1. René Magritte (1898-1967), O Espelho Falso, 1928
Se cada dia cai
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.
Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
Pablo Neruda (1904-1973)
O Universo não é uma ideia minha
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)
2. A Pantera
No Jardin des Plantes, Paris
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando o fecho da pupila
abre-se em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
Rainer Maria Rilke (1885-1926)
O mundo estava no rosto da amada
O mundo estava no rosto da amada —
e logo se converteu em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.
Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só o seu rei?
Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de mundo
e, bebendo, eu mesmo transbordei.
Rainer Maria Rilke (1885-1926)
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa (1888-1935)
Cada Qual Tem O Seu Álcool
Cada qual tem o seu álcool.
Tenho álcool bastante em existir.
Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo.
Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro.
Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio,
Como qualquer outro. Sou igual.
E por trás de isso, céu meu,
Constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.
Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)