome do cafeicultor que resguardou para
o planeta um dos pedaços mais preservados de Mata
Atlântica ainda existentes.
O bisneto, Rodrigo Abdalla, 40 anos, herdou não só
parte das terras, mas também o espírito de guardião.
Ele lidera a ONG Preserve Muriqui, e deu início a um
novo momento, em que, além da preservação, busca
a ampliação das áreas verdes através da restauração
ambiental.
Seguindo os passos do bisavô, que apoiou, em 1983, o
início das pesquisas científicas sobre o muriqui-do-norte,
“Aqui é o meu berço,
eu nasci naquela casa,
e é aqui a minha vida.
Roberto Paulino Pereira, produtor rural
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BRUNO
MIRANDA
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BRUNO
MIRANDA
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 14
foram perseguidos e mortos por pessoas que
erradamente achavam que eles transmitiam febre
amarela. Os muriquis-do-norte são muito pacíficos.
Eles ensinam muita coisa para a gente, se abraçam,
estão sempre felizes, andando em grupo, e é uma das
únicas sociedades de primatas igualitárias entre fêmeas
e machos”, destaca Roberto. Com em média 15 quilos,
esses dóceis animais ainda dividem bem o espaço com
tatus, pacas, onça parda, macacos das espécies barbado,
prego e sagui, além de muitos e diferentes pássaros.
AESPERANÇA
Em 2014, o Corredor Ecológico Sossego-Caratinga,
ligando a RPPN Mata do Sossego à RPPN Feliciano Miguel
Abdala, foi oficialmente reconhecido pelo Governo de
Minas Gerais: o primeiro a ganhar o título no Estado. A
projeção é conectar fragmentos isolados de floresta e
permitir a circulação de fauna e flora em sete municípios
mineiros: Caratinga, Simonésia, Manhuaçu, Ipanema,
Santa Bárbara do Leste, Santa Rita de Minas e Piedade
de Caratinga.
A esperança e a rara chance para salvar o muriqui-do-
norte da extinção, dependiam, no entanto, de uma grande
força-tarefa na restauração florestal, e este sonho passou
a ser uma realidade próxima em 2022, com o projeto de
recuperação da Bacia do Doce, que envolve uma ampla
mobilização social com objetivo de coleta de sementes,
produção de mudas, cercamento de áreas estratégicas
para proteção de nascentes e o plantio.
“Só a meta da Preserve Muriqui neste processo é
1.500 hectares de mobilização para recuperar e criar
o corredor, o que equivale a uma RPPN e meia em
tamanho. Vai ser um resultado maravilhoso”, destaca
Rodrigo. Mas, para ser eficaz, esta história terá que
envolver diversos proprietários rurais da região. A
mobilização vai para além dessa área do Corredor e deve
abranger 5 mil hectares na Bacia do Doce.
o maior primata das Américas e em risco de extinção,
Rodrigo criou grandes planos que já estão se tornando
grandes realizações.
“Quase tudo o que se sabe sobre o muriqui-do-
norte tem origem nesta RPPN. Neste ano de 2023,
vamos completar 40 anos de pesquisas e temos o
que comemorar. Para se ter uma ideia, saímos de
50 indivíduos para quase 300. Uma das principais
conclusões desses anos de pesquisa é que não basta
apenas preservar a floresta da RPPN. Precisamos
ampliar o habitat do muriqui para garantir a preservação
da espécie”, pontua Rodrigo.
A estimativa atual de uma população de 280 indivíduos
do muriqui-do-norte na RPPN não parece grande,
mas o número representa quase um terço do total da
população, que é endêmica da Mata Atlântica brasileira,
ou seja, só é encontrada no país.
“Eles sofreram muito com a caça e muitos também
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MIRANDA
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HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 15
SIMBIOSE
A Preserve Muriqui lidera um viveiro com capacidade
de produção para 200 mil mudas, sendo que para 2023
a expectativa é produzir 40 mil mudas, de mais de 80
espécies. A ONG também foi fundamental no apoio para
a criação da rede de sementes, formada por cerca de
30 pessoas de baixa renda da comunidade, e que gerou
quase duas toneladas de sementes em 2022.
“Eu, o Roberto e até a Laianne somos coletores e
beneficiadores de sementes. Quanto mais a gente
mexe com isso, mais vontade de fazer isso da vida.
Aprende-se muito com a natureza e ver minha filha
junto é gratificante. Meu trabalho aqui é na germinação
e cuidado com as mudas, e pelas minhas mãos já tem
umas 20 mil nascidas. São como se fossem minhas
filhas”, ressalta Alessandra.
“Uma parte das mudas, a gente planta aqui mesmo
na RPPN, em alguma clareira, algum lugar que não
conseguiu se regenerar naturalmente e está precisando
de uma mãozinha. Em 2022, plantamos cerca de
1.600 aqui, e nossa missão para 2023 é plantar pelo
menos 40 mil, para ajudar na formação do corredor
ecológico. Protegendo e ajudando a floresta a crescer,
aumentamos o espaço dos animais e garantimos mais
alimento. Assim, as populações crescem. Por outro lado,
os próprios animais nos ajudam a dispersar as sementes
e a regenerar o local”, complementa Roberto.
Roberto ainda tem uma ressalva: se é bom ver brotar
vida novamente onde já não existia sombra, imagine ter
na sua frente árvores de mais de 200 anos. “Quanta vida
tem ali! Tem que preservar, pensar nas gerações futuras.
A árvore pode não falar, mas eu te conto uma coisa:
quando estou meio atordoado, chego perto do Jequitibá
e fico ali. Tem dia que saio até com dor no pescoço de
tanto olhar para cima, mas a alma sai leve.”
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MIRANDA
REPORTAGEM: DANIKLEIN
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 16
Meio século separa dois cenários que marcam o passado
e o presente de Seu Chico. No mesmo espaço, um novo
tempo. Do verde do pasto bovino de cinco décadas atrás
para o verde vivaz hoje também presente nas lavouras
e matas, o mundo deste sexagenário de riso fácil e papo
aberto ganhou mais matizes e escolhas.
Quem imprime o tom da mudança é um relevante
projeto na região onde mora o produtor, no entorno
da bacia do Rio Doce. Em Jampruca, Minas Gerais, a
transformação finca raízes na realidade de pessoas
como o agricultor de 66 anos, 16 deles, ao menos,
dedicados à lida no campo. Das 43 famílias do
assentamento do Movimento Sem Terra (MST) Ulisses
Oliveira, 42 (inclusive a do Seu Chico) aderiram ao
cercamento de áreas das propriedades, especialmente
nascentes e Áreas de Preservação Permanente (APPs),
para receber incentivos a fim de proteger e restaurar
esses locais.
Por meio desse estímulo, territórios degradados e
nascentes em risco recebem atenção do Programa de
PRESERVAÇÃODE
ÁREADIVERSIFICA
FONTESDESUSTENTO
Famílias de assentamento do MST aderem
a cercamento de áreas para preservar
nascentes e receber incentivos para
proteger floresta nativa
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MIRANDA
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 17
Recuperação de Áreas de Preservação Permanente e
de Recarga Hídrica, da Fundação Renova. O chamado
vem sendo ouvido: 1.650 propriedades, incluindo
as do assentamento do MST, em 40 municípios da
bacia já fazem parte de projetos que, por meio de
editais, oferecem insumos, assistência técnica para
a restauração florestal e Pagamento por Serviços
Ambientais (PSA) a quem abraçar a proposta.
A missão vem sendo cumprida com gosto por Seu Chico
no assentamento, instalado em uma área total de 2,1
mil hectares, criado em 2010 por meio doação de terras
e viabilizado pelo Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra). Nesse lugar, as melhorias
florescem, deixando para trás o panorama desértico do
passado e desbravando trincheiras para uma produção
agroecológica, livre de agrotóxicos.
“Nasci na região. Moro no assentamento tem uns 20
anos, mas estou aqui desde sempre. Antes, eu trabalhei
durante 30 anos na Fazenda Boleira. Esta mesma
terra, onde estou agora, foi desapropriada para criar
o assentamento. Desde os 16 anos, trabalho aqui. Na
fazenda, era vaqueiro. Depois que virou assentamento,
minha vida mudou, né?”, lembra Seu Chico.
Antes de prosseguir a conversa, o falante veterano
de Jampruca faz uma pausa para informar seu nome
verdadeiro e mostrar uma peculiaridade: não, não é
Francisco, como se pode supor. É Aécio Galdino dos
Santos. “Mas todo mundo me chama de Chico, sabe por
quê? É porque eu coloco apelido em todo mundo, e aí o
pessoal também resolveu botar esse apelido em mim.
Minha mulher, que se chama Luci, eu até apelidei de
Chica também”, conta ele, aos risos.
Já na unidade de SAF de Seu Chico, o nome em voga há
três anos é “diversificação” e o sobrenome, “autonomia”,
cunhados com trabalho e assistência. A área não cercada
é destinada à lavoura de alimentos como milho, feijão,
mandioca, banana, laranja e limão. Os outros 7,37
“É muito bom preservar a natureza. Minha
vida tá melhor do que na época da fazenda,
quando você só via boi e pasto. Plantação
era muito pouca. Hoje você vê plantação,
vê floresta, vê mata. Acordo cedo, faço
café, trato das galinhas e vou para o mato.
Onze horas, já estou de volta.
Seu Chico, agricultor assentado
um bebedouro para o gado – quando a nascente
for cercada – e de um biodigestor, Pagamento
por Serviços Ambientais (PSA) e possibilidade de
remuneração, caso o produtor opte por fazer as
atividades de plantio por conta própria.
O processo de participação é iniciado com o lançamento
do edital e inscrição dos interessados. Em seguida,
hectares, da terra cercada da APP, são para proteger a
mata nativa.
“E lá tem aroeira, carne-de-vaca, acari, moreira,
jenipapeiro... Tem também sete-capotes, planta que é
boa como remédio para dor de barriga. Aqui na minha
área também tem represa, que é para o gado beber
água. Tenho umas bezerrinhas. Umas dez”, lista Chico.
As novas ações são muito bem-vindas, relata ele, pois
trazem benefícios que antes eram inimagináveis na
época de vaqueiro. “A diferença é hoje que estou por
minha conta própria. Tenho autonomia, trabalho a hora
que eu quero. Nos tempos de fazenda, não era assim.
Hoje eu também sou aposentado. E tem um ‘gadinho’,
um recurso que também complementa a minha renda.”
A liberdade reflete-se diretamente na rotina, mais
equilibrada.
Os benefícios técnicos e financeiros da adesão
passam pela estruturação de duas barraginhas
(pequenas bacias escavadas no solo para captação
de águas da chuva) na propriedade, instalação de
ocorrem a validação para comprovar a adicionalidade,
ou seja, se a intervenção é de fato necessária; a
elaboração de projetos; a proteção (cerca) da área; a
preparação do solo; e implantação e manutenção da
área (por três anos).
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BRUNO
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REPORTAGEM: ANDREIA PEGORETTI
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 18
Os sons de passos em folhas secas no Vale do Sol
Agrofloresta, que fica no município de Governador
Valadares, região da Bacia do Rio Doce, em Minas
Gerais, representam a mudança de vida nos 22
hectares do terreno.
Até 2017, os pedaços vegetais não existiam no local
devido à degradação da terra, mas com a chegada da
família Veloso à região, foi iniciado um trabalho de
manejo. O plantio de aproximadamente dois hectares,
que já gera colheita, demonstra a rápida capacidade
de regeneração do solo quando cuidado com a técnica
certa.
A repovoação de parte da área desmatada se tornou
um Sistema Agroflorestal (SAF) e começou quando
o advogado Felipe Veloso, 30 anos, decidiu mudar a
ARECONSTRUÇÃO
DEVIDAS
PELOSISTEMA
AGROFLORESTALNA
BACIADORIODOCE
Arranjo concilia a preservação
ambiental e produção de alimentos
sem destruir o solo
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MIRANDA
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 18
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 19
“A biodiversidade forma esses andares da floresta e faz
com que o solo esteja sempre coberto. Tudo faz parte de
um macro, onde todas as plantas são boas e têm uma
função, porque elas fazem parte do mesmo sistema, às
vezes só são usadas da forma errada”, explicou Felipe.
Um exemplo do produtor rural é o eucalipto, que é
popularmente conhecido por estragar o solo. Felipe,
porém, afirma existir a maneira correta de manusear
e oferecer muita água e biomassa à terra. Por isso,
o delinear policultural se baseia na seleção de quais
espécies serão incluídas no terreno como forma de
trabalhar da melhor forma o solo e não desgastar
a superfície, além de trazer diversidade de funções,
imitando a floresta.
Trata-se de uma forma de lidar com a restauração
produtiva da área que, além de frutos, já rendeu um
prêmio. O projeto foi um dos vencedores do Concurso
Ideias Renovadoras: Plantando Árvores e Colhendo
Alimentos na Bacia do Rio Doce, em 2020. Junto com
outras quatro iniciativas vencedoras e duas menções
honrosas, Felipe participou de uma imersão para troca
de experiências com especialistas e outros convidados.
Durante o encontro, foram discutidos e pensados
arranjos de SAF para a Bacia do rio Doce.
O Concurso Ideias Renovadoras foi uma realização da
Fundação Renova. O objetivo foi conhecer e premiar
ações no território nacional que contribuam para a
manutenção e retorno das áreas florestais por meio das
agroflorestas.
“ANATUREZASEAJUDA,NADAACONTECESOZINHO”
O cheiro de terra úmida sobe quando Felipe mexe
no solo. Ao se abrir a terra, as raízes e materiais em
decomposição ficam à vista. A transformação do solo
seco para um nutritivo aconteceu com a inserção de
pedaços de madeira, folhas naturais, capim, espécies
plantadas no terreno. Quando se decompõem, esses
elementos tornam a terra antes improdutiva rica em
rota profissional e deixar o escritório para realizar o
sonho de morar no interior. O desejo também era o da
esposa, a radiologista Luiza Veloso, 31, que assumiu
temporariamente as contas da casa.
Do topo das árvores ao solo, é possível ver o resultado
da junção da vontade em comum com a audácia de
alterar o rumo da vida. Em quase seis anos, as sementes
e mudas plantadas se tornaram árvores de até 20
metros de altura, a terra é mais nutrida, e o ar, além de
mais fresco, carrega o aroma de menta e hortelã.
Toda a renovação do solo destruído aconteceu após o
começo das plantações, mas a continuidade do trabalho
conta com a cooperação da riqueza de espécies que já
podem ser encontradas no local.
Jacarandá de Minas, mogno-africano, jaricá, jatobá
e eucaliptos são árvores de grande e médio porte
espalhadas pelo Vale do Sol formando o primeiro
“andar” da floresta. Juntas, elas contribuem para o
desenvolvimento do território ao proteger as plantas
menores dos raios solares e fomentar a diversidade
da cultura de espécies, processo essencial para o
agroflorestamento.
As de tamanho inferior e arbustos também integram o
ciclo de regeneração florestal ao ajudarem na qualidade
do solo e, também, ao se aproveitarem dele para
crescer. Para Felipe, não existe planta que não possa ser
boa para o SAF, sendo apenas necessário entender a
contribuição de cada uma para o sistema de forma a ser
bem utilizada.
Todo o crescimento da propriedade também é motivo de
felicidade para Luísa que acompanha o desenvolvimento
das plantas e vê crescer um sonho antigo. Além disso,
a oportunidade de alimentar a família, principalmente
a filha do casal, Beatriz Veloso, de 11 meses, de forma
saudável com frutas direto do pé acende ainda mais a
felicidade de viver no Vale do Sol.
“Os jovens, hoje, querem um mundo
melhor, desbravando tudo. A
restauração florestal foi o que
nasceu no meu coração.
Felipe Veloso, advogado
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HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 20
boas substâncias que possibilitam o crescimento do
plantio, além de ser motivo de orgulho para o agricultor.
“Tá vendo a quantidade de raízes? Tem raiz de várias
plantas diferentes aqui. Elas vêm buscar nutrientes na
superfície porque estamos colocando a comida para
a vida no solo. Então, utilizamos tudo isso aqui para
cobrir o solo e replicar o que encontramos na floresta.
A madeira, por exemplo, vira terra preta. Se você
olhar como era antes e como está agora, é totalmente
diferente”, explica Felipe.
O facão que ele carrega na cintura é usado para cortar
os galhos, folhas e capins do local para levar matéria
orgânica ao chão. O propósito do ciclo de plantar,
crescer, manejar e decompor no SAF Vale do Sol é
adiantar a operação natural da queda dos galhos, das
folhas, que no tempo normal leva de 10 a 20 anos.
Assim, Felipe consegue acumular mais os orgânicos
indispensáveis para a boa saúde do solo e reflorestar
todo o espaço mais rápido.
A reconstrução florestal atraiu também o teólogo
argentino Matias Blacut, 37 anos, à fazenda. Em busca de
outra vida, o ex-estudante de religiões se tornou auxiliar
de Felipe em 2019. A satisfação de ver o nascimento do
SAF anima Blacutt todos os dias para as atividades de
manejo.
No cuidado na produção de um sistema saudável, a
dupla investe com paciência em pequenos pedaços de
cada vez. Em outras palavras, o plantio ocorre em blocos.
Apenas quando um já está com a terra boa, árvores
desenvolvidas e manejo em dia, outra parte começa a
ser preparada. Dessa forma, Felipe conta ter construído
uma agrofloresta curada da antiga desnutrição.
AGRONEGÓCIONOFUTURO
Pé de limão, manga, milho, maracujá, hortaliças, abacate,
jaca, graviola e outros alimentos também compõem
os corredores de vegetação do SAF. A intenção é
proporcionar uma diversidade de produtos que, no
futuro, venham a dar retorno financeiro com produção
de doces, compotas, geleias, polpas de frutas, hortaliças
diversas e produtos derivados da mandioca. Por
enquanto, o consumo é apenas interno, com direito a
comer a fruta diretamente do pé, sem agrotóxicos.
A educação ambiental, com ensinamentos técnicos e
visitas ao local, está nos planos dos moradores do Vale
do Sol. Os parentes de Felipe e Luísa pedem que eles
fiquem mais na cidade, já que desde a mudança para o
SAF o casal praticamente vive somente na área. Com a
chegada de Beatriz, a filha de 11 meses do casal, porém,
o sonho de permanecer na propriedade só cresceu.
“Aqui vou criar minha filha, quero incentivar o amor pela
natureza e ver tudo isso crescer mais”, finalizou.
Para ele, os cerca de 20 hectares restantes que ainda
precisam de cuidados são uma oportunidade para
explorar a capacidade que o solo tem de renascer.
OQUEÉSAF?
O Sistema Agroflorestal (SAF) é o uso e ocupação do solo
com produção de plantas, cultivo de árvores e produtos
agrícolas que ajudam em sua recuperação do solo. O
investimento nesse sistema engloba ainda uma lógica
de produção que leva em conta o tipo de solo, clima,
arranjos, operação, manejo, legislação e custos.
Toda a construção do SAF tem como foco a garantia
da convivência entre diferentes espécies de árvores e
plantas de forma a trabalharem em conjunto para o
crescimento da região. O desenvolvimento do sistema
agrega valor não só para quem investe em busca de um
retorno financeiro, mas também ao meio ambiente por
trazer vida de volta a um local desflorestado.
“A natureza se ajuda, nada acontece
sozinho. Colocamos as árvores e plantas
uma ao lado das outras porque elas
necessitam uma das outras. Eu sinto
felicidade quando vejo como está mais
cheio desde que cheguei.
Felipe Veloso, advogado
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REPORTAGEM: DANIKLEIN E MIKAELLA MOZER
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 21
OABCDEUMA
AGROFLORESTA
Abelhas, biodiversidade e consórcio na agricultura
transformam sítio em referência ambiental no ES
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HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 21
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 22
Até onde a vista alcança, os pés conduzem e os limites
demarcam, a biodiversidade compõe a beleza do Sítio
Formosa, um bom pedaço de terra de pouco mais de
55 hectares situado na comunidade de Cascatinha do
Pancas, em Colatina, a cerca de 30 quilômetros da sede
do município capixaba.
Referência em produção agroecológica na região,
a propriedade, próxima ao Rio Pancas, afluente do
Rio Doce, protagoniza uma história de persistência,
regeneração e transformação alimentadas por
responsabilidade com o futuro e com as próximas
gerações. Para o cumprimento desses propósitos,
a adesão ao Sistema Agroflorestal (SAF) tem sido
determinante, com a já consolidada diversificação da
lavoura em substituição à monocultura do café.
Do chão rachado, castigado pela seca, a um solo vivo e
fartamente sombreado pelas copas das plantas, muita
coisa mudou em meia década. Um passado recente que
Ercilio Braun, de 55 anos, e Norma Vervloet Nass, de
47 anos – o casal de ascendência pomerana dono do
sítio no Noroeste do Espírito Santo –, fazem questão de
relembrar ao traçar o renovo para um presente mais
produtivo e promissor.
As melhorias que vieram foram, de fato, um divisor
de águas, define ele. “Não tinha água nem para tomar
banho. A nascente tinha secado. Não tinha água para
nada. Era o início do SAF ainda, época em que muitas
plantas morreram e tivemos de fazer um novo cultivo.”
Com as melhores condições e muita entrega, vidas
secas deram lugar à fauna e flora mais protegidas,
amparadas por processos que priorizam o pacto entre
a viabilidade financeira na agricultura e a consciência
ambiental. Esses princípios sempre estiveram de alguma
maneira presentes na família de Ercilio, pontua ele.
Foram legados transmitidos pelo pai, de quem herdou
seu quinhão das terras que hoje integra o Formosa, e
pelo tio, de quem comprou a outra parte que completa
resultantes da poda cobrem o chão e tornam-se adubo
orgânico; a criação de abelhas nativas ajuda a polinizar
flores, estimulando a frutificação; galinhas são criadas
livres, sem gaiolas; lavouras em sistema consorciado
asseguram mais eficácia ao uso da terra; a irrigação por
gotejamento fornece um consumo hídrico mais eficiente
e econômico; e a nascente preservada e abundante
contrasta com o cenário de escassez de anos atrás.
Algumas dessas cenas do cotidiano da família estão
registradas em perfil em rede social, mantida por Norma
para divulgar o trabalho, comprovando que a conexão
com o público tem de ser mesmo em amplo sentido, em
múltiplas formas e plataformas.
“Preservar é importante. Pensando nas gerações futuras,
nos netos. Se a gente não preservar a terra, não vamos
sobreviver”, afirma ela.
A formosura em estado nativo combina-se a técnicas
inteligentes de cuidar do meio ambiente em 56
hectares da propriedade, 40 deles de floresta da Mata
Atlântica preservada e três dedicados ao trabalho em
a área. Faltava ainda aplicar esses conceitos com
metodologia. E a mudança veio.
ENGRENAGEMNATURALMOVIDA
APREOCUPAÇÃOAMBIENTAL
Hoje, o sítio é certificado do Ministério da Agricultura e
Pecuária (Mapa), atestando ao mercado que o que sai de
seu território é produto agroecológico. Pertence, ainda,
a uma Organização de Controle Social (OCS), ao lado de
sete propriedades locais, cuja expectativa, com futuras
novas certificações, é vender para supermercados em
todo o país e para feiras.
É no eixo da sustentabilidade que giram todas as
atividades da propriedade, uma engrenagem natural
movida a preocupação ambiental. Folhas e galhos
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HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 23
SAF para produção sustentável e agroecológica. Por
meio do arranjo desse Sistema Agroflorestal, árvores
nativas da Mata Atlântica, como jequitibá, sapucaia e
jatobá, ocupam o mesmo território das frutíferas e das
plantações de alimentos, a exemplo das lavouras de
arroz, abóbora e batata.
Café, manga e acerola – os carros-chefes entre as
culturas – são colhidos totalmente livres de agrotóxicos
para sustentar a família e abastecer o mercado, assim
como os frutos das outras frentes – mamão, banana,
cupuaçu, cacau, abacate, maracujá e cítricos em geral.
A finalidade é, de fato, ter uma grande variedade no
mesmo ambiente, “uma protegendo a outra”, frisa Ercilio,
ao embrenhar-se entre as plantações para mostrar o
patrimônio verde que mantém.
“Tem bastante coisa, um pouquinho de tudo, né? A
gente faz parte de uma cooperativa aqui, a CAF Colatina
– Cooperativa dos Agricultores Familiares de Colatina,
que tem uma agroindústria que processa as frutas, faz
a polpa para entregar para merenda escolar. Nosso
plantio de manga tem uns 200 pés. A acerola, a gente
entrega também para a cooperativa”, informa.
O sistema da consorciação de culturas, que abrange
a lavoura de mais de uma espécie, mostrou-se um
alternativa bem-sucedida à monocultura. “Aqui, por
exemplo, a pimenta está consorciada com o cacau; e o
café, com a acerola. Sempre tive a intenção de formar
um SAF, de fazer algo diferente, de plantar de forma
consorciada. Meu pai sempre falava: você economiza
deixando de comprar lá no supermercado, você tem a
sua produção. Produzir seu próprio alimento é muito
mais saudável. É um alimento fresco que você tem ali no
dia a dia.”
RECONHECIMENTOPREMIADO
Tanto empenho na conservação conquistou nos últimos
anos reconhecimento e prêmios, uma realidade atual
bem diferente dos olhares desconfiados das pessoas ao
redor em tempos passados. O Projeto de Diversificação
Produtiva Agroecológica de Ercilio e Norma sagrou-se
um dos vencedores do Concurso Ideias Renovadoras:
Plantando Árvores e Colhendo Alimentos da região da
Bacia do Rio Doce, em 2020. A iniciativa foi selecionada
pelo poder de disseminação e pela rica troca de
experiências sobre os recursos hídricos.
O concurso foi uma realização da Fundação Renova
com instituições parceiras. O objetivo concentrou-se
em conhecer e premiar ações no território nacional
que contribuem para a manutenção e retorno das
áreas florestais por meio das agroflorestas. A disputa
“Noplaneta,nãoexistesóoserhumano,né?
Temtodososdemaisseresquecompletam
otodo.Temosbastantebichoaqui:macaco,
cutia,paca,tatu,váriostiposdeinseto...
Agenteentendequeumsítioprecisater
tambémaáreadeproteçãoparaeles.Setodo
mundofizesseassim,estariatudomelhor.
Ercilio Braun, proprietário do Sítio Formosa
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HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 24
também conferiu um prêmio ao SAF do advogado Felipe
Veloso, que decidiu mudar a rota profissional e deixar o
escritório para realizar o sonho de morar no interior, em
Governador Valadares (MG).
Antes do SAF implantado em 2018 com o apoio de
entidades de assistência técnica, estudantes e demais
agricultores em um Dia de Campo, houve ainda um
outro momento decisivo para o negócio de Ercilio e
Norma: a participação do Programa Reflorestar, em
2015, que lhes concedeu Pagamentos por Serviços
Ambientais (PSA) pelo plantio de árvores nativas e
frutíferas e regeneração natural de 11 hectares.
Com cada passo dado, com cada hectare cuidado, o Sítio
Formosa tornou-se um exemplo na região, recebendo
estudantes e pesquisadores para visitas e estágios sobre
conservação e conscientização.
A cafeicultura merece um capítulo à parte nesta história,
pois rendeu à família um outro prêmio recente, o
segundo lugar no X Concurso de Qualidade do Café
Conilon, promovido pela prefeitura local em 2022.
Mal sabiam os desavisados à época que o mato no chão é
parte de um plano bem elaborado para enriquecer o solo,
algo que faz a diferença para a qualidade dos produtos
que são escoados. “A gente usa como adubo os estercos
dos animais daqui, palha de café, folhas, adubação verde
e cobertura morta [técnica que consiste em distribuir sobre
a superfície uma camada de palhas ou outros resíduos
vegetais]. Faz toda essa sequência para melhorar o solo.
A gente usa o que tem dentro do sítio e busca o mínimo
possível fora dele. Usamos muito a roçada. A mata está
numa altura, você corta, aquilo vai para o chão e já vai
virando adubo. Então, a terra está sempre em equilíbrio,
está sempre melhorando, né?”, explica Ercilio.
O casal mora na propriedade há 17 anos. Somente
uma única vez, há uma década e meia, ainda na fase da
monocultura do café, Ercilio usou química na adubagem,
uma experiência que lhe trouxe complicações para a
saúde. “Fui intoxicado por ureia. Sou alérgico. Fui parar
no hospital por causa da doença”, relembra.
ODOCESABORDAFRUTIFICAÇÃO
Dinâmicos, incansáveis e cheios de planos, os
produtores introduziram no fim de 2022 mais uma
atividade em seus domínios. Agregou o dulçor do mel
a tantas cores e sabores já disponíveis em sua árdua,
porém sensível, lida.
A criação de abelhas nativas sem ferrão, chamada de
meliponicultura, está em fase embrionária, mas a ideia
é multiplicar a quantidade de espécimes, de altíssima
relevância para a natureza e a agricultura – é atribuída a
esses insetos a responsabilidade pela polinização de 90%
das espécies da Mata Atlântica.
A produção no recanto de Ercilio e Norma alçou seu
voo inicial com a inserção de oito caixas que abrigam
quatro espécies: jataí, mandaçaia, uruçu-amarela e
droryana.
“Os grãos de café com a polinização ficam mais
graúdos, mais uniformes. Esse é um projeto que
fazemos em parceria com o Jardim de Mel, que é de
um morador da sede de Colatina. Dois técnicos da
prefeitura trouxeram essa iniciativa para cá. A gente
também tem um sistema de captura. Coloca na mata a
isca na garrafa PET. As jataís, por exemplo, conseguem
polinizar flores menores que as outras abelhas não
conseguem.”
NEMTUDOSÃOFLORES,HÁDESAFIOS
Desafios, no entanto, ainda persistem, como falta de
mão de obra para impulsionar a escalada da produção.
Semanalmente, saem do sítio para a venda de cinco a
seis caixas de alimentos. E poderiam ser bem mais.
“Quinze, vinte anos atrás, a gente produzia o nosso
alimento e não tinha interesse do pessoal em comprar.
Hoje, é o contrário: tem muito pessoal para comprar,
mas não tem a mão de obra para você dar conta da
demanda”, observa Norma.
Novos planos também nutrem a vida da família
Braun, como a instalação da energia solar, opção mais
sustentável pelo uso de fonte limpa. Presente e futuro
estão lá conectados pela causa ambiental, sem perder
de vista o processo produtivo. “Vejo a agroecologia
como uma escolha de vida. Tem todo um trabalho social
envolvido. Esperamos ser exemplo para que mais e mais
famílias também façam a adesão”, conclui Ercilio.
“Noinício,agenteerachamadodelouco,
derelaxado.Opessoalvinhaparacáevia
tudonomeiodomato.Falavaqueagente
iriapassarfome.Agentejásofriamuito
preconceito,ficoumuitotempoisolado,
trabalhandosozinho,tentandofazeras
coisas,enãotinhaapoiodeninguém.
Agoraoolharmudou.
Ercílio Braun, proprietário do Sítio Formosa
©
BRUNO
MIRANDA
REPORTAGEM: ANDREIA PEGORETTI
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 25
HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM
PRODUZIDO POR CEO
DaniKlein
DIRETORA DE INTELIGÊNCIA
Mariana Klein
DIRETOR DE ARTE
Dayvid Gagno
EDIÇÃO
Andreia Pegoretti

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Histórias que restauram e inspiram

  • 2. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 2 © BRUNO MIRANDA EDITORIAL Esta revista é uma daquelas realizações que nos dão muito orgulho e ainda mais certeza de que o propósito está no DNA da KICk, uma microempresa liderada por mulheres movidas pela paixão e determinação de deixar um legado significativo no mundo. Há 15 anos, quando a KICk surgiu, ela já tinha o objetivo de trabalhar comunicação com envolvimento, engajamento e sustentabilidade. Neste caminho, foi preciso nos reinventarmos e nos fortalecermos por inúmeras vezes, contando com a união de pessoas e potências que nos ajudaram a ir ainda mais longe. Um marco decisivo na trajetória foi a pandemia de 2020, quando decidimos, mesmo tendo que se despedir de alguns clientes, focar apenas trabalhos alinhados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, com projetos de valor que fizessem a diferença. Ouvimos comentários como "vocês são corajosas" e "vocês são loucas”, mas tivemos a certeza de que estávamos no caminho certo. Em seis meses, bons contratos em consonância com nossos propósitos surgiram! Após ajudarmos tantos clientes a falarem e serem vistos, agora nos dedicamos a ensiná-los a ouvir as pessoas e o planeta, agindo em conformidade, construindo uma gestão amiga, com resultados financeiros otimizados e uma comunicação transparente e sincera, capaz de gerar alto valor à marca. Nesta nova fase, nossos indicadores refletem conquistas significativas. Cinco clientes aceitaram se tornar signatários do Pacto Global e iniciaram seus relatórios Caros leitores, de sustentabilidade (GRI). Um adotou práticas de investimento em equipamentos de menor impacto ambiental e maior segurança. Além disso, outro promoveu a inclusão ao lançar suas primeiras vagas afirmativas para mulheres negras. Nosso trabalho também tem gerado resultados expressivos no engajamento, especialmente com grupos vulneráveis, ao incentivar sua participação em consultas públicas que antecedem a instalação de um porto. Acreditamos que essas ações contribuem para um futuro mais sustentável e inclusivo. Mas tem outra coisa que temos certeza de que pode melhorar muito a vida de todos: mostrar que tem gente, mesmo sem muito dinheiro, com uma baita consciência do seu poder de transformação e inspiração. Bons exemplos contagiam! Uma de nossas tarefas de trabalho envolve descobrir e registrar histórias de pessoas que em sua simplicidade trazem uma versão melhor do que é ser humano e como se relacionar com a natureza. Então, resolvemos compartilhar com vocês o que Marias, Josés, Mários e tantas outros fazem por aí para ter um mundo melhor. Convidamos você a apreciar cada história contada e também a ser encantado pelo impacto positivo que cada um de nós pode proporcionar. Conte conosco nesta jornada de transformação! DANI KLEIN E MARIANA KLEIN
  • 3. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 3 Sobre trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Minas, sobre rodas em asfalto e terra batida, ou a pé sobre matas, percorremos caminhos para encontrar abundantes fontes de experiência. Vidas e vivências conduzem este conteúdo, produzido a partir de entrevistas feitas com mulheres e homens que habitam em municípios no entorno da Bacia do Rio Doce, em Minas Gerais e no Espírito Santo. Os relatos, colhidos em 2022 e 2023, mostram trajetórias com cursos bem diferentes que deságuam em um mesmo propósito: preservação ambiental. Sementes que viram mudas, mudam que viram árvores, árvores que frutificam para a continuidade da semeadura: esse é o círculo virtuoso cada vez mais potente que se quer fertilizar. Em tela, personagens reais como Mário Francisco de Assis, proprietário de uma fazenda em Periquito (MG) que é abraçada por um cinturão verde com mudas nativas. Para que essas plantas chegassem até ele, um outro trabalho importante é feito antes, a cata de sementes, desempenhada por pessoas como Lúcia Martins e Maria das Dores, moradoras do assentamento do Movimento Sem Terra em Jampruca (MG), que encontraram na atividade uma opção de renda. Índios HISTÓRIASQUESE ENTRELAÇAMEM 50TONSDEVERDE da aldeia Pataxó Geru Tucunã, no Parque Estadual do Rio Corrente, em Açucena (MG), também fazem parte dessa rede de sustentabilidade. Florestar, reflorestar, preservar, regenerar e conservar são as ações praticadas por sujeitos, grupos e comunidades em 50 tons de verde, expressos por folhas, frutos e espécies arbóreas preservadas como jacarandás, ipês e mogno-africano. Para incentivar engajamento e despertar senso de pertencimento à causa, também está incluída nesse esforço a implantação de Sistemas Agroflorestais (SAFs), que envolve terras como as de Felipe Veloso, em Governador Valadares, um advogado que deixou o escritório na cidade para viver no campo tocando seu pedaço de chão; e de Ercilio Braun, em Colatina (ES), um agricultor que já foi contaminado por agrotóxicos antes de aderir à produção totalmente agroecológica. Aqui você também vai ler sobre o falante Seu Chico e sua área cercada para proteger a Mata Atlântica e um casal com 20 mil filhas, as mudas para reflorestamento, Roberto e Alessandra Pereira. Todas essas histórias se entrelaçam tendo por elo o Programa de Recuperação de Áreas de Preservação Permanente e de Recarga Hídrica, da Fundação Renova, como o apoio de parceiros. A iniciativa financia a restauração florestal em propriedade da Bacia do Rio Doce, com a meta de chegar a 40 mil hectares de áreas de recarga hídrica e APPs e 5 mil nascentes ao longo de dez anos. As medidas têm por objetivo compensar o passivo ambiental ocasionado pelo rompimento da barragem de Mariana em Fundão. A trilha já foi traçada, com vários atores já marcando seus passos. Convidamos você a conhecer esse percurso por meio deste conteúdo. Uma boa leitura; uma boa viagem. APRESENTAÇÃO Das sementes à floresta: o caminho da recuperação da bacia do Rio Doce Um casal com mais de 20 mil filhas A reconstrução de vidas pelo Sistema Agroflorestal na Bacia do Rio Doce O ABC de uma agrofloresta Colheita de sementes nativas empodera mulheres na Bacia do Rio Doce Preservação de área diversifica fontes de sustento
  • 4. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 4 A viagem de trem pela centenária Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) adianta o cenário que aguarda quem chega a Periquito, um pequeno município com pouco mais de 6 mil habitantes no interior de Minas Gerais, na Região da Bacia do Rio Doce. Partindo do Espírito Santo, são cerca de 600 quilômetros de campos esparsos e Mata Atlântica, que refletem não só a abundância natural brasileira, mas também a seca e a ocupação urbana. Em Periquito, os cenários degradados dominam, mas basta chegar perto da propriedade de Mário Francisco de Assis e Maria das Mercedes Oliveira de Assis para sentir a diferença. Na Fazenda Saião, distrito de São Sebastião do Baixio, o cheiro fica mais fresco, o ar parece mais leve, o verde se torna mais verde. A água, antes escassa, brota das nascentes recuperadas pelo trabalho do casal de produtores rurais dentro do Programa de Recuperação de Áreas de Preservação Permanente e de Recarga Hídrica da Fundação Renova. A iniciativa, com o apoio de instituições parceiras, atua para mobilizar proprietários rurais dispostos a participar da restauração florestal. Mais de 1.100 propriedades em aproximadamente 40 municípios da bacia do Rio Doce já fazem parte dos programas que, por meio de editais, oferecem insumos, assistência técnica e Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) a quem aderir. A meta é mobilizar produtores e produtoras rurais para a recuperação florestal de 40 mil hectares, sendo 30 mil pela técnica de condução de regeneração natural e 10 mil pela técnica de plantio total, além de mais 5 mil nascentes. De acordo com o especialista em meio ambiente da Renova, Cláudio Barbosa Soares, até novembro de 2022 foi possível alcançar 1.687 nascentes e 10.760 hectares em processo de recuperação nos programas, espaços que estão no mínimo cercados para início do processo de restauração. “Essas bacias foram selecionadas através de um estudo com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de Viçosa (UFV), assim como a localização das nascentes a serem recuperadas foram definidas pelo Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio Doce”, pontua Cláudio. “TERRENOSEMÁGUANÃOVALENADA” Seu Mário, 74 anos, e Dona Maria, 71, falam das ações de reflorestamento com um entusiasmo e um amor que contagiam. Primeira família a aderir ao Programa de Recuperação, eles já reflorestaram 11 hectares, o que equivale a 11 campos de futebol. Com as mudas fornecidas pela Renova, formaram um cinturão verde em torno de sua fazenda, ligando uma área degradada à floresta nativa DASSEMENTES ÀFLORESTA:O CAMINHODA RECUPERAÇÃODA BACIADORIODOCE Graças à mobilização de produtores rurais, um novo cenário começa a brotar com as nascentes na bacia do Doce © DANI KLEIN
  • 5. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 5 que cobria a parte mais alta da propriedade. Bananeiras, coqueiros, ipê-roxo, ipê-amarelo, jacarandá e pau grande crescem nas áreas reflorestadas. Os locais são cercados com arame e madeira, para evitar que o gado ou os animais maiores pisem nas nascentes. Três poços artesianos, duas lagoas e duas barraginhas, construídas no alto da propriedade para segurar a água das enxurradas, ajudam a irrigar a plantação. Por causa do plantio das árvores, Seu Mário conta, as nascentes não secam mais, e os animais têm pasto de qualidade o ano todo. “Cuidando da natureza, a gente está cuidando da gente. Plantando em cima como eu plantei, a tendência é melhorar embaixo. Desce o adubo e segura a água. Terreno sem água não vale nada”, explica o pai de quatro filhos e avô de sete netos que se aposentou como mecânico de siderúrgica e, há duas décadas, dedica-se a cuidar da terra. Os filhos moram fora da fazenda, mas também apoiam o reflorestamento. Segundo Seu Mário, a prole não se cansa de aproveitar o resultado da ação. “Eles chegam aqui e é foto pra todo lado! Quando falei pro meu neto que iria vender a propriedade, ele disse: ‘Não vende não, vô, deixa só pra mim!’”, diverte-se. Com o mesmo bom humor, o produtor garante: da terra em São Sebastião do Baixio, ele só sai se for para o céu. RAÍZESDOREFLORESTAMENTOESTÃOPERTODALI, NACOLETADESEMENTES As mudas que chegam à Fazenda Saião para se tornarem floresta são plantadas na época das chuvas e cumprem uma jornada de até um ano para que estejam prontas para o plantio. Da coleta das sementes ao processo de rustificação, que prepara a planta para ambientes mais hostis e menos controlados do que o viveiro, o cultivo de espécies nativas exige paciência e dedicação. Dalila e Wolnei Martins Coelho conhecem bem esta rotina. Há 18 anos, o casal fornece mudas como as que Seu Mário e Dona Maria usaram na restauração florestal de sua propriedade. À frente do Viveiro de Mudas Martins, em Governador Valadares, também são braços que ajudam a dar vida ao Programa de Recuperação de Áreas de Preservação Permanente e de Recarga Hídrica, que se acredita ser a maior iniciativa de restauração de Mata Atlântica a curto prazo no Brasil. O Programa financia o plantio de mudas e o cercamento de áreas estratégicas para recarga hídrica, com meta de chegar em 40 mil hectares de terras e 5 mil nascentes em mais de 60 municípios, ao longo de dez anos. Para dar conta do desafio, aproximadamente 44 mil brotos são necessários. A produção é grande, mas segue o ritmo da natureza. E assim, espécies como quaresmeira, pixingui, araçá, jenipapo, jacarandá-cabiúna e jequitibá, entre outras, são cultivadas no viveiro dos Martins, que também preserva um pé carregado de lichias, para a alegria dos visitantes. “São oito meses produzindo e quatro meses expedindo as mudas. Começa na germinação das sementes “Quando eu cheguei aqui, não tinha água nem para tomar banho. Hoje eu não vejo mais o fundo da lagoa rachado. Hoje eu vejo água. Posso jogar água na minha capineira toda que a água está aí. Mário Francisco de Assis, proprietário da Fazenda Saião, ao lado da mulher, Maria Assis © DANI KLEIN © DANI KLEIN
  • 6. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 6 © DANI KLEIN e segue. A partir de um período, deixamos que elas fiquem diretamente no sol e com a metade da adubação, para elas não acostumarem muito na vida boa e, na hora de ir para o campo, resistirem o maior tempo possível, principalmente na estiagem”, ensina Wolnei. RESULTADOSVÃOALÉMDOPLANTIO Além dos evidentes resultados obtidos com o reflorestamento, o plantio de mudas nativas da Mata Atlântica na Bacia do Rio Doce fomenta a economia local e cria conexões importantes para o desenvolvimento sustentável das comunidades da região. Uma dessas conexões é a Rede de Sementes e Mudas da Bacia do Rio Doce, iniciativa que alimenta o reflorestamento ao mesmo tempo em que gera renda e fortalece saberes. A Rede surgiu por causa da grande demanda de sementes e mudas nativas para a execução do Programa de Recuperação de Nascentes, Áreas de Preservação Permanente e de outras ações de reparação dos municípios atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, mobilizando em especial mulheres, quilombolas, trabalhadores de assentamentos rurais e povos indígenas da Bacia do Rio Doce. POVOSTRADICIONAISESABERES As comunidades demonstram seu envolvimento com o projeto, inclusive grupos que têm a lida com a natureza como tradição. Em outubro de 2022, a Rede iniciou o segundo ciclo de coleta, retirando 309 quilos de sementes manejadas por índios da aldeia Pataxó Geru Tucunã, no Parque Estadual do Rio Corrente, no município de Açucena. Com isso, passou de uma tonelada o volume de sementes coletadas pelos Pataxós ao longo do programa. “Toda a aldeia hoje está envolvida na coleta de sementes. Nossa comunidade vive a sustentabilidade. Plantamos abacaxi, feijão, milho e mandioca para consumo e venda, recolhemos sementes para artesanato, plantio e curas. Com a coleta, muitas famílias que não tinham atividade agora têm”, conta o cacique Baiara Pataxó, líder da aldeia. Para o cacique, o trabalho de reflorestamento fortaleceu também a batalha da tribo pela demarcação de território que eles ocupam desde 2010, quando deixaram a Terra Indígena Barra Velha, no extremo sul da Bahia, em busca de paz e água. Com o trabalho, espécies como cedro, peroba, ipê amarelo e jequitibá voltaram a florescer. Hoje, a agrofloresta cerca o espaço e estimula a atividade econômica dos indígenas e a troca de saberes ancestrais. A coletagem de sementes foi um estímulo ao sustentar das famílias e também uma maneira de estar conectado com a natureza. A área é muito grande, e isso trouxe uma responsabilidade maior para nós, de estar levando para o próximo o quão importante é ele fazer a parte dele no cuidar da Mãe Terra”, afirma Natália Braz, professora da aldeia. Segundo ela, quando o grupo chegou na região, há 12 anos, havia apenas uma árvore. “A gente começou aquele trabalho de formiguinha de recuperar o nosso ambiente. A natureza, quando você dá um espaço para ela, ela regenera. É divino. Natália Braz, professora da aldeia REPORTAGEM: DANI KLEIN E ANA LAURA NAHAS
  • 7. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 7 “Quebra a cabaça, espalha a semente, planta do lado que o sol nascer.” Ao ritmo da batida dos chocalhos, a música ouvida em uma tarde de janeiro introduz a conversa para uma troca de conhecimentos e experiências que frutificam na Bacia o Rio Doce. O palco para a prosa é o assentamento do Movimento Sem Terra (MST) Ulisses Oliveira, em Jampruca, Minas Gerais, onde os versos e a melodia no canto de Lúcia Martins, 68 anos, e Maria das Dores, 67, expressam um trabalho que lhes é familiar. Moradoras desse território, elas viram suas vidas serem transformadas a partir de uma iniciativa que fomenta o crescimento dessas trajetórias pessoais, de grupos vulneráveis e da economia florestal. É o projeto Rede de Sementes da Bacia do Rio Doce, que se tornou fonte de renda para pessoas, sobretudo COLHEITADE SEMENTESNATIVAS EMPODERA MULHERESNABACIA DORIODOCE Trabalho incentiva o crescimento de uma geração de mulheres fortes e semeia o caminho para reflorestamento © BRUNO MIRANDA
  • 8. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 8 mulheres, em municípios da região e incentiva também as atividades da ambientalista e viveirista Alessandra Pereira, 43, e da proprietária rural Creusa Madeira, 38. Coletiva e individualmente, os resultados fecundam. No percurso de Lúcia e Maria, as sementes ajudam a garantir recursos financeiros para os moradores do assentamento. “Eu me sinto realizada”, ressalta Maria. Já para Alessandra, são motivo de orgulho, pois garantem o trabalho da produção de mudas e o plantio em uma Reserva Florestal. E, para Creusa, o vínculo é mais recente, mas igualmente relevante, por ser a chance profissional abraçada após a perda da fonte de sustento com a queda da barragem em Mariana, também em Minas. Em menos de 12 meses, foram coletadas 24 toneladas de sementes, que vão contribuir na restauração da Mata Atlântica, bioma o qual apresenta somente 12,5% da floresta original. O resultado obtido em 2022, primeiro ano de atividade com as comunidades, representa a maior ação de resgate de sementes nativas do mundo. ASSIMCAMINHAASUSTENTABILIDADE Em uma caminhada pelo assentamento sem terra, as quatro mulheres compartilharam suas vivências. A cada avançar na andança, a natureza mostra suas dádivas: uma folha que Alessandra ensina a usar de uma forma que ninguém conhecia; uma explicação de Creusa sobre a aplicação de uma planta encontrada no solo para tratar machucados; uma lição de Maria sobre como reconhecer certos tipos de fruta; as informações dadas por Lúcia referente à diversidade de modos com que esses vegetais podem ser usados e técnicas simples capazes de acelerar significativamente o trabalho de beneficiamento. Nessa rede de realidades, um outro percurso também é traçado no compasso da rota da sustentabilidade. As sementes recolhidas pegam a estrada na Bacia do Rio Doce para a casa de sementes e depois são destinadas às regiões de plantio, com o objetivo de fortalecer o Programa de Recuperação Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Recargas Hídricas e o de Recuperação de Nascentes da Fundação Renova. “Começamos com o piloto em 2017. O plano é que os territórios a serem restaurados recebam um mix de espécies, que após cada plantio alcancem 80% de densidade e 80% de cobertura de copa, das áreas naturais em estágio de regeneração avançado, em quatro anos. Já temos parceria em áreas em que Essas e outras histórias entrelaçadas pela Rede de Sementes empoderam comunidades surgidas a partir da reforma agrária, territórios quilombolas e aldeias indígenas, abarcando em torno de 47 grupos. É a partir das sementes colhidas e beneficiadas pelas dezenas de Lúcias, Marias, Alessandras e Creusas que áreas degradadas estão sendo recuperadas. A meta estipulada de sementes em 2022 previa 20 toneladas, só com a ação das sementeiras e sementeiros, para atender ao reflorestamento de 12.900 hectares, mas foi superada, com o intenso engajamento. “Estou ajudando a fazeraMataAtlântica florescer de novo. Creusa Madeira, proprietária rural © BRUNO MIRANDA
  • 9. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 9 as árvores já chegaram a seis metros de altura. É maravilhoso!”, informou Leandro Abrahão, analista de Programas Socioambientais da Fundação Renova. Essa variedade dos tipos de sementes disponíveis no projeto, descrita por Leandro, contempla outra proposta da Rede de Sementes: a renovação com diversidade. O objetivo é recuperar uma parte da Mata Atlântica, dentro do perímetro da Bacia do Doce, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, com espécies arbóreas e arbustivas. Para que isso aconteça, os 47 grupos envolvidos são treinados pelo projeto após mobilizações e engajamento das comunidades. Ao reunirem uma quantidade de sementes recebem uma visita de avaliação da qualidade por técnicos e vendem-nas para a Renova. Entre eles estão: associações, cooperativas, coletores individuais, proprietários rurais, Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) e comunidades tradicionais, situados em municípios como Sabinópolis (MG), contemplando quilombolas locais, Jampruca (MG), Santa Maria do Suaçuí (MG), São José do Safira (MG), Carmésia (MG) e Açucena (MG), com atuação em aldeias indígenas, e Alto Rio Novo (ES). Inseridas nesses grupos, estão Alessandra, Lúcia, Maria e Creusa, mulheres que inspiram outras a entrarem no projeto e conseguirem a independência enquanto ajudam o meio ambiente. “Antigamente, falavam que só homem era capaz, pois, se mulher se perdesse na floresta, morreria. E não é bem assim. Na minha localidade, eu sou a primeira que trabalha com isso. É muito bom conhecer a natureza, saber para que serve cada coisa. Se um dia me perder em uma mata, consigo sobreviver, identificar muitas coisas, o que comer ou o que tem veneno. É muito legal saber que, além de conhecer a floresta, estou contribuindo para que floresçam com as sementes que recolho”, afirma Creusa. Diversidade não só de flora, mas também de gente é um valor para a Rede, como aponta a técnica de sementes Monique Alves. “Prezamos a equidade de gênero. Então, se vai entrar um homem na rede, entrará também uma mulher. Vamos também começar a pensar com mais foco a governança para criar grupos que sejam independentes. Assim, quando a Fundação Renova não for a principal compradora, os participantes já terão garantido seu mercado.” GERAÇÃODESEMENTES Independência também sempre foi prioridade para Maria. Mãe solo, ela saía cedo para trabalhar e voltava tarde para casa. Muitas vezes, não via os filhos durante o dia. Era o único modo de garantir educação para eles. Agora, de suas mãos sai o futuro da próxima geração, os netos. Para isso, entre os pés de abóboras, acerolas e manga, as mudas de jatobás, jacarandás e outras árvores nativas têm seu canto no quintal para crescer. Elas também são plantadas no terreno de Lúcia para que seu Sistema Agroflorestal (SAF) no Ulisses Guimarães venha a prosperar. Assim são garantidos tanto uma recuperação na região da Bacia do Rio Doce quanto um retorno financeiro para a família. “Antes, a gente não tinha muita renda, principalmente as mulheres. Agora, a maioria vem das sementes”, afirmou Maria. O resultado financeiro só vem se consolidando por meio da ação conjunta entre as mulheres que vivem no Ulisses Guimarães. De duas a três vezes por semana, um grupo parte para recolher as sementes. A atividade chamou a atenção da neta de Lúcia, Dandara Sofia, de 12 anos, que nas andanças no assentamento junto ao grupo mostra já conhecer algumas sementes, além de desejar continuar o trabalho da avó. © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA
  • 10. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 10 A mesma conexão entre diferentes gerações acontece na vida de Maria. Com satisfação, ela conta que a neta Larissa Coelho, 17, também a acompanha na colheita. A inspiração da vida de sementeira da avó levou a jovem a decidir por cursar Engenharia Florestal após o ensino médio para ajudar no crescimento da região, algo que enche Maria de orgulho. Com o dinheiro das vendas para a Renova, a matriarca pretende ainda fortalecer o ensino dos netos ao pagar os estudos. A primeira renda originária do trabalho com sementes foi diretamente destinada à compra de um notebook para as aulas de um dos netos, e isso é só o começo. Com acerolas na mão enquanto olha para o pedaço de terra já em recuperação ambiental com as árvores por ela plantadas, a assentada desabafa sobre uma outra grande vontade. Caratinga, atuando na preservação dos macacos desta espécie. Lá, é responsável pelo berçário de sementes e mudas locais, a partir das quais brotam centenas de árvores nativas destinadas à recuperação ambiental da Bacia do Rio Doce. A ambientalista cresceu em uma vida cuidando da natureza. De auxiliar de pesquisadores ambientais a profissional que faz parte de um grande projeto de restauração da Mata Atlântica, ela busca passar os valores para a filha. “Quero muito que ela siga esse caminho. Ensino o valor de ver a natureza crescer e permanecer. Cuidar da natureza é algo constante. Laiane já me ajuda no beneficiamento das sementes, torço que leve para vida profissional também”, disse, animada. No encontro no assentamento, Laiane, 15, grava ao celular a mãe ao lado de Lúcia, Maria e Creusa enquanto trocam ideias e os momentos da ambientalista ao conhecer novas plantas, tudo para guardar o momento. “O que ela faz é importante e inspirador. Ela acorda cedo para dar conta de tudo. Tem que guardar este momento de troca de conhecimento. Muita gente não conhece a importância de manter a natureza”, enaltece. Já Creusa, moradora de Revés do Belém, comunidade do Município de Bom Jesus do Galho (MG), foi a última das quatro a entrar no mundo de coleta e beneficiamento “Meudesejoéqueeuvivaosuficientepara verasárvoresqueestouplantandojá enormes,equemeusbisnetosmevejamao ladodelas.Veremcomoajudeiarecuperar. Queeuestejaaquiparafalardaimportância docuidadocomomeioambiente. Maria das Dores, coletora de sementes O mesmo desejo singelo, mas ao mesmo tempo grandioso, é acalentado por Alessandra. Há mais de 20 anos cuidando da Reserva Particular do Patrimônio Natural Feliciano Miguel Abdala (RPPN-FMA), a antiga Fazenda Montes Claro, ela integra o Projeto Muriqui de © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA
  • 11. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 11 de sementes depois de perder a sua forma de trabalho. A mudança de vida abriu portas para novos conhecimentos, que foram compartilhados durante toda a manhã no Ulisses Guimarães. Ao lado da filha Maria, 4 anos, a proprietária rural se espanta ao descobrir que uma semente ao redor de sua residência tem grande valor na natureza. Desde que começou a se envolver com o projeto, ela conheceu as funções de diversas plantas, a participação de cada animal e a forma de usar esses saberes adquiridos. “A recuperação do Rio Doce me movimenta muito, a gente engole até seco. O rio era um local onde se buscava socorro. Se precisava de comida, buscava água lá, dava sustento. Fico muito feliz de ajudar a reconstruir, porque é algo até acima de dinheiro. Com as sementes, entendemos que precisamos preservar”, analisa Creusa. Mãe de outras duas meninas, Emily Madeira, 19, e Carolina Madeira, 17, Creusa salienta que catar sementes também é criar uma “geração de mulheres fortes. Além de fazer a restauração, as sementes têm esse poder de ajudar as pessoas a melhorar a vida”, finaliza. UMAREDEDENTRODEUMACADEIA Pelo Programa de Recuperação de Áreas de Preservação Permanente e de Recarga Hídrica e pelo Programa de Recuperação de Nascentes, as sementes beneficiadas são lançadas em áreas com solo preparado para recuperação ou enviadas para viveiros e cuidadas para germinar até as mudas estarem fortes o suficiente para o plantio. Ao chegarem a esse estágio, seguem para áreas de recuperação, grande parte para as propriedades rurais de parceiros do projeto, como Mário Francisco de Assis e Maria das Mercedes Oliveira de Assis, em Periquito, além de aldeias indígenas e assentamentos. © BRUNO MIRANDA REPORTAGEM: DANIKLEIN, MIKAELLA MOZER E ANDREIA PEGORETTI
  • 12. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 12 UMCASAL COMMAISDE 20MILFILHAS Em um oásis na Bacia do Doce, casal manteve por anos a esperança de salvar os muriquis e está prestes a ver o sonho se realizar © BRUNO MIRANDA HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 12
  • 13. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 13 A frase ecoa por entre cerca de 1.000 hectares, na Bacia do Rio Doce, situados entre os municípios de Caratinga e Ipanema, no Estado de Minas Gerais, uma área repleta de Mata Atlântica e com uma biodiversidade impressionante. Enquanto fala, Roberto Paulino Pereira aponta para uma bucólica casinha branca onde, há 46 anos, sua mãe lhe dava a luz, com ajuda de uma parteira. A Fazenda Montes Claro, adquirida em 1944 pelo cafeicultor Feliciano Miguel Abdala, com a promessa de não desmatar e cuidar do fragmento florestal onde viviam flora e animais em extinção, já era um oásis no meio de plantações de cana e café, entre outros. Roberto cresceu nesse cenário, vendo de perto a diferença entre preservação e exploração do solo e, em um convívio harmônico com muitas espécies raras de plantas e animais, aprendeu a amar e respeitar a natureza. Ele não estava sozinho em suas descobertas ecológicas e sonhos de defender o meio ambiente. A amiga de infância Alessandra de Souza Pereira, 43 anos, diz que não nasceu na Fazenda, porque chegou a tempo à maternidade, mas respira a mesma fragrância verde desde seus primeiros dias e compartilha do mesmo amor pelo ecossistema local. Um sentimento que acabou unindo os dois na juventude, na formação de uma grande família, que gerou uma filha humana, Laienne de Souza Pereira, de 14 anos, e mais de 20 mil mudas de árvores, filhas cuidadas pelo casal desde o tratamento e beneficiamento de sementes até o momento do plantio. DEFAZENDAARESERVA Em 2001, com o falecimento de Seu Feliciano, surgiu uma preocupação com o futuro do local. Seria ele dividido entre os herdeiros? Vendido e transformado em uma área de monocultura? Mas a resposta da família não poderia dar maior felicidade para quem, por tanto tempo, se dedicou a cuidar. A fazenda foi transformada em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com o nome do cafeicultor que resguardou para o planeta um dos pedaços mais preservados de Mata Atlântica ainda existentes. O bisneto, Rodrigo Abdalla, 40 anos, herdou não só parte das terras, mas também o espírito de guardião. Ele lidera a ONG Preserve Muriqui, e deu início a um novo momento, em que, além da preservação, busca a ampliação das áreas verdes através da restauração ambiental. Seguindo os passos do bisavô, que apoiou, em 1983, o início das pesquisas científicas sobre o muriqui-do-norte, “Aqui é o meu berço, eu nasci naquela casa, e é aqui a minha vida. Roberto Paulino Pereira, produtor rural © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA
  • 14. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 14 foram perseguidos e mortos por pessoas que erradamente achavam que eles transmitiam febre amarela. Os muriquis-do-norte são muito pacíficos. Eles ensinam muita coisa para a gente, se abraçam, estão sempre felizes, andando em grupo, e é uma das únicas sociedades de primatas igualitárias entre fêmeas e machos”, destaca Roberto. Com em média 15 quilos, esses dóceis animais ainda dividem bem o espaço com tatus, pacas, onça parda, macacos das espécies barbado, prego e sagui, além de muitos e diferentes pássaros. AESPERANÇA Em 2014, o Corredor Ecológico Sossego-Caratinga, ligando a RPPN Mata do Sossego à RPPN Feliciano Miguel Abdala, foi oficialmente reconhecido pelo Governo de Minas Gerais: o primeiro a ganhar o título no Estado. A projeção é conectar fragmentos isolados de floresta e permitir a circulação de fauna e flora em sete municípios mineiros: Caratinga, Simonésia, Manhuaçu, Ipanema, Santa Bárbara do Leste, Santa Rita de Minas e Piedade de Caratinga. A esperança e a rara chance para salvar o muriqui-do- norte da extinção, dependiam, no entanto, de uma grande força-tarefa na restauração florestal, e este sonho passou a ser uma realidade próxima em 2022, com o projeto de recuperação da Bacia do Doce, que envolve uma ampla mobilização social com objetivo de coleta de sementes, produção de mudas, cercamento de áreas estratégicas para proteção de nascentes e o plantio. “Só a meta da Preserve Muriqui neste processo é 1.500 hectares de mobilização para recuperar e criar o corredor, o que equivale a uma RPPN e meia em tamanho. Vai ser um resultado maravilhoso”, destaca Rodrigo. Mas, para ser eficaz, esta história terá que envolver diversos proprietários rurais da região. A mobilização vai para além dessa área do Corredor e deve abranger 5 mil hectares na Bacia do Doce. o maior primata das Américas e em risco de extinção, Rodrigo criou grandes planos que já estão se tornando grandes realizações. “Quase tudo o que se sabe sobre o muriqui-do- norte tem origem nesta RPPN. Neste ano de 2023, vamos completar 40 anos de pesquisas e temos o que comemorar. Para se ter uma ideia, saímos de 50 indivíduos para quase 300. Uma das principais conclusões desses anos de pesquisa é que não basta apenas preservar a floresta da RPPN. Precisamos ampliar o habitat do muriqui para garantir a preservação da espécie”, pontua Rodrigo. A estimativa atual de uma população de 280 indivíduos do muriqui-do-norte na RPPN não parece grande, mas o número representa quase um terço do total da população, que é endêmica da Mata Atlântica brasileira, ou seja, só é encontrada no país. “Eles sofreram muito com a caça e muitos também © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA
  • 15. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 15 SIMBIOSE A Preserve Muriqui lidera um viveiro com capacidade de produção para 200 mil mudas, sendo que para 2023 a expectativa é produzir 40 mil mudas, de mais de 80 espécies. A ONG também foi fundamental no apoio para a criação da rede de sementes, formada por cerca de 30 pessoas de baixa renda da comunidade, e que gerou quase duas toneladas de sementes em 2022. “Eu, o Roberto e até a Laianne somos coletores e beneficiadores de sementes. Quanto mais a gente mexe com isso, mais vontade de fazer isso da vida. Aprende-se muito com a natureza e ver minha filha junto é gratificante. Meu trabalho aqui é na germinação e cuidado com as mudas, e pelas minhas mãos já tem umas 20 mil nascidas. São como se fossem minhas filhas”, ressalta Alessandra. “Uma parte das mudas, a gente planta aqui mesmo na RPPN, em alguma clareira, algum lugar que não conseguiu se regenerar naturalmente e está precisando de uma mãozinha. Em 2022, plantamos cerca de 1.600 aqui, e nossa missão para 2023 é plantar pelo menos 40 mil, para ajudar na formação do corredor ecológico. Protegendo e ajudando a floresta a crescer, aumentamos o espaço dos animais e garantimos mais alimento. Assim, as populações crescem. Por outro lado, os próprios animais nos ajudam a dispersar as sementes e a regenerar o local”, complementa Roberto. Roberto ainda tem uma ressalva: se é bom ver brotar vida novamente onde já não existia sombra, imagine ter na sua frente árvores de mais de 200 anos. “Quanta vida tem ali! Tem que preservar, pensar nas gerações futuras. A árvore pode não falar, mas eu te conto uma coisa: quando estou meio atordoado, chego perto do Jequitibá e fico ali. Tem dia que saio até com dor no pescoço de tanto olhar para cima, mas a alma sai leve.” © BRUNO MIRANDA REPORTAGEM: DANIKLEIN
  • 16. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 16 Meio século separa dois cenários que marcam o passado e o presente de Seu Chico. No mesmo espaço, um novo tempo. Do verde do pasto bovino de cinco décadas atrás para o verde vivaz hoje também presente nas lavouras e matas, o mundo deste sexagenário de riso fácil e papo aberto ganhou mais matizes e escolhas. Quem imprime o tom da mudança é um relevante projeto na região onde mora o produtor, no entorno da bacia do Rio Doce. Em Jampruca, Minas Gerais, a transformação finca raízes na realidade de pessoas como o agricultor de 66 anos, 16 deles, ao menos, dedicados à lida no campo. Das 43 famílias do assentamento do Movimento Sem Terra (MST) Ulisses Oliveira, 42 (inclusive a do Seu Chico) aderiram ao cercamento de áreas das propriedades, especialmente nascentes e Áreas de Preservação Permanente (APPs), para receber incentivos a fim de proteger e restaurar esses locais. Por meio desse estímulo, territórios degradados e nascentes em risco recebem atenção do Programa de PRESERVAÇÃODE ÁREADIVERSIFICA FONTESDESUSTENTO Famílias de assentamento do MST aderem a cercamento de áreas para preservar nascentes e receber incentivos para proteger floresta nativa © BRUNO MIRANDA
  • 17. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 17 Recuperação de Áreas de Preservação Permanente e de Recarga Hídrica, da Fundação Renova. O chamado vem sendo ouvido: 1.650 propriedades, incluindo as do assentamento do MST, em 40 municípios da bacia já fazem parte de projetos que, por meio de editais, oferecem insumos, assistência técnica para a restauração florestal e Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) a quem abraçar a proposta. A missão vem sendo cumprida com gosto por Seu Chico no assentamento, instalado em uma área total de 2,1 mil hectares, criado em 2010 por meio doação de terras e viabilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Nesse lugar, as melhorias florescem, deixando para trás o panorama desértico do passado e desbravando trincheiras para uma produção agroecológica, livre de agrotóxicos. “Nasci na região. Moro no assentamento tem uns 20 anos, mas estou aqui desde sempre. Antes, eu trabalhei durante 30 anos na Fazenda Boleira. Esta mesma terra, onde estou agora, foi desapropriada para criar o assentamento. Desde os 16 anos, trabalho aqui. Na fazenda, era vaqueiro. Depois que virou assentamento, minha vida mudou, né?”, lembra Seu Chico. Antes de prosseguir a conversa, o falante veterano de Jampruca faz uma pausa para informar seu nome verdadeiro e mostrar uma peculiaridade: não, não é Francisco, como se pode supor. É Aécio Galdino dos Santos. “Mas todo mundo me chama de Chico, sabe por quê? É porque eu coloco apelido em todo mundo, e aí o pessoal também resolveu botar esse apelido em mim. Minha mulher, que se chama Luci, eu até apelidei de Chica também”, conta ele, aos risos. Já na unidade de SAF de Seu Chico, o nome em voga há três anos é “diversificação” e o sobrenome, “autonomia”, cunhados com trabalho e assistência. A área não cercada é destinada à lavoura de alimentos como milho, feijão, mandioca, banana, laranja e limão. Os outros 7,37 “É muito bom preservar a natureza. Minha vida tá melhor do que na época da fazenda, quando você só via boi e pasto. Plantação era muito pouca. Hoje você vê plantação, vê floresta, vê mata. Acordo cedo, faço café, trato das galinhas e vou para o mato. Onze horas, já estou de volta. Seu Chico, agricultor assentado um bebedouro para o gado – quando a nascente for cercada – e de um biodigestor, Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e possibilidade de remuneração, caso o produtor opte por fazer as atividades de plantio por conta própria. O processo de participação é iniciado com o lançamento do edital e inscrição dos interessados. Em seguida, hectares, da terra cercada da APP, são para proteger a mata nativa. “E lá tem aroeira, carne-de-vaca, acari, moreira, jenipapeiro... Tem também sete-capotes, planta que é boa como remédio para dor de barriga. Aqui na minha área também tem represa, que é para o gado beber água. Tenho umas bezerrinhas. Umas dez”, lista Chico. As novas ações são muito bem-vindas, relata ele, pois trazem benefícios que antes eram inimagináveis na época de vaqueiro. “A diferença é hoje que estou por minha conta própria. Tenho autonomia, trabalho a hora que eu quero. Nos tempos de fazenda, não era assim. Hoje eu também sou aposentado. E tem um ‘gadinho’, um recurso que também complementa a minha renda.” A liberdade reflete-se diretamente na rotina, mais equilibrada. Os benefícios técnicos e financeiros da adesão passam pela estruturação de duas barraginhas (pequenas bacias escavadas no solo para captação de águas da chuva) na propriedade, instalação de ocorrem a validação para comprovar a adicionalidade, ou seja, se a intervenção é de fato necessária; a elaboração de projetos; a proteção (cerca) da área; a preparação do solo; e implantação e manutenção da área (por três anos). © BRUNO MIRANDA REPORTAGEM: ANDREIA PEGORETTI
  • 18. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 18 Os sons de passos em folhas secas no Vale do Sol Agrofloresta, que fica no município de Governador Valadares, região da Bacia do Rio Doce, em Minas Gerais, representam a mudança de vida nos 22 hectares do terreno. Até 2017, os pedaços vegetais não existiam no local devido à degradação da terra, mas com a chegada da família Veloso à região, foi iniciado um trabalho de manejo. O plantio de aproximadamente dois hectares, que já gera colheita, demonstra a rápida capacidade de regeneração do solo quando cuidado com a técnica certa. A repovoação de parte da área desmatada se tornou um Sistema Agroflorestal (SAF) e começou quando o advogado Felipe Veloso, 30 anos, decidiu mudar a ARECONSTRUÇÃO DEVIDAS PELOSISTEMA AGROFLORESTALNA BACIADORIODOCE Arranjo concilia a preservação ambiental e produção de alimentos sem destruir o solo © BRUNO MIRANDA HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 18
  • 19. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 19 “A biodiversidade forma esses andares da floresta e faz com que o solo esteja sempre coberto. Tudo faz parte de um macro, onde todas as plantas são boas e têm uma função, porque elas fazem parte do mesmo sistema, às vezes só são usadas da forma errada”, explicou Felipe. Um exemplo do produtor rural é o eucalipto, que é popularmente conhecido por estragar o solo. Felipe, porém, afirma existir a maneira correta de manusear e oferecer muita água e biomassa à terra. Por isso, o delinear policultural se baseia na seleção de quais espécies serão incluídas no terreno como forma de trabalhar da melhor forma o solo e não desgastar a superfície, além de trazer diversidade de funções, imitando a floresta. Trata-se de uma forma de lidar com a restauração produtiva da área que, além de frutos, já rendeu um prêmio. O projeto foi um dos vencedores do Concurso Ideias Renovadoras: Plantando Árvores e Colhendo Alimentos na Bacia do Rio Doce, em 2020. Junto com outras quatro iniciativas vencedoras e duas menções honrosas, Felipe participou de uma imersão para troca de experiências com especialistas e outros convidados. Durante o encontro, foram discutidos e pensados arranjos de SAF para a Bacia do rio Doce. O Concurso Ideias Renovadoras foi uma realização da Fundação Renova. O objetivo foi conhecer e premiar ações no território nacional que contribuam para a manutenção e retorno das áreas florestais por meio das agroflorestas. “ANATUREZASEAJUDA,NADAACONTECESOZINHO” O cheiro de terra úmida sobe quando Felipe mexe no solo. Ao se abrir a terra, as raízes e materiais em decomposição ficam à vista. A transformação do solo seco para um nutritivo aconteceu com a inserção de pedaços de madeira, folhas naturais, capim, espécies plantadas no terreno. Quando se decompõem, esses elementos tornam a terra antes improdutiva rica em rota profissional e deixar o escritório para realizar o sonho de morar no interior. O desejo também era o da esposa, a radiologista Luiza Veloso, 31, que assumiu temporariamente as contas da casa. Do topo das árvores ao solo, é possível ver o resultado da junção da vontade em comum com a audácia de alterar o rumo da vida. Em quase seis anos, as sementes e mudas plantadas se tornaram árvores de até 20 metros de altura, a terra é mais nutrida, e o ar, além de mais fresco, carrega o aroma de menta e hortelã. Toda a renovação do solo destruído aconteceu após o começo das plantações, mas a continuidade do trabalho conta com a cooperação da riqueza de espécies que já podem ser encontradas no local. Jacarandá de Minas, mogno-africano, jaricá, jatobá e eucaliptos são árvores de grande e médio porte espalhadas pelo Vale do Sol formando o primeiro “andar” da floresta. Juntas, elas contribuem para o desenvolvimento do território ao proteger as plantas menores dos raios solares e fomentar a diversidade da cultura de espécies, processo essencial para o agroflorestamento. As de tamanho inferior e arbustos também integram o ciclo de regeneração florestal ao ajudarem na qualidade do solo e, também, ao se aproveitarem dele para crescer. Para Felipe, não existe planta que não possa ser boa para o SAF, sendo apenas necessário entender a contribuição de cada uma para o sistema de forma a ser bem utilizada. Todo o crescimento da propriedade também é motivo de felicidade para Luísa que acompanha o desenvolvimento das plantas e vê crescer um sonho antigo. Além disso, a oportunidade de alimentar a família, principalmente a filha do casal, Beatriz Veloso, de 11 meses, de forma saudável com frutas direto do pé acende ainda mais a felicidade de viver no Vale do Sol. “Os jovens, hoje, querem um mundo melhor, desbravando tudo. A restauração florestal foi o que nasceu no meu coração. Felipe Veloso, advogado © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA
  • 20. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 20 boas substâncias que possibilitam o crescimento do plantio, além de ser motivo de orgulho para o agricultor. “Tá vendo a quantidade de raízes? Tem raiz de várias plantas diferentes aqui. Elas vêm buscar nutrientes na superfície porque estamos colocando a comida para a vida no solo. Então, utilizamos tudo isso aqui para cobrir o solo e replicar o que encontramos na floresta. A madeira, por exemplo, vira terra preta. Se você olhar como era antes e como está agora, é totalmente diferente”, explica Felipe. O facão que ele carrega na cintura é usado para cortar os galhos, folhas e capins do local para levar matéria orgânica ao chão. O propósito do ciclo de plantar, crescer, manejar e decompor no SAF Vale do Sol é adiantar a operação natural da queda dos galhos, das folhas, que no tempo normal leva de 10 a 20 anos. Assim, Felipe consegue acumular mais os orgânicos indispensáveis para a boa saúde do solo e reflorestar todo o espaço mais rápido. A reconstrução florestal atraiu também o teólogo argentino Matias Blacut, 37 anos, à fazenda. Em busca de outra vida, o ex-estudante de religiões se tornou auxiliar de Felipe em 2019. A satisfação de ver o nascimento do SAF anima Blacutt todos os dias para as atividades de manejo. No cuidado na produção de um sistema saudável, a dupla investe com paciência em pequenos pedaços de cada vez. Em outras palavras, o plantio ocorre em blocos. Apenas quando um já está com a terra boa, árvores desenvolvidas e manejo em dia, outra parte começa a ser preparada. Dessa forma, Felipe conta ter construído uma agrofloresta curada da antiga desnutrição. AGRONEGÓCIONOFUTURO Pé de limão, manga, milho, maracujá, hortaliças, abacate, jaca, graviola e outros alimentos também compõem os corredores de vegetação do SAF. A intenção é proporcionar uma diversidade de produtos que, no futuro, venham a dar retorno financeiro com produção de doces, compotas, geleias, polpas de frutas, hortaliças diversas e produtos derivados da mandioca. Por enquanto, o consumo é apenas interno, com direito a comer a fruta diretamente do pé, sem agrotóxicos. A educação ambiental, com ensinamentos técnicos e visitas ao local, está nos planos dos moradores do Vale do Sol. Os parentes de Felipe e Luísa pedem que eles fiquem mais na cidade, já que desde a mudança para o SAF o casal praticamente vive somente na área. Com a chegada de Beatriz, a filha de 11 meses do casal, porém, o sonho de permanecer na propriedade só cresceu. “Aqui vou criar minha filha, quero incentivar o amor pela natureza e ver tudo isso crescer mais”, finalizou. Para ele, os cerca de 20 hectares restantes que ainda precisam de cuidados são uma oportunidade para explorar a capacidade que o solo tem de renascer. OQUEÉSAF? O Sistema Agroflorestal (SAF) é o uso e ocupação do solo com produção de plantas, cultivo de árvores e produtos agrícolas que ajudam em sua recuperação do solo. O investimento nesse sistema engloba ainda uma lógica de produção que leva em conta o tipo de solo, clima, arranjos, operação, manejo, legislação e custos. Toda a construção do SAF tem como foco a garantia da convivência entre diferentes espécies de árvores e plantas de forma a trabalharem em conjunto para o crescimento da região. O desenvolvimento do sistema agrega valor não só para quem investe em busca de um retorno financeiro, mas também ao meio ambiente por trazer vida de volta a um local desflorestado. “A natureza se ajuda, nada acontece sozinho. Colocamos as árvores e plantas uma ao lado das outras porque elas necessitam uma das outras. Eu sinto felicidade quando vejo como está mais cheio desde que cheguei. Felipe Veloso, advogado © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA REPORTAGEM: DANIKLEIN E MIKAELLA MOZER
  • 21. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 21 OABCDEUMA AGROFLORESTA Abelhas, biodiversidade e consórcio na agricultura transformam sítio em referência ambiental no ES © BRUNO MIRANDA HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 21
  • 22. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 22 Até onde a vista alcança, os pés conduzem e os limites demarcam, a biodiversidade compõe a beleza do Sítio Formosa, um bom pedaço de terra de pouco mais de 55 hectares situado na comunidade de Cascatinha do Pancas, em Colatina, a cerca de 30 quilômetros da sede do município capixaba. Referência em produção agroecológica na região, a propriedade, próxima ao Rio Pancas, afluente do Rio Doce, protagoniza uma história de persistência, regeneração e transformação alimentadas por responsabilidade com o futuro e com as próximas gerações. Para o cumprimento desses propósitos, a adesão ao Sistema Agroflorestal (SAF) tem sido determinante, com a já consolidada diversificação da lavoura em substituição à monocultura do café. Do chão rachado, castigado pela seca, a um solo vivo e fartamente sombreado pelas copas das plantas, muita coisa mudou em meia década. Um passado recente que Ercilio Braun, de 55 anos, e Norma Vervloet Nass, de 47 anos – o casal de ascendência pomerana dono do sítio no Noroeste do Espírito Santo –, fazem questão de relembrar ao traçar o renovo para um presente mais produtivo e promissor. As melhorias que vieram foram, de fato, um divisor de águas, define ele. “Não tinha água nem para tomar banho. A nascente tinha secado. Não tinha água para nada. Era o início do SAF ainda, época em que muitas plantas morreram e tivemos de fazer um novo cultivo.” Com as melhores condições e muita entrega, vidas secas deram lugar à fauna e flora mais protegidas, amparadas por processos que priorizam o pacto entre a viabilidade financeira na agricultura e a consciência ambiental. Esses princípios sempre estiveram de alguma maneira presentes na família de Ercilio, pontua ele. Foram legados transmitidos pelo pai, de quem herdou seu quinhão das terras que hoje integra o Formosa, e pelo tio, de quem comprou a outra parte que completa resultantes da poda cobrem o chão e tornam-se adubo orgânico; a criação de abelhas nativas ajuda a polinizar flores, estimulando a frutificação; galinhas são criadas livres, sem gaiolas; lavouras em sistema consorciado asseguram mais eficácia ao uso da terra; a irrigação por gotejamento fornece um consumo hídrico mais eficiente e econômico; e a nascente preservada e abundante contrasta com o cenário de escassez de anos atrás. Algumas dessas cenas do cotidiano da família estão registradas em perfil em rede social, mantida por Norma para divulgar o trabalho, comprovando que a conexão com o público tem de ser mesmo em amplo sentido, em múltiplas formas e plataformas. “Preservar é importante. Pensando nas gerações futuras, nos netos. Se a gente não preservar a terra, não vamos sobreviver”, afirma ela. A formosura em estado nativo combina-se a técnicas inteligentes de cuidar do meio ambiente em 56 hectares da propriedade, 40 deles de floresta da Mata Atlântica preservada e três dedicados ao trabalho em a área. Faltava ainda aplicar esses conceitos com metodologia. E a mudança veio. ENGRENAGEMNATURALMOVIDA APREOCUPAÇÃOAMBIENTAL Hoje, o sítio é certificado do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), atestando ao mercado que o que sai de seu território é produto agroecológico. Pertence, ainda, a uma Organização de Controle Social (OCS), ao lado de sete propriedades locais, cuja expectativa, com futuras novas certificações, é vender para supermercados em todo o país e para feiras. É no eixo da sustentabilidade que giram todas as atividades da propriedade, uma engrenagem natural movida a preocupação ambiental. Folhas e galhos © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA
  • 23. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 23 SAF para produção sustentável e agroecológica. Por meio do arranjo desse Sistema Agroflorestal, árvores nativas da Mata Atlântica, como jequitibá, sapucaia e jatobá, ocupam o mesmo território das frutíferas e das plantações de alimentos, a exemplo das lavouras de arroz, abóbora e batata. Café, manga e acerola – os carros-chefes entre as culturas – são colhidos totalmente livres de agrotóxicos para sustentar a família e abastecer o mercado, assim como os frutos das outras frentes – mamão, banana, cupuaçu, cacau, abacate, maracujá e cítricos em geral. A finalidade é, de fato, ter uma grande variedade no mesmo ambiente, “uma protegendo a outra”, frisa Ercilio, ao embrenhar-se entre as plantações para mostrar o patrimônio verde que mantém. “Tem bastante coisa, um pouquinho de tudo, né? A gente faz parte de uma cooperativa aqui, a CAF Colatina – Cooperativa dos Agricultores Familiares de Colatina, que tem uma agroindústria que processa as frutas, faz a polpa para entregar para merenda escolar. Nosso plantio de manga tem uns 200 pés. A acerola, a gente entrega também para a cooperativa”, informa. O sistema da consorciação de culturas, que abrange a lavoura de mais de uma espécie, mostrou-se um alternativa bem-sucedida à monocultura. “Aqui, por exemplo, a pimenta está consorciada com o cacau; e o café, com a acerola. Sempre tive a intenção de formar um SAF, de fazer algo diferente, de plantar de forma consorciada. Meu pai sempre falava: você economiza deixando de comprar lá no supermercado, você tem a sua produção. Produzir seu próprio alimento é muito mais saudável. É um alimento fresco que você tem ali no dia a dia.” RECONHECIMENTOPREMIADO Tanto empenho na conservação conquistou nos últimos anos reconhecimento e prêmios, uma realidade atual bem diferente dos olhares desconfiados das pessoas ao redor em tempos passados. O Projeto de Diversificação Produtiva Agroecológica de Ercilio e Norma sagrou-se um dos vencedores do Concurso Ideias Renovadoras: Plantando Árvores e Colhendo Alimentos da região da Bacia do Rio Doce, em 2020. A iniciativa foi selecionada pelo poder de disseminação e pela rica troca de experiências sobre os recursos hídricos. O concurso foi uma realização da Fundação Renova com instituições parceiras. O objetivo concentrou-se em conhecer e premiar ações no território nacional que contribuem para a manutenção e retorno das áreas florestais por meio das agroflorestas. A disputa “Noplaneta,nãoexistesóoserhumano,né? Temtodososdemaisseresquecompletam otodo.Temosbastantebichoaqui:macaco, cutia,paca,tatu,váriostiposdeinseto... Agenteentendequeumsítioprecisater tambémaáreadeproteçãoparaeles.Setodo mundofizesseassim,estariatudomelhor. Ercilio Braun, proprietário do Sítio Formosa © BRUNO MIRANDA © BRUNO MIRANDA
  • 24. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 24 também conferiu um prêmio ao SAF do advogado Felipe Veloso, que decidiu mudar a rota profissional e deixar o escritório para realizar o sonho de morar no interior, em Governador Valadares (MG). Antes do SAF implantado em 2018 com o apoio de entidades de assistência técnica, estudantes e demais agricultores em um Dia de Campo, houve ainda um outro momento decisivo para o negócio de Ercilio e Norma: a participação do Programa Reflorestar, em 2015, que lhes concedeu Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) pelo plantio de árvores nativas e frutíferas e regeneração natural de 11 hectares. Com cada passo dado, com cada hectare cuidado, o Sítio Formosa tornou-se um exemplo na região, recebendo estudantes e pesquisadores para visitas e estágios sobre conservação e conscientização. A cafeicultura merece um capítulo à parte nesta história, pois rendeu à família um outro prêmio recente, o segundo lugar no X Concurso de Qualidade do Café Conilon, promovido pela prefeitura local em 2022. Mal sabiam os desavisados à época que o mato no chão é parte de um plano bem elaborado para enriquecer o solo, algo que faz a diferença para a qualidade dos produtos que são escoados. “A gente usa como adubo os estercos dos animais daqui, palha de café, folhas, adubação verde e cobertura morta [técnica que consiste em distribuir sobre a superfície uma camada de palhas ou outros resíduos vegetais]. Faz toda essa sequência para melhorar o solo. A gente usa o que tem dentro do sítio e busca o mínimo possível fora dele. Usamos muito a roçada. A mata está numa altura, você corta, aquilo vai para o chão e já vai virando adubo. Então, a terra está sempre em equilíbrio, está sempre melhorando, né?”, explica Ercilio. O casal mora na propriedade há 17 anos. Somente uma única vez, há uma década e meia, ainda na fase da monocultura do café, Ercilio usou química na adubagem, uma experiência que lhe trouxe complicações para a saúde. “Fui intoxicado por ureia. Sou alérgico. Fui parar no hospital por causa da doença”, relembra. ODOCESABORDAFRUTIFICAÇÃO Dinâmicos, incansáveis e cheios de planos, os produtores introduziram no fim de 2022 mais uma atividade em seus domínios. Agregou o dulçor do mel a tantas cores e sabores já disponíveis em sua árdua, porém sensível, lida. A criação de abelhas nativas sem ferrão, chamada de meliponicultura, está em fase embrionária, mas a ideia é multiplicar a quantidade de espécimes, de altíssima relevância para a natureza e a agricultura – é atribuída a esses insetos a responsabilidade pela polinização de 90% das espécies da Mata Atlântica. A produção no recanto de Ercilio e Norma alçou seu voo inicial com a inserção de oito caixas que abrigam quatro espécies: jataí, mandaçaia, uruçu-amarela e droryana. “Os grãos de café com a polinização ficam mais graúdos, mais uniformes. Esse é um projeto que fazemos em parceria com o Jardim de Mel, que é de um morador da sede de Colatina. Dois técnicos da prefeitura trouxeram essa iniciativa para cá. A gente também tem um sistema de captura. Coloca na mata a isca na garrafa PET. As jataís, por exemplo, conseguem polinizar flores menores que as outras abelhas não conseguem.” NEMTUDOSÃOFLORES,HÁDESAFIOS Desafios, no entanto, ainda persistem, como falta de mão de obra para impulsionar a escalada da produção. Semanalmente, saem do sítio para a venda de cinco a seis caixas de alimentos. E poderiam ser bem mais. “Quinze, vinte anos atrás, a gente produzia o nosso alimento e não tinha interesse do pessoal em comprar. Hoje, é o contrário: tem muito pessoal para comprar, mas não tem a mão de obra para você dar conta da demanda”, observa Norma. Novos planos também nutrem a vida da família Braun, como a instalação da energia solar, opção mais sustentável pelo uso de fonte limpa. Presente e futuro estão lá conectados pela causa ambiental, sem perder de vista o processo produtivo. “Vejo a agroecologia como uma escolha de vida. Tem todo um trabalho social envolvido. Esperamos ser exemplo para que mais e mais famílias também façam a adesão”, conclui Ercilio. “Noinício,agenteerachamadodelouco, derelaxado.Opessoalvinhaparacáevia tudonomeiodomato.Falavaqueagente iriapassarfome.Agentejásofriamuito preconceito,ficoumuitotempoisolado, trabalhandosozinho,tentandofazeras coisas,enãotinhaapoiodeninguém. Agoraoolharmudou. Ercílio Braun, proprietário do Sítio Formosa © BRUNO MIRANDA REPORTAGEM: ANDREIA PEGORETTI
  • 25. HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM 25 HISTÓRIAS QUE RESTAURAM E INSPIRAM PRODUZIDO POR CEO DaniKlein DIRETORA DE INTELIGÊNCIA Mariana Klein DIRETOR DE ARTE Dayvid Gagno EDIÇÃO Andreia Pegoretti