O golpe de estado mal executado colocou o futuro da Turquia exatamente onde Erdogan mais queria: em suas próprias mãos. O que está se instalando na Turquia é de fato um regime de exceção. O presidente Recep Tayyip Erdogan aplicou um contragolpe dizimando o Judiciário, imobilizando o sistema educacional e expurgando as forças de segurança pública. O governo Erdogan abandonou, de fato, as regras democráticas. Com o contragolpe de Erdogan, os partidários do Estado Islâmico na Turquia proclamaram vitória contra a coalizão liderada pelos Estados Unidos que deixaram de dar suporte aos curdos em sua luta contra o Estado Islâmico. Erdogan está contribuindo com as prisões de militares e policiais a enfraquecer o combate ao terrorismo. Com a ditadura Erdogan, a Turquia se encaminhará inevitavelmente para o confronto entre, de um lado, os partidários do legado de Ataturk de defesa do Estado laico e os curdos e, de outro, os partidários da islamização da Turquia e defensores do Estado Islâmico. Deste confronto, pode surgir a guerra civil na Turquia que abalará toda a região de consequências geopolíticas imprevisíveis.
SOCIAL REVOLUTIONS, THEIR TRIGGERS FACTORS AND CURRENT BRAZIL
Turquia rumo à guerra civil
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TURQUIA RUMO À GUERRA CIVIL?
Fernando Alcoforado*
A atual Turquia foi parte integrante do Império Otomano que durou de 1299 a 1922, e
que compreendia territórios no norte da África, sudeste da Europa e Oriente Médio. O
Império Otomano é considerado a última potência global do mundo islâmico até os dias
atuais. Seu nome é derivado de um de seus mais importantes líderes, Osman I ou Otman
I, o fundador da Dinastia Otomana, que governaria este complexo e poderoso império a
partir de várias capitais, sendo a primeira Söğüt, depois Bursa, Edime e finalmente a
histórica Constantinopla (atual Istambul) tomada ao Império Bizantino em 1453 cuja
conquista marca o fim da Idade Média e início da Idade Moderna. O Império Otomano
foi a única potência muçulmana a desafiar o poderio da Europa Ocidental entre os
séculos XV e XIX.
A conquista otomana de Constantinopla consolidou o status do império como uma força
no sudeste da Europa e no Mediterrâneo oriental. Durante este tempo, o Império
Otomano entrou em um período de conquistas e expansão ampliando suas fronteiras na
Europa e no norte da África. As conquistas em terra foram orientadas pela disciplina e
inovação do exército otomano, e sobre o mar, a marinha otomana ajudou nesta expansão
significativamente. A marinha também bloqueou as principais rotas comerciais
marítimas, em concorrência com as cidades-estado italianas no mar Negro, mar
Egeu e mar Vermelho e com possessões portuguesas no mar Vermelho e Oceano Índico.
O Império Otomano também prosperou economicamente, graças ao seu controle das
rotas de maior tráfego entre a Europa e a Ásia. Este bloqueio sobre o comércio entre a
Europa Ocidental e a Ásia é frequentemente citado como um dos fatores determinantes
para que os reis da Espanha financiassem a viagem de Cristóvão Colombo para
encontrar outra rota de navegação para a Ásia.
A característica marcante do Império Otomano era a tolerância dos otomanos com as
tradições e as religiões dos povos conquistados. Sob a administração do sultão em
Constantinopla, estavam albaneses, sérvios, búlgaros, gregos, romenos, croatas,
árabes, curdos, turcos, berberes, e muitos outros. Tal era a extensão de seu território,
que este se dividia em 29 províncias e numerosos estados vassalos (pertencentes ao
império, mas que haviam chegado a um acordo com o soberano otomano para manter a
estrutura administrativa vigente). Com Solimão, o Magnífico, governante de 1520 a
1566, o Império Otomano tornou-se efetivamente o centro de comunicação entre
Oriente e Ocidente nos próximos quatro séculos.
Nos séculos XVI e XVII, o Império Otomano entra em um lento processo de
decadência. Ao passar o século XIX inteiro perdendo territórios, a instabilidade política
aumenta cada vez mais até que, em 1909, o sultão Abdul Hamid II é deposto por uma
rebelião. A desagregação do Império Otomano continua, com duas guerras balcânicas
entre 1912 e 1913, e as investidas colonialistas da Itália e da França, que acabam com a
presença otomana na Europa e na África. Ao participar da 1ª Guerra Mundial, ao lado
da aliada Alemanha, o Império Otomano é vencido e extinto em 1922, para dar lugar a
uma república, a atual Turquia, fundada por um destacado militar otomano, Mustafá
Kemal, "Atatürk" (seu apelido, que significa "pai dos turcos").
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Com a derrota sofrida pelo Império Otomano na 1ª Guerra Mundial e a subsequente
partilha de seu território, Atatürk liderou a Guerra de Independência Turca. Após
estabelecer um governo provisório em Ancara, derrotou as forças enviadas pela Tríplice
Entente (aliança militar entre o Reino Unido, a França e o Império Russo). Suas
campanhas militares bem-sucedidas asseguraram a libertação do país e a proclamação
da república que substituiu o antigo governo imperial otomano. Como primeiro
presidente da Turquia, Atatürk adotou um ambicioso programa de reformas políticas,
econômicas e culturais. Como admirador do Iluminismo (movimento intelectual do
século XVIII, caracterizado pela centralidade da ciência e da racionalidade crítica no
questionamento filosófico, que implica recusa a todas as formas de dogmatismo,
especialmente o das doutrinas políticas e religiosas tradicionais), Atatürk procurou
transformar as ruínas do Império Otomano em um Estado democrático e secular. As
reformas de Atatürk costumam ser chamadas de "kemalismo", e continuam a formar a
fundação política do Estado turco moderno, hoje ameaçadas pela ditadura de Recep
Erdogan.
A localização da Turquia, entre a Europa e a Ásia, torna o país geoestrategicamente
importante. A Turquia tem relações estreitas com o Ocidente com sua presença em
organizações como o Conselho da Europa, OTAN, OCDE, OSCE e G20. A Turquia
iniciou as negociações de adesão plena à União Europeia em 2005, da qual é membro
associado desde 1963 e com a qual tem um acordo de união aduaneira desde 1995. A
Turquia aderiu à OTAN em 1952 assegurando suas estreitas relações bilaterais com os
Estados Unidos durante a Guerra Fria. No ambiente pós- Guerra Fria, a importância
geoestratégica da Turquia manteve-se devido à sua proximidade com o Oriente Médio,
Cáucaso e Balcãs.
A tentativa de golpe militar visando a deposição do presidente Erdogan tinha por
objetivo assegurar a manutenção do legado de Atatürk que transformou a Turquia em
um Estado democrático e secular. O conflito aberto entre as Forças Armadas, que
garantem o Estado laico na Turquia, e o governo islâmico do AKP, partido de Erdogan,
já vinha de antes. A islamização da Turquia sob a liderança de Erdogan já estava em
curso. Desde os protestos em massa em 2013 na Praça Taksin em Istambul, a sociedade
turca estava dividida. Em política externa, Erdoğan conseguiu deteriorar as relações
com os parceiros globais e regionais como a crise na Síria ao apoiar os opositores ao
regime de Assad, agudizou as lutas no Curdistão turco, colocando o país em estado de
guerra civil. Com o Egito, Erdogamn, apoiou o general islamita Mohamed Morsi que
foi deposto por tentar islamizar o país.
Com a tentativa de golpe militar e o contragolpe de Erdogan, a Turquia está perdendo,
também, a oportunidade de aderir à União Europeia num futuro previsível, as tensões
com os Estados Unidos cresceram com a questão curda e o abate do bombardeiro russo
na Síria provocou uma crise com o governo russo. Na Turquia, a tese de que o golpe
militar seria contra o totalitarismo do presidente Erdogan, está funcionando ao
contrário, porque ele próprio, agora no contragolpe, reuniu mais forças devido à vitória
rápida, à prisão e execução sumária de opositores, que inclui centenas de soldados,
dezenas de comandantes do exército turco e até mesmo promotores e juízes, e a
censura de dezenas de veículos de mídia considerados “contra o governo”.
O presidente Erdogan utilizou a tentativa de golpe militar de 15 de Julho para lançar um
contragolpe que está encaminhando a Turquia a um estado ditatorial. A mal sucedida
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tentativa de golpe militar está sendo utilizada para Erdogan como pretexto para eliminar
da cena política inimigos, adversários e hipotéticos futuros oponentes. O expurgo posto
em marcha pelo governo e as consequências políticas internas e externas ainda precisam
ser determinadas com precisão. Erdogan irá reavaliar as dimensões de suas alianças com
os Estados Unidos e com a Arábia Saudita. Ganha força a tese de que a diplomacia turca
mudará a abordagem estratégica em relação à Rússia, ao Irã e ao fronte sírio.
O golpe de estado mal executado colocou o futuro da Turquia exatamente onde Erdogan
mais queria: em suas próprias mãos. O que está se instalando na Turquia é de fato um
regime de exceção. O presidente Recep Tayyip Erdogan aplicou um contragolpe
dizimando o Judiciário, imobilizando o sistema educacional e expurgando as forças de
segurança pública. O governo Erdogan abandonou, de fato, as regras democráticas. De
forma geral, os partidos políticos islamistas, como o de Erdogan, ainda não conseguiram
provar que é possível conviver com o contraditório, até porque a essência da política
serve para construir pontes entre os diferentes e não para impor uma visão autocrática
sobre os demais. Na Turquia, o partido AKP de Erdogan implodiu todo seu capital
político, ético e moral. Nisso tudo, a democracia turca, no leito de morte, será,
convenientemente, sacrificada.
Na Turquia, estão mobilizados os adeptos de Erdogan e seu partido AKP e de todos
partidos de oposição que também se opuseram ao golpe militar. Os partidos de
oposição, por sua vez, combatem o autoritarismo de Erdogan com o lema “nem
autoritarismo, nem ditadura: democracia”. Depois de uma semana de ampla mobilização
dos partidários de Erdogan que celebravam a derrota dos golpistas, a praça Taskim foi
ocupada também pelos partidários do partido CHP, principal partido de oposição e
herdeiro proclamado de Ataturk, fundador da República Turca inspirado no modelo
jacobino sobre os escombros do Império Otomano.
Tudo leva a crer que a Erdogan dará continuidade à perseguição dos partidários do PKK
curdo que lutam pela independência do Curdistão turco, são anti-Erdogan e anti- Estado
Islâmico. Com o contragolpe de Erdogan, os partidários do Estado Islâmico na Turquia
proclamaram vitória contra a coalizão liderada pelos Estados Unidos que deixaram de
dar suporte aos curdos em sua luta contra o Estado Islâmico. Erdogan está contribuindo
com as prisões de militares e policiais a enfraquecer o combate ao terrorismo. Com a
ditadura Erdogan, a Turquia se encaminhará inevitavelmente para o confronto entre, de
um lado, os partidários do legado de Ataturk de defesa do Estado laico e os curdos e, de
outro, os partidários da islamização da Turquia e defensores do Estado Islâmico. Deste
confronto, pode surgir a guerra civil na Turquia que abalará toda a região de
consequências geopolíticas imprevisíveis.
*Fernando Alcoforado, 76, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em
Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor
universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento
regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São
Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo,
1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do
desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de
Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento
(Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos
Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic
and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft &
Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (P&A Gráfica e
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Editora, Salvador, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento
global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes
do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012) e Energia no Mundo e no Brasil-
Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015). Possui blog